Abr2019 "O sonho dos heróis" - Curadoria

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O sonho dos herรณis


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Ao Leitor Uma aposta ganha, um grupo de amigos entusiasmados e um

Carnaval imemorável por motivos de ebriedade: esse é o ponto de partida de O sonho dos heróis. Após acordar de ressaca e perceber que pouco se lembra do que aconteceu na última noite de festas, o protagonista Emilio Gauna passa três anos preso a uma obsessão sobre o que havia de fato ocorrido naquele Carnaval de 1927. Adolfo Bioy Casares, autor do livro de abril, foi um dos responsáveis, ao lado de Jorge Luis Borges, por consolidar as bases do estilo que seria definido como Realismo Fantástico. A relação entre Bioy Casares e Borges é justamente um dos focos de atenção do prefácio escrito por Javier Cercas, curador do mês e autor do livro enviado pela TAG em janeiro. Ele afirma que Bioy Casares é “um dos grandes nomes da literatura de língua espanhola do século XX”, sendo, inclusive, “maior do que Borges”! Fato curioso: convidamos Cercas para ser nosso curador em outubro de 2018, durante sua passagem por Porto Alegre, quando ele visitou a sede da TAG. Nesta revista, traçamos os passos do protagonista em Buenos Aires naquele verão de 1927. Também convidamos o leitor a refletir sobre a responsabilidade da ficção em relação a temas como misoginia e violência contra a mulher, e dedicamos um espaço para resgatar outras obras que abordam o Realismo Fantástico na literatura latino-americana. Por fim, o Leia depois de Ler deste mês é ideal para quem terminar o livro com a urgência por esmiuçar o emaranhado de possibilidades que cercam os mistérios da história. Aproveite o mimo do mês – uma lembrança da capital argentina de 1927 - e lembre-se do que já bem dizia João do Rio: “um Carnaval sem aventuras não é Carnaval”. Boa leitura!


Sumário

A indicação do mês

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O curador Javier Cercas Entrevista com Javier Cercas O livro indicado O sonho dos heróis, de Adolfo Bioy Casares


Ecos da leitura

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O relato fantástico e suas distinções conceituais Las calles de mi ciudad: um Carnaval em Buenos Aires Violência, literatura e o papel da ficção

Espaço do associado

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Como a leitura mudou a sua vida?

Leia depois de ler

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A festa dos opostos

A próxima indicação

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A curadora de maio Fernanda Montenegro



O curador

Javier Cercas Javier Cercas Mena nasceu na pequena cidade de Ibaher-

nando, Espanha, em 1962, e mudou-se ainda criança para Girona, cidade catalã. O ponto de virada de sua carreira veio com Soldados de Salamina (2001), romance que vendeu mais de 300 mil exemplares apenas no país de origem, tendo sido elogiado por ninguém menos que Mario Vargas Llosa. A reflexão metaliterária, como nos primeiros livros, é elemento permanente na escrita de Cercas, que gosta de operar a partir das ambiguidades e dos paradoxos que a ficção proporciona. Cercas também é o autor de A velocidade da luz, livro enviado pela TAG em janeiro. Trata-se da história de um jovem aspirante a escritor que conhece um homem misterioso, marcado por um segredo de guerra. A partir do encontro, os personagens dão início a uma relação que começa bastante fria, mas que vai se desenvolvendo quando os dois descobrem na literatura uma paixão em comum. Poderíamos ficar páginas e páginas falando sobre o sucesso de A velocidade da luz entre os associados, mas resolvemos deixar que os próprios falem por si (confira os depoimentos na pág. 09!). A seguir, uma entrevista exclusiva com Cercas, na qual ele fala sobre o seu encantamento com O sonho dos heróis, Bioy Casares e outros autores latino-americanos.

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Entrevista com

Javier Cercas TAG – Como foi ler pela primeira vez O sonho dos heróis? Javier Cercas – Eu devia ter vinte e dois ou vinte e três anos quando li esse romance pela primeira vez, um momento decisivo para mim porque havia começado a escrever seriamente e estava lendo a obra inteira de Bioy Casares, que naquele momento se tornou um dos meus escritores favoritos. O fato é que o livro me deslumbrou. Além disso, acho que esse romance em particular – e a obra de Bioy Casares em geral – contribuiu para que eu me encontrasse como escritor e a elucidar um caminho que, naquele momento, procurava um pouco às cegas.

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A indicação do mês

Em O sonho dos heróis, temos como protagonista um homem de caráter duvidoso, do tipo que se ama odiar. Isso se repete, ainda que de forma diferente, em seu livro, A velocidade da luz. Você acha que evidenciar as contradições dos personagens resulta em uma maior proximidade dos leitores com a obra? Cercas – Acredito que as pessoas são contraditórias e que a literatura tem o dever de mostrar essas contradições. Na realidade, são as contradições que dão complexidade às pessoas e, portanto, também aos personagens. Quanto ao protagonista, Emilio Gauna, acredito que é sobretudo um jovem muito ingênuo,


“Quanto mais ambíguo é um romance, melhor.” deslumbrado com um ideal equivocado do qual acaba sendo vítima: o ideal épico, feito do culto à coragem e à amizade, dos compadritos portenhos que Borges gostava tanto.

– até mesmo a literatura argentina – é muito vasta e complexa demais para ser reduzida a uma única característica ou tendência, por mais importante que seja.

Você disse que Borges é um de seus escritores favoritos. Agora, indica um trabalho de Bioy Casares, amigo íntimo dele. Como você percebe a influência argentina e latinoamericana na visão literária do fantástico?

Sobre o seu trabalho, você afirma que, para que o leitor consiga apropriar-se da obra, o escritor deve criar um espaço para isso, uma ambiguidade, um ponto cego. Qual é o "ponto cego" de O sonho dos heróis?

Cercas – Borges – e também Bioy Casares, embora seu trabalho seja menos conhecido e menos influente que o dele – tem sido fundamental para muitas coisas no âmbito da língua espanhola e fora dela. Entre elas está, é verdade, uma certa rejeição do realismo e uma certa dignificação da Literatura Fantástica, desacreditada pelo triunfo do realismo na literatura do século XIX (e em grande parte do século XX). E é verdade que isso não é exclusivo de Borges, mas também se estende a uma parte da literatura latino-americana que sem Borges não existiria: falo do chamado boom dos anos sessenta, em que devemos incluir, por exemplo, o realismo mágico de García Márquez. Em todo caso, a literatura latino-americana

Cercas – Eu nunca me perguntei a respeito, não sei se há algum. De fato, pode haver grandes romances sem um ponto cego (quase todo o romance realista carece dele, por exemplo), mas não pode haver grandes romances sem ambiguidade, e O sonho dos heróis é cheio de ambiguidades, que são aqueles espaços por meio dos quais o leitor se apropria do romance. O ponto cego é simplesmente uma ambiguidade central, permeando todas as camadas do romance, que chega a todos os lugares e o torna essencialmente ambíguo (e, para mim, quanto mais ambíguo é um romance, melhor). Embora, agora que penso a respeito, talvez o romance de Bioy Casares tenha um ponto cego, mas isso só é descoberto no final, então não posso revelá-lo. Vamos ver se o leitor descobre.

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Sobre sua viagem aos Estados Unidos quando era um jovem aspirante a escritor, você comentou que percebeu que, ainda que tentasse se tornar um escritor americano pós-moderno, você seria para sempre um escritor espanhol. Como você vê a questão da identidade no romance latino-americano, especialmente no contexto de autores marcados pelo regionalismo argentino? Cercas – Eu não acredito em regionalismo na literatura, a menos que seja uma forma de universalismo: não há autores mais conscienciosamente argentinos que Borges, Bioy Casares ou Cortázar, e eles são alguns dos mais universais. Quanto à identidade, digo o mesmo: literatura é aquilo que torna o particular universal. Basicamente, o que eu queria dizer com a piada que você citou é que quando eu era jovem eu era um pouco esnobe e não entendia exatamente isso, que a única maneira que eu tinha de ser universal era ser espanhol, isto é, partir da minha própria realidade para tentar construir uma realidade válida para todos. Isso é literatura.

O que você diria para os mais de 30 mil associados que lerão O sonho dos heróis pela primeira vez? Que outras obras você indicaria para aqueles que se interessaram por este título? Cercas – Diria àqueles que lerem O sonho dos heróis pela primeira vez que têm muita sorte, que os invejo, porque, embora seja verdade que eu realmente goste de reler os romances que aprecio – a literatura, para mim, é aquilo que permite muitas leituras, e um grande livro é aquele que nunca se esgota –, a verdade é que o deslumbramento da primeira vez é maravilhoso. De resto, eu recomendaria tudo ou quase tudo de Bioy Casares, em particular seus volumes de contos, romances como Diário da guerra do porco (1969), La aventura de un fotógrafo en La Plata (1985) e, claro, Borges (2006), o livro extraordinário e quase inacabável em que ele coletou as anotações que tomou durante a maior parte da vida sobre os encontros com seu amigo. Mas, insisto, quase todo o Bioy Casares, mesmo o menor deles, é uma delícia.

“A única maneira que eu tinha de ser universal era ser espanhol [...] partir da minha própria realidade para tentar construir uma realidade válida para todos. Isso é literatura.”

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Comentários dos associados sobre "A velocidade da luz": viviane

Anderson

"Um livro que me acertou em cheio. Principalmente da metade em diante. Tanto por suas reflexões sobre a condição de um escritor, suas motivações, capacidades e vicissitudes, como por suas reflexões nada maniqueístas sobre o mal que mora no humano, sobre a capacidade cotidiana de fazer o mal, de ter prazer na relevância e na definitivade em provocar a morte de um igual. Gostei muito também da metalinguagem, do livro dentro do livro. E adorei as referências às praças e ruas de Barcelona, um lugar tão especial para se conhecer e visitar."

"Uma narrativa muito bem construída e que reserva um final surpreendente. Javier Cercas proporciona no livro A velocidade da luz uma experiência única e termina colocando o leitor na narrativa de uma forma ainda mais veloz do que aquela expressada no título do livro. Sem que deixe transparecer até as últimas frases, o livro nos envolve a ponto de que, ao final, sentimos estar juntos dos personagens, participando da conversa que encerra o livro. Uma experiência imersiva, um narrador envolvente, enigmático e sedutor. Um livro para lamentar terminar de ler."

Jóyce

Rafaela

"Obrigada, TAG, por este livro incrível! Uma história tão diferente do que estou acostumada e que foi capaz de me tirar da minha 'zona de conforto literário'."

"Acabei de ler... que livro! Vai me deixar refletindo e absorvendo todas as emoções extremamente intensas por dias. Agora me encontro entorpecida, vislumbrando o passado e o futuro na luz cegante do presente. Como meu primeiro livro da TAG Curadoria eu absolutamente amei a escolha!"

Ariadne "Um dos livros mais intensos que já li. Eu amei cada página, Obrigada, TAG! Encantada com a intensidade e fatalidade da vida que nos permeia, e que Javier Cercas traduziu tão bem em A velocidade da Luz."

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O livro indicado

O sonho dos heróis de Adolfo Bioy Casares Ainda que seja celebrada mundo afora, mencionada como

precursora da narrativa fantástica latino-americana e tida como a criação de um dos mais talentosos escritores argentinos de todos os tempos, a obra de Adolfo Bioy Casares (1914-1999) sempre conviveu com o infortúnio de estar à sombra dos escritos de Jorge Luis Borges. A relação estabelecida entre os escritores acontece por diferentes motivos: além de contemporâneos, os dois foram amigos íntimos e publicaram conjuntamente em diversas ocasiões. O fato de apresentarem similaridades, entretanto, contribui para uma comparação que muitos – entre leitores, escritores e críticos – veem como injusta. E não é apenas Javier Cercas (adorador confesso da literatura borgeana) quem o diz. O próprio Borges nunca entendeu o relativamente pequeno reconhecimento do amigo. É chegado, finalmente, o momento do associado da TAG decidir por si próprio se a escrita de Bioy Casares é realmente subestimada.

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Filho único, Bioy Casares nasceu em 1914 na capital Buenos Aires e viveu praticamente toda sua vida na Recoleta, tradicional bairro nobre. Apoiado pela mãe e principalmente pelo pai, um aspirante a escritor que nunca criou coragem para entrar no mundo das letras, teve acesso a grandes obras e começou a escrever quando ainda era um menino. Durante a adolescência, publicou alguns romances com auxílio financeiro paterno, embora reconhecesse anos depois que não estava pronto para fazê-lo: Bioy Casares repudiaria todos os seus escritos publicados antes de 1940, chegando a proibir reedições e a se recusar a tecer quaisquer comentários a respeito dos livros. Um passo fundamental na trajetória rumo à maturidade literária foi o início de seu envolvimento com um círculo seleto de escritores e outros intelectuais argentinos em 1932. Entre eles, figuravam Jorge Luis Borges, à época um jovem, mas já estimado escritor, e a também escritora Silvina Ocampo, com quem mais tarde se casaria. Borges e Ocampo exerceram um papel decisivo na decisão de Bioy Casares de desistir dos estudos acadêmicos e se dedicar exclusivamente à escrita. Dono de uma obra extensa e diversificada, passando por romances, novelas, contos, ensaios, roteiros cinematográficos e até fotografia, Bioy Casares produziu até muito próximo de sua morte, aos 84 anos.

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Entre os livros disponíveis em português, destacam-se o romance Diário da guerra do porco (1969) e os contos A trama celeste (1948) e História prodigiosa (1956). Da parceria com Borges, surgiram obras como Seis problemas para Dom Isidro Parodi (1942) e Duas fantasias memoráveis (1946). Com Borges e Ocampo, escreveu Antologia da literatura fantástica (1940). Dois romances, no entanto, continuam sendo considerados seus principais trabalhos. O primeiro deles é A invenção de Morel (1940), seu livro mais popular, classificado por muitos como uma das mais importantes e influentes obras do século XX. É nela que Bioy Casares inaugura, de maneira definitiva, sua narrativa fantástica, permeada por reflexões metafísicas, conflitos entre ilusão e realidade, distorções temporais e até mesmo elementos de ficção científica – a predileção por este último o diferenciou enormemente da produção literária fantástica de Borges. Muitos leitores mais familiarizados com a obra casariana, no entanto, insistem em apontar O sonho dos heróis (1954) como sua melhor criação. Outros, como o escritor e jornalista argentino Rodrigo Fresán, vão além, considerando a obra como o maior romance argentino. Seja como for, O sonho dos heróis é um marco da literatura do país. Com um texto carregado de ambiguidades e ironia, Bioy Casares introduz o fan-


Borges e Bioy Casares em um encontro entre amigos tástico de forma sutil em um espaço do subúrbio argentino de forma que um parece invadir o outro, evocando arquétipos da narrativa urbana e abordando muitos outros temas, tais como o destino e sua inevitabilidade, as idealizações e fantasias que carregamos e os percalços rumo à maturidade, tudo isso em uma Buenos Aires dos anos 1930 tomada pelo tema carnavalesco que só reforça a atmosfera fantasiosa da obra. A narrativa de O sonho dos heróis concentra-se em três anos da vida de Emilio Gauna, um jovem mecânico que vive no subúrbio de Buenos Aires. Seguindo a sugestão de seu barbeiro, Gauna aposta em uma corrida de cavalos e, ao sair vencedor, decide gastar a pequena fortuna adquirida com os amigos em três dias de carnaval regado a bebedeiras, brigas, músicas e excessos. Mas

todo carnaval tem seu fim, e quando ele chega, o protagonista acorda em um embarcadouro, desnorteado e com a memória falha. Gauna fica intrigado, em especial com os acontecimentos da terceira noite, cujos fragmentos por ele acessados o levam a acreditar que estes foram os momentos mais fantásticos e misteriosos de sua vida. É a partir dessa nebulosa, mas resoluta sensação, alimentada por elementos oníricos e românticos, que Gauna estabelece uma obsessão por descobrir os detalhes da última noite daquele carnaval de 1927. Embora a tríade mistério, busca e desfecho insólito seja sugerida como elemento central desde o primeiro parágrafo de O sonho dos heróis, a trajetória de Gauna também leva a outro destino que ganha destaque na narrativa. Ao fazer uma visita

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em relação às mulheres. O relacionamento com Clara, no entanto, lhe toma tempo e atenção suficientes para que ele se afaste dos amigos e quase esqueça da sua obsessão por reviver o “apogeu da sua vida”. Contudo, como a narrativa nos adverte, há desejos e impulsos que são irrefreáveis, e o destino, “uma invenção útil dos homens”, é inevitável.

ao excêntrico bruxo Taboada – um vidente que lhe recomenda abandonar sua obsessão por respostas e evitar o pior –, Emilio conhece Clara, a filha do bruxo. Da relação amorosa que surge dali, ele experimenta uma confusão de sentimentos. Amor, desprezo, ódio e vergonha surgem na mesma intensidade e constrangem o imaturo protagonista, que se sente na obrigação de provar ao mundo – e especialmente a si mesmo – sua virilidade e desapego

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Como toda obra literária que sobrevive ao passar do tempo, O sonho dos heróis permite diferentes leituras e interpretações proporcionadas por camadas temáticas e estéticas que podem passar despercebidas ou descontextualizadas. Cabe mencionar, por exemplo, a extraordinária e original reconstrução da Buenos Aires dos anos 1920. Bioy Casares convida o leitor para um passeio pelas ruas, teatros, clubes e bares da época (são tantos os lugares citados ao longo do livro que decidimos tornar essa experiência mais sensorial, trazendo imagens e curiosidades nas páginas a seguir). Essa cidade, no entanto, só ganha vida e cumpre sua função de “personagem” na obra devido aos indivíduos que nela habitam. Repleto de diálogos, o romance explora a vida do cidadão argentino de classe média – seus costumes, valores, tangos e equipes de futebol preferidas, nuances idiomáticas e coloquialismos – de modo verossímil e familiar, revelando sutilezas psicológicas e comportamentais. Não explicita, no entanto, os verdadeiros papéis e intenções dos seus personagens ao longo da


trama – aspecto chave que reforça as ambiguidades da obra. Seguindo por essa perspectiva, pode-se considerar O sonho dos heróis um romance costumbrista, que traz costumes do cotidiano. Em entrevistas, Bioy Casares chegou a revelar que suas principais inspirações foram justamente relatos do cotidiano argentino – “a vida em Buenos Aires, a amizade, a lealdade” – e não o mistério ou a fantasia, ainda que estes exerçam papel decisivo. Tendo em vista a época, o contexto e os personagens representados, não surpreende as doses de sexismo verificadas em alguns trechos do livro. O sonho dos heróis evidencia um universo predominantemente masculino, cujo ideal de masculinidade é, além de ingênuo, bruto e conservador. E é notória a idealização – especialmente por parte do protagonista e de seus jovens amigos – de um perfil masculino viril, violento, em alguma medida corajoso, leal às amizades entre homens e que constantemente subjuga a mulher. Nesse sentido, são especialmente reveladoras as passagens que evidenciam o embaraço de Gauna ao perceber seus sentimentos mais “delicados”. Em uma crítica do livro, publicada em 1955, Borges evocou a imagem do gaucho, “mito secular” e tradicional da Argentina, que estaria representado no livro em sua “última versão”. O escritor argentino ainda fez uma interpretação política da obra, sugerindo que o comportamento de seus personagens representariam

uma crítica sutil ao governo do então presidente Juan Domingo Perón, marcado por decisões autoritárias, mas também por certa ascensão social e política das mulheres e por desagradar a camadas mais privilegiadas da população argentina. Por fim, é necessário salientar a primorosa “atuação” do narrador da obra, meticulosamente elaborado por Bioy Casares para fortalecer tanto o caráter urbano e coloquial da narrativa quanto a sutil abordagem sobre o fantástico. Desde o início da história, somos conduzidos por uma voz de privilegiada onisciência: ela não apenas descreve detalhadamente a trajetória de Gauna, como também acessa os pensamentos e sentimentos mais íntimos do protagonista. A partir de certo momento, entretanto, percebemos que ele também dá sua opinião sobre os fatos, questionando e norteando – ou até despistando e confundindo – a percepção do leitor, o que o transforma em personagem decisivo da obra, interferindo diretamente na narrativa e abrindo margem para diferentes interpretações. Muitos detalhes de O sonho dos heróis ainda seriam dignos de reflexão. Seu fantástico desfecho mereceria páginas com teorias diversas – trouxemos algumas na seção Leia depois de Ler. Agora é com você, leitor. Deleite-se com mais uma obra fundamental da literatura mundial que o destino – em suas formas, concepções e nomenclaturas mais variadas – levou até suas mãos.

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O relato fantástico e suas distinções conceituais “Agora começa a parte mágica deste relato; ou talvez todo ele fosse mágico e só nós não tenhamos percebido sua verdadeira natureza”. Assim, na página 188, o narrador de O sonho dos heróis indica a atmosfera da narrativa criada por Bioy Casares. Por outro lado, o anúncio não seria necessário, visto que o leitor já poderia se deparar com aspectos um tanto insólitos durante a história. Ao fim, a repetição dos eventos-chave da narrativa e sua justificativa sobrenatural fazem com que o romance do escritor argentino possa ser enquadrado em um estilo chamado Realismo Fantástico. Há uma série de formulações conceituais acerca dos termos “Realismo Mágico”, “Real Maravilhoso” e “Realismo Fantástico”. Ainda que tenham sido realizados diversos congressos, debates e trabalhos sobre o assunto, a inexistência de qualquer tipo de definição que esna Silvi po Ocam

a

Jorge Luis

Borges

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Ecos da leitura

gote a noção dos estilos citados é um fato que gera curiosidade por grande parte dos críticos e estudiosos de Literatura. É possível afirmar, ainda assim, que todos esses campos apresentam um denominador comum: o real ficcional transpassado por eventos de ordem sobrenatural. Em grande parte, as diferenças entre os estilos ocorrem nas consequências da introdução do irreal nas narrativas. No caso do Realismo Mágico, o leitor – assim como os próprios personagens da história – tende a aceitar essa transformação da realidade sem qualquer tipo de estranhamento, tornando aberto o fluxo narrativo para intervenções que subvertem a racionalidade ocidental. No caso do Real Maravilhoso, termo criado pelo escritor cubano Alejo Carpentier, o efeito formado pela introdução de elementos díspares no cotidiano comum é inebriante e aproxima-se muito da ideia de fé e miragem. Há ainda casos em que o cí el Gar Gabri ez Márqu


grau de estranhamento é tão intenso que perturba não somente o leitor como os próprios personagens da narrativa e, nesses casos, a crítica comumente chama esse estilo de Literatura Fantástica. Vale ressaltar que qualquer elemento que escape de um realismo tradicional serve de alegoria nas obras, ou seja, trata-se de uma técnica capaz de trazer de maneira indireta informações preciosas para o entendimento do sentido da narrativa. O livro percursor de histórias entrecruzadas por eventos de estranhamento é a clássica novela A metamorfose, do escritor tcheco Franz Kafka, publicada em 1915. Logo nas primeiras linhas da narrativa, o leitor sofre um impacto com a informação envolvendo o protagonista Gregor Samsa. Após acordar de um sono conturbado, ele percebe que seu corpo havia adquirido a forma de um inseto monstruoso. Ao leitor cabe se identificar com o protagonista, tomando para si suas angústias e dores. O escritor colombiano Gabriel García Márquez foi um dos grandes nomes da Literatura que ficou impactado com a obra de Kafka. Seu romance mais reconhecido, Cem Anos de Solidão (1967), nos apresenta a trajetória de sete gerações da família Buendía. Na fictícia cidade de Macondo, fantasmas, chuvas de mais de 4 anos, bebês nascidos com rabo de porco e tapetes voadores servem de motor narrativo nessa

história que se aproxima do Realismo Mágico, estilo que tanto influenciará a Literatura do chamado boom latino americano ocorrido nas décadas de 1960 e 1970. Nomes como Alejo Carpentier, Mario Vargas Llosa, Juan Carlos Onetti, Carlos Fuentes, Juan Rulfo, Ernesto Sabato e o próprio Adolfo Bioy Casares fizeram parte dessa geração de escritores latinos que ganharam a atenção dos críticos de todo o mundo. Para falar um pouco da Argentina, cabe mencionar, além dos já citados Bioy Casares e Sabato, Silvina Ocampo, esposa de Bioy Casares, e os consagrados Jorge Luis Borges e Julio Cortázar. O trabalho desses últimos escritores é extremamente distinto e, no caso de Borges, a realidade caótica é apresentada sempre de maneira muito complexa: labirintos, bifurcações, bibliotecas e espelhos que indicam um eterno retorno. Os efeitos de suas narrativas se aproximam da assombração perante o insólito ao modo da Literatura Fantástica, ainda que vincular seu trabalho a essa corrente seja arriscado e reducionista. Por outro lado, Cortázar trabalha muito mais próximo desse estilo. Em alguns de seus contos, encontramos um personagem que vomita coelhos, forças extraordinárias capazes de expulsar dois irmãos de uma casa, um engarrafamento que dura meses. Suas alegorias entregam ao leitor uma boa abertura para a interpretação, alçando seu nome ao patamar dos grandes escritores do Ocidente.

Ecos da leitura

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L as

e l l a c de msi

ciudad um Ca

s rnaval em Buenos Aire

Entre todos os temas abordados ao longo de O sonho dos heróis, a reconstrução de uma certa Buenos Aires dos anos 1920-1930 é, sem dúvida, um dos mais notáveis. Sem se ater a descrições paisagistas, Bioy Casares procurar explorar o espírito de uma época. Nesse processo, no entanto, lista um quase incontável número de ruas, bairros, clubes e espaços tradicionais da capital argentina, despertando a curiosidade dos leitores sobre os trajetos de Emilio Gauna e seus amigos. Mas, afinal, que lugares são esses?

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InĂ­cio

Os trajetos de Emilio Gauna

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Rua Fernández de En

Parque Arenales 2

Villa Devoto

Em O sonho dos heróis, Clara anota com seu batom e entrega a Gauna o endereço do teatro no qual ensaiava. Hoje em dia, não há nada que se assemelhe ao espaço na rua Freire, 3271. A rua e o número, entretanto, ainda estão lá.

Apesar de atualmente localizado no bairro da Florida, na Grande Buenos Aires, é o bairro de Saavedra que está fortemente associado ao Club Atlético Platense, um dos clubes de futebol mais antigos do país. O Platense foi fundado em 1905, quando alguns jovens amigos da Recoleta decidiram gastar o dinheiro ganho em uma corrida de cavalos com os primeiros materiais do clube. Mera coincidência com o romance de Bioy Casares?

Tapalqueé

O bairro onde moravam Gau Larsen, caracteriza-se por se com muitas casas e repleto d parques como o Saavedra, o Parque Sarmiento. A identifi bairro é muito forte – foi a cantor Roberto Goyeneche, o 1920, período em que se pass narrativa, Saavedra era tida c abrigando casas de prostitu

“A palavra Saavedra n parque cercado por um trêmulos eucaliptos; evo vazia, quase larga, ladea e desiguais, abarcad minuciosa da hora

Villa Luro


nciso

una e seu melhor amigo, ser um espaço residencial de verde: destacam-se os o Parque General Paz e o ficação com o tango nesse ali que nasceu o popular o "Polaco". Durante os anos sam os acontecimentos da como uma área marginal, uição e jogo clandestino.

não lhe evocava um m fosso e exaltado em ocava uma ruazinha ada por casas baixas da pela claridade da sesta” (p. 85).

o

s de Emilio Gaun o t e j a a Os tr 3 Rua Médanos

Avenida Rivadavia

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Inaugurado em 1876, o Hipódromo Argentino de Palermo é atualmente uma empresa privada que, além de corridas de cavalos, promove eventos de música, gastronomia e até jogos de cassino. Foi a partir de uma inesperada vitória nas corridas que a aventura de Emilio Gauna teve início. (A equipe TAG lembra os riscos à saúde dos cavalos que muitos hipódromos proporcionam e ressalta: diga não aos maus-tratos contra animais!)


5 Rua Godoy Cruz

Palco do encontro de mascarada durante o bai Armenonville foi um dos cabarés de Buenos Aire no verão entre os anos d cabaré serviu como um t sucesso de diversos artis a dupla Carlos Gardel e J Armenonville fechou as final da década de 1920, cas por conta da sua ete inebriante e sun

6 Avenida La Plata

Considerado o maior bairro da capital, Palermo é certamente um dos locais mais visitados pelos turistas. Lá se encontram os populares “sub-bairros” Palermo Soho, polo gastronômico cultural, e Palermo Hollywood, que abriga sedes de produtoras de cinema e televisão. É muito provável que o sonho nos bosques de Gauna – o “apogeu de sua vida” – foi imaginado por Bioy Casares para acontecer no belíssimo parque Três de Fevereiro, inaugurado em 1874.

7 Rua Famatina Avenida Sáenz

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15 Cabaré

Armenonville

Recoleta 14 Avenida

Leandro N. Alem

Gauna com a ile de carnaval, o s mais luxuosos es. Inaugurado de 1911 e 1912, o trampolim para o stas – entre eles José Razzano. O portas ainda no , alvo de polêmierna atmosfera ntuosa.

Avenida de Mayo 13

Se é que algum dia existiu mesmo, o café onde Gauna e seus amigos discutiam futebol, bebiam e cantavam tangos hoje é somente uma boa lembrança. Localização: uma das quatro esquinas da rua Iberá com a rua Del Tejar.

Rua Vieytes 10

Barracas Avenida Osvaldo Cruz

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9 Perdriel 11 Praça Díaz Vélez


Violência, literatura e o papel da ficção Imagine a seguinte situação: dois jovens estão em um relacionamento amoroso. Não há compromisso formalizado, mas eles caminham pelas ruas, conversam, vão ao cinema e passam bastante tempo juntos. A moça sai com outro homem. O rapaz, sentido seu orgulho ferido, pensa em dar uma bofetada na amada, em machucá-la ou matá-la. Agora transporte a situação para a década de 1920, quando tudo isso era admissível e facilmente justificável. Em O sonho dos heróis, o protagonista Emilio Gauna é um típico jovem de 21 anos – boêmio, confuso, romântico. Durante certos momentos da narrativa, há uma significativa dose de machismo por trás das ações que permeiam o relacionamento de Gauna e Clara, a moça por quem ele nutre sentimentos conflituosos. A partir deste cenário, podemos levantar a discussão: há momentos da história da literatura em que a violência poderia ser justificada como um retrato dos costumes de uma época? Escrito por Ernesto Sabato (contemporâneo de Bioy Casares, o autor do mês), O Túnel (1948) traz a história de Juan Pablo Castel e María Iri-

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Ecos da leitura

barne (atenção: spoilers a seguir). Temos um narrador que confessa já nas primeiras linhas ter matado a mulher que amava. Em um dos primeiros encontros entre os protagonistas, Juan segura María pelo braço e a arrasta para uma praça, onde confessa seus sentimentos. Diz estar apaixonado. No decorrer da história, Juan ataca ferinamente o caráter de María. Descobre que ela é casada, alimenta um ciúme doentio, passa a acreditar que ela tem um caso com um primo e a xinga de “má e fingida”. Devido a suspeitas descontroladas, Juan passa a perseguir María. Alucinado, decide que a única saída para acabar com seu desespero é dar fim à própria vida. Contudo, ele muda de ideia e decide que deve matar María, a causadora de tanto sofrimento. Ele invade o quarto dela e, sem chance de se defender, a mulher é assassinada a facadas. Em 2018, setenta anos depois da publicação de O Túnel, La Rizoma, uma casa cultural na Nicarágua, promoveu a exposição “Sem musas”, lançando reflexões acerca do que significa crescer como mulher na América Latina. Concebida pela


artista Eugenia Paule Rios, “Sem musas” foi composta de uma série de pinturas digitais que especulam sobre o interior da mente de María Iribarne, a personagem silenciada na obra de Sabato, vítima de feminicídio. A mostra incita perguntas: “como artistas - especialmente escritores podem ser cúmplices e perpetuadores da violência de gênero?” e “como evitar a adoração tóxica que envolve as musas desses gênios consagrados?”. Como enfatizou Roger Lancaster, professor de antropologia da Universidade George Mason, na Virgínia, o machismo não constitui apenas uma forma de “consciência” ou “ideologia” no sentido clássico do conceito, mas um campo de relações sociais produzidas. Na área da literatura, vemos desde os casos mais sutis – como o protagonista de Bioy Casares – até aqueles mais evidentes – como nas obras de Sabato e Vladimir Nabokov (Lolita talvez seja a narrativa mais emblemática escrita sob o ponto de vista de um predador sexual). Nesse contexto, parece infindável, e mais pertinente do que nunca, a discussão sobre o papel da ficção – se é que existe um - frente a assuntos como machismo, sexismo e violência romantizada.

Segundo Antonio Barros, professor de literatura da UFRGS, a questão é controversa até mesmo entre os estudiosos da área: “Existem os mais libertários, que defendem que a literatura foi feita para contar histórias, independentemente do quão chocantes elas sejam. E há a corrente que defende que a literatura tem, sim, uma responsabilidade e não é tudo que pode ser dito”. Antonio evoca o movimento francês do final do século XX, que considerava a literatura como um campo de experimentação absolvido da obrigação de representar a realidade. “A ideia é que a ficção não fique presa a tabus sociais”, diz Antonio, “e isso não significa que Lolita ou O olho mais azul, por exemplo, incitarão a pedofilia". Para Antonio, a literatura deve exercitar formas de enquadramento de situações que evidenciam o que há de pior em uma sociedade. Claudia Caimi, também professora do Instituto de Letras da UFRGS, acredita que a literatura propicia uma superfície narrativa para a subjetividade feminina: "Colocar em circulação discursiva a violência contra mulheres, mesmo a romantizada, é buscar a construção de sentidos possíveis, algumas vezes dúbios e contraditórios”, resume a professora.

Spoiler Em entrevista concedida à TAG, Javier Cercas, curador do mês, defende que a literatura tem quase a obrigação de lidar com questões difíceis e tratá-las da maneira mais complexa possível: “um escritor que não assume riscos não é um escritor: ele é um escriba”. Cercas também falou que não acredita que O sonho dos heróis seja um livro machista: “É verdade que o ideal épico era um ideal sexista, mas o que o romance mostra é que Emilio Gauna está errado ao se deixar ser arrastado por ele porque acaba por perder o melhor que tinha: o amor de Clara, sua vida com ela”.

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Como a leitura mudou a sua vida? Em janeiro, aproveitando a atmosfera de reflexão que o final do ano gera, propusemos a questão acima aos nossos seguidores no Instagram. O retorno nos comoveu tanto que resolvemos compartilhar alguns destes relatos por aqui. Recebemos respostas mais práticas e objetivas como: “contribuiu no aumento do meu vocabulário” e “me ajudou na luta contra a procrastinação”, até mais íntimas, como “compreendo melhor o mundo” e “lido melhor com os transtornos mentais”. Só podemos concluir que livros mudam vidas (ou melhor, moldam vidas, como apontou um seguidor). Vamos conferir algumas dessas respostas?

Escute a playlist desse mês: http://bit.ly/playlistosonhodosheróis

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Espaço do associado


Espaรงo do associado

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Este espaço foi pensado para você retornar à leitura da revista depois de ter terminado o livro. Mensalmente, convidamos um especialista em Literatura para produzir um texto exclusivo para você analisar a obra de forma mais complexa.

Spoiler!

A festa dos opostos Afinal, o que se passou na terceira noite do carnaval de 1927? É em torno dessa questão, apresentada já nas primeiras linhas por um misterioso narrador, que se tece o romance O sonho dos heróis. Acompanhando essa pergunta, que assombrará todo o livro, está Emilio Gauna e a sutil barreira que separa o mundano do extraordinário. É simples descartar a noite de Gauna como uma simples aventura, bêbada de álcool e juventude. Mas somos alertados pelo narrador que algo de fantástico aconteceu, e é preciso embarcar na obsessão onírica de Gauna com a imagem da lua refletida em um punhal. O sonho de Gauna é, podemos pensar inicialmente, o sonho dos heróis: o sonho da experiência extraordinária, de viver uma jornada épica e retornar para narrá-la. Mas Gauna não pode narrar seu passado; sua memória não permite. E, por isso, é preciso retornar. A narrativa de Bioy Casares é construída a partir dos contrastes: a

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vida prosaica de uma Buenos Aires empobrecida e tediosa narrada de forma realista e a promessa de uma existência única, especial, narrada por meio de elementos fantásticos. Ainda que sejam distintos, na narrativa de Bioy Casares esses dois polos convivem sutilmente, se cruzam e iluminam um ao outro. Em O sonho dos heróis, não por acaso, é no Carnaval que o cotidiano e o mágico se tocam de verdade. A festa dos opostos, onde podemos vestir nossas fantasias e inverter a normalidade do mundo por algumas noites, é a ocasião perfeita para que um mistério se apresente. E é apenas nas últimas páginas, quando voltamos ao Carnaval – agora em 1930 – que descobrimos o que houve com Gauna na terceira noite de 1927. “Descobrimos”, pois ainda que o narrador explique o fantástico, sua constituição segue nebulosa: teria Gauna sonhado com o futuro e previsto sua própria morte? Ou teria tudo ocorrido como em 1930 e uma intervenção divina deu a Gauna a possibilidade de reverter seu destino trágico? Neste emara-


nhado de possibilidades se apresentam as duas figuras que refletiam a vida simples e cotidiana, mas que se tornam a chave do fantástico na história: Clara, a leal esposa de Gauna, e seu pai, o bruxo Taboada.

tervenção do bruxo. Como ele diz a Clara em seu leito de morte, “Cuide de Emilio. Eu interrompi o destino dele. Cuide para que não o retome. Cuide para que não se transforme no valentão do Valerga” (p. 133). À moda de Hitchcock, o próprio autor se inGauna, Clara e Taboada formam um tromete em dois momentos chave triângulo místico com o objetivo de para a repetição da terceira noite na impedir que Gauna cumpra o seu forma de um “misterioso homem de destino e se torne o admirado Doutor preto”, que guia Clara até o balcão do Valerga, o responsável pela jornada salão de baile. Esse mesmo homem de 1927 cujos contornos esquecidos de preto é quem dá a Gauna o palpor Gauna são, na pite de mais um cavalo verdade, marcados vencedor, curiosaNo fim, entre por atos violentos e mente chamado “Calo mundano da moralmente abjecedônia”, a cidade mitos. Taboada afirma vida cotidiana e tológica habitada pelo isso diretamente povo conhecido como o fantástico das “os cegos”. para Gauna em sua primeira consulta, nossas narrativas, quando ele ainda Se pensávamos que o vence sempre a sonho dos heróis era nem conhece Clara: “Eu o defendi cona experiência de uma literatura. tra um deus cego, aventura de proporeu rompi o tecido que devia se for- ções épicas, ao final do livro somos mar. Embora seja mais fino do que confrontados com uma perspectiva o ar, voltará a se formar quando eu diferente: o sonho dos heróis é, na não estiver mais aqui para evitar” realidade, a morte trágica. Não há (p. 47). Sabemos que é Clara, nesse bruxo capaz de romper o tecido de momento como a garota fantasia- tradição e de histórias elaborado da, que salva Gauna de seu trágico há milênios, cuidadosamente cosdestino. Entretanto, como Taboada turado pelos autores demiurgos das prevê, é justamente a partir de sua palavras. No fim, entre o mundano morte que o tecido se formará mais da vida cotidiana e o fantástico das uma vez e Gauna se tornará obceca- nossas narrativas, vence sempre do com o seu passado, já sem a in- a literatura.

André Araújo é jornalista, professor e escritor. Atualmente cursa doutorado em Comunicação e Semiótica na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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A curadora de maio

André Luiz D. Takahashi

Fernanda Montenegro

“Esse livro é um clássico excepcional.” Fernanda Montenegro é uma das artistas mais respeitadas e queridas do Brasil. Com mais de setenta anos de carreira – dedicados apaixonadamente ao teatro, ao cinema e à televisão –, a atriz coleciona dezenas de prêmios e é a única brasileira a ter recebido uma indicação ao Oscar de melhor atriz. Em 2018, participou da abertura da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), onde também lançou o livro Fernanda Montenegro: itinerário fotobiográfico, que faz um apanhado da sua trajetória. Fernanda Montenegro indicou à TAG um romance que transporta o leitor para a Inglaterra Vitoriana, onde um rapaz apaixonado por livros alimenta o desejo de se tornar um grande clérigo e professor. Nascido sem muitos recursos, ele toma a decisão de partir para uma grande cidade a fim de realizar seu sonho. O que ele não espera, contudo, é ter de enfrentar uma sociedade regida pelo conservadorismo e pouco afeita à ascensão social dos que não nasceram privilegiados. Repleta de analogias, essa obra figura nas listas dos maiores romances de todos os tempos e nunca perde seu caráter atual.

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A próxima indicação


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“Que ideia a de que no Carnaval as pessoas se mascaram. No Carnaval desmascaram-se.” – Vergílio Ferreira


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