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Uma encenação trágica

Isadora Sinay

No romance de Karine Tuil, as “coisas humanas” são também demasiadamente políticas

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Os Farel, protagonistas de Coisas humanas, de Karine Tuil, são um casal poderoso: Jean é um apresentador de televisão popular, embora um pouco envelhecido, e Claire é uma ensaísta e intelectual feminista renomada. Ambos são guras importantes da cena cultural francesa e seu casamento é menos movido por amor que pela vontade de manutenção desse status social e pro ssional.

Contudo, apesar do arranjo mutuamente bené co e confortável, o que cada um deles tira da situação revela diferenças de gênero importantes: Jean dá a Claire acesso pro ssional e segurança nanceira, enquanto ela lhe dá as vantagens domésticas de ter uma esposa, além da vantagem publicitária de ser casado com uma mulher muito mais nova.

Isso porque Jean é, na verdade, apaixonado por Françoise, jornalista de sua idade com quem mantém um relacionamento de anos, que não tem coragem de assumir por medo de que o público nalmente lhe reconheça como um homem de setenta anos. Por outro lado, Claire vê nesse casamento uma proteção contra os desejos do corpo, que representam para ela sempre a ruína das ambições mentais de uma mulher. Seu primeiro encontro com essa sabedoria veio quando sua mãe abandonou a família por um amante, e cristalizou-se quando, em um estágio na Casa Branca, seu caminho se cruzou com o de Monica Lewinsky.

Dessa forma, o casamento dos Farel é construído como o primeiro ato de uma tragédia grega: ambos os personagens buscam fugir de seu pathos, refugiando-se em situações que não podem deixar de levá-los à ruína. E é assim que, quando o livro começa, Claire acaba de abandonar Jean por Adam, um professor de literatura judeu por quem sente uma paixão fulminante. Se Jean era atraente por con rmar sua entrada na elite francesa, tudo em Adam é inadequado para a mulher que Claire deseja ser: sua pro ssão sem glamour, seu status de homem casado, com duas lhas, e, talvez mais importante, sua religião.

Um dos temas centrais que Tuil levanta em seu romance é a oposição essencial entre desejo e respeitabilidade, a atração irresistível que se encontra fora das normas do aceitável e, portanto, no seio da intelectualidade francesa, e é no judeu que se localiza o elemento desorganizador representado pelo desejo carnal.

Os judeus de Tuil são complexos e ambivalentes tanto em sua relação com a própria identidade quanto com a sociedade francesa mais ampla: acuados por um antissemitismo real e violento, os Wizman se entrincheiram no judaísmo, primeiro com uma emigração desastrosa para Israel e, em seguida, com a conversão à ortodoxia de parte da família. Assim como os Farel, os Wizman se veem diante de um dilema trágico: a identidade judaica secular, moderna e intelectual se mostra impossível justamente no país que primeiro permitiu sua existência, e, quanto mais eles buscam se diminuir em meio a um entorno violento, mais representam um incômodo.

Assim, os elementos desorganizadores do desejo e do judaísmo con uem e tornam inevitável o esfacelamento da bem-organizada vida dos Farel. E, contudo, o motor da queda não é nenhum dos pais, mas o lho, Alexandre, um jovem de vinte e um anos que deixou Paris para estudar Engenharia em Stanford. Um dia, de visita na casa da mãe, ele é pressionado a levar Mila, lha mais velha de Adam, a uma festa. Alexandre acha a menina sem graça e indesejável, mas obedece. No dia seguinte, Mila o acusa de estupro.

O romance é expressamente inspirado no “caso Stanford”, de 2016, no qual um estudante da universidade foi acusado de estuprar uma garota desacordada atrás de uma caçamba. No entanto, Tuil complica a situação e descreve em seu romance uma cena muito mais ambígua, onde a diferença entre o consentimento dado e percebido é nebulosa tanto para os envolvidos quanto para o leitor.

E, uma vez começada a descida, são os defeitos trágicos dos protagonistas que a impulsionam: a arrogância e o machismo de Jean complicam sua situação e a de seu lho, e o feminismo autocentrado de Claire acaba com sua carreira ao mesmo tempo que a torna consumida pela culpa de ter criado um homem capaz de tal feito. No entanto, como no mundo real, erros não possuem o mesmo peso para homens e mulheres, e é ela que termina punida mais do que o próprio acusado.

O que Tuil parece dizer com sua narrativa é que as “coisas humanas” — o desejo, a violência, o egocentrismo e a arrogância — são justamente isso, humanas, e o maior erro dos Farel é acreditar em uma existência em que essas coisas possam ser eliminadas ou controladas. E, embora elas representem o que há de mais instintivo e corporal em nós, o efeito de sua entrada é profundamente moldado pelas estruturas de poder e da política. Nesse sentido, é interessante ver uma escritora mulher adentrar esse terreno já tão explorado por escritores judeus homens, como Philip Roth e Saul Bellow: o edifício da respeitabilidade cristã (ou supostamente laica, no caso da França) é construído em cima de uma repressão profunda do desejo sexual, que passa a ser atribuído a tudo aquilo que se encontra fora da norma, e esses movimentos cristalizam-se em uma série de estereótipos sexuais antissemitas tão diversos quanto antigos. Entretanto, onde os homens se embatem com uma imagem de impotência e ausência de virilidade, Tuil retoma a judia sedutora, a Jéssica de O mercador de Veneza, capaz de levar um homem bom à ruína. Mila Wizman é o oposto dessa imagem, uma garota tímida e pouco uente nas coisas do mundo e do sexo, mas, ainda assim, é sua presença e seu apego à própria identidade religiosa que movem a acusação de Alexandre. No nal do romance, as coisas humanas são de fato demasiadamente humanas, mas são as mulheres — e, mais do que todas, a mulher judia — que sucumbem sob seu peso. Humanas, mas também demasiadamente políticas.

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