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Um romance sobre a sociedade moderna
Coisas humanas discute a disfuncionalidade das relações íntimas e sociais e a onipresença das redes em um mundo que demanda exibição permanente
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Claire Farel é uma ensaísta reconhecida nacionalmente por seu engajamento com o feminismo. Casada com Jean Farel, um dos jornalistas de TV mais famosos da França, os dois têm um lho brilhante, Alexandre, estudante da Universidade de Stanford. De fora, uma família perfeita. De dentro, uma fachada prestes a desmoronar após um suposto crime de abuso sexual que toma a mídia, as redes sociais e o debate público do país europeu.
Nesse enredo, que tem como pano de fundo a sociedade francesa contemporânea, Karine Tuil traz uma re exão sobre a violência, mesclando o que chama, conforme suas palavras para a imprensa, de “brutalidade que valoriza a performance” e um mundo de “exibição permanente”, com redes sociais demandando que cada um mostre seu mundo perfeito. Ou, ao menos, perfeito para quem vê de fora. Em seu livro, Tuil escancara a fragilidade por trás das aparências e deixa às claras a disfuncionalidade da sociedade moderna e das relações humanas.
Para escrevê-lo, acompanhou por dois anos julgamentos de violações sexuais, ouvindo depoimentos de homens agressores e de mulheres se defendendo. É o que explica a riqueza e a delidade dos detalhes de seu texto. A autora buscou transcrever a violência e a complexidade da sociedade, opondo pontos de vista e sem julgamentos morais.
Em Paris, manifestantes protestam contra a violência sexual (2018)
Crédito: Jeanne Menjoulet
O livro traz ainda elementos como o movimento feminista #MeToo e suas nuances na França, propondo uma re exão sobre o papel e as condições das mulheres em tempos de maior liberdade de expressão, especialmente com as trajetórias da jovem Mila, de 18 anos, da ensaísta Claire, de 40 anos, e da veterana jornalista Françoise, de 70.
Romper padrões
Para Isabelle Anchieta, doutora em Sociologia pela USP e autora da trilogia Imagens da mulher no Ocidente moderno, a novidade do período contemporâneo é romper com a “naturalização da culpabilização feminina” e permitir a estruturação de um debate sobre abusos e assédios sexuais que não acontecia no passado. Para ela, tal mudança é fruto de avanços de direitos humanos e da luta do movimento feminista, que empoderaram indivíduos tidos como marginalizados. “A novidade é esse novo conjunto de forças que se contrapõe e desnaturaliza o que foi culturalmente construído”, explica.
Ela avalia que a importância de movimentos contra assédio e agressão sexual, como o #MeToo e o #BalanceTonPorc (“Denuncie seu porco” em francês), é alterar o jogo de poderes estabelecido. “Eles mostram como as mulheres unidas conseguiram tirar do trono guras que tinham um poder aparentemente intocável”, explica.
“Uma hierarquia é quebrada e subvertida por essa nova organização que faz uma destruição moral daquele personagem. Às vezes, até antes de um julgamento ocial pela justiça”, diz. Um dos casos mais emblemáticos é o de Harvey Weinstein, ex-produtor de Hollywood
Crédito: denunciado por dezenas de mulheres e condenado por crimes sexuais. No livro, Tuil transforma o julgamento da trama no “caso Farel”, que ocupa diariamente as manchetes e as redes na França.
Vale destacar que, devido a uma série de diferenças culturais, as manifestações feministas ganham contornos variados no país europeu. No auge do #MeToo, movimento que eclodiu nos EUA, um grupo de francesas encabeçado por guras como a atriz Catherine Deneuve e a escritora Catherine Millet produziu um manifesto que, a despeito de reconhecer a “legítima tomada de consciência a respeito da violência sexual”, aponta um suposto “puritanismo” no #MeToo e no próprio #BalanceTonPorc, mais alinhado ao grupo norte-americano. O texto gerou uma série de controvérsias. “Os porcos e seus (suas) aliado(a)s estão preocupado(a)s? É normal. Seu velho mundo está desaparecendo. Muito devagar — devagar demais —, mas inexoravelmente”, rebateu um grupo de mulheres francesas em outro texto também publicado no Le Monde.
Imigração e terrorismo
Além da violência contra a mulher, Coisas humanas trata da relação entre franceses e imigrantes, sobretudo os muçulmanos. Ensaísta e doutor em Literatura Francesa pela UFRGS, Rodrigo de Lemos recorda que essas tensões estão presentes na sociedade francesa há décadas, mas atentados como os do Charlie Hebdo (2011 e 2015), do Bataclan (2015) e o de Nice (2016) potencializaram os debates. “Especialmente sobre o islamismo, termo que se refere aos movimentos político-ideológicos extremistas inspirados no Islã e que pouco têm a ver com a prática cotidiana pací ca dessa religião”, a rma o pesquisador.
Hoje, quase 30% dos imigrantes do país vieram de nações muçulmanas, como Argélia, Marrocos e Tunísia. Lemos conta que, em regiões mais dinâmicas, como Paris,é mais fácil perceber essa multiculturalidade — na comida, na música, na moda, nos costumes e nas línguas que se escutam na rua — promovendo um ambiente mais progressista e diverso.
Mas essa não é a regra para os 67 milhões de habitantes do país, em especial os de cidades pequenas e médias, onde é mais frequente a presença de grupos menos favorecidos pela globalização. “Podemos observar, por vezes, um fechamento identitário em torno de comportamentos ‘tipicamente franceses’”, comenta. “Para alguns, a defesa da baguete com queijo camembert contra o kebab árabe virou realmente um combate”, compara. Lemos explica ainda que a luta contra a in uência da Igreja durou séculos na França, culminando em um estado laico a partir do século XX, um valor forte na sociedade atual. “Esse é um dos elementos por trás de polêmicas como a da lei de 2004 que proibiu o véu islâmico (e quaisquer símbolos religiosos) nas escolas públicas e laicas, e a discussão sobre a observância às restrições alimentares muçulmanas nas cantinas escolares.”
Segundo Rodrigo de Lemos, o mesmo se dá com os direitos sexuais, sobretudo de mulheres e de minorias, já que foram importantes na história francesa o feminismo e o ativismo LGBTQIA+. “Muitos se identi cam com a imagem internacional de um país onde se respeitam os direitos civis de trans e homossexuais e onde as mulheres têm seus corpos livres, fazem topless na praia, mantêm uma vida afetivo-sexual independente e traçam carreiras autônomas”, avalia. “Esses valores nem sempre são os mais prezados por algumas comunidades imigradas que, por vezes, têm sobre esses temas visões muito diferentes, oriundas de outra história e de outro contexto. O estranhamento mútuo é frequente”, diz.
O livro de Karine Tuil mostra, por exemplo, um caso ocorrido na cidade de Colônia, na Alemanha, na noite de réveillon de 2015 para 2016, quando centenas de alemãs registraram queixas de agressões sexuais e, entre os suspeitos, encontravam-se imigrantes africanos. Convidada a opinar sobre o caso, a personagem Claire argumenta que “jovens provenientes de países muçulmanos foram criados num ambiente patriarcal bem forte, no seio de sociedades regidas pela ordem religiosa” e, com isso, diz ela, “assistimos […] a uma coisi cação da mulher que leva às violências cometidas contra seu corpo”. As declarações da personagem geram uma intensa polêmica.
Crédito: Lorie Shaull
Esse cenário de diferenças culturais, impulsionadas pelo avanço das redes sociais e impactadas pelo crescimento do discurso populista, ajuda a explicar a polarização política que levou ao segundo turno Marine Le Pen, representante da extrema direita e hoje a maior força de oposição ao governo de Emmanuel Macron. “Não podemos esquecer que a França é o país do Iluminismo, mas também de uma poderosa tradição intelectual reacionária, que ressurge em tempos de crise.”
Ilustração do mês
Gabriel Renner é ilustrador freelancer e designer. Passou pelas redações de Zero Hora, Diário Gaúcho, ND Notícias e Grupo Editorial Sinos, além de ter ilustrado para as revistas Superinteressante, Mundo Estranho e Sexy. @rennergabriel
A pedido da TAG, o artista interpretou uma passagem do livro do mês: “Estavam todos lá: representantes das principais empresas francesas, os grandes donos da imprensa, jornalistas, escritores, editores, ministros, antigos e em exercício, 90 pessoas escolhidas a dedo — essencialmente homens — se dirigindo à escadaria de acesso ao Eliseu, seus convites incrustrados de letras douradas na mão (alguns os tinham fotografado para postá-los nas redes sociais). [...] No centro, Farel brilhava como um astro. Aqui estamos, pensou ele [...]. Em sua vida, tudo o predestinava à sordidez e ao naufrágio, e eis que ele conseguira chegar ao ápice do Estado. [...] Farel caminhou até o Presidente, que prendeu a condecoração na lapela de seu terno antes de abraçá-lo e apertar seu braço com a mão num gesto cordial”.