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Entre a violência e a verdade

LAURA SCHUCH

Em Coisas humanas, Karine Tuil retira da velocidade midiática questões atuais de envergadura, criando um espaço de decantação para alguns desses problemas

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Como fenômenos midiáticos atuais podem se tornar objetos pertinentes à cção? Ou, então: como a literatura pode contribuir na re exão sobre as dinâmicas coletivas do tempo presente?

Décimo primeiro romance de Karine Tuil e ganhador dos prêmios Interallié e Goncourt des Lycéens 2019, Coisas humanas tem o traço da experiência e da dedicação imersiva da autora. Advogada de formação, ela parece preencher de vida algumas de suas inquietações pro ssionais, desenrolando-as no tempo do romance. Partindo de uma curiosidade pessoal pela repercussão midiática do “caso Stanford”, em 2016 — em que um estudante da universidade norte-americana foi acusado de ter estuprado uma jovem dentro do campus —, ela contou com a consultoria de dois advogados e frequentou longamente a área reservada ao público do tribunal de Paris a m de trazer textura e nuance ao universo de seu livro.

O romance acompanha as trajetórias individuais dos personagens da família Farel, enredados no mesmo escândalo — Jean, um apresentador de televisão cínico e vaidoso em batalha permanente contra a passagem do tempo; Claire, sua esposa vinte e sete anos mais jovem, uma acadêmica feminista cuja vida regulada se transforma a partir de uma paixão fulminante; e Alexandre, o estereotípico lho da elite parisiense cuja vida é regida pela performance nos estudos e no esporte. Dividido em três partes (“Difração”, “O território da violência” e “Relações humanas”), o romance conduz o leitor lúcida e descritivamente pelo cotidiano de seus personagens, de gestos automáticos a re exões íntimas, com direito a ashbacks elucubrativos e diálogos interiores. A primeira parte apresenta os envolvidos e estabelece as peças do mecanismo que será gradualmente colocado em marcha — os ideais e máscaras que serão erodidos ao longo da trama. Em continuidade temporal, as duas primeiras partes mostram os dias anterior e posterior à noite em que se dá o motor da obra. Situada dois anos mais tarde, a terceira parte apresenta o julgamento do caso e coloca o leitor diante das declarações contraditórias de defesa e acusação e da violência que o processo produz na vida de todos os envolvidos. O leitor-jurado assiste às audiências, e a di culdade da verdade se apresenta como a outra face de uma realidade tão diligentemente retratada.

Sobre um fundo de ar do tempo (abundam as citações a escândalos sexuais famosos, como o de Bill Clinton, de Dominique Strauss-Kahn, dos ataques em massa em Colônia e do atentado contra a escola judaica em Toulouse; sem falar na coincidência do processo de escrita com a de agração do caso Weinstein e do movimento #MeToo), Tuil retira da velocidade midiática questões de envergadura. Se discussões políticas complexas, como o racismo e o sexismo, ganham visibilidade e capilaridade com as plataformas contemporâneas de comunicação, elas são privadas, pela própria dinâmica que as faz emergir, de uma análise mais profunda. Coisas humanas pode ser lido como um espaço de decantação para alguns desses problemas.

Consentimento, integração, dinâmicas de poder funcionam como um campo de exploração para duas questões de fundo que o livro faz emergir: a da verdade e a da violência. O aspecto naturalista da obra desvela que, na interface entre o íntimo e o social, há disputa. A autora esculpe a nãototalidade da verdade, expondo o leitor a choques entre suas diversas manifestações — jornalística, religiosa, coletiva, subjetiva, jurídica. A violência se desdobra não apenas em violência de gênero, classe e raça, mas também da paixão, do imprevisto, das relações parentais, das instituições, dos fenômenos de massa, da passagem do tempo. Em Coisas humanas, a vida pode ser transformada a qualquer momento por “um episódio de 20 minutos”. O livro nos conduz, com a aparente transparência de sua linguagem, a essa opacidade absoluta, irredutível, onde a nuance e a ambiguidade inscrevem na realidade o território da literatura.

Curadora do mês, Tatiana Salem Levy conta à TAG como entrou em contato com Coisas humanas, destaca as qualidades do romance e compartilha livros que a marcaram como leitora

JÚLIA CORRÊA

F oi ao ir atrás de livros sobre estupro, tema que permeia seu mais recente romance, que Tatiana Salem Levy chegou à obra da francesa Karine Tuil, de quem nunca havia ouvido falar. Assim como Coisas humanas, cujo enredo é baseado em um caso de abuso ocorrido em Stanford, Vista Chinesa, lançado em 2021 pela editora Todavia, parte de uma história real: nele, a autora luso-brasileira toma a violência sofrida por uma diretora de TV como referência para abordar a trajetória de Júlia, personagem que é estuprada em uma mata do Rio de Janeiro em plena euforia que tomou conta da cidade às vésperas da Copa do Mundo de 2014. Como avalia na entrevista a seguir, a publicação simultânea de romances com essa temática é fruto do movimento feminista atual, que, segundo ela, abriu espaço para mulheres abordarem suas experiências traumáticas.

Nascida em Lisboa em 1979, nossa curadora é um dos principais nomes da literatura brasileira contemporânea. Pesquisadora e ensaísta, ela é colunista do jornal Valor Econômico. Além de Vista Chinesa, publicou os romances A chave de casa, de 2007 (com o qual venceu o Prêmio São Paulo de Literatura como autora estreante), Dois Rios, de 2011, e Paraíso, de 2014. Sua produção também inclui elogiados contos, crônicas e obras infantojuvenis. Na conversa com a TAG, além de detalhar a sua indicação ao clube, ela menciona a escrita de um novo livro.

Como você entrou em contato com Coisas humanas? Já conhecia outras obras de Karine Tuil?

A publicação do meu romance Vista Chinesa coincidiu com a publicação de outros romances sobre estupro em diversos países — fruto, sem dúvida, do movimento feminista, que abriu espaço para as mulheres falarem e escreverem sobre suas experiências traumáticas. Fui atrás desses livros, e foi assim que me deparei com Coisas humanas. Eu nunca tinha ouvido falar em Karine Tuil, mas, depois da leitura desse romance tão forte e bem-escrito, quei logo interessada em conhecer melhor a obra da autora.

Quais vocês considera as principais qualidades do romance? Por que decidiu indicá-lo ao nosso clube?

Eu me interesso sempre pela estrutura dos romances, pela forma como as histórias são narradas. O narrador de Coisas humanas se aproxima cada hora de um personagem, mas sobretudo dos personagens do lado do acusado de estupro. Isso dá uma complexidade enorme ao livro, faz dele um mosaico de subjetividades e, consequentemente, de verdades. Supostamente, há um único fato: o estupro ocorreu ou não; mas a escrita de Tuil vai nos confundindo, levantando questões que nos fazem pensar para além do óbvio. Alguns anos antes, o acusado havia vencido um concurso de loso a com o tema "Os homens são violentos por natureza ou por causa da violência social?". O romance de Karine — com suas personagens bem-construídas, sua trama bem-amarrada, que, num determinado ponto, nos prende e não larga mais — coloca essa questão o tempo todo, mas em forma de literatura.

Imigração, feminismo, cancelamento nas redes sociais... Esses são alguns temas levantados pela obra de Karine Tuil. Em que medida você acredita que a autora captura, nesse romance, o espírito de nosso tempo?

Penso que se trata de um romance completamente imerso nos tempos que correm. Karine não deixa escapar nada, está bem atenta às questões que nos rodeiam. E também às contradições que elas carregam.

A nal, é um mundo que exige uma perfeição alcançável apenas de mentirinha, em instantâneos nas redes sociais. Está claro que todos nós, em algum momento, vamos falhar, vamos nos contradizer, vamos escorregar. É o que acontece com todos os personagens do livro. A nal, são todos feitos de coisas humanas.

A violação sexual é uma temática em comum entre Coisas humanas e seu livro Vista Chinesa, lançado em 2021 pela Todavia. Qual você considera a importância da literatura na re exão acerca de eventos traumáticos como esses?

Olha, não acho que essa pergunta tenha uma resposta muito óbvia. É mais fácil responder sobre o papel das leis, das organizações não governamentais, en m, de entidades que atuam diretamente contra a violência sexual. Mas eu poderia dizer que a literatura, através de determinada experiência com a linguagem, nos aproxima do indizível, do horror, criando empatia, nos colocando no lugar da outra. E isso é muita coisa, né?

Não faltam personagens ambivalentes em Coisas humanas, capazes de nos fazer sentir desprezo e, ao mesmo tempo, empatia por eles. Considerando a sua experiência de leitura, como você vê essa complexidade dos personagens? Houve algum que a marcou em especial? Como eu disse antes, para mim, esse é o ponto forte do livro, a capacidade da autora de complexi car os personagens. Impressionante como, em determinado momento, eu questionei a vítima e, em outros, eu odiava o acusado e tinha uma empatia enorme pela vítima. Essa oscilação dos nossos sentimentos é fascinante, pois, como leitores, nunca camos parados num mesmo lugar. Eu quei particularmente marcada pela Claire, porque ela tem um desa o enorme, com o qual me identi co. É feminista, luta pelos direitos da mulher e é mãe de um menino. Ela se pergunta o tempo todo se, como mãe, fez a coisa certa, se educou direito seu menino branco privilegiado para que ele não repita a violência da qual somos vítimas há milênios. Como feminista e mãe de um menino, acho essa tarefa a mais difícil de todas. Sou mãe de uma menina também, e acho mais fácil educar para se defender, para lutar, do que educar um menino feminista, porque tudo na sociedade ainda é feito para os meninos crescerem machistas.

Você indicou essa obra de Karine Tuil ao nosso clube. Recentemente, Annie Ernaux venceu o Prêmio Nobel. Você acompanha com atenção a atual literatura francesa produzida por mulheres? Se sim, poderia nos recomendar outras autoras que estão no seu radar? Nossa, eu amo a Annie Ernaux! Ela foi, e é, fundamental para as mulheres se escreverem, para mostrar para o mundo que as nossas questões também são literatura. Eu também gosto bastante da Leïla Slimani, da Virginie Despentes, da Delphine de Vigan.

Você deve lançar algum novo livro em breve? Tem projetos em andamento? Tenho, sim. Eu diria que estou na metade, mas a metade pode durar anos, nunca se sabe...

O primeiro livro que leu: Mico Maneco, da Ana Maria Machado, com ilustrações do Claudius.

O livro que está lendo: The Pear Field, da escritora georgiana Nana Ekvtimishvili.

O livro que mudou a sua vida: Memórias de uma moça bem-comportada, de Simone de Beauvoir, e Laços de família, de Clarice Lispector.

O livro que você gostaria de ter escrito: Moby Dick, de Herman Melville.

O último livro que a fez chorar: Garotas em tempos suspensos, de Tamara Kamenszain.

O último livro que a fez rir: Memória de ninguém, de Helena Machado (embora seja um livro tristíssimo).

O livro que dá de presente: As pequenas virtudes, de Natalia Ginzburg, e Um esboço do passado, de Virginia Woolf.

O livro que não conseguiu acabar: Finnegans Wake, do Joyce.

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