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Tribunais da ficção
J Lia Corr A
No embalo de Coisas humanas, conheça outras obras com histórias de julgamentos
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“Ao cial do tribunal citou os nomes, enquanto a presidente depositava uma bilha dentro de uma caixa a cada vez que a palavra “presente” era pronunciada. [...] Ela se dirigiu gentilmente a Alexandre Farel: era seu direito recusar até quatro deles, ele ou seu advogado.” Tal descrição detalhada dos mecanismos de um tribunal aparece em Coisas humanas, livro em que a francesa Karine Tuil narra o julgamento de um jovem acusado de estupro. Acompanhamos, então, a intensa disputa de versões entre o jovem Farel e Mila Wizman, personagem que teria sido violentada por ele.
A literatura sempre se mostrou um terreno privilegiado para a investigação da vida em sociedade e dos atos humanos — e, claro, aqueles de natureza criminosa não cam de fora. Como consequência, são frequentes as representações de personagens levados ao banco dos tribunais.
As formas de julgamento são diversas e incluem até mesmo deuses como juízes. Encenada pela primeira vez em 458 a.C, Eumênides — a última parte da trilogia Oréstia, de Ésquilo — mostra o julgamento de Orestes após ele ter matado a própria mãe ao buscar vingar a morte do pai, pela qual ela havia sido responsável. É à deusa Atena que cabe a apreciação do caso.
De qual assunto humano Shakespeare não tratou? Em O mercador de Veneza, comédia trágica escrita entre 1596 e 1598, uma dívida leva os personagens Antônio, um rico mercador, e Shylock, o célebre usurário, ao tribunal do Duque de Veneza para uma disputa singular:
Antônio assinara um contrato aceitando pagar com um pedaço de sua própria carne, no lugar dos juros, na hipótese de atraso. A peça foi levada ao cinema com atuações de Al Pacino e Jeremy Irons.
Em A casa soturna, romance de 1853, Charles Dickens questiona a morosidade da justiça com uma trama sobre uma disputa que se arrasta nos tribunais e faz com que integrantes de diferentes gerações das famílias envolvidas nutram rancor uns pelos outros. Há casos em que o suposto crime não ca claro nem para os réus. É o que ocorre em O processo, de Franz Kafka, cujo protagonista se vê em uma situação absurda, sem saber os motivos pelos quais está sendo acusado. Publicado em 1925, um ano após a morte do autor, o livro tornou-se um exemplo recorrente da irracionalidade e do terror dos cada vez mais complexos labirintos da burocracia moderna, desumanizadora e sem sentido. As disputas jurídicas aparecem também em “Testemunha de acusação”, conto publicado em 1925 por Agatha Christie. Na história, um homem é julgado pelo assassinato de uma senhora rica que zera dele seu único herdeiro. A obra ganhou uma icônica adaptação cinematográ ca dirigida por Billy Wilder e estrelada por nomes como Charles Laughton e Marlene Dietrich. Outra narrativa de tribunal é O sol é para todos, de Harper Lee. Ambientada no sul dos Estados Unidos na década de 1930, a trama gira em torno de uma garota cujo pai, advogado, decide defender um homem negro acusado de estuprar uma mulher branca. Também adaptada para o cinema, a obra foi levada à tela grande em 1962 sob direção de Robert Mulligan.
O livro de Karine Tuil mostra que, em nossa época, uma outra dinâmica de julgamento ganha proeminência: os tribunais das redes sociais. Em seu livro, a autora destaca como essa novidade tem impacto profundo na reputação das pessoas. O brasileiro Michel Laub representou essa questão em O tribunal da quinta-feira, livro sobre o julgamento coletivo que se forma em torno de um publicitário que tem conversas íntimas expostas pela ex-mulher e vira alvo de uma espécie de linchamento virtual.