Jude, o obscuro
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Ao Leitor Quando falamos em Fernanda Montenegro parece, às vezes, que nem estamos tratando de uma pessoa de carne e osso, mas de um patrimônio ou entidade cultural. Poderíamos fazer uso de muitos vocativos e adjetivos para defini-la: maior atriz brasileira, orgulho nacional, pioneira da teledramaturgia latino-americana. Em maio, temos a honra de chamá-la de curadora. Autoproclamada fã de Simone de Beauvoir, Sartre, Shakespeare, Drummond e Clarice, para citar apenas alguns, Fernanda elegeu para os associados um clássico da Era Vitoriana: Jude, o obscuro, escrito pelo inglês Thomas Hardy. Publicada em 1895, a obra sofreu duros ataques após o seu lançamento – houve até quem a definira como “o livro mais indecente já escrito” – o que faz muito sentido quando percebemos que Hardy não poupou críticas às instituições que regiam a sociedade estratificada da época. Apesar de procurar fazer as coisas certas, as decisões erradas aumentam a infelicidade do protagonista Jude: Hardy é um mestre quando o assunto envolve as contradições do espírito humano. Além de um eco que explora o panorama histórico-social da Inglaterra Vitoriana, a revista deste mês publica um conto inédito de Maria Fernanda Elias Maglio, vencedora do Prêmio Jabuti de 2018. A história foi escrita para combinar com o clima sombrio disseminado por Jude, uma obra necessária na estante daqueles que apreciam a alta e clássica literatura. Boa leitura!
Sumário
A indicação do mês
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A curadora Fernanda Montenegro O livro indicado Jude, o obscuro, de Thomas Hardy Entrevista com Caetano Galindo
Ecos da leitura
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Fernanda Montenegro e a literatura nos palcos A Inglaterra Vitoriana de Thomas Hardy O encontro com o real
Ficção
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vai ver o diabo lá, soprando ruindade no nosso ouvido, de Maria Fernanda Elias Maglio
Espaço do associado
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Vocês nos escutam, nós escutamos vocês
Leia depois de ler
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A nova aliança
A próxima indicação
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O curador de junho Michel Laub
FCC Curitiba
A curadora
Fernanda Montenegro Aos oitenta e nove anos, com mais de sete décadas de car-
reira e centenas de produções artísticas entre peças de teatro, novelas e filmes na bagagem, Fernanda Montenegro é provavelmente a atriz mais importante do Brasil. Ninguém jamais fez tanto – e tão apaixonadamente – pelas artes cênicas no nosso país. Ser a única atriz brasileira até hoje a receber uma indicação para o Oscar e a primeira a vencer um Emmy tem um alto valor, mas esses prêmios ficam discretos se comparados à grandeza da sua carreira. A influência de Fernanda é abrangente, vai da política às artes – sua relação com a literatura, por exemplo, é das mais íntimas. Não é por acaso que a convidamos para ser curadora: quem não quer conhecer a obra preferida da mulher que, entre tantas proezas, fez Nelson Rodrigues escrever três peças exclusivamente para ela? Muitos não sabem, mas Fernanda Montenegro nasceu Arlette Pinheiro Esteves da Silva em 1929, no Rio de Janeiro. Cresceu no subúrbio da capital carioca com os pais, um artesão e uma dona de casa, a quem credita sua fascinação pela arte e o “absoluto pé no chão”. Aos quinze anos de idade, vencendo a timidez que a acompanhava desde a infância, entrou em um curso para radialistas e logo começou a trabalhar como colaboradora em rádios locais. Nesse período, destaca-se a sua participação na Rádio MEC,
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André Luiz D. Takahashi
referência cultural das rádios, onde foi locutora por dez anos e teve a oportunidade de comandar programas como o Passeio Literário, adaptando livros brasileiros e internacionais – como Machado de Assis, Graciliano Ramos e Lima Barreto. Foi nesse mesmo contexto que surgiu a ideia da Arlette se tornar Fernanda Montenegro – um nome, segundo ela, “interessante para um programa literário”. Ao jornal El País, explicou: “Soava como aqueles nomes franceses à la século XIX ligados à literatura de Balzac e Flaubert. Foi por curtição, mas esse nome acabou pegando”. Os anos 1950 definiram a estreia de Fernanda Montenegro nos palcos do
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teatro e na televisão. Ela, que também foi a primeira atriz contratada para uma telenovela, logo chamou a atenção da crítica e conquistou os primeiros prêmios. Foram anos de formação definitiva para Fernanda, que se mudou para São Paulo, percorreu o Brasil atuando e trabalhou com os maiores nomes da época. Sua estreia de fato aconteceu em 1950, na peça Alegres Canções nas Montanhas, ao lado do ator e diretor Fernando Torres (1927-2008), seu eterno companheiro de vida, com quem se casou em 1953 e teve os filhos Cláudio e Fernanda Torres. Nas duas décadas seguintes, com a chegada do Regime Militar, a atriz enfrentou a censura e uma sucessiva
proibição da montagem de peças. Em 1979, ela e Fernando sofreram um atentado – uma bala estilhaçou o vidro da janela do quarto em que dormiam. O casal saiu ileso, mas as ameaças de morte a ela e a outros artistas continuaram. Felizmente, a violência não interrompeu sua exitosa carreira e, ainda hoje, aos 89 anos, Fernanda não abre mão de se manifestar sobre política – embora não busque participação ativa, os posicionamentos contundentes e a influência da artista no país levaram ao convite para ser ministra da Cultura nos governos de José Sarney (1985) e Itamar Franco (1992). Recusou ambos os convites.
Diferentemente da maioria de artistas no Brasil e no mundo, Fernanda goza de um fenômeno raro: uma carreira que contempla múltiplos auges, ou melhor, que está sempre à procura de um novo ápice. Em 1999, prestes a completar setenta anos, foi indicada ao Oscar de Melhor Atriz por sua atuação no filme Central do Brasil (1998), de Walter Salles. Além da repercussão internacional, Fernanda foi, mais uma vez, redescoberta pelo público brasileiro e passou a trabalhar com maior frequência em produções cinematográficas. De 2000 para cá, foram mais de 20 filmes (e outras tantas novelas e peças).
No final dos Anos de Chumbo, Fernanda viveu dois momentos importantes: primeiramente, a consagração do seu nome entre autores e público pelas atuações marcantes em novelas e minisséries televisivas; em segundo lugar, sua efetiva entrada no cinema. Desse período, destacam-se o longa Tudo bem (1978), de Arnaldo Jabor, que lhe garantiu o primeiro prêmio internacional da carreira, e Eles não usam black-tie (1981), de Gianfrancesco Guarnieri e Leon Hirszman, clássico do cinema nacional. Mesmo com o enorme sucesso e a agenda cada vez mais lotada, Fernanda nunca escondeu que sua prioridade sempre fora o teatro. Uma paixão que exigia coragem, pois, é necessário lembrar, vivia-se uma época em que a valorização dos profissionais das artes cênicas brasileiras era quase inexistente.
Como toda boa atriz, Fernanda Montenegro é uma leitora voraz. Toda grande atuação, afinal, começa com uma grande ideia em um papel. Mas a relação da atriz com a literatura se estreita de diversas outras formas, como sua participação na Flip 2018, quando emocionou o público em sua homenagem à escritora Hilda Hilst. Ou nas diversas vezes em que interpretou personagens famosos da literatura brasileira e mundial (selecionamos alguns nos Ecos da revista). Sabíamos, portanto, que sua escolha para a TAG envolveria uma rigorosa avaliação, própria de quem ama e absorve a arte com deslumbramento inesgotável. Jude, o obscuro chega ao associado da mesma maneira que Fernanda Montenegro entrega sua arte ao público: como um presente apaixonado.
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O livro indicado
Jude, o obscuro de Thomas Hardy Conhecido tanto por seus romances como por seus poe-
mas, Thomas Hardy foi um dos principais escritores britânicos da Inglaterra Vitoriana (1837-1901). Ao lado das irmãs Brontë, George Eliot e Charles Dickens, Hardy destacou-se por abordagens vanguardistas, que iam de encontro aos moralismos e valores típicos de sua época, produzindo obras trágicas marcadas por grande pessimismo e desilusão. Seus livros de maior polêmica à época hoje são avaliados como alguns dos mais relevantes da literatura internacional. Hardy nasceu em junho de 1840 em um chalé próximo à cidade de Dorchester, a sudoeste da Inglaterra. Filho de um casal cujas finanças modestas lhe impossibilitaram uma formação universitária, teve de abandonar os estudos aos dezesseis anos, tornando-se aprendiz de um arquiteto local. Aos 22, conseguiu um emprego em Londres, onde, além de restaurar igrejas e
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conquistar algum renome como arquiteto, esboçou os primeiros poemas – sua grande paixão literária – e textos diversos. A vida em Londres, no entanto, era dura para Hardy, que percebia a acentuada divisão de classes na capital: nascia um sentimento de exclusão e inferioridade que seria abordado direta ou indiretamente em todos os seus romances. Em 1867, ele retornou ao sul do país e tomou a decisão de se dedicar à literatura. Um aspecto curioso dos primeiros passos de Hardy como escritor é o conteúdo do que seria seu roman-
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ce de estreia. The poor man and the lady, finalizado em 1868, era uma sátira feroz sobre os aspectos políticos e morais da sociedade inglesa, suas classes dominantes e o cristianismo moderno. A obra foi continuamente rejeitada por editoras até chegar às mãos do romancista e mentor de Thomas Hardy, George Meredith, que o aconselhou a não investir em posições radicais logo no primeiro livro de sua carreira. Hardy ficou desapontado, mas seguiu o conselho de Meredith e abandonou as tentativas de publicá-lo, dando início à produção de narrativas mais palatáveis e ro-
“Seus sonhos eram tão gigantes quanto pequenos eram seus entornos.” – Jude, o obscuro
mânticas – embora quase sempre trágicas –, que logo o consolidariam como um dos escritores mais populares do seu tempo. Dos 15 romances (sem contar os mais de cinquenta contos) que escreveu entre 1871 e 1895, alguns são mencionados pela crítica como leituras imprescindíveis. Em Far from the madding crowd (1874), seu primeiro sucesso comercial, Hardy apresentou ao público as terras de Wessex – o cenário fictício baseado no sudoeste inglês que se tornou sua mais célebre criação. Destacam-se, ainda, O retorno do nativo (1878), O prefeito de Casterbridge (1886) e Tess of the d’Urbervilles (1891), talvez seu livro mais celebrado atualmente, que foi recebido com desconfiança na época por desafiar convenções sobre sexualidade e casamento. Em todas as obras, Hardy seguia uma certa fórmula que lhe garantia o sucesso, enveredando por temas amorosos e relações de classe simultaneamente. Na maioria das vezes, a crítica social se escondia nas entrelinhas, ofuscadas pela poesia criada pelos cenários pastoris e as trágicas histórias de amor.
Com seus personagens controversos e finais melancólicos, Hardy torceu alguns narizes ao longo dos anos, mas nenhuma obra chegou perto do furor, do espanto e do ódio provocados pelo seu último romance. Com a carreira consolidada e uma segurança financeira, o autor sentiu-se livre para retomar os temas subversivos de The poor man and the lady – temas que, afinal, despertaram seu ímpeto de escrever quando jovem. A diferença é que o foco não estaria mais em relatar relacionamentos entre classes, mas em explorar o âmago dos sofrimentos físicos e espirituais que a realidade da Inglaterra Vitoriana impunha sobre a classe trabalhadora. Jude, o obscuro, obra que chega a você neste mês, parte das mais profundas angústias de seu autor, que decidiu se expor como nunca antes, e acabou sendo alvo de críticas impiedosas. O romance conta a história de Jude Fawley, que ao início da narrativa tem onze anos e vive no pequeno vilarejo de Marygreen, ao sul da Inglaterra, onde mora com a tia avó. Jude é um menino doce e ingênuo, incapaz de fazer mal aos animais e
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apaixonado por livros – ele é a antítese do modo de vida no pobre vilarejo. Para complicar a situação, Jude vê seu professor, único modelo e inspiração possíveis, abandonar Marygreen a fim de conquistar um diploma universitário e tornar-se sacerdote na famosa cidade fictícia de Christminster (a Oxford do universo de Hardy). Resta ao jovem, então, sonhar com um destino parecido. Preso a uma realidade familiar, social e econômica pouco privilegiada, seu único método para se aproximar da vida intelectual e religiosa na estimada cidade é um esforçado autodidatismo – seu objetivo, por alguns anos, será aprender Latim e Grego em livros doados. Com o decorrer da narrativa, acompanhamos a chegada da vida adulta de Jude, que, apesar de sonhador e persistente, vai encontrando barreiras inesperadas – e outras nem tanto – para concretizar seu sonho. Evitaremos tratar delas aqui, sob o risco de entregarmos importantes acontecimentos da narrativa e seus desenlaces. Anteciparemos, apenas, que envolverão o relacionamento de Jude com duas mulheres. Uma delas é Arabella Donn, garota do campo, filha de um criador de porcos, sedutora, materialista e interessada em se casar com o protagonista. A outra é Sue Bridehead, ao mesmo tempo prima e paixão platônica de Jude, uma jovem intelectualizada e com opiniões um tanto incomuns para a época, seja sobre religião ou sobre casamento.
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A partir dessas relações e dos desejos de cada um, Hardy vai revelando a história e o destino daqueles que se percebem incompatíveis com as expectativas sociais de seu tempo, sejam elas motivadas por questões financeiras, religiosas ou de gênero. O interessante na obra de Hardy, no entanto, não está localizado somente nos temas abordados – provincianismo, preconceito, moralismo conservador, dificuldades de ascensão social. A forma narrativa é a responsável por tornar a leitura estimulante e, em grande parte, fazer do romance uma obra de grande potência no meio literário. Hardy incorpora à linguagem a tensão que sustenta o romance: as ambições de um protagonista e as barreiras que o circunvizinham. Jude, descrito pelo narrador em terceira pessoa em meio ao ambiente de suas ações, é um personagem inexpressivo, um pequeno detalhe em meio à uma atmosfera opressiva. No entanto, o foco narrativo regularmente desloca-se dessa perspectiva objetiva em direção à subjetividade do personagem, revelando seus pensamentos repletos de anseios positivos. A obstrução das idealizações pela materialidade histórica é a grande chave para o entendimento da obra de Hardy. Cabe ao leitor desenvolver um sentimento de união em relação a Jude, pois é impossível não se reconhecer em seu lado humano e apiedar-se das suas desventuras.
Por tocar em temas não convencionais, desafiar padrões de comportamento, ironizar moralismos e apresentar personagens e relações tão inadequadas à norma vigente na época, Jude, o obscuro exasperou a maior parte do público e da crítica quando foi publicado. O romance foi interpretado como “anti-casamento”, e grande parte das suas atenções se voltaram para a personagem Sue Bridehead e sua representação do que era conhecido como a Nova Mulher – um ideal que inspiraria o feminismo do século XX. A primeira versão da narrativa, que começou a ser publicada em formato de folhetim no final de 1894, recebeu censuras em diversas cenas, enquanto a que você recebe, definitiva e no formato desejado pelo escritor, foi lançada apenas em 1912. Esta edição, aliás, é recheada de informações que enriquecem a leitura, como comentários de Hardy sobre sua repercussão, a cronologia dos eventos narrados e os paralelos dos nomes dos lugares fictícios de Wessex com suas inspirações reais. Alguns historiadores sugerem que Thomas Hardy planejava finalizar sua carreira enquanto romancista após escrever Jude, o obscuro. Tenha ele antecipado as polêmicas – e as consequentes perturbações – ou não, o fato é que o autor se voltou quase integralmente à poesia depois de 1895 até seu falecimento, em 1928. Inicialmente compilando suas criações de décadas anteriores (como em Wessex poems and
other verses, de 1898), e mais tarde compondo elegias à falecida esposa, Hardy viveu uma nova etapa literária não menos exitosa que a anterior, inspirando poetas como Robert Frost e W. H. Auden. A consagração final poderia ter vindo a partir das duas indicações ao Nobel de Literatura. O prêmio não veio, mas Hardy já estava na história das letras como um dos poucos autores celebrados em duas frentes literárias – com uma potência para encantar leitores, mas também escandalizá-los e escancarar o que de mais contraditório sua realidade escondia.
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Entrevista com
Caetano Galindo Fizemos três perguntas para Caetano Galindo, o tradutor de Jude, o obscuro. Doutor em linguística pela USP, Galindo é um dos maiores tradutores brasileiros em atividade, tendo traduzido obras de James Joyce, David Foster Wallace, Ali Smith, entre outros gigantes da literatura.
TAG – Quais foram as singularidades e desafios do processo de traduzir Jude... que você ainda não havia enfrentado em trabalhos anteriores? Você poderia compartilhar algumas curiosidades desse processo? Caetano Galindo – Bom, o principal é a soma da distância no tempo com a singularidade no espaço. Todo livro mais "antigo" apresenta a quem traduz uma série de dilemas, que são parentes daquela conhecida dupla "estrangeirizar ou domesticar"... Guardar as marcas do tempo no texto é uma opção, mas pode tender ao
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caricato. De outro lado, modernizar é algo que deve ser feito com muito cuidado. Você não quer que o livro soe como se tivesse sido escrito hoje, mas também não quer o artificialismo de um pastiche do passado. Mas, nesse caso, ainda havia o problema adicional de que o livro não apenas se serve de formas dialetais de inglês, muito embora ativamente faça referência a isso. E essa é outra esparrela. Como marcar a fala das personagens como mais ou menos "local" (especialmente no que pode distinguir um personagem do outro, quando um é mais alfabetizado
e outro, menos). Acabei optando por deixar transparecer algum vocabulário e uma ou outra construção do "meu" vernáculo, de curitibano de meia-idade, mas apenas para dar algum sabor, alguma diferença. Você percebe muitas diferenças entre os métodos para traduzir obras mais contemporâneas, como as de Foster Wallace e Ali Smith, e clássicos como os livros de Joyce e Hardy, no sentido de que estas já foram analisadas, estudadas e traduzidas exaustivamente e, portanto, carregam consigo interpretações mais consolidadas? Caetano Galindo – Ah, sim. Além dessa questão toda da mera distância temporal que eu mencionei acima, tem o fato de que há todo um peso adicional em se traduzir algo que já se sabe ser um clássico. A responsabilidade, de saída, é diferente. E há que se lidar, como você lembra, com leituras anteriores. Isso, neste livro, aparece já na capa. Afinal, a tradução anterior, produzida num momento em que ainda era mais comum aportuguesar nomes de personagens, se chamava Judas, o obscuro. Eu acabei optando por deixar Jude, tanto para evitar o que para nós hoje é o grande estranhamento do nome aportuguesado num livro inglês, quanto para evitar uma ligação mais clara com Judas Iscariotes... porque em inglês "Jude", como santo, é especialmente Judas Tadeu. Isso, claro, vai gerar algum atrito para quem já conhecia o livro, mas espero que a diferença não
cause incômodo, e acho que a opção se justifica. Agora uma para o Caetano Galindo leitor: Que aspectos dessa obra mais te chamaram a atenção? Qual era a sua familiaridade com a literatura da Era Vitoriana antes de traduzir Jude, o obscuro? Caetano Galindo – Era uma leitura que eu conhecia apenas como leitor. E a vivência como leitor ainda é bastante diferente da enquanto tradutor. Nunca tinha lidado com este conjunto específico de dificuldades. Afinal, Hardy é um mundo à parte. Para você ter uma ideia, houve um momento em que eu recorri a um grupo de amigos tradutores, ingleses, para tentar elucidar uma passagem. Ninguém soube me esclarecer a dúvida, mas bastou eu postar a frase para dois deles perguntarem: "Isso é Hardy?". Ele criou todo um imaginário específico em torno da região, da língua e das tradições de Wessex. No caso deste livro, que eu não tinha lido, fiquei impressionado com a atualidade da técnica narrativa, com a habilidade de composição das cenas e com o quanto o livro de fato parece "moderno" em termos de temáticas; o quanto tudo aquilo que parece "choque" para o leitor da época é hoje, para nós, assunto mais firme, mais estabelecido. E, com isso, o livro acaba iluminando a passagem de todo esse tempo. As alterações nos costumes, na sociedade e nas pessoas.
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Fernanda Montenegro
A falecida, 1965
O beijo no asfalto, 1961
Em 1965, Fernanda Montenegro fazia sua estreia no cinema com A falecida, do diretor Leon Hirszman, em uma adaptação da peça teatral homônima de Nelson Rodrigues que percorreu os palcos brasileiros nos anos 50. No longa, Fernanda interpreta Zulmira, uma mulher obcecada com a morte que planeja ter um enterro de luxo para compensar sua vida humilde no subúrbio do Rio de Janeiro. Nelson Rodrigues, aliás, foi um grande amigo de Fernanda, para quem escreveu exclusivamente três peças – a única em que pôde atuar, no entanto, foi O beijo no asfalto (1961).
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Ecos da leitura
A hora da estrela, 1985
A hora da estrela (1985), dirigida por Suzana Amaral, é uma elogiada adaptação cinematográfica de um dos mais celebrados romances da Clarice Lispector, publicado em 1977. Fernanda interpreta a cartomante Carlota, que recebe a protagonista, Macabéa, e garante à jovem um futuro repleto de amor ao lado de um estrangeiro. O auto da compadecida (2000), de Guel Arraes, é baseado na peça teatral homônima de Ariano Suassuna, de 1955, e pega emprestado elementos de outras duas peças do escritor: O santo e a porca e Torturas de um co-
e a literatura nos palcos
O auto da compadecida, 2000
O amor nos tempos do cólera, 2007
ração. Fernanda faz o papel de Nossa Senhora em uma das cenas mais emblemáticas do filme, que ficou eternizado na memória do público brasileiro pelas atuações inesquecíveis de Mateus Nachtergaele como João e Selton Mello como Chicó. A obra de Gabriel García Márquez foi parar no cinema americano com O amor nos tempos do cólera (2007), de Mike Newell, baseado no romance homônimo de Gabo. Fernanda, em seu primeiro filme em língua estrangeira, interpretou Tránsito Ariza, mãe do protagonista Florentino Ariza, vivido pelo espanhol Javier Bardem.
O tempo e o vento, 2013
Nelson Rodrigues foi um grande amigo de Fernanda, para quem escreveu exclusivamente três peças. Em 2013, a trilogia O tempo e o vento, de Erico Verissimo, recebeu uma adaptação cinematográfica sob a direção de Jayme Monjardim. Fernanda Montenegro interpreta Bibiana Terra Cambará, que também é a narradora da história dos conflitos entre as famílias Cambará e Amaral.
Ecos da leitura
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A Inglaterra Vitoriana de Hardy 18
Ecos da leitura
Jude, o obscuro retrata episódios de um período muito debatido da história ocidental: a segunda metade do século XIX do Reino Unido, também conhecida como Era Vitoriana (1837-1901). Sob o reinado de Vitória, os britânicos conquistaram avanços em diversas áreas. Ao mesmo tempo, tentavam deixar para trás a imagem de violência e escravidão ao se tornarem uma nação mais educada, diplomática e religiosa. As novas regras de etiqueta, no entanto, evidenciavam uma vivíssima hipocrisia no modo de vida inglês, que permanecia elitista, preconceituoso, patriarcal, colonialista, conservador e pautado pela Igreja. Apresentamos neste Eco alguns dados sobre a vida na Inglaterra Vitoriana que afetaram diretamente a visão crítica de Hardy – um homem que, como os personagens Jude e Sue, não se sentia inteiramente contemplado pelo padrão comportamental da época.
Ecos da leitura
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Classes sociais: Havia basicamente três classes na Era Vitoriana: baixa, média e alta, sendo a mobilidade social entre elas praticamente impossível.
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Aqueles que pertenciam à classe alta raramente trabalhavam; eram geralmente donos de terras e empregavam trabalhadores da classe baixa. Pode-se dividir a classe alta vitoriana em três esferas: os de origem real, posicionados ao topo na hierarquia; os lordes e ministros, no meio; e os homens de negócios, mais abaixo.
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Ecos da leitura
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Com a chegada da Segunda Revolução Industrial, que proporcionou diversos novos empregos e oportunidades de negócios, a classe média se expandiu, e essa camada social, antes enfraquecida, passou a ter influência direta nos costumes, estilo de vida e valores morais da sociedade inglesa. Faziam parte da classe média trabalhadores industriais de grande conhecimento técnico, além de profissões como comerciantes, professores, médicos e advogados. Era comum uma distinção entre classes médias mais e menos abastadas.
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Já a classe baixa era formada por trabalhadores sem conhecimento técnico que, muitas vezes, eram submetidos a condições de trabalho degradantes, sem acesso a alimentação, água, educação para os filhos e roupas. A mais atingida dessa cama-
da era a chamada underclass, dependente e oprimida, sem qualquer amparo das leis trabalhistas. Dois exemplos de ofício são o trabalho
infantil e a prostituição, repudiados pela sociedade, mas tão recorrentes quanto qualquer outro emprego – um retrato da hipocrisia moral da época.
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Família, casamento e papéis de gênero: Na Inglaterra Vitoriana, a valorização da família nuclear tornou-se um aspecto dominante. Nesse contexto, os códigos morais e de comportamento de cada integrante da família eram bem definidos. Sob um consenso da suposta existência de características naturais e imutáveis, homens e mulheres habitavam “esferas separadas”. Guiadas pelo exemplo de feminilidade que surgia da imagem da Rainha Vitória, as mulheres, consideradas mais sensíveis, ponderadas e biologicamente mais frágeis, estavam destinadas a cuidar da casa e dos filhos, além do dever de amar e respeitar seus maridos acima de tudo. Elas não tinham direito ao voto e nem à propriedade, e pior: após o casamento, mulheres e filhos
tornavam-se propriedades dos homens (essa realidade só mudaria em 1870). Os homens, por sua vez, eram os únicos a habitar as esferas públicas.
Segundo o código moral, mulheres ainda não casadas deveriam buscar um marido o quanto antes sem, no entanto, demonstrar desespero, o que seria considerado “apetite sexual” – algo muito mal visto. O casamento era entendido como um objetivo para constituir família, e não para obter prazer ou amor. Ao final do século, com a inserção da mulher no mercado de trabalho e nas universidades, além da chegada de novas correntes científicas e filosóficas, começava a surgir o ideal da New Woman: a mulher que andava de bicicleta, assinava petições e reivindicava o direito ao voto – Sue Bridehead foi uma das primeiras e mais emblemáticas personagens da literatura a representar certos aspectos dessa nova mulher.
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religião: A primeira metade da Era Vitoriana viveu um renascimento da religião como não se via desde o Puritanismo do século XVII. Sua influência atravessou toda a sociedade britânica, moldando valores e costumes da época. Nessa fase, religião e ciência caminhavam harmoniosamente, e uma sempre encontrava meios de justificar a outra. Por muitos séculos, para estudar em
Oxford e Cambridge (as únicas universidades britânicas até 1828) eram necessários três requisitos: ser homem, solteiro e membro da Igreja Anglicana.
Foi na segunda metade da Era Vitoriana (em especial a partir de 1860), no entanto, que a Igreja Anglicana começou a ser questionada e, consequentemente, a perder lentamente sua influência. As mudanças promovidas pela industrialização e pela ciência (com a Teoria da Evolução de Charles Darwin) tiveram um papel significativo em desafiar as crenças e superstições da época, e cada vez menos pessoas acreditavam na literalidade dos textos bíblicos. Foi também nesse período que figuras públicas, como Thomas Henry Huxley, passaram a se declarar agnósticos ou ateus, o que facilitou a aceitação social das novas ideologias que surgiam.
O encontro com o real O século XIX ficou conhecido
por suas grandes transformações de ordem filosófica, política, econômica, científica e tecnológica. O debate sobre o fim da escravidão e o consequente abolicionismo, ainda que em termos teóricos, alterou o quadro socioeconômico das principais potências mundiais. Além disso, o Evolucionismo Biológico proposto por Darwin no livro A origem das espécies (1859) ficou conhecido imediatamente em todo o mundo, contrariando a filosofia criacionista. Alguns outros nomes também foram importantes para a época, cada um à sua maneira: Auguste Comte, o principal nome da teoria positivista; Hippolyte Taine, com seu tripé de análise sociológica (meio, raça e contexto); Karl Marx, conhecido por seu materialismo histórico (método de análise socioeconômica fundamental para a ideologia comunista), e Bakunin, principal nome ligado à filosofia anarquista. Dessa forma, o panorama artístico, influenciado por essas e outras novidades, começou a se afastar da potente vertente romântica, visto que suas ideias pareciam não comportar as novidades que despontavam pelo mundo. Logo, as mani-
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Ecos da leitura
festações artísticas iniciaram um processo de modificação estrutural no intuito de promover um distanciamento das idealizações românticas nas relações humanas representadas nas obras. Nessa época, em torno da segunda metade do século XIX, destacaram-se os estilos denominados Realismo e Naturalismo. Ambos apresentaram em seu cerne criativo a ideia de analisar a sociedade com um enfoque na realidade objetiva – a forma como esse trabalho foi realizado, no entanto, era distinta. Enquanto o Realismo procurava explicar a sociedade a partir de uma perspectiva ora sociológica, ora psicológica, o Naturalismo tinha como base as teorias científicas, entre elas os determinismos propostos por uma série de estudiosos, que, de forma sumária, viam nas ações dos indivíduos uma cadeia circular de causa e consequência. Em suas obras, Thomas Hardy se aproximou das duas vertentes estéticas, muito embora seu trabalho apresente dificuldades de classificação, chegando até mesmo a suplantar tais denominações. Ainda assim, Jude, o obscuro é capaz de sintetizar no protagonista as amarguras de quem guarda esperanças
de uma ascensão social e amorosa, Ainda que por motivos diferenmas é refreado pela realidade que tes, pode-se dizer que uma teno cerca. Na Inglaterra vitoriana de dência perpassa as obras da geraHardy, Charles Dickens foi outro ção de Hardy, Dickens e Flaubert: proeminente escritor a desvelar o pessimismo. Em grande parte, uma sociedade inglesa nada ro- esse mal-estar perante a realidade mantizada: desigualdade social, partiu das leituras dos escritos de avareza e egoísmo são alguns dos Schopenhauer, que influenciarão problemas apresentados nas obras até mesmo a literatura decadendo escritor. Vale lembrar que a bus- tista dos simbolistas pouco tempo ca por uma estética mais verossímil depois. Os finais trágicos das hise objetiva veio de tórias do francês Émiterras francesas, le Zola, as injustiças “Enquanto o mais precisamente nas tramas do alemão Realismo tinha com a obra MadaGerhart Hauptmann e me Bovary (1856) os escândalos morais uma perspectiva de Gustave Flaunos romances do porora sociológica, bert. Considerado tuguês Eça de Queiora psicológica, um dos romances rós, por exemplo, são mais importanfrutos da atmosfera o Naturalismo tes do Ocidente, a de uma época em que tinha como base obra de Flaubert imperava a ausêno determinismo.” cia de perspectiva de marcou historicamente a superação prosperidade civilizado Romantismo. Sua personagem cional. Se na Europa o espírito era principal, Emma Bovary, é uma jo- de desengano, em um país marcavem aficionada por romances ro- do pela colonização e pela escramânticos. Toda sua expectativa de vidão, como o Brasil, o pessimismo vida gira em torno de realizar para se fazia cada vez mais presente nas si aquilo que a ficção mostrava. No obras de escritores como Machado entanto, seu casamento com Char- de Assis e Aluísio Azevedo, também les Bovary transforma-se em uma leitores de Schopenhauer, que funsérie de decepções. daram, à brasileira, o que a crítica chamou, respectivamente, de Realismo e Naturalismo.
Ecos da leitura
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vai ver o diabo lá, soprando ruindade no nosso ouvido Não sei se era junho ou julho,
poderia também ser agosto, fazia um frio desgraçado. Seis moleques entraram, só cinco saíram. O Paulo Mia nunca saiu, mas também não dá pra dizer que ficou. Não teve corpo pra fazer enterro. Se tivesse tido enterro, velório e o escambau, vai ver o Dinho não enlouquecia e eu não passaria o resto da vida pensando nessa porra de noite. Faz trinta e nove anos, agora essa doença desgraçada me comendo o fígado, e ainda assim penso mais no Paulo Mia do que no meu câncer. Foi o próprio Paulo quem deu a ideia de entrar. Mia era apelido. A gente chamava assim, porque ele falava miando quando estava com medo e tinha medo de tudo: cachorro, bêbado, marimbondo, trovão, quarto escuro, macumba. Filme de terror então, o cara se cagava, literalmente se cagava. Tinha o Tomás, pai usi-
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Ficção
neiro, quarto com fliperama, vídeo cassete. De vez em quando a gente assistia umas fitas na casa dele. Uma vez, assistimos uma sobre demônio e o Paulo se cagou. O Tomás ficou puto, escorreu merda no carpete, na colcha da cama. Ele cagava líquido, falava que era doença, que o médico disse que tinha um troço no intestino ou no estômago, sei lá, que impedia de fazer bolo fecal. A gente até começou a chamar ele de Sopa de Bosta, mas não pegou. O que pegou mesmo foi Paulo Mia. Nesse dia que era julho ou junho, um frio que você não pode imaginar, a gente de madrugada, um litro de conhaque na mão do Dinho, o Paulo falou quem é que tem coragem de entrar no cemitério e era uma pergunta que significava desafio, como se dissesse: eu vou, quem é que vem comigo? Todo mundo ali já tinha entrado em cemitério à noite,
feito círculo de vela, chamado assombração, brincadeira que já tinha perdido a graça. A gente foi pra ver o Paulo Mia se cagar, a verdade é essa, a gente se divertia com o jorro de bosta escorrendo nas pernas, o Paulo Mia chorando, porque sempre que ele cagava, chorava e chamava a mãe. E o mais triste é que o cara nunca teve mãe, nem na certidão de nascimento. Todo dia me arrependo de ter falado eu vou. Fui o primeiro. Falei eu vou e o Dinho falou eu também, e o Pablo, Luís Farinha, Gil, todo mundo: eu vou. Depois disso é lembrança embaralhada: Paulo Mia chorando mãe, Paulo Mia com sangue na cabeça, Paulo Mia falando duvido, Paulo Mia com merda nas pernas, a terceira paulada, a segunda, a sétima, tenho quase certeza de que foram sete. Não sei te dizer quem começou, se gente já entrou com pau, se o pau estava lá, amoitado pelo capeta, o que posso te dizer é que a gente não entrou na intenção da maldade, era só rir do Paulo se cagando, juro pra você. Acho que foi o Dinho quem golpeou por último. Talvez eu tenha dado uma paulada, na minha lembrança eu só olhei, não lembro do pau na minha mão, mas por que esse câncer agora, me comendo por dentro? Devo ter dado uma paulada, pelo menos uma, não era santo, já tinha matado cachorro com chumbinho, arrebentado filhote de gato com tijolo, queimado passarinho vivo, maldade de moleque, tentação de judiar, cemitério, madrugada, vai
ver o diabo lá, soprando ruindade no nosso ouvido. O Dinho largou o pau e abraçou o corpo do Paulo que não miava mais, nariz-boca-olho, tudo igual carne de açougue, o Dinho chorando igual criança. Depois o Pablo, o Luís Farinha e o Gil abraçaram também e cada um teve seu castigo: câncer, loucura, o Pablo perdeu uma filha atropelada por um caminhão de gás, menina de seis anos, tiveram que recolher com pá de lixo, de tão arrebentada. Fui o último a abraçar, eu chorando em cima daquela cara pisada e juro pra você que não senti o corpo desaparecer. Lembro do cheiro do sangue misturado com merda, a camiseta cinza claro, o buraco da cara engolindo a cara e uma hora não tinha mais corpo, assim, do nada. A gente olhou em volta pra ver se não tinha cova aberta, buraco em túmulo, o Farinha tinha lanterna, vasculhou cada quadrado daquele cemitério. Entramos em seis, disso eu tenho a mais absoluta certeza, voltamos em cinco.
Maria Fernanda Elias Maglio é defensora pública. Seu primeiro livro, Enfim, imperatriz (Patuá, 2017), venceu o Prêmio Jabuti 2018 na categoria Contos.
Ficção
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Vocês nos escutam, nós escutamos vocês Em maio é celebrado o Dia da Comunidade. Existe palavra melhor para descrever o que somos? Sempre pensamos no quanto podemos oferecer aos nossos associados por intermédio dos livros: conhecer mundos, realidades, exercitar a empatia, promover o autoconhecimento. Além de tudo isso, fomos surpreendidos por um fator indissociável à ideia de comunidade: a troca. Os grupos de Facebook, os encontros mensais que acontecem em todo o Brasil, os rankings: não seria possível pensar em TAG sem esses elementos que vocês, associados, agregaram à experiência. O que começou como listas de músicas produzidas por associados esporadicamente se tornou mais um componente da vivência literária que queremos proporcionar. A partir do final de 2018, começamos a compor playlists exclusivas, que criam a atmosfera na qual imaginamos nossos personagens e suas trajetórias. Como forma de agradecimento, criamos uma playlist para relembrar tudo que passamos juntos – do Uruguai à China –, construindo pouco a pouco esse clube. Separamos, ao lado, alguma das repercussões das playlists.
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Espaço do associado
Gil "A TAG se paga muito... oh investimento bom que fiz. Excelente playlist."
Carolina "Gente, que coisa mais incrível vocês fazerem esse trabalho! Obrigada."
Mayara "Minha gratidão e carinho a quem fez essa playlist. Não tem uma música que eu não goste, tô emocionada! TAG, te amo."
Sil "Que delicia! Por favor, CONTINUEM disponibilizando playlists pra gente ouvir enquanto mergulha na história do livro do mês. Obrigada!"
Hevellyn "Amei a playlist, TAG!! E também o cuidado e a delicadeza de buscar enriquecer ainda mais a experiência da leitura com outras sensações!"
Link da nossa playlist especial: http://bit.ly/playlistag Playlists passadas: Maio: http://bit.ly/MaioCuradoria Abril: http://bit.ly/AbrilCuradoria Março: http://bit.ly/MarcoCuradoria Fevereiro: http://bit.ly/FevereiroCuradoria Janeiro: http://bit.ly/JaneiroCuradoria Dezembro: http://bit.ly/DezembroCuradoria Espaço do associado
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Este espaço foi pensado para você retornar à leitura da revista depois de ter terminado o livro. Mensalmente, convidamos um especialista em Literatura para produzir um texto exclusivo para você analisar a obra de forma mais complexa.
Spoiler!
A nova aliança Agora que você já terminou a leitura de Jude, o Obscuro, pode refletir sobre a pergunta lançada por Jude quando ele, Sue, o Anciãozinho e os outros filhos do casal desembarcam em Christminster depois de sucessivos fracassos: “Deve cada um seguir cegamente o caminho em que se acha, sem considerar seus dotes pessoais, ou deve, pelo contrário, pesar as aptidões, as preferências que possa ter, e mudar a direção da sua vida?” Eis a questão, diria Hamlet. Jude opta pela segunda alternativa e tenta mudar o seu destino por meio dos estudos que faz por conta própria. O sonho de chegar a Christminster e “ser doutor antes de deixar este mundo” é mantido. Jude compra livros usados com o suor de seu trabalho, absorvendo uma cultura letrada que não era comum entre as pessoas de seu meio social. Não seria errado dizer que Jude representa uma espécie de self made man, o autêntico homem do Iluminismo, aquele que se coloca como princípio e fim de si. De origem humilde, Jude se lança na típica aventura dos tempos modernos, tornada
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possível pela ilusão burguesa e pela revolução democrática: partindo do nada e apenas com a própria dedicação e força de vontade, é possível alcançar os objetivos e conquistar um lugar ao sol. Doce ilusão que, no caso de Jude, é frustrada por uma série de infortúnios. Mas, afinal, o que impede Jude de chegar lá? Primeiramente, o casamento com Arabela: quando Jude se separa da primeira mulher, a relação de concubinato em que ele e Sue vivem será mais um obstáculo para seus objetivos. Arma-se, então, o verdadeiro conflito no livro: seria o casamento – ao mesmo tempo um contrato civil e um sacramento religioso – uma armadilha contra o progresso? Nessa forma considerada civilizada de regulamentação dos impulsos sexuais, não se esconderia também uma forma de privar o sujeito da sua condição de obter o sucesso? A pergunta faz sentido, se pensarmos que aparentemente Jude reúne as condições mínimas para triunfar, e só não consegue porque é sabotado pela sociedade em função de um casamento desonrado. Assim,
os costumes – evidentemente mais presos à religião, nesse caso – exercem mais pressão sobre as questões pessoais do que a cultura livresca que Jude e Sue consumiram. Logo, os obstáculos que Jude encontra para o seu sucesso dependem menos do casamento em si do que da maneira como o casamento é considerado pela sociedade de Wessex. Não estaria Jude alegando que a sociedade não percebe que, no fundo, sua relação com Sue é mais legítima? Mas a consciência que Jude demonstra sobre o casamento é também efeito de suas leituras. Ao entrar em contato com os textos destinados originalmente ao clero e aos universitários de Christminster, Jude vive a condição de um “desviado”. No entanto, sua compreensão de vida conflita com os interesses das instituições que regulam o casamento e a sociedade. Jude não entende por que o casamento deveria ser um obstáculo para o seu sucesso. E não se trata de pensar apenas em seus planos de solteiro, enterrados voluntariamente pela ligação com suas esposas; trata-se também de pensar no flagelo que a comunidade de Wessex lhe impõe, negando-lhe emprego e abrigo e transformando-o num pária. As consequências disso, como sabemos, foram fatais para toda a família, resultando na cena mais dramática do livro.
Há, portanto, um conflito de valores que lança luz sobre a sociedade vitoriana do século XIX, mas que também envolve as ilusões iluministas do progresso. De um lado estão as possibilidades que o autodidatismo e o empreendedorismo trazem para os sujeitos oriundos das classes baixas – ilusão romântica que a revolução burguesa acalentou, mas cuja sociedade de fato não concretizou. De outro, uma espécie de naturalismo determinista – encarnado sobretudo nos preconceitos enraizados na sociedade –, que engolfa os sujeitos em suas respectivas obrigações e saberes, seus respectivos sonhos e possibilidades, dificultando a mobilidade social. Jude não estava predestinado a ter uma carreira intelectual, de modo que o seu conhecimento literário não pode ser mais do que uma insolência para essa sociedade de leis rígidas. O sonho proporcionado pelos livros choca-se com a necessidade do casamento, uma instituição que regula a sensualidade natural aos costumes sociais e ao progresso pessoal. Mas o sonho existe, porque, antes de tudo, Jude se desviou do seu caminho quando encontrou-se com os clássicos. Infelizmente, a resolução desse conflito não parece ser possível no horizonte de Jude e ele não será o emblema da tão aguardada “nova aliança” entre a cultura e o progresso.
Antonio Barros de Brito Junior é professor de Teoria Literária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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O curador de junho
Renato Parada
Michel Laub
“Um pequeno grande livro sobre como escolhemos nossas memórias e como sobrevivemos a essas escolhas.” O escritor e jornalista Michel Laub é o curador escolhido para o mês de junho na TAG. Gaúcho de Porto Alegre, Laub vive hoje em São Paulo e é colunista do jornal Valor Econômico, além de colaborador de diferentes editoras e veículos. Publicou um livro de contos e sete romances, entre eles A maçã envenenada (2013) e O tribunal da quinta-feira (2016), cuja trama aborda a exposição e a consequente humilhação pública que se tornaram cada vez mais recorrentes com o surgimento das redes sociais. Memória, envelhecimento e remorso são os grandes temas do romance indicado por Laub. Acompanhamos um narrador que, em sua meia idade, reflete sobre as amizades da juventude. Entre rebeldias, reflexões filosóficas e frustrações sexuais, há a lembrança de um velho amigo, genial e misterioso, que lhe é especialmente estimado. Essa sequência de recordações imprecisas atinge um momento crucial com a chegada de uma carta, capaz de transformar suas convicções e comprovar a fragilidade dessa narrativa que conhecemos como memória.
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A próxima indicação
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“A injustiça que se faz a um é uma ameaça que se faz a todos.” – Montesquieu