Jan2020 "Adeus, Gana" - Curadoria

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prefรกcio Adeus, Gana



Ao Leitor Janeiro é tempo de caminhar por nossas vidas — de cômodo em cômodo, listar o que precisa ser consertado, aquilo que pode ser melhorado. É assim com esta revista, que chega a este novo ano aprimorada, com o intuito de tornar ainda mais completa sua experiência literária de cada mês. O que esperar? Entrevistas em profundidade, a análise de especialistas e muitas, mas muitas referências literárias para quem tem fome de novas histórias. Atendendo a pedidos, nosso formato mudou: a primeira metade da revista é destinada a apresentar o livro e o curador, preparando o terreno da leitura, enquanto a segunda discute o livro inteiro sem medo de spoilers. O conjunto de obra e curador que você recebe neste início de ano convidam à reflexão — Adeus, Gana, o livro em sua caixinha, narra a saga de uma família que precisa fazer as pazes com o passado após a morte de seu patriarca. Revisitando situações traumáticas e analisando suas reverberações no presente, cada personagem busca a redenção à sua maneira, em um enredo que tece de forma poética a delicada e frágil teia que forma uma família. O curador, José Eduardo Agualusa, é um mestre do otimismo: você vai conhecer sua obra e seu olhar tão único para a identidade africana em uma entrevista exclusiva. Esperamos que sua leitura do mês seja uma de olhar para dentro. De atravessar, junto com o quarteto de irmãos protagonistas, os cômodos da vida. Mas que sua atenção não se detenha tanto assim nas rachaduras das paredes, e mais na luz das janelas, nas boas memórias da sua estante de livros e de todo o potencial que um novo ano carrega. Que seu ano seja carregado de boas histórias. Feliz 2020 e boa leitura!


janeiro/2020

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Revisão Antônio Augusto da Cunha Gustavo Lembert da Cunha Liziane Kugland

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Como manusear a nova revista

Ao chegar à página dupla que separa prefácio e posfácio, gire a revista no sentido inverso.

Recomece a leitura a partir da contracapa e divirta-se!


Sumário prefácio

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O curador: José Eduardo Agualusa

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A estante do autor

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O curador em cinco livros

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O livro indicado: Adeus, Gana

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Literaturas afropolitanas possíveis


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O curador de janeiro

José Eduardo Agualusa

Fotografias: Sérgio Santimano Texto: Fernanda Grabauska

Há mais de 150 anos, Lewis Carroll apresentava a história de Alice no País das Maravilhas perguntando-nos o que é a vida senão um sonho. A ficção de José Eduardo Agualusa oferece, na contemporaneidade, ares de confirmação ao questionamento do ficcionista britânico. Parte da leva de autores que deu início a um cânone da literatura luso-africana no período pós-colonial, o angolano coloca a realidade nos termos de um sonho — onde nem tudo se controla, mas se vive de olhos abertos. Brincando com a propensão particular a crendices de seu país de origem, Agualusa traz o lado cru de uma Angola fraturada por conflitos civis e projeta futuros de democracia nos quais constam situações fantásticas. Um vendedor de passados? Uma máquina que filma sonhos? Ambos são possíveis no imaginário do escritor, agrônomo e silvicultor de formação, que passou a publicar ficção em 1989 com o lançamento de A conjura — sua estreia literária após anos como repórter e editor em periódicos portugueses. Desde então, foram 13 romances escritos — trabalho que já foi traduzido para mais de 30 idiomas e que trouxe láureas internacionais. O vendedor de passados, lançado em 2004, é a história de um homem que oferece passados ilustres e falsos para quem os deseja. A história de Félix Ventura e seus clientes foi adaptada para o cinema em 2015 com direção do brasileiro Lula Buarque e sua tradução para o inglês ganhou o Independent Foreign Fiction Prize em 2007. Teoria geral do esquecimento

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(2012) foi finalista do Man Booker International Prize, em 2016, e vencedor do International Dublin Literary Award, em 2017. Pai de três filhos, Agualusa nasceu no Huambo, em 1960, e atualmente vive entre a Ilha de Moçambique e Lisboa, em Portugal. Já viveu no Rio de Janeiro — é colaborador do jornal O Globo — e tem estreita ligação com a literatura brasileira, fazendo questão de dizer-se um apaixonado pela obra de Jorge Amado e transformando o Rio no cenário de um de seus romances, O ano em que Zumbi tomou o Rio (2002). Tão interessante quanto as fantasias criadas pelo angolano para discutir a geopolítica de seu país é o mecanismo por trás delas. Na obra de Agualusa, as tradições e os anseios de um povo se tornam universais — ser angolano é, sim, revisitar sua história, mas participar, também, de um mundo sem fronteiras. Passado e presente convergem para sugerir futuros — bandeira literária de Agualusa que se reflete tanto em seu fazer criativo quanto em sua indicação para TAG. 6

Identidade móvel A história de Angola assemelha-se a muitas da colonização europeia. Os portugueses pisam em solo angolano no século XV, extirpando a soberania daquele povo por meio de escravidão ou morte. Ao dar-se o direito de alterar a estrutura daquela terra, Portugal usurpa a autonomia dos nativos primeiro pela escravidão e, ao fim dela, por meio de um grilhão intelectual que perdurou após o conflito sangrento que trouxe, em 1975, a independência ao país — mas que foi rapidamente seguido por um golpe de Estado. Embora veloz, essa revisão da história angolana faz entender um país cujos escritores falam constantemente em olhar sua terra de longe. Um viés temático que não se restringe à ficção de Pepetela, José Luandino Vieira e do próprio Agualusa — singrando o continente Africano. Ligam-se aí os caminhos do curador de janeiro com Taiye Selasi, autora que ele indica à comunidade da TAG: ambos vivem sob o signo do afropolitanismo, conceito tão novo quanto abrangente.


Define-se como afropolitano o migrante educado que, sem sentir a necessidade de imiscuir-se por completo a novas moradas, mistura sua cultura natal à dos países que adota. É o caso de Taiye — de origem nigeriana e ganense, popularizou o afropolitanismo como termo em uma palestra na qual pedia que não lhe perguntassem "de onde ela é" e sim de "onde é local". Essa maneira de encarar a própria vivência lhe faz local de Nova York, Roma, Berlim e Acra. O mesmo vale para Agualusa. Em entrevista à TAG, perguntado a respeito de sua ligação com o afropolitanismo, ele responde: "é exatamente como me sinto: um africano marcado pela vivência em diferentes lugares do mundo." E aponta, além de Taiye, outros autores africanos jovens que partilham destinos e sentimentos semelhantes, como o nigeriano Teju Cole e o angolano Kalaf Epalanga. Parte dos críticos mostra reservas à literatura dita afropolitana. Notadamente por ignorar migrantes menos privilegiados e sem condições de se estabelecer em camadas superiores da sociedade, como em Adeus, Gana, mas também por pouco colocar o passado colonial africano em choque contra a problemática do globalismo atual. Agualusa reconhece que a designação

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Ilustração: Jess Vieira

engloba um número restrito de escritores. "Todavia, eles existem e são o resultado de dinâmicas sociais e de processos históricos que os precederam", diz. "Esses escritores estão, também eles, interessados em redescobrir a história de África, embora o façam a partir do lugar que ocupam no presente — como é óbvio. Isso soma mais um olhar às literaturas africanas." Ele cita o exemplo de Angola, onde "passou-se algo semelhante ao que ocorreu na Nigéria: um processo político violento, que levou centenas de milhares de angolanos a procurar refúgio noutros países. Hoje temos muitos escritores angolanos que dão testemunho dessa condição: por exemplo, Sousa Jamba (que, entretanto, regressou ao país); Djaimilia Pereira de Almeida ou Yara Monteiro".


Um romance de abrir os olhos Essa nova voz africana, continua Agualusa, deixa entrever o pouco que se conhece de um continente que apenas agora consolida literaturas nacionais. O angolano é direto ao explicar por que lhe ocorreu a ideia de indicar Adeus, Gana para os associados: "é um romance que dá a ver um lado de África muito diferente daqueles que os brasileiros conhecem (do pouco que conhecem). Ou seja, um romance com personagens africanos cosmopolitas e universais, não deixando de estar profundamente enraizados a riquíssimas tradições ancestrais." Agualusa destaca que se, no Brasil, a literatura africana é fenômeno relativamente novo, seus autores pouco a pouco deixam de ser avis rara em países europeus. Ele cita autores como Chimamanda Ngozi Adichie, Alain Mabanckou, Helen Oyeyemi, Bernardine Evaristo (ganhadora do Booker Prize de 2019), Mia Couto, Ondjaki, Pepetela... "e tantos, tantos outros, muito lidos na Europa, sobretudo em França, Reino Unido e Portugal. Nesses países, as literaturas africanas já não são encaradas como exóticas. São bem conhecidas e apreciadas", afirma. Provocado a falar sobre os índices de leitura em Angola, país que tenta encontrar seu rumo em meio a inacabáveis conflitos, Agualusa descreve a sede de conhecimento que vê nos compatriotas:

“Temos ainda poucos leitores, é verdade. Contudo, sinto que existe um público ávido por livros. Nos lançamentos que fiz em Angola, emocionei-me sempre ao testemunhar a presença de dezenas de jovens leitores muito entusiasmados e muito críticos.” Para aumentar o acesso dos angolanos e dos brasileiros também à cultura, Agualusa diz, a solução é uma só: “o mais importante é conseguir que esses leitores tenham acesso aos livros. Apostando, por exemplo, na criação de boas redes de bibliotecas públicas”.

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A estante do autor

O curador em cinco livros

O primeiro livro que li: Não me lembro.

Estação das chuvas (1996)

O livro que estou lendo: O oráculo da noite, de Sidarta Ribeiro.

Biografia romanceada da poeta e historiadora angolana Lídia do Carmo Ferreira, desaparecida em 1992 na retomada do conflito civil angolano. O vendedor de passados (2004)

O livro que eu gostaria de ter escrito: a Bíblia e o Corão (pensando nos direitos de autor).

A história de Félix Ventura, que ganha a vida vendendo passados ilustres — e falsos — a quem os deseja comprar.

O último livro que me fez chorar: Alguém para correr comigo, de David Grossmann

As mulheres do meu pai (2007)

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O último livro que me fez rir: Enciclopédia da história universal — recolha de Alexandria, de Afonso Cruz. O livro que eu não consegui terminar: Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes. O livro que eu dou de presente: Ficções, de Jorge Luis Borges. O livro que mudou a minha vida: meu primeiro romance, A conjura.

Segue a tentativa de Laurentina, irmã mais nova entre 18 filhos, de reconstituir a trajetória do pai, que deixou também sete viúvas ao morrer. Teoria geral do esquecimento (2012) A curiosa história de Ludo, angolana que se tranca no seu apartamento com o país à beira da independência. A sociedade dos sonhadores involuntários (2017) Um jornalista que sonha com pessoas que não conhece se lança a uma busca que o leva aos inventos de uma máquina capaz de filmar os sonhos alheios.


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Adeus, Gana de Taiye Selasi

Publicado originalmente em 2013, o livro que você tem em mãos chegou ao mundo com expectativas e badalações incomuns para um romance de estreia. Taiye Selasi, autora da obra, surgiu munida de um currículo invejável: teve como mentora ninguém menos que Toni Morrison (1931–2019), recebeu aplausos entusiasmados de Salman Rushdie e elogios de escritores como Penelope Lively e Teju Cole. Seu aclamado ensaio O que é um afropolitano?, publicado em 2005, deu voz a um grupo de jovens cosmopolitas de origem africana que, como ela, possuem raízes em diversas partes do mundo (a segunda geração da diáspora africana desencadeada pelos conflitos dos anos 1970 e 1980) e desafiam estereótipos. Para além do mundo da literatura, ela se aventura também na fotografia e no cinema, com resultados geralmente impressionantes. Os sonhos e metas de Selasi, 40 anos, sempre foram ambiciosos. Filha de pai ganense e de mãe nigeriana, Selasi é a descrição quase dicionarizada do afropolitano: nasceu em Londres, foi criada pela mãe em Boston, viveu experiências formativas com o pai na Índia, morou em cidades como Acra, Nova York e Roma e hoje reside em Berlim. Com uma realidade financeira favorável (outra característica indissociável ao afropolitano),

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Ghana must go, título original do livro do mês, tem um sentido que chegou à tradução: ghana-must-go, substantivo inglês, é um estilo de bolsa, usado por migrantes, especialmente ganenses quando foram forçados a deixar a Nigéria na década de 1980.

foi educada em espaços privilegiados: seu histórico acadêmico inclui as universidades de Yale, nos Estados Unidos, e Oxford, na Grã-Bretanha. Em ambas, foi uma estudante de destaque, tendo se formado com honras. Após a publicação de seu O que é um afropolitano? em 2005, Taiye conviveu com uma síndrome do impostor que a impedia de se considerar uma escritora propriamente dita. Mas o acaso lhe deu um “empurrãozinho qualificado”. Em uma festa de encerramento em Oxford, sentou-se ao lado de Toni Morrison, e as duas acabaram se tornando amigas. Após uma série de encontros já nos Estados Unidos, onde ambas moravam à época, a vencedora do Nobel de Literatura deu um ultimato à jovem. A escritora relembra que, naquele encontro, Toni lhe disse: “Sempre que a encontro, Taiye, espero que você me traga um manuscrito. Estou lhe dando um prazo: você tem até o final de dezembro para entregá-lo a mim”. A reação de Taiye foi a única possível. “O que eu poderia fazer?", ela se perguntou e, em dezembro, cumpriu o prazo imposto pela amiga. Selasi enviou a Morrison As vidas sexuais das garotas africanas, conto desconcertante sobre o abuso sexual de uma jovem nigeriana recebida por um casal de tios em Gana. Aprovado pela mentora, o conto foi publicado pela revista literária Granta e, mais tarde, selecionado para o livro Best American Short Stories de 2012. Pouco tempo passou até que Selasi, entusiasmada com a repercussão de sua escrita, tomasse a decisão de escrever um romance. A ideia lhe surgiu de forma repentina, em meio a um retiro de ioga. As primeiras cem páginas vieram rápido, mas logo ela teve de conviver com o temido bloqueio criativo, que lhe consumiu por meses a fio. Em 2013, juntou os temas que lhe eram mais caros e, como Morrison já fizera no passado, publicou o livro que gostaria de ter lido. Adeus, Gana, comovente romance que chega ao associado em tradução inédita, é uma obra sobre o reencontro de uma família estilhaçada obrigada a lidar com as mentiras e segredos que permeiam seu passado. No centro da narrativa, paira o impacto da morte de seu patriarca, Kweku Sai, sobre aqueles que deixou. Dividido em três partes, o romance parte da morte de Sai, renomado cirurgião ganense que partiu ainda


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Fotografia: Reprodução, Instagram

jovem para a América. Após abandonar a família, ele retorna ao país de origem, onde morre após um ataque cardíaco. Os momentos finais de Kweku são narrados gradualmente, intercalados por flashbacks que retomam a história do médico. Descobrimos que ele teve duas esposas: a primeira foi a nigeriana Folasadé Savage, que deu à luz seus quatro filhos e com ele construiu uma vida no estado de Massachusetts. O lar do casal emanava a sensação de um “esforço contínuo, de um movimento ascendente, uma coisa sendo construída — Uma Família de Sucesso”. Os problemas surgem a partir de um episódio de racismo escancarado, que leva Kweku ao desemprego e causa uma ferida tão profunda que acaba com sua fuga da família, deixada à


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deriva e traumatizada nos Estados Unidos. Mais de dez anos depois, enquanto a segunda esposa de Kweku, Ama, dorme no quarto de sua nova casa, o médico reconhece os primeiros sinais de que seu coração está falhando. Passiva e surpreendentemente, no entanto, entrega-se ao infarto e morre no quintal. Do outro lado do oceano, a notícia chega aos filhos de Kweku e Folasadé. Afirmar que a relação entre os rebentos não é boa é um eufemismo — a carga emocional do passado cria repulsa entre os irmãos. Cada um dos jovens Sai expõe um prisma particular de luto, mágoa e trauma. O primogênito é Olu, cirurgião de sucesso como Kweku, responsável e correto, casado com uma jovem de origem asiática a quem ama incondicionalmente, embora não consiga reconhecê-la como família. Há também Kehinde e Taiwo, os gêmeos brilhantes, de aparência magnética, cujas vidas foram abaladas por um horrível incidente na adolescência. Kehinde é agora um artista plástico genial e recluso; já Taiwo, sempre em busca de aprovação, vive um drama após protagonizar um escândalo em sua faculdade. Por fim, temos Sadie, a mais nova, que embora tenha sido sempre alvo do favoritismo dos pais, jamais se sentiu parte de uma família. Sua falta de esteio é amplificada pela constante comparação às amigas ricas, brancas e provenientes de tradicionais famílias americanas. Mãe e filhos se reencontrarão para o velório de Kweku em Gana, onde Folasadé os espera ansiosa. As dramáticas consequências da primeira partida de Kweku são desveladas pouco a pouco. A narrativa, que descreve com uma prosa marcadamente poética e musical seus episódios de trauma, amor e traição, é recheada de revelações que abrangem gerações e transpõem fronteiras, partindo da África Ocidental e transitando por Nova Inglaterra, Londres e Nova York. Apesar de priorizar as relações entre os Sai, Adeus, Gana ultrapassa os limites do drama familiar. Ao debater temas universais enquanto narra uma história cheia de particularidades, Taiye Selasi amplifica o coro contra a generalização das experiências africanas. O livro não só resume o afropolitanismo (diáspora, imigração, a construção de uma família em uma cultura distinta)


como também promove uma empatia completa por meio de seus motores (trauma, culpa, o pertencimento a esta ou àquela terra, o fracasso nos papéis parentais). Como leitura, tem o trunfo de ser uma obra que — depois de dar um nó do estômago do leitor — muda sua visão de mundo.

Hoje com traduções para mais de vinte e cinco idiomas, Adeus, Gana foi um sucesso ao redor do mundo logo após sua publicação, transformando Salesi em uma das revelações literárias daquele ano. Além de ter sido incluída na edição de 2013 da Granta, que divulga e celebra anualmente os principais escritores jovens, o romance de Taiye foi selecionado entre os dez melhores de 2013 pelos jornais The Wall Street Journal e The Economist, além de ter encantado boa parte dos críticos europeus e americanos. Apesar de seu entusiasmo com a literatura continuar o mesmo, a autora tomou a decisão de investir em projetos completamente diversos, cada um a seu tempo. Tanto é que, no intervalo de sete anos entre a publicação de Adeus, Gana e sua tradução para o português, Salesi publicou três contos apenas. Nesse meio tempo, ela foi produtora executiva da série de documentários Afripedia (2014), que retrata a vida de criativos advindos de cidades africanas. Com o produtor Hank Levine e o brasileiro Fernando Meirelles, criou o texto de narração do documentário Exodus — de onde eu vim não existe mais (2016), que apresenta histórias de refugiados em diversas partes do mundo. Em 2015, deu uma palestra ao TED, na qual reflete sobre a condição dos indivíduos de raízes ambíguas e identidades fluidas. “Não me pergunte de onde venho, me pergunte onde sou local”, fala que de certa forma ecoa o discurso de Chimamanda sobre o perigo da “história única”, solidificou seu conceito de afropolitanismo e lhe conferiu ainda mais respaldo no universo literário e intelectual.

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Literaturas afropolitanas possíveis O leitor da TAG pode vir a se Reunimos neste infográfico interessar por ler outros livros alguns romances de jovens (e de Taiye Selasi após finalizar outros não tão jovens) autores a leitura de Adeus, Gana. Mas africanos que, se não dialogam esse é, por enquanto, seu único sempre em consonância com romance — e, infelizmente, os temas da escritora, ajudam a seu único texto de ficção em expandir as assimilações identiportuguês. A quem recorrer, tárias em um universo de escrinesse caso? A quais escri- tores cujas origens são tão afritores poderíamos dizer que ela canas quanto intercontinentais se assemelha? Quem são seus — esta, sim, condição primordial contemporâneos afropolitanos? para a literatura de Selasi.

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Scholastique Mukasonga, nascida em Ruanda em 1956, é sobrevivente do massacre que matou mais de 800 mil pessoas da etnia tutsi em 1994, incluindo 27 membros de sua família. À época do genocídio, ela e seu irmão mais velho estavam na França, salvos pela mãe. Em 2012, Mukasonga publicou Nossa Senhora do Nilo, romance de traços autobiográficos que narra as experiências de jovens em uma escola que aplica rigorosamente a cota de 10% para meninas tutsi, em um ambiente de violência racial e conflitos políticos.


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NoViolet Bulawayo nasceu em 1981 no Zimbábue, e faz parte da primeira geração nascida após a independência de seu país. Ainda jovem, foi para os Estados Unidos concluir sua graduação. Precisamos de novos nomes (2013), o romance de estreia da escritora, acompanha infância e vida adulta da irreverente narradora Darling. Deixando um cotidiano de aventuras (e também uma realidade repleta de miséria) ao lado do seu grupo de amigos, ela parte do Zimbábue para se aventurar na América, onde nunca se livrará completamente da condição de estrangeira. 19

Angola O músico angolano Kalaf Epalanga, que conquistou fama com a banda Buraka Som Sistema, emplacou também no universo literário com Também os brancos sabem dançar (2017), seu romance de estreia. Nele, acompanhamos a história de um homem angolano que chega à fronteira entre Suécia e Noruega para tocar com sua banda em Oslo. Sem um passaporte válido — ele agora vive em Lisboa depois de escapar da guerra em seu país —, o protagonista é detido e conduzido à delegacia. Epalanga resgata, neste mundialmente aclamado romance, diversas de suas experiências musicais e literárias e evoca lugares da África, Europa e mesmo do Brasil.

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O afropolitanismo de Chigozie Obioma se estende da Nigéria (onde nasceu, em 1986), passa pela Turquia e vai até os Estados Unidos, onde atualmente reside e dá aulas de escrita criativa. Seu primeiro romance chama-se Os pescadores. Nele, quatro irmãos seguem uma vida regrada sob a égide do pai na cidade de Akure, na Nigéria. Quando o chefe da família precisa trabalhar em outra cidade, os garotos passam a aproveitar uma recém-descoberta liberdade. Ignorando ordens, o quarteto vai pescar em um rio dito amaldiçoado — uma travessura infantil que alterará decisivamente suas trajetórias.

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O escritor, fotógrafo e crítico de arte Teju Cole nasceu nos Estados Unidos, foi criado na Nigéria e voltou para a América anos mais tarde. É autor de cinco livros — entre eles está o aclamado Cidade aberta, seu romance de estreia. A obra acompanha os dias do jovem psiquiatra Julius, nigeriano que, como o autor, deixou sua terra para buscar sucesso no ocidente — mais especificamente em uma Nova York traumatizada pelo Onze de Setembro. Em suas andanças pela cidade, o protagonista reflete sobre música e literatura, compartilha informações históricas e descreve seus entornos enquanto arquiteta uma série de reminiscências sobre a Nigéria e o novo lar.


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Imbolo Mbue é natural de Limbe, em Camarões, mas, como a maioria dos escritores aqui listados, foi para os Estados Unidos concluir seus estudos acadêmicos. E, assim como os outros, foi um fenômeno de vendas, obtendo prestígio internacional. Seu romance Aqui estão os sonhadores (2016), indicado para o clube de livros de Oprah Winfrey, conta a história de duas famílias durante a crise financeira de 2008 em Wall Street. Uma delas, de camaroneses, está tentando ganhar a vida em Nova York. A outra, de americanos brancos e ricos, convive com as consequências da crise no país.

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Leia na TAG

O mundo se despedaça, Chinua Achebe (1958)

As alegrias da maternidade, Buchi Emecheta (1979)

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Fique comigo, Ayòbámi Adébáyò (2017)

Você vai achar: conflito geracional entre pais e filhos, rejeição de uma representação eurocêntrica do africano

crítica à sociedade patriarcal, gravidez como imposição, desamparo da mulher

gravidez como imposição, tradição contra modernidade, crítica à sociedade patriarcal


Atenção! Para começar a leitura da segunda parte da revista, vire-a de cabeça para baixo e feche-a. Comece a ler a partir da contracapa.

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posfรกcio Adeus, Gana


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Ao Leitor Imaginamos que você, leitor, fechou seu exemplar de Adeus, Gana. Natural que antes de dar seu veredito, precise assimilar um pouco do que foi lido. Também, pudera: o fôlego descritivo de Taiye Selasi é tão forte quanto o impacto que suas imagens oferecem. Esta segunda parte da revista oferece, sem temer spoilers, uma perspectiva crítica àquilo que você terminou de ler. Como traumas tão particulares como os dos Sai podem ser escritos de modo a nos soarem universais? Como esse mecanismo de transposição funciona, em geral, na literatura? Buscamos um especialista para, além de explicar essas questões, esmiuçar algumas marcas psicológicas impressas na visão de mundo que se lê em Adeus, Gana. Se o livro acabou e a vontade foi de encontrar alguma maneira de permanecer na prosa de Taiye, temos um presente: outra tradução inédita, dessa vez de um artigo da autora para o tabloide britânico Evening Standard. O texto, ao mesmo tempo doce e carregado da angústia acarretada pelos encontros e desencontros familiares, é uma leitura que facilita o entendimento de questões pessoais da escritora nigeriana transportadas para o enredo do livro do mês. Findas as nossas reflexões a respeito da leitura, é chegada a hora do mistério: o que virá a seguir? Vá até a última página para ler algumas pistas a respeito do livro de fevereiro — além da apresentação de nossa curadora, uma premiada escritora carioca que se consagrou ao tirar a poesia da caixa. Com uma temática que mistura na mesma estrofe catástrofes e miudezas, teve seu trabalho definido pelo colega escritor Italo Moriconi com a palavra que concordamos ser a única possível: “uma desbravadora”. Prontos?


“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.” Anna Kariênina, de Tolstói

Ilustração do mês:

Jess Vieira é artista visual, comunicadora e educadora. Natural do Gama (DF), radicou-se em São Paulo. Autodidata, utiliza as técnicas de aquarela, pastéis oleoso e seco e bordado para suas criações, que unem arte e um cuidadoso estudo de arquétipos — muitas vezes ancorado na literatura. Para a ilustração da TAG, ela se inspirou na seguinte passagem de Adeus, Gana: "... conhece essa música, esses movimentos, esse jogo de pés, esse ritmo, o corpo relaxando, os olhos fixos nos pés, ela está se movendo, sem olhar, com medo de parar de se mover, medo de erguer os olhos para a pequena plateia torcendo, ela está se movendo, ela está suando,ela está chorando (Estou dançando, ela pensa, sem acreditar, incapaz de parar)."


Sumário posfácio

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05

O amor que achamos pelo caminho

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Entre o presente e o passado

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Entrevista com Edson Luiz

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Marília Garcia: A curadora de fevereiro


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O amor que achamos pelo caminho

Neste texto, originalmente escrito para o jornal britânico Evening Standard, Taiye Salesi narra um episódio que ajuda a entender o emaranhado de afetos que é Adeus, Gana

Tolstói estava errado. Todas as famílias felizes não se parecem entre si, levei trinta anos para perceber. Foi na Índia, durante a Páscoa. Eu acabara de largar meu emprego na televisão, em Nova York, onde vivi por seis anos. Na iminência de meu aniversário de trinta anos, decidi que era hora de perseguir meu sonho: escrever. Quebrada demais para ficar em Nova York, fui para Gana morar com minha mãe em seu pequeno bangalô na frondosa Acra. Depois de um mês, meu pai apiedou-se (dela, não de mim; aspirantes a escritores são péssimos colegas de casa) e propôs que eu desse uma folga para minha mãe e fosse com ele para a Índia. Foi uma bela coincidência, dado o que o país significava para mim. Já havia estado em Delhi antes, para um casamento em 2006, mas essa viagem mudaria meu relacionamento com meu pai para sempre. Meu pai biológico, não meu pai, que fique claro. Para resumir: nasci em Londres, mas fui criada em Boston por uma mãe solteira. Meu pai biológico (nascido em Lolito, Gana) deixou a família quando minha irmã gêmea Yersa e eu tínhamos um ano; minha mãe conheceu meu pai (nascido em Greenwood, Mississippi) logo depois. Às vezes me pergunto como um professor americano de férias acabou pedindo em casamento uma pediatra nigeriana com gêmeas pequenas. Minha mãe é uma mistura de Sade e Foxy Brown com uma dançarina de Fela Kuti; “linda” fica aquém. Meu pai — lembre-se, não meu pai biológico — apaixonou-se rapidamente; eles se casaram em questão de meses e se mudaram para a casa dele em Boston. O divórcio acontece cedo e com frequência na minha família. Quando eu tinha oito anos, minha mãe

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A mãe de Taiye, Juliette Tuakli em dois momentos: com as filhas gêmeas na Inglaterra em 1980 e na Croácia, em foto sem data

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e meu pai se divorciaram. Quando eu tinha doze anos, conheci meu pai biológico. Minha mãe achou que estava na hora. Meu pai biológico, um cirurgião, morava na Arábia Saudita; nós ainda morávamos em Boston. Eles escolheram Londres como ponto de encontro, o local onde ambos viveram. Lembro-me de estar sentada no aeroporto de Heathrow com minha irmã, examinando todos os homens de aparência vagamente africana em busca de semelhanças. Quando nosso pai apareceu no saguão de desembarque, um homem bonito com os meus lábios e as mãos de minha irmã, ambas ficamos em silêncio. Soubemos imediatamente. Eu dei um passo à frente, repentinamente ansiosa, imaginando como chamá-lo. O vocativo “papai” já tinha dono, “pai” era estranho. Mas, no momento de nosso primeiro abraço, a ansiedade evaporou. O vínculo que eu esperava sentir — expressões de afeto, raiva, angústia — não existia. Este homem era um estranho. Neutro. Dei um passo para trás. Vinte e cinco anos depois, ele continuou sendo apenas isso — um estranho — quando voei para Acra para o seu aniversário de 70 anos, obediente e apavorada. As negociações de paz entre pai e filhas haviam acabado no colegial, quando meus pais começaram


a brigar sobre quem deveria pagar nossas contas. Minha formação na Milton Academy e em Yale não saiu barata. Nossa mãe ganhava dinheiro demais para solicitar auxílio financeiro, mas não o suficiente para enviar duas meninas para a escola sem precisar ter três empregos. É suficiente dizer que meu pai não facilitou a questão. Mas lá estava eu, aos 27 anos, em Acra, para o seu aniversário de 70, honrando o hábito dos africanos do oeste de sempre esquecer as diferenças na chegada de um convite para uma festa de gala. Quando nos encontramos sozinhos um dia, eu mencionei, à guisa de conversa, minha primeira viagem à Índia, ocasião em que fui apresentada à ioga. No meu retorno a Nova York, comecei a praticar regularmente, incluindo meditação. Meu pai sorriu e puxou um livro da estante de seu escritório: The god in every child [O deus em todas as crianças], um livro sobre ioga, escrito por ele. Meu pai biológico escreveu sobre ioga? Ele riu da minha perplexidade: enquanto estudava para ser cirurgião, visitou a Índia e conheceu seu guru. Ele já praticava há 50 anos. Como foi que eu — filha que ele mal conhecia e em cuja criação não havia interferido — tinha “herdado” esse caminho, essa prática, ainda me deixa perplexa. Isso foi em março de 2007. Quando voltei à Índia para encontrar meu pai de criação em 2009, meu pai biológico havia se tornado meu guruji. Ainda lembro de ter chegado àquela casa no subúrbio de Chattarpur, a casa da ex-mulher portuguesa do meu pai de criação, Nelly, e do marido australiano dela, Garry. Meu pai de criação se casou com Nelly depois de se divorciar da minha mãe. Nelly se casou com Garry depois de se divorciar do meu pai de criação. Uma funcionária bem-sucedida na Organização Mundial da Saúde, ela acabara de ser transferida para Delhi. Meu pai de criação e Nelly ainda eram bons amigos; ele decidiu visitar na Páscoa.

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Eis a armadilha:

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Taiye (D) com a irmã gêmea, Yetsa, e a mãe

Os cinco sobrinhos e sobrinhas de Nelly tinham acabado de chegar vindos de Londres para ficar com ela. Todos convergimos na Índia aquela Páscoa: meu pai de criação, a esposa do meu pai de criação, a ex-mulher do meu pai de criação, seu marido e os filhos da sua irmã. Eu nunca esquecerei quando conheci pela primeira vez esses cinco jovens sem a sua mãe, indisposta, com seus sotaques urbanos de Londres, olhos arregalados pelas ininterruptas novidades. O mais velho tinha 15 anos, mas comportava-se como um quarentão; o mais novo acabara de completar seis. Eles não tinham ideia de como me chamar quando cheguei de Acra. Mas algo engraçado aconteceu no caminho para a fazenda de Nelly: nos tornamos uma família. Aquela sensação entorpecente de estranheza que eu tinha sentido com meu pai biológico não existia com eles, quase como se a água — ou o que quer que fluísse entre nós — fosse mais espessa do que o sangue. Talvez fosse porque eu ocupava um espaço limiar entre adultos e crianças, uma “criança grande” de 30 anos que gostava de jogar futebol, contar histórias e apresentar teatrinhos. Naquele momento, eu estava tão à deriva no meu mundo quanto eles deveriam estar se sentindo no deles, tão nova no papel de garota romancista quanto eles no papel de crianças expatriadas. Mas também suspeito que minha vergonha de longa data — minha família rompida — significava que, entre nós, o vínculo jamais seria questionado. Tínhamos espaço em nossos corações para amar uns aos outros, vazios deixados por partidas no passado, um senso inato de como construir uma família a partir do amor que encontrávamos no caminho. Enquanto os adultos visitavam túmulos e torreões, eu levava meus cinco novos penduricalhos para o shopping ou para tomar smoothies de limão no Khan Market. Sempre que alguém


“Tínhamos espaço em nossos corações para amar uns aos outros, vazios deixados por partidas no passado, um senso inato de como construir uma família a partir do amor que encontrávamos no caminho.”

Traduzido de bit.ly/taiyeselasi Traduzido por: Maurício Lobo Fotografias: Arquivo pessoal Ilustração: Jess Vieira

perguntava “estes são seus filhos?”, eu explicava: “sou a ex-enteada do ex-marido da tia deles”. Um amigo indiano sintetizou perfeitamente: “Em outra época, eles eram familiares por conta do casamento. Agora, são familiares por conta do divórcio”. Mais ou menos isso. Esta é minha família: minha mãe, minha irmã gêmea, um pai que não é meu pai biológico, um pai de criação que não é meu pai e muito amor entre nós. Depois de anos de profundo embaraço, fui para Nova Delhi em 2009 e aprendi a amar essa família estendida, misturada, quebrada e emendada. Foi na Índia — com cinco crianças me dizendo todos os dias “você consegue!” — que eu finalizei as primeiras cem páginas do meu primeiro romance, Adeus, Gana. É a história de uma família, não da minha família, mas inspirada pela minha: uma família que deve se aceitar como tal em face de todos os seus defeitos. Nos dias de hoje, penso frequentemente sobre família, nos modos em que os papéis podem se combinar — pai se torna professor, tia se torna mãe, ex se torna amiga e assim por diante — e me sinto honrada por ter desempenhado mais um papel: a “fada-madrinha” das crianças que volto todo o ano à Índia para visitar. A parte da “fada” foi minha ideia; as crianças têm seus próprios padrinhos. Mas a “ex-enteada do ex-marido da tia” não resume nosso final feliz. Sim, essa família é forjada por casamentos desfeitos, pais ausentes, mães solteiras — mas somos felizes. Enquanto nos alastramos e cicatrizamos por aí, somos felizes à nossa própria maneira.

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Entre o presente e o passado

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Texto: Daniel Silveira

Adeus, Gana é um livro surpreendente. Trata-se da primeira incursão em narrativa longa da escritora Taiye Selasi e, nela, nota-se que a falta de experiência em relação à produção de romances não a impediu de escrever uma obra ambiciosa e potente, mostrando maturidade já na estreia. Narrado em terceira pessoa, o romance é dividido em três grandes blocos narrativos: “partido”, “partida” e “partir”. Os títulos funcionam como artifício simbólico para dissecar os dramas de uma saga familiar fomentada por traumas diversos, envolvendo questões como racismo, abandono, amor, desigualdade, patriarcalismo, guerra, entre outros. Desde as primeiras páginas, o narrador se mostra em permanente processo de associação com a perspectiva interior dos personagens, evitando criar qualquer tipo de distanciamento narrativo — caso mais comum em narrações em terceira pessoa. A obra, portanto, é majoritariamente construída a partir da psicologia dos personagens. A narração, ao mesmo tempo em que se furta de julgar os eventos ocorridos, vale-se dos discursos indireto e indireto livre para explicitar a subjetividade dos personagens. Como dito anteriormente, esse tipo de narração em terceira pessoa não é trivial, e podemos afirmar que seu efeito é uma das principais características da obra, pois não fomenta a hierarquia entre quem organiza a história e quem participa dela. Tendo como eixo narrativo a morte de Kweku, patriarca dos Sai, a narrativa flutua entre a perspectiva dele, a de seus quatro filhos e a de sua esposa, Folasadé. De tal modo, o leitor compreende que cada um dos integrantes da família Sai traz consigo alguma questão mal resolvida com o passado. Por isso, a obra, a todo momento, se desprende do presente narrativo e envereda por digressões reveladoras. Nesse retorno temporal, os traumas vividos são evidenciados, traçando a


construção da personalidade múltipla dos personagens, que vivem entre sentimentos opostos — a saber: afeição e rancor, lembrança e esquecimento, revolta e resignação, otimismo e pessimismo. O polo negativo desses traumas é o enfoque maior da obra, sendo trabalhado pelos integrantes da família no intuito de superá-los para encontrar a redenção pessoal. A análise psicológica dos personagens, a partir de seus danos emocionais, é sustentada unicamente pelo vigor sugestivo da linguagem empregada na obra. Se há expectativa de conhecer as causas dessas desordens internas é porque a linguagem não entrega nada de forma gratuita. Ou seja, é preciso que o leitor retribua algo para o entendimento da obra, que participe da composição dos sentidos da narrativa. No entanto, a contrapartida é gratificante: enquanto o leitor desenvolve sentido, recebe em troca valorosas imagens metafóricas de uma linguagem que anda lado a lado com a poesia. Em Adeus, Gana, um cabelo não é o conjunto de fios que povoa a superfície de um crânio, mas sim “um derramamento de petróleo. Preto e lustroso”. Um rosto não será definido por suas características biológicas, mas sim pelo que expressa na subjetividade de cada personagem. Em uma passagem do livro, Kweku olha sua filha Taiwo e percebe suas “sobrancelhas como um matagal e bochechas como rocha entalhada e olhos de pedras preciosas, seus lábios rosa da mesma cor que o interior de conchas, impossivelmente lindos, uma garota impossível”. A linguagem metafórica, marcada por sinestesias e analogias, cria imagens miraculosas a partir de um elemento banal, chegando em alguns momentos a transformar a realidade ficcional em fantasia. O leitor, portanto, pode perceber que Adeus, Gana não se trata de uma obra comum, de passatempo. Pelo contrário, adentrar a narrativa de Selasi é certeza de encontrar uma história vibrante e enigmática, que poderá trazer mais dúvidas do que certezas. Também é certo concluir, com certa facilidade, que sua voz e domínio temático condensam de forma certeira a atmosfera dos nossos tempos, marcada pela ausência do equilíbrio humanista que origina uma atmosfera social nebulosa de impasses e dúvidas em relação ao porvir.

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Entrevista

“Um romance pode salvar uma vida”

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Texto: Maurício Lobo

Não raro se ouve, a respeito de certas obras, que "mudaram a vida" de seus leitores. A psicanálise se devota, desde a gênese, à relação da vida e sua escritura em ficção — sendo a vida ela mesma uma forma de ficção, muito é possível depreender da mente humana a partir do estudo da literatura. A TAG convidou Edson Luiz André de Sousa — doutor em Psicanálise e Psicopatologia, professor da UFRGS e coordenador do Laboratório de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Política da UFRGS — a responder algumas questões a respeito de psicanálise, arte e sua relação com o trauma familiar, elemento este tão presente em Adeus, Gana.


TAG — Como estudioso de psicologia e artes, qual a importância que você vê na linguagem literária para a compreensão de nossas complexidades psicológicas? Edson Luiz — A literatura abre o campo da ficção tocando na verdade do que constitui qualquer sujeito, ou seja, somos constituídos a partir do campo da ficção. O que chamamos de EU, nossa subjetividade, é fundamentalmente uma ficção, construída a partir das histórias que herdamos, que imaginamos, que desejamos. Em outras palavras, trata-se de uma construção de narrativas — a narrativa de qualquer vida está sempre muito perto da literatura. Foi esta a aposta de Sigmund Freud ao inventar a psicanálise: que era no contato com estas narrativas que os sujeitos poderiam saber um pouco mais sobre as ficções que conduzem nossa vida. Freud insistia em dizer que os escritores antecipavam descobertas do funcionamento do psiquismo humano em relação aos psicanalistas.

O crítico de arte Harold Bloom, em seu livro O cânone ocidental, chega a afirmar que Freud só compreendeu a psicologia humana devido às peças de Shakespeare. Qual a sua opinião a respeito? Sim, Freud bebeu muito na fonte da literatura e especialmente na obra de Shakespeare, mas não exclusivamente. Autores como Goethe, Dostoiévski, Heine, Schiller, Ibsen e Sófocles, a obra deste último sendo onde especialmente se inspirou para suas elaborações e proposições sobre o Édipo na psicanálise. Elaborou vários ensaios a partir desses romances. Lembro especialmente de um ensaio que intitulou O poeta e o fantasiar, no qual mostra que o escritor, na verdade, recupera com sua obra nossas experiências infantis de construção de linguagens, de criação de mundos a partir do brincar — que nada mais são do que um exercício de liberdade imaginativa.

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Temos a chance, com a literatura, de entrar no labirinto das paixões humanas. A psicanálise, por sua vez, evidencia a lógica de funcionamento dessas paixões. Um tópico frequentemente discutido entre estudiosos é se a literatura tem algo a ensinar à psicanálise e vice-versa. Qual a sua interpretação? Sim, a literatura antecipa muitas das formulações conceituais da psicanálise. Temos a chance, com a literatura, de entrar no labirinto das paixões humanas. A psicanálise, por sua vez, evidencia a lógica de funcionamento dessas paixões.

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Um dos motores narrativos de Adeus, Gana diz respeito aos traumas familiares enfrentados pelos personagens. Você acredita que a literatura tem capacidade de auxiliar em dinâmicas familiares para que os envolvidos possam alcançar um ponto de superação desses problemas? Um romance pode salvar uma vida no sentido de ter esta função de um divisor de águas no percurso. Quantas vezes não dizemos, “depois da leitura de tal romance, nunca mais fui o mesmo”? Sim, porque ao nos aproximarmos dessas ficções podemos reconhecer, por vezes, muito de nós mesmos, de nossas paixões, de nossos sofrimentos, de nossos sentimentos, de nossos desejos, de nossas fantasias. Mas isto não necessariamente nos conduz a uma superação. É fundamental que possamos de alguma forma narrar essa experiência, tocar essa experiência. Narrar para um outro pode ser um caminho potente para que essas narrativas possam ter um efeito transformador. Freud descobriu o efeito transformador de que narrar a um outro nossas vidas poderia ter o poder de transformá-las.


Embora seja uma obra de ficção, Taiye Selasi escreve baseando-se em diversas situações da própria vida. Como a psicanálise vê o processo criativo da ficção semiautobiográfica, tanto para a perspectiva do autor como para quem o lê? Nossa vida é fundamentalmente uma ficção. Somos aquilo que podemos imaginar que somos. De certa forma, dar corpo a essas fantasias abre espaço para que possamos imaginar outras vidas possíveis. É uma espécie de utopia, ou seja, abrir espaços de vida para nossos desejos, apostar na imaginação de outros mundos possíveis. Acredito que a literatura tenha essa potência de ampliar nossa consciência do mundo e de nossa relação com nossos semelhantes sabendo um pouco mais da história que nos constituiu psiquicamente.

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O trauma dos outros Pedimos ao pesquisador que indicasse obras que tratam de conflitos familiares passíveis dessa intepretação psicanalítica. Entre "uma lista imensa", segundo ele, cinco se destacam:

A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector; Crime e castigo, de Dostoiévski; Lavoura arcaica, de Raduan Nassar; Anna Kariênina, de Tolstói e Édipo rei, de Sófocles


A curadora de fevereiro

Marília Garcia

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Fotografia: Renato Parada, Divulgação

Poeta, tradutora e desbravadora, Marília Garcia é considerada uma das vozes mais inovadoras e expressivas da nova literatura brasileira. Em 2018, levou com seu Câmera Lenta (2017) o prêmio Oceanos de literatura — tornando-se a primeira mulher brasileira a receber a láurea. Sem fronteiras em suas referências, Marília transita com graça entre a geração poética dos anos 1970 e pela poesia contemporânea brasileira; vai do cinema às artes visuais à música até se deslocar à poesia de outros países. Sua indicação para a TAG traz justamente esse elemento de intertextualidade: o romance que você receberá em fevereiro é o primeiro de um autor que até então publicara apenas poesia. Seu protagonista é um norte-americano em intercâmbio na Espanha para uma bolsa de estudos em poesia. Seus conflitos com o idioma e com seu modo de estar no mundo — seu privilégio, seu desapego da geopolítica daquilo que o cerca — dão a tônica da obra, que recebeu elogios rasgados de público e crítica à época de seu lançamento.


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