Uma casa no fim do mundo
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Bruno Miguell M. Mesquita Gabriela Heberle Paula Hentges
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Ao Leitor Chega ao fim 2019, um ano para chorar com Toni Morrison,
para nos emocionar com Jhumpa Lahiri, para conhecer uma outra África com Chinua Achebe, para confabular teorias com Julian Barnes. Em 2019, resgatamos obras esquecidas como O olho mais azul e Êxtase da transformação, publicamos Autobiografia, livro inédito de José Luís Peixoto, e estivemos na Flip com casa e programação próprias. Em agosto de 2018, havíamos enviado a nossa 500.000ª caixinha. Em 2019, dobramos este número: chegamos à marca de 1.000.000 de kits: um milhão de livros, um milhão de experiências literárias. Para fechar o time de curadores de 2019, recebemos a indicação da escritora argentina Mariana Enriquez. O livro deste mês nos apresenta a uma história muito sensível que perpassa um triângulo de amor e amizade a partir do amadurecimento de três jovens buscando encontrar o seu lugar no mundo. Michael Cunningham, o autor do mês, questiona como e quando nos tornamos adultos, abarcando o que há de mais complexo (e frágil) no nosso mundo contemporâneo: os relacionamentos humanos. Em 2020, vamos presentear uns aos outros com livros, vamos falar sobre escritores nos corredores de universidades e nas mesas de bar, vamos iniciar conversas com a frase “qual é o seu livro favorito?”. Em 2020, vamos ler mais, vamos ler juntos. Boa leitura!
Sumário
A indicação do mês
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A curadora Mariana Enriquez Entrevista com Mariana Enriquez O livro indicado Uma casa no fim do mundo
Ecos da leitura
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Woodstock – utopia e realidade Poliamor, cinema e literatura Notícias da Literatura Norte-Americana Contemporânea
Espaço do associado
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Curadoria natalina
Leia depois de ler
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Instruções para viver o presente
A próxima indicação
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O livro de janeiro
Louise Oligny
A curadora
Mariana Enriquez Quando caminha por Buenos Aires, Mariana Enriquez
vê fantasmas. Em ruas onde heranças diversas se misturam na arquitetura – e onde o passado e o presente se unem para contar todo tipo de histórias –, ela captura narrativas de horror. Sua relação com a cidade, entretanto, é apenas parte de uma obra literária cada vez mais reconhecida na Argentina e no mundo. Mas não deixa de ser um cartão de visitas da escritora e jornalista que, inspirada por Stephen King, Edgar Allan Poe e tantos outros, faz do terror e do fantástico gêneros dos quais pulsam, sutil ou explicitamente, elementos de uma realidade sombria. Mariana, hoje com 46 anos, foi expoente de um interessante revival do gênero fantástico/terror na literatura argentina junto com autores como Samanta Schweblin. Esse interesse renovado também impulsionou traduções de escritores como Sara Gallardo e Hebe Uhart para o inglês, mas que ainda estão para chegar a terras brasileiras. Publicando desde 1994, Enriquez se tornou conhecida pelos leitores brasileiros somente há alguns anos: As coisas que perdemos no fogo (2016), coletânea de contos macabros, foi sua primeira obra traduzida para o português. Cenas de autoimolação, corpos mutilados, superstições, pessoas que
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desaparecem: as narrativas surreais reinterpretam arquétipos do terror a partir do prisma de medos e traumas característicos da realidade argentina. Para Enriquez, é impossível se distanciar física e emocionalmente de flagelos como a crise econômica, a violência policial contra os mais pobres e o feminicídio. Em certos contos, ela expõe cicatrizes antigas como as de um dos episódios mais violentos da história do país: a ditadura civil-militar: “O que é uma casa assombrada na Argentina? Uma casa de onde desaparecem pessoas”, refletiu, fazendo referência aos desaparecidos do regime em entrevista à revista Suplemento Pernambuco. Quando descreve Buenos Aires em sua ficção, a escritora exibe uma qualidade ambivalente. Se por um lado fala com a propriedade de uma moradora sobre suas zonas calamitosas e esquecidas pelos turistas, por outro não se deixa levar pelo romantismo e pela nostalgia. Isso se explica pela sua condição de observadora um tanto distanciada: Enriquez é nascida e criada em Lanús, zona suburbana e empobrecida localizada 15 quilômetros ao sul da capital, e só partiu para a cidade grande quando já estava formada em jornalismo. Entre o fascínio e o desapego por Buenos Aires, a escritora conseguiu criar os espaços de suas ficções não apenas como cenários, mas como verdadeiros personagens. “Acredito no genius loci, o espírito dos lugares: um lugar, na
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minha opinião, repete a sua história, contamina o que o toca e o que o rodeia. As casas, nos meus relatos, não são refúgios. São vulneráveis”. Com uma escrita inventiva, Mariana estreou na ficção com o romance Bajar es lo peor (Descer é o pior, em tradução livre – sem edição no Brasil), quando contava somente 21 anos de idade. De uma hora para outra, tornou-se a nova sensação literária argentina. Em disputadas entrevistas, costumava contar que escreveu o livro entre taças de vinho e cigarros de maconha. Mas o sucesso não a deslumbrou. Pelo contrário – Enriquez só voltaria a publicar um livro dez anos depois, quando se sentiu segura e amadurecida enquanto escritora de ficção. Para a sua última obra, lançada em 2017, pela primeira vez Mariana abdicou da “argentinidade” sempre presente em suas ficções. Criou uma narrativa cujo cenário é um lugar indefinido do mundo. Este é o mar explora uma um universo de fantasia e estrelas do rock. No romance, para se tornar uma lenda da música é necessário lidar com seres mitológicos femininos e um mundo sombrio. Helena, a protagonista, é uma das responsáveis por manter vivo o ciclo vicioso do fanatismo, incitando as jovens fãs humanas a consumirem seu ídolo. Hoje, quando questionada sobre os autores que lhe servem de referência, Enriquez costuma citar escrito-
A escritora Silvina Ocampo, uma das referências de Mariana Enriquez.
res consagrados. Nunca esquece do autor que mudou sua vida, Stephen King, e do conterrâneo Julio Cortázar. Um nome, no entanto, recebe carinho especial: Silvina Ocampo, escritora argentina como ela, sempre viveu à sombra de outros luminares da época, como Adolfo Bioy Casares (seu marido), Jorge Luis Borges e a irmã, Victoria Ocampo. Em 2014, Mariana teve a oportunidade de escrever La hermana menor, un retrato de Silvina Ocampo, biografia da autora que, segundo ela, “na sua excentricidade e posição privilegiada conquistou uma narrativa quase secreta, pouco lida na sua época, e absolutamente original e louca, com toda a liberdade por não ser ela o centro das atenções”.
Com retórica sólida e assertividade literária similar à de Ocampo, a curadora de dezembro toma a liberdade de enxergar beleza onde nem sempre ela é óbvia. Em Uma casa no fim do mundo, encontra-se paz e resolução em meio ao desmoronamento – algo que liga o livro do mês à obra da talentosa Enriquez.
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Entrevista com
Mariana Enriquez A certeza do terror em tempos incertos e a honradez de uma lápide se misturam na fala da curadora do mês de dezembro. Em entrevista por e-mail, Mariana Enriquez respondeu a perguntas sobre o mito da “temática feminina” na literatura e sobre sua relação com Uma casa no fim do mundo, livro que indicou para os assinantes da TAG. Leia a íntegra da conversa: Nora Lezano
TAG – Como você acha que o gênero de terror tem se modernizado na literatura contemporânea? Quando surgiu o seu interesse nesse gênero? Mariana Enriquez – Penso que cada vez mais o terror contemporâneo é um gênero capaz de falar sobre tudo, uma meta de gênero: pode ser um terror social, político, relacionado ao corpo, com traumas, com o sobrenatural. O gênero é muito apro-
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priado para tempos de incerteza como estes que vivemos – também se aproxima cada vez mais do literário, com muitos escritores falando de realidades distópicas. Meu interesse surgiu quando criança, lendo sobretudo Stephen King, e outros autores ou textos que não eram necessariamente "do gênero", mas que me causaram a inquietação que procurava. Sempre foi uma busca agradável, estética e literária.
Os cemitérios são elementos frequentes em suas histórias. Por que esse fascínio? Qual é o seu cemitério favorito? Mariana – Sempre me fascinaram como lugares tabu: a morte está tão escondida em nossas sociedades e temos tanto medo dela que, para mim, os cemitérios eram e são um lugar limite onde se enfrenta aquilo que dá medo não somente a mim, mas à maioria das sociedades do Ocidente. Além disso, na Argentina, a ditadura, que coincidiu com minha infância, assassinou, mas sumiu com os corpos. Então, para mim, um túmulo nomeado é um pouco reparador; o maior horror da história do meu país tem a ver precisamente com a ausência de um túmulo.
Mariana – Eu tinha 21! Era muito jovem. Meu livro então foi publicado porque eu era jovem, e o que se buscava era um livro escrito por alguém jovem. Faz mais de 20 anos, mas a indústria não se preocupava com a literatura de mulheres. E digo de mulheres porque não acredito que exista literatura feminina: nós mulheres escrevemos e, em alguns casos, relatamos nossa experiência criativa, da qual pouco há registro em função de muitos anos de silenciamento, mas acredito que não há nenhuma essência, que uma mulher pode escrever sobre qualquer tema e que não existem temas específicos femininos. E quanto ao mercado, se nos dá lugar, temos que aproveitá-lo. Todos os espaços que se abrem devem ser aproveitados.
“Não acredito que exista literatura feminina.” Meu cemitério favorito vai mudando, mas neste momento é o Highgate, em Londres. Também gosto muito do cemitério Holt, em Nova Orleans, e o Azul, na província de Buenos Aires.
Graças a você, 28 mil pessoas receberão Uma casa no fim do mundo em dezembro de 2019. O que você diria aos associados que lerão esta obra pela primeira vez?
Você publicou seu primeiro livro quando tinha apenas 21 anos. Como você vê a importância do mercado editorial (latino-americano e mundial) para acomodar a literatura feminina?
Mariana – Que é um livro maravilhoso porque entende a família e os laços como algo fluido; é um romance triste, cheio de amor e com uma escrita absolutamente extraordinária e de grande beleza.
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ESTANTE LITERÁRIA
O primeiro livro que li: História sem fim, de Michael Ende O livro que estou lendo: Murmur, de Will Eaves O livro que gostaria de ter escrito: O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë O último livro que me fez chorar: Cidades da planície, de Cormac McCarthy O último livro que me fez rir: Meu ano de descanso e relaxamento, de Ottessa Moshfegh O livro que não consegui terminar: Termino todos os livros, inclusive aqueles que detesto O livro que dou de presente: O nervo ótico, María Gainza O livro que mudou minha vida: O cemitério, de Stephen King
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A NOSTALGIA PORTENHA de Silvina Ocampo
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DATAS ESPECIAIS 02 Aniversário da TAG 12 Nascimento de Pablo Neruda 20 Dia da Amizade 25 Dia Nacional do Escritor 28 Nascimento de Silvina Ocampo
NOTAS
O mais terrível é sentir em nossa vida, em que tudo parece se repetir, a incapacidade de escrever novamente um conto perdido. Silvina Ocampo, Cornelia frente al espejo (1988)
Mimo: Na TAG Curadoria já viajamos para a Índia, Uruguai, Portugal e muitos outros países. Choramos, apertamos o peito e nos emocionamos. Para iniciar 2020, enviamos como mimo um calendário cujos meses homenageiam doze lugares literários em busca de novas aventuras e destinos. Cada mês representa cenários de livros escritos por autores que impactaram o mundo com suas palavras como o surreal Japão concebido por Haruki Murakami, a nostálgica Nápoles de Elena Ferrante e o Rio de Janeiro de Machado de Assis. Assim como você acompanhou as histórias destes escritores, esse ano eles acompanharão as suas. Recheado de citações literárias, o mimo conta também com doze ilustrações elaboradas pela artista Jéssica Rosas (@jess.illustrates) especialmente para a TAG.
Projeto gráfico: O projeto gráfico do livro de dezembro foi elaborado pela Companhia das Letras em parceria com a equipe de design da TAG. O livro tem como pano de fundo os Estados Unidos da década de 1960, trazendo referências musicais dessa época como Jimi Hendrix, Bob Dylan, Rolling Stones e Janis Joplin. Outras referências importantes são o festival de Woodstock e outros movimentos de contracultura desse período. Para conversar com essa temática, foram utilizadas cores vibrantes e degradês, muito presentes na estética hippie. A imagem da capa faz referência a um objeto simbólico da história: "Quando me afastei da janela vi a jaqueta de couro de Bobby colocada nas costas da cadeira. O olho bordado, ciclópico, com a íris do tamanho de um disco de hóquei, fitava fixamente do couro todo gasto" (p. 82). Já para a capa da revista, trouxemos os protagonistas caminhando juntos e apontando para um futuro compartilhado.
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O livro indicado
Uma casa no fim do mundo de Michael Cunningham Michael Cunningham ainda era um adolescente perdido e
sem interesse algum por literatura quando leu pela primeira vez o romance Mrs. Dalloway (1925), de Virginia Woolf. Embora sua intenção com aquela leitura fosse nada mais que impressionar uma menina que o desprezava intelectualmente, alguma coisa mudou no jovem Michael após a experiência, e ele logo soube que ler – e, depois, escrever – poderia lhe ser valioso. Anos se passaram até que o jovem efetivamente começasse a publicar seus primeiros textos, mas foi ali que ele estabeleceu uma perpétua conexão artística e afetiva com a escritora inglesa – foi com o tributo literário a Woolf que ele se tornou mundialmente conhecido e recebeu o maior prêmio da sua carreira. Nascido em 1952 na cidade de Cincinnati, Ohio, Cunningham mudou-se jovem para o oeste dos Estados Unidos. O início da sua educação na Universidade de Stanford foi dedicado às artes visuais, escolha da qual desistiu para se encontrar na literatura. Por alguns anos, vagou pelo país se sustentando como bartender enquanto tentava escrever suas primeiras ficções – dezenas de rascunhos que tiveram o mesmo destino: a lixeira.
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Quando foi aceito como bolsista de escrita criativa na Universidade de Iowa, Cunningham viveu um breve momento prolífico, passando a publicar em periódicos locais. Não demoraria muito até que voltasse aos velhos hábitos, empacando no meio de romances e buscando sustento em bares pela cidade. A criação de um deadline pessoal foi necessária para lhe devolver um ritmo produtivo: aos 30 anos, ele deveria terminar seu primeiro livro. Golden States (1984, sem tradução para o português), lançado com um atraso não significativo em relação à meta, narra uma série de semanas na vida de David Stark, um menino de 12 anos. Embora a crítica literária o tenha recebido com algum entusiasmo, Cunningham hoje renega o roman-
ce, tornando-o artigo raro em sebos americanos. Em entrevista, o autor faz um desabafo: “Estou muito mais interessado em algum tipo de fracasso ambicioso do que no modesto sucesso de alguém que alcança seus pequenos e modestos objetivos”. Em 1988, morando em Nova York, conquistou uma nova bolsa que contribuiu para que permanecesse trabalhando em seus livros. No ano seguinte, para sua surpresa, viu o conto White angel ser publicado na revista New Yorker e na coletânea anual The best American short stories. Embora a narrativa o agradasse, Cunningham não esperava que a história tocante de um menino de nove anos e seu irmão no final dos anos 1960 fosse aceita pelo célebre periódico
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nova-iorquino – ele a enviou praticamente como deboche, imaginando que os temas delicados dos quais tratava no conto não fossem compatíveis com a linha da revista. Tanto é que tinha outros planos para a obra – ela deveria se tornar um importante capítulo no seu próximo romance, e foi o que aconteceu poucos meses depois. Em 1990, publicou Uma casa no fim do mundo, sua “verdadeira” estreia no meio literário, romance que chega aos associados na caixinha deste mês. Narrado por quatro personagens, Uma casa no fim do mundo é fundamentalmente a história dos personagens Bobby e Jonathan em diferentes fases da vida, primeiro, durante suas infâncias na pacata cidade estadunidense de Cleveland, nos anos 1960, e mais tarde em suas vidas adultas, quando dividem um apartamento na ruidosa Nova York dos anos 1980. Atravessam seus relatos as narrativas de Alice, a protetora mãe de Jonathan, e de Clare, que divide o apartamento nova-iorquino com os dois jovens, se estabelecendo como o terceiro vértice de um triângulo amoroso nada convencional. Cada um à sua maneira (as descrições dos narradores privilegiam o que geralmente nos passa despercebido), os garotos vivem traumas ainda muito jovens. Bobby, que lembra de seus momentos mais belos ao lado do irmão, Carlton – a experimentação de drogas como
maconha e LSD, a utopia hippie dos anos de Woodstock –, também narra um passado familiar trágico. Ele encontra tranquilidade no lar de Jonathan, que recebeu uma criação amorosa dos pais – muito embora o sentimento há tempos não permeasse o casamento deles. Juntos, os protagonistas vivem experiências formativas sobretudo no que diz respeito à sexualidade. Anos mais tarde, já em Nova York e na companhia de Clare, os amigos se reencontram e a vida toma outros rumos. O envolvimento dos três gera momentos de medo e incerteza, mas também de demonstrações de puro amor e admiração. E assim, entre vontades e desejos ambíguos, tentarão construir uma espécie peculiar de família, por mais que os percalços da realidade (como sentimentos de posse, cobranças familiares e eventuais amantes) pareçam desestabilizá-la a todo momento. Atravessando temas como a cultura gay nos Estados Unidos, a nostalgia hippie dos anos 1960 (marcada principalmente pela música),
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o surgimento da AIDS e o dar-se conta da morte que ronda a todos, Uma casa no fim do mundo é fundamentalmente um romance sobre uma família. E é por meio do retrato dos seus participantes que a escrita sensível de Cunningham se faz mais pungente. Ao mesmo tempo em que apresenta seus protagonistas de maneira completa e cheia de nuances, ele nunca anula suas liberdades – Bobby, Jonathan, Clare e mesmo Alice são completamente imprevi-
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síveis em suas atitudes e decisões. São essas indefinições que fazem o leitor buscar, página após página, respostas para esses carismáticos e indecifráveis personagens. A ótima recepção da crítica para Uma casa no fim do mundo foi determinante para o avanço exitoso da carreira de Cunningham, que recebeu nova bolsa e precisou de dois anos para finalizar o romance Laços de sangue no ano de 1993. Neste “épico doméstico” que atravessa ge-
uma delas – que vivem em tempos diferentes e cujas histórias se entrechocam de forma curiosa. Além de representar um tributo à autora inglesa que o inspirou na escrita, a obra rendeu a Cunningham o prêmio PEN/Faulkner de ficção e o Pulitzer, que permanece hoje como sua conquista de maior relevância.
A disseminação da AIDS é um dos assuntos abordados no livro.
rações, é narrada a história da família disfuncional Stassos. Embora já pudesse ser considerado um escritor de sucesso comercial a esta altura, o final da década de 1990 reservou para Cunningham o que até hoje é considerado por muitos como o ápice de sua carreira. Em As horas (1998), romance instigante e original que projetou o escritor ao estrelato literário, são contados os eventos de um dia na vida de três mulheres – Virginia Woolf é
Contribuiu para seu status de celebridade a premiada adaptação da obra para o cinema, lançada em 2002, dirigida por Stephen Daldry e com as atuações do trio Meryl Streep, Julianne Moore e Nicole Kidman. O êxito mundial do longa-metragem causou crescente interesse de cineastas pelo trabalho de Cunningham, e o escritor assinaria os roteiros de Evening (2007) e da adaptação homônima do livro deste mês, lançada em 2004 e protagonizada pelo ator irlandês Colin Farrell. Apesar da menor repercussão em relação ao primeiro, o filme conta com atuações convincentes e bastante fiéis aos personagens de Uma casa no fim do mundo. As aventuras cinematográficas do escritor não diminuíram sua produção literária, e Cunningham publica de forma constante desde As horas. Em 2005, publicou Dias exemplares, seguido por Ao anoitecer (2010) e A rainha da neve (2014). Sua última publicação é a coletânea Um cisne selvagem e outros contos (2015), traduzido somente em Portugal e que recebeu ilustrações da artista plástica japonesa Yuko Shimizu.
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Woodstock
50 anos
Utopia e realidade 18
Ecos da leitura
No final de semana do festival Woodstock, entre os dias 15 e 18 de agosto de 1969, cerca de meio milhão de americanos se dirigiram até a propriedade de Max Yasgur em Bethel, Nova York, durante aquele que ficou conhecido como o evento de música e arte mais icônico da história. Tendo como inspiração os ideais de paz e amor que marcaram a década que estava por terminar, Woodstock foi pontuado por performances emblemáticas e até hoje habita o imaginário de milhões como símbolo de dias idílicos. Mas, ao contrário do que imaginava o personagem Bobby, nem tudo foram flores – como Clare sabia, o oposto estava mais próximo da verdade. Funcionando como uma espécie de pano de fundo em Uma casa no fim do mundo, o festival, que em 2019 completou 50 anos, poderia ser interpretado no romance como uma analogia ao choque entre utopia e realidade. Veja neste eco fatos dos dois lados da moeda desse marco na história da sociedade ocidental.
Ecos da leitura
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Último capítulo dos "sixtie e de seus sonhos de paz
Embora a motivação por trás da concepção de Woodstock não tenha sido ideológica, e sim quase exclusivamente monetária, a narrativa que perdur após sua realização – por meio de inúmeros filmes discos e livros – fez daquele um momento singular que fechava uma década de importantes movimen tos sociais. Marcaram os anos 1960, por exemplo, celebração da contracultura (que englobava ideais pacifistas, comunitários, defendia o amor livre e a legalização de algumas drogas), além das marchas pelos direitos civis dos afroamericanos e contra a guerra no Vietnã (1959–1975), um dos principais d sencadeadores do movimento hippie.
sonho
Shows históricos
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Empunhando apenas um violão, Joan Baez e sua voz hipnotizante silenciaram milhares de pessoas por alguns minutos e, por outros, fizeram a multidão cantar em uníssono. Um dos momentos mais memoráveis da apresentação foi seu fechamento com a performance de We shall overcome, hino da marcha pelos direitos civis.
Ecos da leitura
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O atraso descomunal das apresentações, fruto da desorganização geral dos seus responsáveis, fez o festival de três dias ter um dia a mais, vindo a terminar na manhã de segunda-feira. Os 30 mil determinados que permaneceram até o fim foram presenteados com a performance icônica de Jimi Hendrix. O lendário guitarrista e a banda de apoio Gypsy Sun And Rainbows fizeram um set de duas horas que teve como ápice a interpretação do The Star-Spangled Banner, hino estadunidense recheado de ruídos caóticos que lembravam sons de bombas e destruição – referência clara à guerra no Vietnã.
Carlos Santana e sua banda de apoio eram relativamente desconhecidos quando subiram ao palco na tarde de sábado. A fusão de rock e latinidade se encaixou perfeitamente na atmosfera do festival e eles saíram dali consagrados e prontos para uma carreira que decolaria logo depois. Colocados entre os shows de Janis Joplin e The Who, headliners de Woodstock, o conjunto de funk Sly and the Family Stone foi uma grata surpresa para o público, que recebeu a medida exata de energia que desejava desesperadamente naquele momento com canções que hoje são clássicas como Dance to the music e I want to take you higher.
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Tragédias Três mortes foram oficialmente registradas durante o festival: duas por overdose de drogas e outra por um trágico acidente. O jovem Raymond Mizak, 17 anos, foi atropelado por um trator enquanto descansava em um saco de dormir.
Trânsito caótico e riscos médicos As cenas da estrada que levava ao festival eram assustadoras: cerca de 16 quilômetros ficaram completamente paralisados durante os quatro dias, forçando as pessoas a abandonarem seus carros e irem a pé. Isso também significava um grande problema para a saúde dos presentes, já que nenhuma ambulância conseguiria chegar a tempo. Dados oficiais registraram 797 problemas com drogas, 23 crises epiléticas, 57 casos de insolação e 176 ataques de asma.
Polui
Por mais q época tran cuidados c foi exatam 1969 no pe de lixo sub festival, um
Chuva
A chuva torrencial que persistiu p os dias do festival trouxe tantos pr artistas – The Grateful Dead e seu encharcados que o digam – quant que precisou se esconder em barr o que era possível para conseguir rante os momentos mais intensos 22
As projeções dos organizadores contabilizavam cerca de 50 mil pessoas durante os três dias. Para a surpresa de todos, o número foi de 500 mil – a partir desse gigantesco erro de cálculo, a maior parte dos problemas começou a surgir.
pesadelo
ição
Público muito além do esperado
Higiene precária Apenas 600 banheiros químicos foram instalados. Isso significa que havia um para cada 833 pessoas, resultando em horas de filas e, eventualmente, bosques ao redor do festival se tornaram os banheiros mais acessados.
que se esperasse que os jovens hippies da nsferissem seus ideais de paz e amor para os com o meio ambiente, em Woodstock não mente o caso. De acordo com um artigo de eriódico The Village Voice, ainda havia "pilhas bindo e descendo a encosta" um mês após o ma das quais "ainda estava em chamas".
por quase todos roblemas para os us equipamentos to para o público, racas, carros e tudo algum conforto dudas tempestades.
Bandas esquecidas Da mesma forma que ajudou a imortalizar diversos artistas e bandas – e o próprio festival –, o premiado documentário Woodstock (1970) não registrou alguns dos nomes que tocaram ao longo dos quatro dias, e hoje eles foram praticamente esquecidos. Entre eles estão Quill, Keef Hartley e Bert Sommer.
Ecos da leitura
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Poliamor, cinema e literatura NOS FILMES Canções de amor (2008), Dir. Christophe Honoré
Professor Marston e as Mulheres-Maravilhas (2017), Dir. Angela Robinson Este surpreendente e elogiado longa-metragem conta a história real da vida do psicólogo William Moulton Marston, criador da Mulher-Maravilha, e das duas mulheres com quem viveu um relacionamento poliamoroso. Elizabeth Marston, advogada e psicóloga, e Olive Byrne, estudante e amante do casal, foram mulheres de atitudes progressistas e que desafiaram convenções sociais. A partir da vida secreta que os três levaram, William teve a inspiração para criar a icônica super-heroína.
Canções de amor é um inusitado musical recheado de canções pop compostas por Alex Beaupain que conta a história de Ismaël (Louis Garrel), namorado de Julie (Ludivine Sagnier) há oito anos. Ismaël convida sua amiga Alice (Clotilde Hesme) para morar com o casal. Passeando por Paris, festejando e dividindo intimidades, esse triângulo amoroso vai passando de uma dinâmica casual para uma de compromissos. Apesar de todo entusiasmo, no entanto, o relacionamento a três vai provocar momentos de ciúmes.
Cidade Baixa (2005), Dir. Sérgio Machado Deco (Lázaro Ramos) e Naldinho (Wagner Moura) são dois grandes amigos que trabalham fazendo fretes a bordo de um barco na Bahia. Ao conhecerem a stripper Karinna (Alice Braga), a quem oferecem carona até Salvador, um tenso triângulo amoroso começa a se formar.
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Ecos da leitura
NOS LIVROS Política (2003), de Adam Thirlwell Thirlwell entrega uma trama poliamorosa em que as particularidades do afeto são combinadas com reflexões políticas, estéticas e literárias. Começando com uma incursão ao universo sadomasoquista, o autor apresenta o envolvimento entre Moshe e Nana, que, ao longo do romance, passam a compor um trisal com Anjali, a melhor amiga de Moshe – relação que tem como pano de fundo a Londres contemporânea e suas questões.
Jules e Jim – o roteiro, o romance, de Henri Pierre Roché e François Truffaut Poucos sabem, mas um dos maiores clássicos cinematográficos da Nouvelle Vague, dirigido pelo lendário François Truffaut e lançado em 1962, é uma releitura do roman-
ce semiautobiográfico do também francês Henri-Pierre Roché, de 1953. Essa é a história dos melhores amigos Jules e Jim, jovens boêmios que, ao se apaixonarem por Catherine, vivem um dos triângulos amorosos mais populares do século XX.
Niketche: Uma História de Poligamia (2002), de Paulina Chiziane Este livro é uma espécie de contraponto às outras narrativas, pois versa a respeito da poligamia em Moçambique, um costume arraigado e reservado somente aos homens. A protagonista, Rami, descobre que Tony, seu marido, tem outras mulheres e filhos em diferentes cidades do país. Tomando uma decisão inesperada, ela decide ir atrás dessas mulheres. Vale destacar que Paulina Chiziane foi a primeira moçambicana a publicar um romance na história, Balada de amor ao vento, em 1990.
Outros filmes:
Outros livros:
Três formas de amar (1994), Dir. Andrew Fleming Uma casa no fim do mundo (2004), Dir. Michael Mayer Os sonhadores (2005), Dir. Bernardo Bertolucci Vicky Cristina Barcelona (2008), Dir. Woody Allen
Henry & June (1986), de Anaïs Nin O amante do vulcão (1992), de Susan Sontag Os jardins do éden (1986), de Ernest Hemingway
Ecos da leitura
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Notícias da Literatura Norte-Americana
Contemporânea
Iniciado em 1981, o governo
republicano de Ronald Reagan ascende estimulando o livre mercado, cortes de impostos e sanções diplomáticas contra países de matriz ideológica socialista. Além disso, no intuito de impor medo aos soviéticos, libera cerca de 6% do PIB para gastos militares, acelerando, assim, a corrida armamentista da época. Em termos econômicos, Reagan, que chegou ao poder defendendo o Estado mínimo a partir do argumento de que o governo não era uma solução e sim um problema, expandiu sua política de privatiza- Ann Beattie ções e instigou o uso de verbas privadas em várias áreas em troca de incentivos fiscais, incluindo a arte. A época marcou a entrega dos principais museus e centros culturais norte-americanos à iniciativa privada, modificando a forma de ver o mercado artístico. A literatura norte-americana não escapou dessa reformulação cultural. O mercado, atento às demandas do público leitor, passou a valorizar ao seu modo as obras consideradas
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Ecos da leitura
com potencial comercial, entre elas as criações de grupos minoritários políticos que vinham emergindo desde o início da segunda metade do século XX. Os conceitos de literatura gay, negra e imigrante trazem uma série de controvérsias, e alguns autores, entre eles Michael Cunningham, preferem se afastar de qualquer definição que os associem à ideia fabricada de “escritor gay” por considerá-la limitada. No entanto, outros autores abraçaram a ideia, criando, por exemplo, grupos como o dos romancistas de literatura gay pós-Stonewall, encabeçado por Edmund White. Entre os identificados com a ideia de uma literatura gay está Andrew Holleran, escritor que ganhou visibilidade desde a publicação de seu romance Dancer from the dance (1978), que apresenta a atmosfera das noites em bares e festas gay em Nova York. Outro exemplo é a escritora Patricia Nell Warren, que iniciou suas publicações nos anos 1960, sendo reconhecida no fim da década 1970 e que escreveu ficções permeadas por relações homoafe-
tivas até 2011. Seu romance O corredor de fundo (1974) foi o primeiro romance gay a entrar na lista dos best-sellers da New York Times. A literatura de caráter neorrealista de escritores como Raymond Carver também preenche um espaço no vasto mercado editorial norte-americano. Crescido em uma família humilde, Carver criou-se em Yakima, periferia de Washington, e procurou abordar em suas narrativas temáticas como pobreza, alcoolismo e crises familiares com protagonistas da classe trabalhadora. Ann Beattie, por sua vez, modifica a classe predominante em suas obras, dando um enfoque maior à classe média norte-americana. Em seus contos e romances, é possível ver certo humor corrosivo ao abordar a vida desregrada de uma geração em ressaca do movimento flower power. Oscar Hijuelos, filho de imigrantes cubanos, ingressou no novo cânone da literatura americana com Os reis do mambo tocam canções de amor (1989), vencedor do Pulitzer de ficção. Com uma linguagem sensorial, Hijuelos narra a história de dois irmãos cubanos que chegam aos EUA munidos apenas de seus instrumentos musicais. Toni Morrison, escritora escolhida por Djamila Ribeiro para o kit TAG Curadoria de março deste ano com o romance O olho mais azul (1970), também é figura de destaque das letras norte-americanas. Morrison, vencedora do Prêmio Nobel, publicou obras até 2015, quatro anos
Raymond Carver
Edmund White
antes da sua morte, abordando relações humanas permeadas por racismo, desigualdade e migração. Há ainda uma geração diversa nascida nos anos 1980 e 1990, tendo suas obras publicadas nos anos 2000. Ottessa Moshfegh é um dos nomes considerados revelação nesse meio. Moshfegh é filha de pai iraniano e mãe croata, ambos músicos, o que tornou a escritora de 31 anos fluente no jargão desta arte. Sua obra de estreia, O meu nome era Eileen (2015), é um thriller que traz uma personagem complexa e perturbada psicologicamente. O leitor acompanha a vida da protagonista que dá nome ao livro, que enfrenta um emprego enfadonho e o relacionamento abusivo com o pai, além de uma série de fantasias obscuras, em uma narrativa carregada em tensão e suspense.
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Curadoria natalina "Com qual livro você presentearia uma pessoa querida?"
Assim como nossos curadores indicam livros que marcaram a vida deles, lançamos a questão acima no aplicativo e pedimos aos associados que atuassem como curadores por um mês. Entre os (muitos!) comentários, selecionamos sete para que vocês se sintam inspirados: neste Natal, vamos presentear com leituras?
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Espaço do associado
Sara Alexander Adoro dar livros de presente. Sempre procuro o livro que tenha a ver com a pessoa. Os últimos que dei de presente foram O Capote, de Nikolai Gógol, e A hora da estrela, de Clarice Lispector. Dois livros bem diferentes para pessoas completamente diferentes!
Meus favoritos da vida, e as possíveis indicações, são: O filho de mil homens, Contos de cães e maus lobos, Meus desacontecimentos e Quase memória. Para crianças, qualquer um do Roald Dahl (eu amooooooooo).
jéssika Sheila Criança: Onde vivem os monstros, de Maurice Sendak. Pré-adolescente: O livro selvagem, de Juan Villoro. Adolescente: Persépolis, de Marjane Satrape. Adulto: O arroz de palma, de Francisco Azevedo.
Paola Presenteei uma amiga com O peso do pássaro morto, que inclusive foi uma indicação que recebi aqui. Livro que me tocou muito.
Semana passada dei O xará para uma amiga.
graziela Meu próximo presente (já comprado) é Um girassol nos teus cabelos – poemas para Marielle Franco, publicado pelo coletivo Mulheres de Letras. Quem vai ganhar é uma amiga que mora em Paris e participa do grupo Mulheres do Brasil.
Rochelle A morte de Ivan Ilitch, Persépolis, A roda da vida, O olho mais azul, O deserto dos tártaros... Tantos…
Espaço do associado
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Este espaço foi pensado para você retornar à leitura da revista depois de ter terminado o livro. Mensalmente, convidamos um especialista em Literatura para produzir um texto exclusivo para você analisar a obra de forma mais complexa.
Spoiler!
Instruções para viver o presente Em certo ponto de Uma casa no
fim do mundo, Clare afirma querer uma vida calma, mas também chocante. Um dos três vértices do triângulo amoroso criado por Michael Cunningham, ela fala por todos os personagens da narrativa. Essa autoprojeção ambivalente fica clara também no discurso da mãe de Jonathan após o funeral do marido – quando afirma que acha que “é covarde permanecer”, Alice encoraja, mesmo sem saber, que Clare deixe Jonathan e Bobby, levando com ela o fruto da união. E, refletindo sobre o casamento sem amor que manteve, sobre os sonhos suprimidos em nome da resiliência com que se mu-
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niciou para a criação do filho, Alice dá o tom do livro: o quanto conseguimos agir em relação ao nosso presente? O quanto sacrificamos ao, sem perceber, viver esperando? A busca dos personagens de Cunningham pela tal vida menos ordinária não se atém em momento nenhum à fidelidade socialmente convencionada, mas também não celebra a inaptidão ao compromisso. Mais do que um romance a respeito de uma relação pouquíssimo convencional, Uma casa no fim do mundo é uma ode à individualidade – com a delicadeza de um ourives, as vozes de Clare, de Bobby e
de Jonathan tramam uma relação baseada no respeito às experiências particulares. Se a alteridade dessas vozes não chega a revelar seu potencial completo durante a leitura – leitores mais atentos podem ter se perguntado o que aconteceria caso Cunningham tornasse Jonathan o único narrador do romance ou se ele mesmo fosse o narrador onisciente, recurso que mostrou dominar em obras subsequentes –, o triunfo do livro está na sua visão e na profundidade das suas preocupações.
Justamente por isso que, em vez de oferecer um fechamento às questões que explora, Uma casa no fim do mundo termina com Jonathan, Bobby e Erich nadando nus em um lago. Batismo? Talvez. Tão simbólica quanto o primeiro sacramento, a epifania final de Jonathan encerra a narrativa com a mesma tônica de delicadeza e humildade que permeia o romance: com a companhia do amigo e do amante moribundo, ele se dá conta de que viveu a vida inteira em expectativa e que ali,
"... o quanto conseguimos agir em relação ao nosso presente? O quanto sacrificamos ao, sem perceber, viver esperando?" Há uma humanidade na narrativa que ultrapassa qualquer déficit técnico. Uma casa no fim do mundo pode ser, mas não se limita a um retrato da cultura gay nos Estados Unidos, da escalada da AIDS, da ânsia por laços familiares sólidos – considerando mesmo as chagas e traumas causados por famílias como uma espécie de instituição – ou da morte que ronda a vida. É um romance fluido sobre viver o presente e a sua verdade.
naquele momento, viu a expectativa tornar-se desnecessária. Ao sentir-se feliz e nada mais, ele se descreve como “meramente presente” – talvez pela primeira vez na sua vida adulta. É escutando seus personagens com uma devoção que atravessa a prosa que Michael Cunningham escreve um romance memorável sobre estar atento ao agora. Respire, olhe ao redor e feche o livro.
Fernanda Grabauska é jornalista e editora dos clubes TAG Curadoria e Inéditos.
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O curador de janeiro
Sérgio Santimano
José Eduardo Agualusa
“Um romance com personagens africanos cosmopolitas e universais, não deixando de estar profundamente enraizados a riquíssimas tradições ancestrais.” José Eduardo Agualusa é um dos nomes mais proeminentes da literatura de língua portuguesa na atualidade. Nascido em Angola, mudou-se jovem para Portugal, onde estudou Agronomia e Silvicultura, mas acabou exercendo o jornalismo. A obra de Agualusa, traduzida para mais de 30 idiomas, compreende romances, contos, novelas, livros infantis e peças de teatro. Sua publicação mais recente é O terrorista elegante e outras histórias (2019), escrita juntamente com o moçambicano Mia Couto. O livro que abre 2020 no clube por indicação de Agualusa é inédito e narra a história de reconstrução de uma família por anos desintegrada. Após a morte do seu progenitor, que também representa a gênese de tal ruptura, o resto dos seus integrantes se vê obrigado a retomar laços e, com isso, revisitar traumas passados. Profunda reflexão sobre a capacidade humana de lidar com as próprias raízes, este é o romance de estreia de sua escritora, jovem norte-americana de origens africanas, celebrada tanto pela sua literatura quanto por seus ensaios e pensatas sobre o afropolitanismo, termo que ajudou a popularizar.
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A próxima indicação
ESSES FORAM OS QUERIDINHOS DO ANO. Ainda dá tempo de comprar para presentear quem você gosta!
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