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A escrita me permite compreender e questionar o mundo”
Karine Tuil detalha a sua inspiração para escrever Coisas humanas, re ete sobre o impacto das redes sociais na atualidade e revela algumas de suas referências literárias
JÚLIA CORRÊA
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Karine
Tuil (Paris, 1972) tem uma produção atenta aos dilemas da vida contemporânea. É formada em Direito e Comunicação, áreas que perpassam boa parte de suas narrativas, que abordam ainda as relações íntimas e a identidade judaica. In uenciada por autores como Philip Roth, iniciou a sua carreira no nal dos anos 1990 ao participar de um concurso de manuscritos. Seu texto foi notado pelo jornal Le Figaro e, desde então, ela já publicou mais de uma dezena de livros, consolidando seu nome no cenário literário francês. A seguir, a autora dá mais detalhes da concepção de Coisas humanas e revela suas principais referências.
Para escrever Coisas humanas, você se inspirou em um caso real ocorrido em Stanford. Por ainda abordar temas como feminismo, imigração e terrorismo, seu livro é muito representativo do espírito de nosso tempo. Por que esses tópicos lhe interessam?
O que me interessa é entender as disfunções de nossa sociedade, revelar as falhas, as fraturas. A literatura é sempre política. A escrita me permite compreender e questionar o mundo, identi car a sua complexidade.
Para escrever meus romances, gosto de enfrentar a realidade, ir a campo, fazer investigações e tentar encontrar uma linguagem que também dê conta de meu projeto literário. Comecei Coisas humanas em 2016, quando descobri o caso Stanford: um jovem foi acusado de agredir sexualmente uma jovem no campus universitário. Ele havia sido condenado a seis meses de prisão, três dos quais foram suspensos. Isso me marcou muito porque o pai do réu disse ao juiz que não se podia destruir a vida de seu lho por "vinte minutos de ação". Essa expressão terrível usada para resumir uma agressão sexual que destruiu a vida da menina me fez perceber a distorção entre a percepção da vítima e a do acusado, de sua família. O rapaz minimizou os fatos diante de uma jovem que sofria. A partir daí, quis trabalhar sobre esse assunto, participei de julgamentos por estupro em tribunais da França. Achei que essa história deveria ser contada do ponto de vista do acusado, já que é ele quem está no centro do julgamento criminal na França.
Seu livro começa mencionando o escândalo sexual envolvendo Bill Clinton, em 1998, nos EUA. O caso Farel, por sua vez, se passa na década de 2010, quando a internet está muito mais presente na vida social. O que mudou de lá para cá? Como você vê o impacto da tecnologia em nossas relações sociais e na opinião pública?
O impacto da tecnologia hoje em nossas vidas sociais e especialmente nas de guras públicas é absolutamente assustador: qualquer um pode revelar, difundir, transmitir e comentar elementos de sua vida privada na internet ou nas redes sociais. Isso cria situações bastante trágicas, em que se instala uma espécie de tribunal midiático, um mecanismo generalizado de intimidação que se traduz em ataques e julgamentos peremptórios nas redes sociais sem que o agredido possa se defender. Abala a presunção de inocência, os princípios básicos dos direitos humanos; levanta questões éticas, políticas e sociais, tanto pelo que essas novas ferramentas naturalmente têm de interessante (porque permitem disseminar informação, criar ligações) quanto pelo que representam de perigo quando essa comunicação serve a interesses antidemocráticos, que minam a dignidade ou a privacidade das pessoas.
A preocupação com as aparências é um tema central em Coisas humanas. O casamento fictício de Jean e Claire e a perturbação dele com o envelhecimento são exemplares disso. Em seu livro, a vaidade e a hipocrisia irrompem fortemente, mas livres de julgamentos. Quão preocupada você estava em evitar esses juízos morais?
O que me interessa é a obsessão pela representação, a comédia social, as máscaras que usamos, os comportamentos dos indivíduos na sociedade — tudo o que temos de fazer para encontrar o nosso lugar para sobreviver, subindo a escala social. Mas revelar não é denunciar. Sartre disse: “revelar é mudar”. Quero mostrar uma certa realidade, mas tento fazê-lo com nuances, porque realmente estamos em uma sociedade em que o pensamento se torna bastante binário, os julgamentos são precipitados, de nitivos. Sou muito apegada ao pluralismo, ao debate democrático, à multiplicidade e à oposição de ideias; gosto de pensar contra mim mesma. Quis abordar um assunto delicado mostrando a complexidade humana, trazendo ambiguidade e re exão — a literatura é o espaço do tempo estendido e, ao contrário das redes sociais, nela, o pensamento pode se desenvolver.
O livro mostra um julgamento que se dá por palavra contra palavra. Com uma linguagem muito racional, a própria estrutura narrativa não permite descobrir quem está falando a verdade. Foi difícil para você encontrar esse equilíbrio entre as versões?
Na verdade, procurei me manter el ao funcionamento de um julgamento tradicional na França: é o julgamento do acusado, então é ele quem deve se defender e, em última análise, a vítima tem muito menos espaço e visibilidade. Durante os julgamentos a que assisti, descobri que, nesse tipo de processo, muitas vezes, é palavra contra palavra: há as declarações da vítima e de um réu que nega ou que não tem a mesma percepção. Sem testemunhas, é extremamente complicado para os jurados e juízes encontrarem o que se chama a verdade judicial. E o julgamento é para isso, para a manifestação da verdade, mas, às vezes, a gente não sabe — lidamos com algo vago, opaco; o acusado nega o que fez e a vítima ca estupefata. No livro, também queria que ouvíssemos a voz da vítima. O #MeToo foi um movimento verdadeiramente revolucionário, cujos efeitos ainda se fazem sentir. O meu objetivo era abordar um assunto delicado, colocando, claro, a vítima no centro do dispositivo, mas contar a história do ponto de vista da família do réu, porque me parecia que isso nunca tinha sido feito. Li muitos depoimentos de vítimas, mas não li nada do lado dos réus e de suas famílias; no entanto, é um ponto de vista interessante porque, obviamente, se você é a mãe do acusado, você reage de maneira diferente. Claire Farel é uma feminista empenhada, uma intelectual reconhecida, mas, quando é o seu lho que é alvo de uma denúncia por violação, pensa acima de tudo em salvá-lo, quer acreditar nele, e aí está todo o dilema e toda a ambiguidade do livro: o leitor pensa “E se eu estivesse no lugar dela, como teria reagido? O que eu teria feito?”.
Como foi lidar com a linguagem jurídica com precisão sem torná-la cansativa para os leitores? Foi um verdadeiro desa o. Trabalhei muito nesse material para torná-lo romanesco. Os leitores são frequentemente fascinados por notícias de escândalos. Enquanto leem, eles dizem para si mesmos: isso pode acontecer comigo também... O que faz a vida mudar em dado momento? São assuntos que perturbam a nossa identidade profunda. Coisas humanas conquistou um público muito vasto, desde jovens que se identi caram com Alexandre e Mila aos leitores de 40-50 anos que se identi caram com os pais. Houve trocas intergeracionais em torno do livro, avós falaram com suas netas sobre o que elas sofreram... Espero que, de alguma forma, o livro tenha contribuído para libertar a palavra e tenha instigado debates para que os códigos culturais possam nalmente mudar.
É possível notar um desequilíbrio de poder entre os personagens. A opressão masculina que emana de Alex — ainda que conheçamos suas fragilidades — é acentuada por sua origem social: ele vem de uma prestigiada família burguesa. Por sua vez, Mila vem de um mundo religioso e pertence a uma classe mais modesta. Como você vê esse choque de universos?
Eu realmente queria confrontar universos sociais: um background burguês, com pessoas que pertencem à elite política e social da França, e pessoas que vêm de um background muito mais simples. Foi interessante porque vemos no contexto de um julgamento o confronto das forças presentes, ou seja, a família Farel sente-se superior, acha que vai conseguir evitar um julgamento, que só vai ter de pagar a Wizman para obter a retirada da denúncia. Por meio desse livro, também tinha interesse em abordar a questão do con ito de classes, que é um tema bastante central em meu trabalho.
Philip Roth parece ser uma influência para você. Além de uma citação explícita de Pastoral americana (1997), é possível identi car ecos da produção do autor em Coisas humanas. Você pode falar sobre a importância dele para você? Aliás, que outros escritores e escritoras instigam a sua imaginação?
Philip Roth foi, de fato, um autor que signi cou muito para mim e que continua sendo importante mesmo depois de sua morte, porque soube melhor do que ninguém como fazer cair máscaras: ele ia além das aparências, denunciando a hipocrisia da sociedade. Ele era ousado, brilhante, transgressor. Em suas obsessões, encontrei as minhas: judaísmo, morte, criação. Os autores contemporâneos de que gosto são, entre outros, Emmanuel Carrère, Michel Houellebecq, Marie NDiaye, Nicole Krauss, Maggie Nelson, Roberto Saviano, Jonathan Safran Foer… São muitos.
O primeiro livro que leu:
A metamorfose, de Franz Kafka.
O livro que está lendo: A mulher calada, de Janet Malcolm.
O livro que mudou a sua vida: O estrangeiro, de Albert Camus.
O livro que você gostaria de ter escrito: A marca humana, de Philip Roth.
O último livro que a fez chorar:
Le gosse, de Véronique Olmi.
O último livro que a fez rir: Le dernier testament de Maurice Finkelstein, de Sophie Delassein.
O livro que dá de presente:
Lições de poética, de Paul Valéry, ou as edições Pléiade de Kafka.
O livro que não conseguiu acabar: O homem sem qualidades, de Robert Musil.