IntĂŠrprete de males
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Ao Leitor “O imigrante é a figura definidora do século 20”: desde
o final dos anos 1990, quando Salman Rushdie escreveu esta icônica frase, muito vem se falando sobre a imigração como efeito de um mundo pós-moderno, globalizado, enquanto conceitos como cultura, nação e identidade têm sido revisitados. Em 1827, o alemão Goethe cunhou a expressão “literatura mundial”; quase 200 anos depois, vimos um crescimento explosivo no que diz respeito ao estudo de diferentes culturas e costumes sob o viés da literatura. Não por acaso, neste mês contamos com uma curadora e uma autora que abordam de forma pungente a questão da imigração e o consequente sentimento de inadequação cultural/nacional, cada uma à sua maneira. Aos 26 anos, Rupi Kaur é considerada um expoente da poesia contemporânea: sua coletânea Outros jeitos de usar a boca (2014) ficou 25 semanas na lista de mais vendidos do New York Times. Na entrevista abaixo, Rupi discorre sobre múltiplos assuntos, incluindo a urgência do empoderamento das minorias e o seu encantamento pela escrita de Jhumpa Lahiri. Retornando ao clube após o sucesso de O xará (enviado pela TAG em 2017), Jhumpa demonstra interesse no modo como os imigrantes – e seus filhos – contam as próprias histórias, imaginam as suas identidades e, afinal, o que significa criar raízes longe da terra ancestral. Logo no primeiro conto de Intérprete de males, temos um personagem que se vê sozinho em Boston após a mãe ficar deprimida com a morte do marido e regressar a Calcutá. Mas o interessante é que as premissas delicadas de Jhumpa – como a de um casal em crise que volta a conversar quando o sol se põe – poderia ser ambientada em qualquer local do planeta. Um imigrante que não entende como uma abóbora pode ser símbolo do Halloween – o fato de ele ser paquistanês se torna um mero detalhe – e um motorista indiano que observa melancolicamente os costumes americanizados de uma jovem família: Jhumpa nos presenteia com enredos delicados, sem medo de mergulhar nas profundezas psicológicas de seus personagens. Boa leitura!
Sumário
A indicação do mês
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A curadora Rupi Kaur Entrevista com Rupi Kaur O livro indicado Intérprete de males
Jhumpa Lahiri
Ecos da leitura
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Os símbolos e seus males Identidade e imigração na literatura Quem conta um conto aumenta um ponto
Espaço do associado
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Flip: a leitura conecta
Leia depois de ler
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A literatura longe de casa
A próxima indicação
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O livro de outubro
Baljit Singh
A curadora
Rupi Kaur Rupi Kaur é uma das artistas mais jovens e bem-sucedi-
das dos últimos tempos. A partir de trabalhos com poesia acompanhada de ilustrações (além de uma produção consistente em outros formatos, como a fotografia), a indiana radicada no Canadá se tornou um fenômeno de vendas e a principal responsável por popularizar o compartilhamento de poemas nas redes sociais, transformando a relação e a forma de consumo de poesia e abrindo caminho para outros jovens criadores, hoje conhecidos como instapoets. As conquistas de Kaur são históricas e seus números já atingem a marca dos milhões, seja em seguidores nas redes, seja na quantidade de livros vendidos – números que causam assombro no meio literário e que se mostram muito insólitos para quem se dedica majoritariamente à poesia. Ao falar de temas como amor, trauma, imigração e empoderamento, Rupi se expressa em uma linguagem direta e acessível, incomum para o universo – muitas vezes rebuscado – da poesia. Sua escrita tem como característica a crueza, a expressão do sentimento em matéria bruta, sem espaço para rodeios e ironias: são angústias, histórias e reflexões que, se por vezes encontram olhares desconfiados e críticos por sua simplicidade, atingem o fundo do peito de um grande número de leitoras e leitores que se veem representados – muitos pela primeira vez – em seus versos curtos e potentes. Kaur nasceu no ano de 1992 em Panjabe, Índia, mas ainda criança mudou-se para Brampton, pequena cidade localizada na região metropolitana de Toronto.
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Influenciada pela mãe a desenhar e a pintar, Kaur se mantém desde a infância em constante diálogo com a arte. Durante a adolescência, passou anos apresentando-se em palcos abertos, performando músicas tradicionais indianas (prática conhecida como keertan, uma combinação de poesia, teatro, música e declamação que foi determinante para que a artista encontrasse seu estilo direto). Anos mais tarde, estudando retórica e escrita profissional na Universidade de Waterloo, descobriu uma paixão especial por escritoras como Anaïs Nin e Virginia Woolf e começou a publicar seus próprios textos nas redes sociais, primeiro no Tumblr e, posteriormente, no Instagram. E foi ali, sem nenhuma publicidade além da própria arte, que Rupi Kaur começou a se tornar famosa. No final de 2014 ela publicou de maneira independente a coletânea Outros jeitos de usar a boca. Antes que a editora Simon and Schuster a descobrisse, uma polêmica envolvendo Kaur e o Instagram foi o estopim para sua popularidade no resto do mundo. A hoje icônica fotografia de Kaur deitada de lado em uma cama, exibindo manchas de sangue menstrual em sua calça de moletom cinza foi censurada pela rede social. Em resposta, ela escreveu um texto desafiador, criticando a empresa pela hipocrisia da sua política de postagens. Após a repercussão, o Instagram foi forçado a pedir desculpas e a
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liberar a imagem. Outros jeitos de usar a boca, dessa vez publicado em grande escala, passou cerca de um ano nas listas de livros mais vendidos da New York Times e hoje já ultrapassa a marca de quarenta traduções em idiomas diferentes e três milhões de cópias vendidas. Só no Brasil, ficou entre os cinco mais vendidos em 2017 e 2018, com mais de 75 mil exemplares vendidos em cada ano. Em O que o sol faz com as flores (2017), obra que dá continuidade ao formato de compilação de textos e ilustrações majoritariamente criados para as redes sociais, Rupi divide sua jornada poética em partes assim nomeadas: murchar, cair, enraizar, crescer e florescer. Como no primeiro livro, mantém a escrita visceral e corajosa, explorando desilusões amorosas, traumas, processos de amadurecimento, cura, ancestralidade, entre outros temas. Assim como muitos associados da TAG, Rupi Kaur é fã de outra grande mulher de origem indiana capaz de conquistar o mundo com livros: Jhumpa Lahiri. A escritora americana que se tornou uma das favoritas do clube após o sucesso de O xará (2003), enviado em fevereiro de 2017, retorna ao clube com o livro que a colocou no panorama literário internacional, um trabalho que exige técnicas e ambições literárias completamente distintas da obra enviada há dois anos: a coletânea de contos Intérprete de males (1999).
Entrevista com
Rupi Kaur TAG – Como foi a entrada da poesia na sua vida? Rupi Kaur – Na verdade, foram os meus pais que me apresentaram à poesia quando eu ainda era pequena. A poesia é uma parte importante na minha fé (Sikh). Através da poesia e da escrita nós compartilhamos ideias sobre vida e espiritualidade. Então eu cresci discutindo versos de poemas de devoção e interpretando para mim mesma. Aí, mais tarde, na escola, eu estudei poesia. Mas eu não estava necessariamente interessada em poesia naquela época: meu interesse era comunicação. Para mim, aquilo era uma paixão.
Como eu poderia compartilhar as minhas ideias com meus amigos e a minha família? Para alguém que era muito tímida, introvertida e que se sentia muito invisível enquanto crescia, porque a comunicação não era algo que era totalmente nutrida na minha casa, eu descobri que escrever permitia que eu me comunicasse em silêncio. Eu encontrei segurança naquilo. Talvez eu não tivesse a coragem para compartilhar as minhas dificuldades com amigos ou família, mas eu podia escrever a eles, e foi isso que eu fiz. Em 2014, quando estava publicando seu primeiro livro, o Instagram
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já fazia parte da sua vida. Como foi (e é) receber feedbacks instantâneos nas redes sociais? Como isso afeta o seu modo de criação?
tinuasse escrevendo o que há de mais honesto para mim, ao invés de aquilo que me dizem que vai fazer mais sucesso.
Rupi – Foi ótimo ter aquele feedback instantâneo no Instagram em 2014. Eu estava compartilhando por compartilhar, e não tinha intenção de publicar ou escrever um livro. Na verdade, eu continuei compartilhando porque eu amava o feedback. Eu amava ouvir o que as outras pessoas tinham para dizer sobre elas os temas que eu escrevia. Eu amava iniciar conversas. Para mim, aquilo era o essencial. Eu queria que o os meus escritos desencadeassem diálogos. Contudo, era muito importante não ser afetada por aquilo que as pessoas diziam. Eu não queria que as ideias e os comentários das pessoas fizessem eu mudar os meus escritos de forma alguma. Não queria aceitar críticas e elogios de forma muito séria, porque eu sabia que no fim das contas escrever poesia era uma experiência muito espiritual, divina até. A minha poesia vem até mim de um outro lugar, e esse outro lugar confiou em mim como uma embarcação, então eu preciso honrar isso, bem como os poemas e tópicos que querem surgir. Não quero ignorar a organicidade e substituir isso com poemas que eu acho que vão ser “populares” ou poemas que as pessoas querem ler. Eu não queria fazer o processo de escrita ser “clínico”, e então tive que ser muito cautelosa durante os anos para me certificar que eu con-
Você tem uma coleção de poemas bem pessoais que falam sobre temas como sexualidade e menstruação. Como você lida com a exposição e com o fato de que muitos desconhecidos estão acessando uma parte mais íntima sua?
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Rupi – Eu acho que apenas ignoro essa parte (risos)! Provavelmente não é uma boa ideia. Mas acho que é tão pessoal que eu me desassociei completamente do fato de que [a minha obra] está espalhada por aí. Ou então não penso muito a respeito. Acho que, se eu pensasse, acharia difícil compartilhar, e compartilhar realmente é o que eu amo fazer. No seu âmago, eu comecei tudo isso por causa do meu desejo de compartilhar e conectar. Quando lemos seus poemas, sentimos que você tem um olhar muito sensível para minorias e outsiders. Como ter ascendência indiana e ser filha de imigrantes contribuiu para a escolha temática na hora de escrever poemas? Rupi – Sim, eu sou uma outsider. O meu pai é um refugiado e eu vim para o Canadá como uma imigrante quando tinha três anos e meio. Eu tenho pele marrom. Fisicamente, sou uma outsider, e isso me deu muita empatia. Ser uma minoria me
ensinou a sair do meu lugar e ver as situações sob diferentes perspectivas. Um grande aspecto sobre o porquê de eu escrever é documentar a minha experiência como imigrante. Os meus filhos não vão saber como é isso, e a experiência é dolorosa e bela ao mesmo tempo, então é meu trabalho registrar isso. A minha cultura e a minha herança informam muito sobre o que eu escrevo e desenho. É importante para mim nunca esquecer e passar isso adiante para a próxima geração, porque é realmente tudo o que nos resta sobre a terra que nós deixamos para trás.
“Um grande aspecto sobre o porquê de eu escrever é documentar a minha experiência como imigrante. [...] É realmente tudo o que nos resta sobre a terra que nós deixamos para trás.” O seu primeiro livro sofreu rejeição por parte de algumas editoras e você decidiu publicá-lo de forma independente. Como foi esse processo?
Rupi – Sabe que o processo foi bem divertido para mim? Pareceu como um projeto de artes criativas e construção da escrita e foi uma distração bacana das aulas. Eu estava no meu último ano da universidade naquela época e então, quando separava um tempo para trabalhar em Outros jeitos de usar a boca, foi um prazer que eu me permiti ter. Foi desafiador? Sim. Mas nada que valha a pena ter vem de maneira fácil. Eu tive que aprender uma nova habilidade: em poucos dias eu aprendi como diagramar um livro inteiro no InDesign, um programa que eu nunca havia usado antes, e, então, eu tive que fazer funcionar todo o meu conhecimento sobre marketing e publicidade. Então foi divertido. Mas eu sou esse tipo de pessoa: amo criatividade. Amo brincar com isso. É quando eu me sinto mais inteira e completa: quando estou em contato com a minha alma criativa. Estando tão inserida no contexto das redes sociais como ferramenta de promoção literária, como você enxerga as possibilidades que a internet traz ao mundo editorial? Rupi – Eu acho que a internet mudou totalmente o mundo editorial. A internet decide quem é que consegue fechar acordos de livros ou não. Todavia, eu não sei se isso é necessariamente uma coisa boa. Mas o bom é que as pessoas que nunca conseguiriam se sentar à mesa agora têm uma cadeira. Sem a internet, não tenho certeza se uma editora
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algum dia teria me escolhido. Eu não tinha contatos na indústria. Vim de um lar de trabalhadores com pouco dinheiro, e eu era uma jovem garota de pele marrom, e nós somos muito pouco representadas. Contudo, eu tive a minha chance por causa da internet. Porque eu podia fazer ter contas gratuitas no Tumblr ou no Instagram e compartilhar o meu trabalho e a minha esperança para o melhor. Foi assim que os meus leitores me encontraram e fizeram todas essas coisas incríveis acontecerem.
“Eu sinto que nada do que eu escrevo realmente é “corajoso” ou “disruptivo” porque estes são apenas pensamentos e ideias que eu tive durante toda a minha vida. [...] Isso mostra quanto trabalho nós ainda temos em empoderar mulheres e minorias. O patriarcado e a misoginia mantiveram a mulher quieta pelo mundo por tempo demais.” Muitos enxergam os seus poemas como sendo “corajosos”, “disrupti-
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vos” ou “femininos”, mas você discorda, considerando os seus conteúdos muito naturais. Como o fato de ser mulher se tornou algo tão perigoso e delicado na nossa sociedade? Rupi – Exato! Sinto que nada do que eu escrevo realmente é “corajoso” ou “disruptivo” porque estes são apenas pensamentos e ideias que eu tive durante toda a minha vida. É só o que deveria ser. Mas, se o pessoal acha que minhas ideias são corajosas, isso mostra o quão desigual o nosso mundo é. Isso mostra quanto trabalho nós ainda temos em empoderar mulheres e minorias. O patriarcado e a misoginia mantiveram a mulher quieta pelo mundo por tempo demais. Nós estamos lutando mais do que nunca e eu acho que os poderosos estão assustados, porque nós somos um perigo a eles, porque nós estamos pedindo para que eles compartilhem o seu poder. E nós não vamos parar de lutar até que o mundo seja um lugar mais igualitário. Além de Intérprete de males você também indicou à TAG outro livro de Jhumpa Lahiri, O xará. Quais aspectos na literatura de Jhumpa chamaram sua atenção? Rupi – Era raro encontrar um livro escrito por uma mulher sul-asiática durante a minha juventude no Canadá. Eu amo ler e durante toda a minha vida li livros sobre personagens que eu amava, mas que não eram parecidos comigo. Mas
tudo mudou quando li a Jhumpa. Ler suas obras foi uma experiência emocional. Os livros dela são principalmente sobre a comunidade Bengali e eu sou Punjabi, mas ainda era perto o suficiente da minha casa para que eu pudesse me identificar. Ela documenta muito bem a experiência do imigrante. Como uma imigrante do Sul Asiático, eu conseguia me identificar 100% com a sua dor e o seu sofrimento. Estas eram emoções que a minha mãe sentia, apesar de não ter palavras para se expressar. Jhumpa é uma escritora brilhante. A prosa dela é poesia lírica. O que você sentiu ao ler Intérprete pela primeira vez? O que diria aos 30.000 associados que lerão o livro pela primeira vez? Rupi – Quando li Intérprete de males eu me senti vista, ouvida, entendida. Eu estava na beira da cadeira lendo cada história porque não tinha ideia do que aconteceria a seguir. Cada história tem uma reviravolta emocional e destruidora. É bem mágico. Jhumpa é maravilhosa em criar histórias lindamente dolorosas que tomam essas reviravoltas, da mesma forma como acontece na vida real. Frequentemente estamos em situações em que as nossas mentes definem que os resultados vão ser de uma certa forma, mas raramente isso acontece de verdade. É assim que essas histórias fluem. Sirva uma taça de vinho e absorva cada frase.
ESTANTE LITERÁRIA O primeiro livro que li: eu era muito jovem, não consigo lembrar! O livro que estou lendo: Three women, de Lisa Taddeo (inédito no Brasil, a ser publicado pela HarperCollins) O livro que eu gostaria de ter escrito: A árvore generosa, de Shel Silverstein O último livro que me fez chorar: Love and Courage, de Jagmeet Singh O último livro que me fez rir: Estou lendo de novo a série Harry Potter, pela 500ª vez, e estou rindo muito! A sra. Weasley é hilária! O livro que eu não consegui terminar: Shantaram, de Gregory David Roberts O livro que eu dou de presente: O profeta, de Khalil Gibran O livro que mudou a minha vida: Grande magia, de Elizabeth Gilbert
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O livro indicado
Intérprete de males de Jhumpa Lahiri Um acontecimento premonitório marca o início da vida
de uma das escritoras mais reconhecidas da atualidade. Filha do casal de imigrantes indianos Tapati e Amar, ambos vindos de Calcutá, capital do estado de Bengala Ocidental, Nilanjana Sudeshna Lahiri nasceu em 1967 em Londres. A estadia da família, no entanto, durou apenas dois anos, quando Amar, que trabalhava como bibliotecário, conseguiu um emprego na Universidade de Rhode Island, nos Estados Unidos. Em 1969, eles já moravam do outro lado do oceano. Para os pais, apenas a nova etapa do oneroso desafio de morar longe de casa. Para a menina, o nascimento de uma pergunta: onde estaria essa casa? Seguindo a tradição bengali (reforçada pela família Lahiri a cada verão em longas viagens para Calcutá), Nilanjana recebeu, logo ao nascer, um daknam, espécie de apelido utilizado pela família e pelos amigos indianos próximos. Nesses momentos de maior intimidade, seu nome era Jhumpa. Entretanto, fatores determinantes como a dificuldade da pronúncia dos amigos estadunidenses acabariam por fazer de “Jhumpa” seu nome oficial no Ocidente. Para a frustração da menina, ninguém se preocupou em perguntar se ela estava de acordo. Ser chamada pelo daknam era constrangedor. O fato de estar sempre em trânsito, interiorizando costumes contrastantes e observando eles se combinarem em seu dia a dia de modo a vulnerabilizá-la moldou a percepção de Jhumpa sobre o mundo, sobre as pessoas e, principalmente, sobre si mesma. Em entrevista ao The Economic Times, ela afirmou: “A questão da identidade é sempre muito complicada, especialmente para aqueles que estão culturalmente deslocados, como imigrantes, ou para aqueles que cresceram em dois mundos
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simultaneamente, no caso de seus filhos. Quanto mais velha eu fico, mais consciente estou de que tenho, de alguma forma, um senso de exílio herdado dos meus pais”. Lahiri estudou no Barnard College – faculdade de artes liberais para mulheres –, graduando-se em Literatura de Língua Inglesa. Em seguida, ingressou na Universidade de Boston, onde realizou o Mestrado em Língua Inglesa, Escrita Criativa e Literatura Comparada, além do Doutorado em Estudos da Renascença. Ainda que tenha desenvolvido o interesse pela escrita durante a infância, seu ingresso no universo literário na condição de escritora começou mais tarde. Aos poucos, aquilo que vinha crescendo como uma sensação de deslocamento se tornou uma necessidade de expressão. “Depois que eu saí da faculdade e me vi lá fora no mundo, alguma coisa começou a mudar em mim... Um lento, hesitante despertar artístico. Era algo secreto, assustador”, revelou ao jornal britânico Independent. Em 1997, Lahiri foi aceita no Fine Arts Work Center, em Provincetown, Massachusetts, um renomado centro que apoia artistas emergentes e consagrados, concedendo a eles residência e permitindo que tenham tempo para trabalhar exclusivamente em suas obras. No período de um ano, Jhumpa publicou contos em diferentes periódicos como The New Yorker e Agni, ob-
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tendo o reconhecimento da crítica especializada. Em 1999, lançou sua primeira obra, Intérprete de males, coletânea de contos que você recebe no kit deste mês por indicação de Rupi Kaur.
“Mais do que maturidade, [Jhumpa Lahiri] maneja suas narrativas com algo que se poderia chamar de sabedoria.” – Folha de S. Paulo Um casal que, próximo do colapso do relacionamento, faz confissões à luz de velas. Um humilde guia turístico indiano que tem fantasias amorosas com uma mulher de cultura americanizada. Uma menina obcecada por um homem cuja família se encontra em meio a uma guerra. Partindo de contextos diversos e sempre variando as tonalidades de sua elegante voz narrativa, Jhumpa tece histórias cujos principais pontos de convergência são as alegrias e os dissabores da experiência do imigrante indiano na América do Norte. Seus protagonistas são majoritariamente homens e mulheres de origem indiana que vivem nos Estados Unidos pelos mais variados motivos: alguns são residentes
Dan Martensen para a WSJ.
temporários, outros americanos de nascença. Em uma teia de infinitas variáveis, o leitor vai sendo apresentado às consequências que essas condições – sejam elas a distância da terra natal, a sensação de não pertencimento, a falta de comunicação ou mesmo desejos de realização afetiva – acarretam em pilares da esfera privada como família, amizade e casamento. Lahiri escapa dos estereótipos com um olhar clínico para as miudezas, descrevendo as singularidades de seus personagens ora com humor, ora com delicadeza e empatia. Nos contos "Quando o sr. Pirzada vinha jantar" e "A sra. Sen", por exemplo, temos personagens imigrantes cujas sensibilidades, esquisitices e afetos direcionados à sua terra natal
são percebidos pelo olhar de crianças, dando vazão a uma perspectiva menos sentimental e mais crua. Já na arrebatadora narrativa que abre o livro, “Uma questão temporária”, as temáticas identitárias, ainda que presentes, viram pano de fundo para elucidar um drama familiar. Enquanto isso, nos contos “Um durwan de verdade” e “O tratamento de Bibi Haldar”, narrativas que se passam inteiramente na Índia, também encontramos suas protagonistas enfrentando a inadequação e o preconceito, embora por motivos que não se relacionam, necessariamente, com a mudança de continente. Por fim, o leitor ainda é agraciado com uma série de passagens elucidativas sobre cultura indiana: roupas, pratos, cheiros, costumes e memórias dos personagens colo-
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Lynn Neary
no meio literário. Sua obra surpreendeu críticos pela prosa fluida e consistente, conquistou o cobiçado Prêmio Pulitzer em 2000 e vendeu mais de 600.000 exemplares. Apesar de um pouco perturbada pelas repentinas fama e pressão resultantes de uma estreia tão festejada, a escritora arriscou-se em outro gênero para seu segundo livro. O xará (2003), romance que narra a trajetória do filho de imigrantes Gógol e sua família em solo americano, foi enviado pela TAG em fevereiro de 2017 e permanece até hoje como um dos livros mais queridos pelos associados.
rem todas as narrativas, ainda que os tons de cada uma das histórias se adaptem à atmosfera dos seus cenários. Mais importante é salientar que esses elementos, embora essenciais para a construção do universo estético, afetivo e psicológico dos contos de Jhumpa Lahiri, são apenas a porta de entrada para subjetividades e dissonâncias que soam universais para qualquer leitor, em qualquer lugar do mundo. Ou seja, não há como não se familiarizar com as situações vividas por cada um dos marcantes personagens criados pela autora. Com Intérprete de males, Jhumpa foi recebida como uma grata revelação
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Jhumpa ainda publicou a coleção de contos Terra descansada (2008) – com o título retirado de uma passagem de A letra escarlate (1850), de Nathaniel Hawthorne – e o romance Aguapés (2013), finalista do Man Booker Prize e do National Book Award. Em 2012, ela se mudou com o marido e seus dois filhos para Roma, depois de anos de estudo da língua italiana, tornando-se este o seu foco de obsessão. Na Itália, parou de ler e falar inglês quase completamente (um período que durou cerca de três anos) e começou a escrever obras com o idioma local: em 2015, lançou o livro de não ficção In altre parole (“Em outras palavras”, em tradução livre). A obra, uma “autobiografia linguística”, explora a relação da autora com a nova língua e também reflete o desejo de se libertar da obrigação de escrever em inglês, como se quisesse resgatar a sensação de começar outra vez, ao mesmo tempo
que se aventura em uma nova forma de expressão. Quando retornou aos Estados Unidos, passou a dar aulas de escrita criativa e tradução na Universidade de Princeton. No final de 2016, lançou Il vestito dei libri, no qual discorre sobre as artes gráficas criadas para livros, analisando relações entre autor e designer, texto e imagem, arte e comércio. Sua obra mais recente é também seu primeiro romance em italiano, Dove mi trovo, de 2018, que narra a história de uma mulher solitária e seu mais íntimo “interlocutor”, a cidade.
Escrevendo na língua italiana, ainda que longe do país, Jhumpa afirma ter encontrado uma espécie de novo lar. Como alguém que sempre necessitou decodificar a própria identidade por meio de fragmentos impostos pela realidade do sujeito expatriado, goza dessa descoberta da maneira que mais lhe comove e lhe é íntima. Faz da literatura um espaço que reserva para si e, ao mesmo tempo, oferece este espaço para muitos outros em situações semelhantes ou completamente adversas.
unboxing VOLTA AO MUNDO EM 50 LIVROS! Um dos objetivos da TAG é tirar os leitores da zona de conforto, apresentando aos associados leituras incríveis e inusitadas. Por isso, no mês de setembro, aproveitamos o livro Intérprete de males, um verdadeiro mosaico cultural, para indicar obras de 50 nacionalidades diferentes. É só escolher o país, raspar a tarja cinza e viajar com a gente!
O PROJETO GRÁFICO O projeto gráfico do livro deste mês foi feito pela equipe de design da TAG. Foi elaborada uma ilustração para cada conto, referenciando elementos e detalhes de cada história. A figura da bandeira estadunidente cravada na lua está presente no conto "O terceiro e último continente" e representa o "esplendor" da conquista ocidental. Além disso, temos hot stamping como acabamento, tornando a edição ainda mais personalizada.
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OS
OS Ecos da leitura
E SEUS
E SEUS 18
OS E SEUS Em Intérprete de males, Jhumpa Lahiri tece enredos e explora o afeto dos personagens com perícia e maturidade. Uma das características marcantes dessa obra e um dos seus trunfos é a utilização bem definida e recorrente de objetos e situações como metáforas. São elementos quase sempre discretos que percorrem as narrativas e parecem dialogar com a trajetória dos protagonistas.
Trazemos neste Eco algumas das simbologias mais chamativas da coletânea de Jhumpa Lahiri. Evidentemente, elas carregam aqui um caráter sugestivo, aberto a interpretações e arquitetado como incentivo a discussões entre os associados, que poderão encontrar muitos outros significados em suas leituras. Atenção: esta seção foi concebida para ser lida após a leitura, com o intuito de provocar reflexões e aprofundamentos acerca dos símbolos de cada história. Se você não quer spoilers, finalize os contos e só depois retorne a este texto.
Ecos da leitura
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O APAGÃO EM UMA QUESTÃO TEMPORÁRIA: Apesar de historicamente representar situações e sentimentos negativos, a falta de luz na casa de Shoba e Shukumar aparece inicialmente como um acontecimento de potencial redentor, principalmente se visto pela ótica do marido. Para Shukumar, a hora diária passada à luz de velas que se torna um momento de confissões significa a oportunidade para se reconectar com Shoba, uma chance para o casamento voltar a ser o que um dia houvera sido. A esposa, entretanto, aproveita esses momentos apenas para derramar sentimentos negativos que ela nunca tivera coragem de revelar – a falta de luz seria, aqui, a negação do relacionamento. Ao final do conto, quando descobrimos a real intenção de Shoba, a luz já retornara, apenas para ser desligada pela mulher no clímax da narrativa, o que sugere o sentido mais doloroso da escuridão compartilhada pelos dois: o luto pela perda do bebê.
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Ecos da leitura
OS DOCES EM QUANDO O SENHOR PIRZADA VINHA JANTAR: Os presentes do senhor Pirzada para a pequena Lilia poderiam ser lidos simplesmente como símbolo da afeição do visitante pela menina. Ainda que isso não seja falso, o oposto acaba se tornando mais verdadeiro. Diferentemente do que faz com os doces ganhos durante o Halloween, Lilia os guarda como se fossem joias, presentes de alguém muito estimado – alguém cuja figura paterna é mais relevante que a do próprio pai. Além disso, as balas a validam e a fazem se sentir bem consigo mesma, afinal, ela só as ganha porque não é uma “criança mimada”. Ao fim do conto, para representar o rompimento dessa relação, a narradora, ao invés de comer os doces, os joga fora.
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Outros objetos relevantes neste conto:
A abóbora de Lilia
O relógio do Sr. Pirzada
OS ÓCULOS ESCUROS DA SRA. DAS EM INTÉRPRETE DE MALES: Não é por acaso que a sempre tão distante e afetada sra. Das nunca tira os óculos escuros com detalhes de tom rosado: dessa maneira, ela permanece com uma imagem altiva e inacessível, representando não apenas sua personalidade mas também a superioridade de classe em relação ao humilde sr. Kapasi.
Outros objetos relevantes neste conto:
A câmera do sr. Das
O pedaço de papel com o endereço do sr. Kapasi
Também não é à toa que, quando ela decide levantar os óculos, sua interação com Kapasi se transforma: agora ela procura maior intimidade. As fantasias que o intérprete de males cria a partir dessa aproximação, no entanto, não duram muito, e ele acaba percebendo a verdadeira e um tanto egoísta intenção da sra. Das com aquele contato. Também pudera: a “máscara” já havia caído.
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Os mapas em “Sexy”
A CHAVE-MESTRA EM UM DURWAN DE VERDADE: Ainda que as chaves-mestras sejam um previsível indicador de poderes e acessibilidades ilimitados, tal condição não se verifica neste conto. Para a protagonista, Buri Ma, elas servem muito mais como uma lembrança do seu suposto passado de bonança e conforto do que para lhe dar alguma validade em seu presente. Ela é, na verdade, tratada pelos moradores do prédio onde trabalha como uma cidadã de segunda classe, pobre, descuidada e inútil. Essa situação paradoxal ganha contornos ainda mais irônicos quando, ao final da narrativa, ela é expulsa do prédio por causa das próprias chaves – que, por sinal, nunca foram utilizadas de maneira inapropriada por Buri Ma.
Outros objetos relevantes neste conto:
A vassoura de Buri Ma
As pias do prédio
Outros símbolos encontrados no livro:
Objetos cristãos em “Esta casa abençoada”
A bandeira na Lua em “O terceiro e último continente”
O bebê de Bibi em “O tratamento de Bibi Haldar”
Ecos da leitura
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Identidade e imigração na literatura Uma das funções da literatura é
exercer sua potência de compreensão e organização do mundo. Como simbolização do real, seus resultados são extremamente importantes, pois a escritura revela diversas formas de experiências vividas, entre elas, os trânsitos culturais de identidades que se rompem a partir dos processos de imigração. Conjugando literatura, memória e política multicultural, livros como os de Jhumpa Lahiri criam importantes representações das fraturas causadas pela intricada desterritorialização migratória. Entre essas fraturas, a xenofobia e a marginalização podem ser alguns dos obstáculos enfrentados por quem chega em um novo país. Como fonte de assimilação, o terreno artístico informa e transforma
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Ecos da leitura
essa transição de identidades culturais. A maneira como, por exemplo, os africanos escravizados fizeram uso das suas canções no continente americano serve como um grande exemplo: no intuito de amenizar os desumanos trabalhos coercitivos e de se comunicar em território estrangeiro e inimigo, criando um proibido espírito de coletividade, as work-songs formaram uma corrente de resistência e subversão. O livro Slaves songs of the United States (1867), organizado por abolicionistas norte-americanos, registra parte dessas composições. No Brasil, o álbum O canto dos escravos (1982), interpretado por Clementina de Jesus, Geraldo Filme e Tia Doca, é outra grande criação que memoriza essas formas artísticas criadas na escravidão. Nessa época, as possíveis representações de imigrantes ocor-
Pintura da artista Helen Zughaib
riam majoritariamente de maneira deturpada na literatura. Isso porque o meio literário era administrado e protegido por outros imigrantes, aqueles que tinham o poder em suas mãos: os colonizadores.
Desde os primeiros movimentos migratórias do século XX até os dias atuais, o imigrante, principalmente o ilegal, segue enfrentando recorrentes problemas: a língua, o preconceito, a pauperização, a ausência de uma alteridade positiva. A literatura, após uma série de transformações, incluindo um público mais diversificado, modificou-se, principalmente na política de mercado editorial, tornando-se uma ferramenta tão importante quanto a música para as narrativas migratórias. Régine Robin, francesa radicada no Canadá, é uma dessa vozes que traçam novas luzes para literatura de viés multicultural. Seu romance, Le québécoite (1983), ainda sem tradução para o português, traz Mimi Yente, personagem francesa em exílio no Canadá. Sua inquietante voz migratória fomenta reflexões acerca de um "não-lugar", Montreal, onde a personagem errante habita sem poder, de fato, viver. W. G. Sebald, cultuado escritor de origem alemã, publicou Os emigrantes no ano de 1992, obra composta de quatro narrativas centralizadas em judeus do pós-guerra. Exilados de suas terras, esses personagens
experenciarão a mais completa inadequação que suplanta a ordem geográfica, tornando-se uma inconformidade existencial. Já no século XXI, em 2001, chega a público a obra O Engate, da escritora sul-africana Nadine Gordimer. O romance aborda uma relação amorosa entre uma jovem branca e abastada da África do Sul e um mecânico possivelmente indiano e imigrante ilegal. Colocando lado a lado os opostos – uma mulher com possibilidades de se portar como uma cidadã do mundo e um estrangeiro sem pátria –, Gordimer sintetiza os problemas que persistem na África do Sul mesmo após o Apartheid. Se comparada com a ciência, é possível afirmar que a arte em geral possui mais recursos de linguagem para abordar as questões de identidade em condições transterritoriais. É por isso que cresce o número de obras criadas a partir de uma estética migratória, fabricando imagens sensíveis e sugestivas desse processo como no título As cicatrizes do Atlas (2003), obra poética do escritor franco-marroquino Tahar Ben Jelloun. No plano da comunicação, em um mundo repleto de muros físicos e imaginários, a literatura exerce um papel de transmutação dessas fronteiras quando organiza esteticamente essas experiências sensíveis. As consequências desse trabalho passam diretamente por exigir do leitor uma maior negociação de identidades culturais, exercício radical contra os perigos do individualismo e da intolerância.
Ecos da leitura
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, A
frase, tão conhecida pela cultura popular, não poderia ser mais assertiva ao inferir a própria trajetória do conto tal qual o conhecemos enquanto gênero narrativo nos dias atuais. Mas que gênero é esse, afinal, e em que medida ele se diferencia das formas tradicionais de narração? Para responder à pergunta, é necessário voltarmos centenas de anos da história, às primeiras práticas de narração: mesmo a pinturas rupestres já demonstravam que contar é humano. Mais tarde, nas Mil e uma noites, com a exímia contista Sherazade, percebemos que inventar também. Segundo Lúcia Sá Rebello, professora de Latim na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a palavra conto tem sua origem na palavra latina comptus, - i, que significa cálculo, cômputo, conta, e que adquire a acepção de narrar na linguagem popular. Outras fontes e dicionários latinos indicam para a palavra conto, na acepção literária, a origem em commentum,-i que, em sentido próprio, significa invenção, ficção. Isto é, quem conta um conto aumenta um ponto. Parte dos estudos literários, enveredada por normatizações, afirma a possibilidade de uma teoria geral e definitiva do conto, inaugurada pelo
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corvíneo bardo mais sombrio da língua inglesa, Edgar Allan Poe. Em A filosofia da composição, o autor, admirado por Jorge Luis Borges, outro consagrado contista, apresenta dois pilares que viriam compor o primeiro manual do gênero: brevidade e efeito. Para ele, ambos estavam estritamente relacionados. A função do conto é ser lido de uma única vez, e, portanto, ser curto. Com o mínimo de recursos, o conto deve maximizar os efeitos, residindo a tensão na ação do personagem e finalizando em um clímax arrebatador. Ainda no século XIX, Anton Tchekhov, célebre contista russo, propõe um novo ingrediente à fórmula: o "não-acontecimento". Com ele, tudo aquilo considerado supérfluo é cortado. A ação é clara, objetiva e, em muitos dos seus textos, temos a sensação de que pouco aconteceu de fato. O arrebatamento do clímax, frequentemente no início ou no meio da narrativa, encontra-se justamente naquilo que não aconteceu, percebido apenas pelo leitor. Contrariamente à filosofia de Poe, o leitor não é mais conduzido pelo texto, parte do júri, mas torna-se juiz dos fatos – realistas – apresentados pelo narrador. Belga de nascimento, mas portenho e latino de coração, Julio Cortázar,
apesar de discípulo de Poe, ao introduzir uma análise comparada em Alguns aspectos do conto apresenta noções que libertam o conto da figura consolidada do romance. Muitos leitores precipitados dirão que o conto é um embrião do romance. Porém, para o autor de O jogo da amarelinha, o conto está para a fotografia assim como o romance está para o cinema, tornando impossíveis os julgamentos de valor entre os dois. Segundo ele, um bom conto seria resultado de diversos fatores, sendo a abertura para “uma realidade muito mais ampla”, um dos pontos mais positivos causado pelo “recorte de um fragmento” que o conto opera. Contudo, em meio a tantos contos longos, novelas curtas e romances rápidos, como diferenciá-los? Ora, as traduções não contribuem. Em inglês, novel é romance; long short story, novela; e short story, conto. Em espanhol, novela, novela corta e cuento, respectivamente. No francês, vizinho linguístico no que se refere à questão: roman, nouvelle e conte. Ainda que as diferenças idiomáticas estejam indicadas, segue a “brevidade” de Poe permanece como o elemento mais tangível, visto que,
de acordo com Norman Friedman, como aponta Nadia Gotlib em Teoria do conto, “um conto é curto porque, mesmo tendo uma ação longa a mostrar, sua ação é melhor mostrada numa forma contraída ou numa escala de proporção contraída”. Do efeito à amplitude, o conto, mesmo que prática antiga, é forma recente. No Brasil, Machado de Assis, com mais de trezentos contos publicados, é considerado célebre precursor. Com temáticas fortes e dúbias, não deixava espaço para certezas, potencializando o efeito do conto em um jogo de ambiguidades para o leitor. Por outro lado, Jhumpa Lahiri, autora do mês, tece uma composição feita a partir de contos aristotélicos: com início, meio e fim em Intérprete de males. Embora calcada na forma clássica da narrativa, burla as convenções tchekhovianas – por vezes descreve situações aparentemente supérfluas em demasia, mas necessárias para a montagem de um grande quadro à la Cortázar – amplo, aberto ao mundo de tantos contadores de histórias inventadas possíveis, da cultura bengali à ocidental, do curry ao Halloween, da Índia aos Estados Unidos.
Dicas: Um conto clássico: O gato preto, de Edgar Allan Poe Um conto contemporâneo: Um cara legal, de Kristen Roupenian Um conto inebriante: Brincadeira, de Anton Tchekhov Um conto genial: A catedral, de Raymond Carver Um conto humano: Amor, de Clarice Lispector Um conto instigante: Casa tomada, de Julio Cortázar Um conto irônico: I love my husband, de Nélida Piñon Um conto tenso: Missa do galo, de Machado de Assis Ecos da leitura
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: a leitura conecta Entre os dias 10 e 14 do último
mês de julho aconteceu a 17ª edição da famosa Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty. Pela primeira vez, a TAG participou como parceira do evento, com uma Casa e programação próprias. Partindo do tema “A leitura conecta”, nossos eventos contaram com nomes como Djamila Ribeiro, Raphael Montes, Kristen Roupenian, Ayòbámi Adébáyò e Noemi Jaffe, curadora do clube no mês de agosto. Cerca de cinco mil pessoas visitaram o espaço, localizado no Centro Histórico da cidade. Além de participar das palestras e conhecer os autores nas sessões de autógrafos, os leitores puderam comprar produtos literários da Loja e ir no Happy Hour “Literatura também é papo de bar”, que aconteceu em todas as noites. Logo no primeiro dia, quinta-feira, aconteceu o lançamento do livro Querem nos calar: poemas para serem lidos em voz alta (2019), com as slammers Mel Duarte, Letícia Brito, Luiza Romão, Mariana Felix,
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Espaço do associado
Negafya e Roberta Estrela D'Alva, que declamaram textos do livro para o público. A ilustríssima Conceição Evaristo estava na plateia, acompanhando de perto as fortes palavras das artistas. Na sexta, duas mesas foram muito especiais para a TAG, pois anunciamos futuros curadores: Kalaf Epalanga e Jarid Arraes! Porém, o dia de maior movimentação foi no sábado, quando ocorreu o lançamento do livro Autobiografia (2019), em primeira mão para os associados do clube, com a presença do autor português José Luís Peixoto, e de Pilar del Río, presidenta da Fundação Saramago. Por fim, no domingo, último dia de programação, tivemos na Casa da TAG um Workshop de Mediação de Leitura, ministrado por Wilza Nunes. Muitos anfitriões dos Encontros do clube participaram, buscando conhecer dinâmicas que incentivam a leitura e, claro, reforçando nossa comunidade literária. Agradecemos aos associados que compareceram à Flip e fiquem ligados nos próximos meses. Spoiler: teremos mais curadores que passaram por Paraty!
Bruno Leรฃo
Espaรงo do associado
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Este espaço foi pensado para você retornar à leitura da revista depois de ter terminado o livro. Mensalmente, convidamos um especialista em Literatura para produzir um texto exclusivo para você analisar a obra de forma mais complexa.
Spoiler!
A literatura longe de casa Filha de indianos da região de
Bengala e nascida em Londres, a escritora Jhumpa Lahiri transmitiu por meio de seus personagens os deslocamentos cultural e linguístico que são parte da sua trajetória biográfica. Sua primeira língua foi o bengalês, mas fora de casa falava inglês; cresceu nos Estados Unidos, onde posteriormente se naturalizou. Estreou na literatura com Intérprete de males, reunião dos contos publicados em periódicos, e pelo qual recebeu o Prêmio Pulitzer. Os personagens de Intérprete de males são majoritariamente indianos que vivem nos Estados Unidos ou americanos que mantêm laços com eles. O contraste entre a identidade indiana e a cultura americana é um dos grandes motivos da obra: a permanência dos traços culturais em um país estranho é sempre posta delicadamente em cena, como no preparo do curry no conto “Esta casa abençoada”, em que o casamento arranjado promove uma caça ao tesouro na nova casa. O tesouro, neste
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Leia depois de ler
caso, são os itens católicos escondidos nos cantos mais improváveis. O leitor, ou releitor (este é um livro que vale a releitura!), deve se ater à minúcia sob o risco de perder a ternura de Sanjiv e Twinkle – ou a melancólica desarmonia de Shoba e Shukumar no conto que abre o volume. Buri Ma, personagem de “Um durwan de verdade”, é uma personagem que rememora de forma contraditória um passado luxuoso em Calcutá enquanto varre as escadas do prédio onde mora de favor. Quando a habitação sofre um roubo, os residentes a responsabilizam e a expulsam. Aqui, Buri Ma encarna o papel de pária, figura comum a várias culturas: aquela que expia toda a culpa (lembro da Geni, da canção de Chico Buarque). Condenada a ser o bode expiatório do seu grupo, é descartada, e todos partem em busca de um durwan — um empregado — de verdade. Vale lembrar que na cultura hindu, o pária é o indiano sem casta, impuro e desprezado, que desempenha os papéis elementares na escala social,
como o varredor ou o porteiro. Mais que tudo, impressiona ver como Buri Ma tenta encantar os vizinhos com suas histórias de luxuosidade e riqueza. Entretém-nos como uma Sherazade, mas falha e é botada para fora com vassoura e tudo.
alguém que viu algum valor onde ele mesmo só via fracassos. Esse crescendo, com leves recuos, medos e frustrações, e o seu desfecho são exercícios orquestrados só pelos grandes contistas.
Uma escolha posterior na carreira O quanto ainda há de identidade da autora torna possível a aproxihindu no sr. e na sra. Das, persona- mação com alguns motivos das suas gens do conto que dá nome ao livro? personagens: Jhumpa Lahiri, quanO casal nasceu e vive nos EUA e do já se tornara uma autora consaencontra um motorista que os guie grada, escolheu viver em outro país junto aos filhos em um passeio à para aprender uma nova língua e, Índia, terra de seus assim, manter-se em pais. Querem visitar uma espécie de exí“Em Intérprete um templo religioso lio linguístico perdos seus ancestrais, de males, Jhumpa manente. Ao sentir mas comportam-se certo estranhamento Lahiri cria com o distanciamencomum a quem passa personagens que um período longe da to de turistas, até que mantêm seus a sra. Das faz pergunfala cotidiana, a estas sobre a vida pescritora decide aprentraços culturais soal do motorista. Sr. der italiano, primeiro mesmo longe da como autodidata, deKapasi é intérprete terra natal.” em um hospital clínipois com professores co durante a semana e particulares. Após aljulga ter um emprego banal. A par- gum tempo, a decisão: estabelece-se tir do momento em que a sra. Das em Roma para viver ali uma tempoabre seus olhos para a importân- rada imersa em um idioma estrancia da sua profissão, um intérprete geiro. A temporada lhe rendeu dois dos males de pacientes clínicos, ele livros na nova língua que, ao lado de faz acordar dentro de si um desejo O Xará e Aguapés, formam um conpor ela. No seu íntimo, o sr. Kapasi junto coeso de obras sobre personapassa a alimentar uma fantasia de gens distantes de casa, exilados da se corresponder com esta mulher, primeira língua, em uma literatura e isso é narrado de forma gradati- cuja força está na sutileza dos gesva, como uma paixão crescente por tos cotidianos.
Lucas de Sena Lima é editor de livros, atualmente no selo Biblioteca Azul, da Globo Livros.
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O curador de outubro
Paula Johas
Alberto Mussa
“Este autor consegue nos transportar para um universo inteiramente distinto do nosso: essa é a sua magia.” Alberto Mussa, escritor e tradutor brasileiro de 58 anos, é o responsável por indicar o livro de outubro da TAG. Mussa é autor de romances, livros de contos, ensaios e obras de não ficção e já conquistou importantes prêmios literários como o Casa de Las Américas e o Machado de Assis. Com um gosto por explorar temas pouco presentes na literatura brasileira contemporânea, o escritor faz da mitologia sua principal fonte de inspiração. É fascinado especialmente pelas mitologias ameríndia e africana, embora também pesquise e escreva sobre mitos gregos, bíblicos, árabes clássicos e pré-islâmicos. A obra de Mussa já foi publicada em 17 países e recebeu traduções para mais de 15 idiomas. O romance que nosso curador indica é considerado um dos mais importantes da literatura africana do século XX e já recebeu traduções para cerca de quarenta línguas. Publicado dois anos antes da independência da Nigéria, esse livro conta a história de um guerreiro da etnia igbo que testemunha a chegada do colonizador branco e a consequente desintegração dos valores e costumes da tribo em que sempre viveu. Obra mais popular desse escritor mundialmente reconhecido, recebeu elogios por apresentar uma ótica interna e autêntica da vida na África pré-colonial e hoje é considerado o romance fundador da literatura moderna de seu país.
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A próxima indicação
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“Quando o mundo inteiro está em silêncio, até uma voz se torna poderosa.” – Malala Yousafzai