Dez2018 "O coração é um caçador solitário"

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dezembro | 2018

O coração é um caçador solitário


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Ao Leitor O processo que envolve recomendar um livro é muito delicado. Funciona como o ato de presentear, há um recado implícito que significa “essa obra marcou a minha vida e espero que ela marque a sua também”. Em clima de retrospectiva, olhando para o nosso time de curadores neste ano, é impossível não ficarmos orgulhosos com as carinhosas indicações dos grandes nomes que passaram pela TAG em 2018 - Luis Fernando Verissimo, Alberto Manguel, Milton Hatoum e Eliane Brum, para citar apenas alguns. Em julho, a TAG completou quatro anos e, como celebração, os associados receberam uma obra inédita de um dos maiores fenômenos literários no mundo: Svetlana Aleksiévitch. Em agosto, enviamos a nossa caixinha de número 500 mil – mais um marco em nossa história. Fechando o ciclo de 2018, temos como curador um dos escritores mexicanos mais celebrados atualmente: Juan Pablo Villalobos. Jotapê, como é carinhosamente chamado, recebeu o prêmio espanhol Herralde com a obra Ninguém precisa acreditar em mim (2016). Aos associados, ele indicou O coração é um caçador solitário (1940), escrito pela estadunidense-prodígio Carson McCullers. A obra é um dos expoentes do estilo gótico sulista e foi eleita pela revista Time um dos melhores romances em língua inglesa dos últimos oitenta anos. Em clima de 2019, o já antecipado mimo de dezembro é um calendário literário, um presente concebido para homenagear doze livros muito queridos da história da TAG. Cada mês recebeu uma ilustração especial revisitando as temáticas de obras como Stoner, Orgulho e preconceito, e Uns e outros – resultando em uma mistura de clássicos e contemporâneos, internacionais e brasileiros. A equipe da TAG espera que 2019 seja um ano de leituras que impactem, que emocionem, que incomodem – e que, acima de tudo, os livros continuem a ser, parafraseando Drummond, uma fonte inesgotável de prazer. Boa leitura!

Equipe Tag


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J

A indicação do mês Juan Pablo Villalobos

I

Ecos da Leitura

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Influências, impactos e reverberações de O coração é um caçador solitário

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A

Leia depois de ler A sinfonia das multidões

r!

Spoile


Sumário A INDICAÇÃO DO MÊS

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Entrevista com Juan Pablo Villalobos O livro indicado O coração é um caçador solitário

ECOS DA LEITURA

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O novo e o velho sul estadunidense Música como estrutura e os temas de cada personagem

ESPAÇO DO ASSOCIADO

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Operação casamento

A PRÓXIMA INDICAÇÃO

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O curador de janeiro João Anzanello Carrascoza


Ana Schulz


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O curador Juan Pablo Villalobos

Há quase uma década, o então desconhecido escritor mexicano Juan Pablo Villalobos fazia sua notável estreia no mundo literário. Após uma sequência de rejeições por parte de editoras de seu país, quem veio a ser o responsável por sua “descoberta” foi Jorge Herralde, o mais respeitado editor da Espanha, que leu o original do romance Festa no covil (2010), despretensiosamente enviado para a editora Anagrama, sem nenhum tipo de chancela ou indicação. Ainda que seus méritos literários estejam mais do que justificados em 2018, é difícil negar a dose de sorte que inaugurou uma obra cujo inigualável estilo mistura, entre outros temas, o humor, a violência e, curiosamente, situações imprevisíveis. Foi a paixão pela literatura de Villalobos, nascido em 1973 na cidade de Guadalajara, que trinta anos mais tarde levou o escritor para Barcelona, onde reside atualmente. Enquanto fazia seu doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade Autônoma de Barcelona, conheceu a tradutora brasileira Andreia Moroni – dessa relação nasceram dois filhos e uma intensa ligação com o Brasil e a língua portuguesa. Por sete anos, o casal morou em Campinas, em uma passagem que lhe propiciou experiências literárias como escrever (em português, com

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Alexandre Sant'Anna

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a ajuda da esposa) para o blog da Companhia das Letras e se apaixonar pelos romances de Campos de Carvalho e Raduan Nassar – cuja obra ele passou a traduzir. Villalobos também publicou um livrinho inédito, escrito em português e que, segundo ele, não receberá traduções para outras línguas: No estilo de Jalisco (2014), cujo ponto de partida é o futebol e a seleção brasileira de 1970.

“Ele tem o olhar de um romancista para os detalhes, o de um pintor para as imagens e o de um poeta para a escolha de palavras." Kirkus Reviews Mas retornemos ao Juan Pablo pré-fama. Muito antes de surpreender Herralde e ver seu primeiro romance publicado e imediatamente celebrado mundo afora, Villalobos precisou convencer a si mesmo – e não aos outros – de suas qualidades de romancista. Aos 33 anos,

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prestes a ser pai, com diversas urgências profissionais e apenas algumas crônicas e contos no currículo, acreditava não ter fôlego nem paciência para uma obra mais extensa – pior do que isso, estava a um passo de desistir da literatura. “Eis que acabei descobrindo que as condições ideais para escrever um romance não importam quando o projeto de romance certo cai em suas mãos”, afirmou, em entrevista para o Jornal Rascunho. Festa no covil (2010), primeiro livro de uma trilogia com histórias distintas sobre o México, colocou JP de volta aos trilhos literários. Por apresentar como narrador e personagem central um menino rico, filho de um chefe do narcotráfico mexicano e alienado de sua realidade, o livro foi caracterizado pela crítica como uma obra da “narcoliteratura”, gênero que abriga outros livros de autores mexicanos e colombianos – para Villalobos, trata-se de uma estratégia de marketing que tenta padronizar obras que tratam da violência, este sim um tema mais complexo e urgente nesses países. “Tem surgido livros muito bons porque existe uma necessidade – eu diria na sociedade – de buscar uma linguagem para falar da violência do tráfico. Nesse sentido, a literatura atende uma função básica, a de ajudar a tentar entender o que está acontecendo.” Seu segundo romance, Se vivêssemos em um lugar normal (2012), nasceu de uma raiva alimentada contra a situação política de seu


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país. De forma semelhante ao do primeiro livro, porém, sua estratégia é o humor trágico: apoiado em situações absurdas, Jotapê expõe realidades violentas e desiguais sem perder a sagacidade. Como o próprio autor afirma, a escolha pelo recurso do humor e da ironia é praticamente uma forma de militância. “Tem uma frase de Theodor Adorno que se eu fosse candidato a alguma coisa usaria como slogan:

‘A arte avançada escreve a comédia do trágico.’" Villalobos fechou sua trilogia mexicana com Te vendo um cachorro (2014), no qual novamente faz homenagens a Adorno e suas complexas teorias estéticas e as coloca em um ambiente cômico e muito menos sisudo, oscilando entre o verossímil e o inverossímil, a simplicidade e o intrincado, ao narrar o cotidiano de um idoso e seus vizinhos de prédio. Há bastante tempo longe da terra natal, o autor deixou o México para

trás também em sua escrita, transferindo o cenário dos últimos livros. No premiado Ninguém precisa acreditar em mim (2016), ele satiriza o badalado gênero da autoficção ao construir a história de Juan Pablo, mexicano que vive em Barcelona. Na mais recente de suas publicações, Yo tuve un sueño (2018), livro de não ficção ainda inédito no Brasil, JP foge de seu tom habitual para tratar de um tema profundamente grave. Em dez breves crônicas, o escritor relata conversas com crianças de El Salvador, Honduras e Guatemala e suas realidades opressivas nos Estados Unidos, onde são consideradas – e tratadas como – imigrantes ilegais. Em entrevista para a TAG, Villalobos percebeu que muitos de seus protagonistas, fictícios ou não, são representantes dos chamados outsiders. Indivíduos aparentemente sem rumo, cujas vozes foram sacadas violentamente, mas que sempre guardam uma luz interior. Assim como em sua obra, a reflexão sobre questões político-sociais e a força poética de quem manuseia as palavras com destreza encontram-se em O coração é um caçador solitário, obra que apresentou a ele novos pontos de vista e vem surpreendendo a cada releitura, há mais de 25 anos.

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Entrevista

Juan Pablo Villalobos

TAG - Que marcas a língua portuguesa e a literatura brasileira deixaram em sua escrita?

Juan Pablo Villalobos - Mais do que uma influência linguística do português na minha literatura, o que deixou e continua a fazer uma influência importante na minha obra é a literatura brasileira. Também o contato cotidiano com a língua, já que eu falo, escrevo e leio em português, mas especialmente a literatura. Eu acabei virando um tradutor de literatura brasileira, tive a honra de traduzir os romances do Raduan Nassar, por exemplo, e

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ninguém volta o mesmo depois de traduzir o Raduan Nassar. Toda a complexidade da sua literatura, sua sintaxe, linguagem poética, obviamente significam uma influência na minha escrita. Também consegui encontrar autores que viraram uma referência pelo tipo de literatura que fazem, que eu gosto e considero interessante. Minha grande descoberta da época em que morei no Brasil foi o Campos de Carvalho, um autor meio esquecido no Brasil, que escreveu romances muito absurdos e humorísticos que às vezes são qualificados como surrealistas, mas que são romances maravilhosos,


Ana Schulz

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geniais, que viraram uma referência na minha estética e na minha maneira de entender a literatura. Você falou, em 2015, de um "boom da literatura mexicana", com muitos autores sendo traduzidos e reconhecidos internacionalmente. De lá para cá, o que mudou neste contexto? Como você enxerga o cenário da literatura latino-americana nos dias de hoje? Villalobos - A literatura mexicana – e a latino-americana em geral – está passando por um momento de auge que se relaciona com uma

maior atenção das editoras internacionais e com a presença de seus autores no cenário internacional, participando de festivais e de feiras do livro no mundo inteiro. Também tem a ver com programas de fomento à tradução, como por exemplo aconteceu com a literatura brasileira no programa da Biblioteca Nacional que fornece orçamento para pagar traduções da literatura brasileira para outras línguas. Além disso, também existe um interesse em particular pela literatura que tenha a ver com os livros em si, ou seja, seu valor literário. Desse meu ponto de vista, a literatura anglo-saxônica em particular é muito homogênea. Escritores americanos e ingleses são muito realistas, existe um tipo de literatura – desse meu ponto de vista, insisto – pouco imaginativo e pouco arriscado em termos formais. E isso, para os escritores latino-americanos, continua sendo importante, ou seja, o risco formal, a procura de novas formas, novos caminhos, a tentativa de escrever alguma coisa nova e “superar” o que já foi escrito. O narrador de Te vendo um cachorro (2013), se chama Teodoro, homenagem a Theodor Adorno, autor de uma frase muito especial para você: “A arte avançada escreve a comédia do trágico”. Uma das principais características de sua obra é o tom irônico, tragicômico. Quais são os objetivos e efeitos que procura ao utilizar este estilo narrativo? Pode-se dizer que é um estilo da literatura mexicana?

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Villalobos - A literatura mexicana, como quase todas as literaturas, é séria, solene. Eu diria que a literatura tem uma tendência para solenidade porque a crítica e a academia consideram-na como uma coisa transcendente, sagrada, algo a se levar muito a sério. Portanto, parece que só a literatura solene, “profunda”, pode ser qualificada como grande literatura. A minha vai por outro caminho. Eu tento fazer uma literatura irreverente, não só humorística. Eu reivindico outro tipo de literatura, que tem uma grande tradição na literatura universal, a mesma linha do Dom Quixote, uma tragicomédia, que é outra maneira de entender a literatura. É essa ideia de que a ironia, o sarcasmo, até mesmo a piada também podem ser uma maneira de refletir sobre os problemas e sobre as condições mais importantes do ser humano. Em O coração é um caçador solitário, a autora norte-americana incluiu no romance personagens marginais e excluídos da sociedade da época. Fazendo um paralelo com sua obra, você acredita que realiza o mesmo processo ao narrar personagens incomuns? Villalobos - Eu não tinha pensando nesse paralelismo entre os personagens de O coração é um caçador solitário e os da minha obra, mas é verdade que são personagens marginais. O meu romance Te vendo um cachorro é praticamente uma reivindicação dos marginais, daqueles que são esquecidos, que não têm

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voz, e é a mesma coisa que acontece com o romance de Carson McCulers. Mas a literatura está cheia de personagens marginais. Eu diria que praticamente toda a literatura do século 20 é de anti-heróis e não de heróis. A crise da representação da literatura depois das vanguardas e do holocausto gerou um tipo de literatura que tem uma tendência para os anti-heróis. O trabalho do autor é justamente tentar encontrar luz dentro desses personagens. Carson McCullers escreveu seu primeiro livro aos dezesseis anos. Você diria que ainda é possível


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um(a) jovem escritor(a) fazer sucesso no mercado editorial pela qualidade literária de sua escrita?

Ana Schulz

Villalobos - Eu diria que sim, mas cada vez é mais difícil que isso aconteça, porque cada vez mais temos uma historia literária maior. Hoje em dia é muito difícil fazer uma literatura ingênua, ou seja, sem conhecer profundamente a tradição literária, as técnicas narrativas. Inclusive a literatura mais interessante dos últimos 20, 30 anos é profundamente consciente de si mesma. Por isso, seria mais complicado que uma pessoa che-

gasse hoje com um romance que significasse uma novidade para o cenário das letras. Acho que o cenário mudou, mas lógico que gênios existem, sempre aparecerão e com certeza continuaremos a ver fenômenos parecidos com a Carson McCullers. O que fisgou sua atenção em O coração é um caçador solitário a ponto de indicar aos 28 mil associados do clube? Por que acredita que os leitores brasileiros deveriam conhecer a obra? Villalobos - Esse é um romance injustamente pouco conhecido. Eu o descobri no México há uns 25 anos, quando eu estava estudando letras espanholas, e eu lembro que fiquei totalmente impactado. O livro apresentou um olhar e perspectiva inéditos pra mim, uma galeria de personagens cativantes, muito queridos e nessa condição de serem os mais esquecidos e também os mais sem voz. A questão da oralidade, da maneira como o romance é escrito, a intensidade poética belíssima, tudo me impactou muito. Eu já li umas três ou quatro vezes, é um desses livros que, quando você volta a ele, por mais que tenha mudado, continua tendo um encanto especial, e como você mudou, o livro fala coisas novas pra você. Esse é um dos livros que eu mais dei de presente e que eu mais recomendei. E nunca teve uma resposta negativa ou indiferente, as pessoas sempre voltaram agradecendo, muito comovidas pelo livro.

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O O livro indicado O coração é um caçador solitário

Conhecida como uma das autoras americanas mais influentes do século 20, Carson McCullers foi uma romancista, dramaturga, contista, ensaísta e poeta que teve sua trajetória abreviada por complicações de saúde que a acompanharam desde muito jovem. Talentosa, atormentada e vulnerável, estreou precocemente no cenário literário, viveu com a mesma paixão e intensidade de tudo o que escreveu e se tornou um dos principais expoentes literários do sul dos Estados Unidos. McCullers nasceu Lula Carson Smith no ano de 1917, em Columbus, Georgia. Primeira de três filhos, foi uma criança que apresentava um certo gosto pela solidão. Quando surpreendida pelos pais, longe dos livros e das bonecas, olhando fixamente para o nada, explicava que estava simplesmente pensando. “Isso também é divertido”, costumava contar, entusiasmada. Como seus irmãos não demonstravam o mesmo fascínio pelas atividades criativas, a menina passou a receber um tratamento especial, sendo bajulada e recebendo presentes que trabalhassem seus talentos. Com a ajuda dos pais, que inad-

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vertidamente sonhavam com um futuro promissor para a família, Carson foi convencida muito cedo da própria genialidade.

mais tarde, tais qualidades seriam elencadas também como grandes trunfos de seus livros.

Pouco a pouco, no entanto, as cerLamar Smith e Marguerite Waters, tezas de uma carreira musical coé claro, não estavam equivocados meçaram a balançar. Quando ela em suas intuições. Mas a insistêncontava quinze anos, uma gracia em classificá-la como diferenve doença a prendeu em casa por te, aliada à inferioridade financeira muitos dias e os livros começaentre sua família e a de seus amigos ram a receber sua atenção. Carson e à personaliteve a ajuda dade introverde uma prima tida, apenas bibliotecária A autora a u m e nt a r a m para conheo sentimento cer os grandes de inadequacânones do ção na menina. mundo inteiSua identifiro, indo da ficação com o losofia grega, estranho, popassando pebre e oprimido los romancisevoluiu natutas franceses, ralmente, embora essa perspectiva russos, ingleses e alemães até cheque guiou praticamente toda sua gar aos compatriotas contemporâfutura obra fosse agravada mais neos como William Faulkner, Gerpor uma imaginação exagerada e trude Stein e Ernest Hemingway. fantasiosa do que pela realidade. Inspirada por estes escritores, mas movida principalmente por Até o fim da adolescência, Carson uma paixão pelo dramaturgo Eunão demonstrou qualquer desegene O’Neill, começou a escrever jo de ser escritora. Com exceção e a apresentar para a família suas das apresentações teatrais feitas peças, novelas e contos dos mais em casa, a paixão e o excepcional variados temas – seja narrando a talento para a música consumiam história de uma musicista apaixoboa parte de seu tempo, fazendo-a nada por jazz, seja um debate entre sonhar em ser uma grande piaJesus Cristo e Nietzsche. nista de concerto. Nessa época, dedicou-se quase integralmente Mais segura de que seguiria uma e recebeu aulas que a ajudaram carreira literária, mas incapaz de na melhor execução e compreeninformar a desistência da música, são de elementos formais e esCarson convenceu os pais de que truturais de uma peça musical. deveria partir de Columbus para Como ela mesmo percebeu anos Nova York a fim de aprimorar os

Carson McCullers

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dois principais talentos. A respeito da viagem, as biografias sobre a escritora são poucos conclusivas – Carson ilustrava esse período para seus amigos com acontecimentos quase inacreditáveis –, mas o fato é que ela logo abdicou do piano, buscou diversos empregos, persistiu no curso de Escrita Criativa da Universidade Columbia e passou um ano trabalhando fervorosamente em seus textos. No ano de 1936, um professor a ajudou em sua primeira publicação, o conto Wunderkind, na celebrada revista literária Story. Entre idas e vindas de Nova York à cidade natal, Carson conheceu o ex-soldado e aspirante a escritor Reeves McCullers, com quem se casou e alimentou uma relação caótica. Os primeiros anos do casamento, no entanto, foram tranquilos, e eles se mudaram para a Carolina do Norte, onde Carson começou a rascunhar um romance com o nome provisório The mute [O mudo]. Um esboço do romance foi o suficiente para lhe conferir uma bolsa e um prêmio e, em junho de 1940, O coração é um caçador solitário foi finalmente publicado. A obra é ambientada em uma cidadezinha localizada ao sul dos Estados Unidos e suas ações ocorrem no final dos anos 1930 – um ambiente ainda socioeconomicamente fragilizado pela Grande Depressão americana. Nesse cenário marcado pela in-

tolerância, isolamento e pobreza, o leitor vai conhecendo os personagens centrais da história, cada um marcado por essa realidade de forma particular. John Singer é um simpático homem surdo* que vê seu melhor amigo enlouquecer e ser internado à força. Sozinho, ele então aluga um quarto na casa da família Kelly, onde vive a jovem Mick, uma pré-adolescente de trejeitos masculinizados que descobre na música um magnetismo inexplicável. Também conheceremos Jake Blount, um agitador marxista e alcóolatra que não entende a resignação da população pobre e que frequenta o bar do observador Biff Brannon. Por fim, há o doutor Benedict Copeland, um médico negro muito idealista porém frustrado. Narrada em terceira pessoa, a obra explora as angústias e desejos de cada um desses personagens, que depositam em Singer a esperança de encontrar um ouvinte (!) compreensivo e tolerante mas que, ao se cruzarem, evidenciam seu isolamento e incomunicabilidade. O ambiente da narrativa é criado a partir de oposições notórias: política e religião, negros e brancos, adultos e adolescentes. As tensões individuais e coletivas são elaboradas por McCullers em uma narrativa que oscila entre um ritmo ágil e detalhista, e esses movimentos sempre são entrecortados por diálogos que ajudam a trans-

*Apesar de, na obra, Singer ser mencionado como “surdo-mudo”, a nomenclatura correta e mais aceita atualmente é simplesmente “surdo”. 15 15


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Carl van Vechten

O romance de McCullers surgiu como uma grata surpresa no meio literário. Críticas positivas foram quase uma unanimidade, e o espanto causado pela juventude da escritora, de apenas 23 anos, ajudou a alimentar a imagem de escritora genial. Logo, todos queriam ver, conversar e conhecer Carson McCullers, e ela aproveitou o momento para adentrar no universo dos grandes artistas. Durante uma de suas separações temporárias de Reeves – que apresentava problemas com álcool cada vez maiores –, passou a morar na famosa February House, uma espécie de refúgio de celebridades. Lá, Carson conviveu com W. H. Auden, Salvador Dalí, Richard Wright, a performer de burlesco Gypsy Rose Lee e muitos outros.

parecer as complexas personalidades de cada protagonista – descritas pela autora de maneira tão sensível que dificilmente o leitor não se identificará com sua dor e solidão. Presos às suas individualidades, os personagens representam uma época de aflição, fazendo de O coração é um caçador solitário um dos melhores exemplos de obras de realismo social e psicológico retratando o sul dos Estados Unidos do fim dos anos 1930.

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Estes foram os anos mais empolgantes da vida da escritora, tendo em vista a sequência trágica de eventos que a acompanharam ininterruptamente. Para cada publicação bem recebida pela crítica, um acontecimento tratava de enfraquecer sua constituição física e mental. Em 1941, mesmo ano de publicação de Reflexos num olho dourado, seu segundo romance, ela sofreria o primeiro derrame cerebral, com apenas 24 anos. A sócia do casamento (1946), romance que obteve prestígio e notórias adaptações teatrais e cinematográficas, foi seguido por dois derrames que lhe prejudicariam a visão e o movimento do lado esquerdo do corpo.


A INDICAÇÃO DO MÊS

Se nos anos 1940 McCullers teria o alento de ser considerada por muitos a mais importante escritora jovem americana, suas últimas décadas foram melancólicas. O casamento violento e pautado pelo abuso de drogas com Reeves teve o pior final possível, com o suicídio do parceiro em 1953. Fracassos de público e crítica surgiram com a peça The square root of wonderful (1957) e o romance Clock withouht hands (1961). Sua última obra foi um livro de poemas para crianças de 1964, quando sua saúde já estava completamente debilitada – marcam os piores momentos dessa época um diagnóstico de câncer de mama, uma pneumonia e uma fratura no quadril.

McCullers faleceu em 1967, aos 50 anos de idade, após 46 dias de um coma provocado por mais um derrame. Hoje, mais de um centenário após seu nascimento, observa-se um legado que apenas ganhou força com o tempo. Além dos filmes e peças que continuam a ser produzidos em homenagem a sua obra, O coração é um caçador solitário permanece fundamental na história da literatura. Em 2005, foi eleito um dos melhores romances em língua inglesa desde 1923 pela revista Times. Três anos depois, a apresentadora Oprah Winfrey selecionou-o para seu badalado clube de leitura. O sucesso recente reafirma o que já se pressentia desde meados de 1920: Carson era, realmente, uma menina especial.

“Ela examinou o coração do homem com uma capacidade de entendimento... que nenhum outro escritor pode desejar superar.”

Henri Cartier-Bresson

– Tennessee Williams

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REVERBERACOES RBERACOES IMPAC E INFLUENCIAS, IN AS,IMPACTOS E IM E REVERBERACOES IN CIAS,REVERBERAC INFLUENCIAS, REV ECOS DA LEITURA

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S IMPACTOS E CTOS E REVERBE NFLUENCIAS,IMPA MPACTOS E REVE IM NF CO IN VERBERACOES IM ECOS DA LEITURA

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ECOS DA LEITURA

ANTES O inspirado título do livro não é obra do gênio de Carson McCullers – sua ideia era, na verdade, bem mais simples: antes de ser publicado pela editora Houghton Mifflin, apresentava o título provisório de The mute [O mudo], uma referência ao personagem John Singer. Foi um dos editores do livro que sugeriu o título The heart is a lonely Hunter. A frase foi retirada de um poema do escocês William Sharp, poeta da segunda metade do século 19, que à época utilizava o pseudônimo feminino Fiona MacLeod. O poema, além de tocar em temas como a sensação de isolamento, apresenta uma estrutura semelhante à de uma canção. Embora o narrador pareça angustiado e sugira uma falta de motivação para cantar, seu fascínio pela música é explícito – algo semelhante ao que acontece com a personagem Mick Kelly no romance de McCullers.

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Green wind from the green-gold branches, what is the song you bring? What are all songs for me, now, who no more care to sing? Deep in the heart of Summer, sweet is life to me still, But my heart is a lonely hunter that hunts on a lonely hill. (…) O never a green leaf whispers, where the green-gold branches swing: O never a song I hear now, where one was wont to sing. Here in the heart of Summer, sweet is life to me still, But my heart is a lonely hunter that hunts on a lonely hill.


DURANTE 1940 não foi só o ano de Carson McCullers. Tanto nos Estados Unidos como no resto do planeta, diversos outros marcos para a literatura foram publicados. De uma das obras mais celebradas de Ernest Hemingway, passando pela crítica ao stalinismo de Koestler e indo até a misteriosa ilha do revolucionário livro de Bioy Casares, listamos aqui as obras quase octogenárias que você deveria conhecer:

Dino Buzzati

O deserto dos tártaros

Ernest Hemingway Por quem os sinos dobram

Erico Verissimo

Adolfo Bioy Casares A invenção de Morel

O poder e a glória

Agatha Christie

Richard Wright

Graham Greene

Saga

Cipreste triste

Arthur Koestler O zero e o infinito

Filho nativo

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DEPOIS

Carson McCullers colheu os frutos do sucesso do romance – e seus sucessores – ao longo das décadas de 1940 e 1950. Ninguém que a conhecesse intimamente se surpreendeu quando ela começou a se relacionar com outras personalidades do mundo artístico – McCullers já dizia, desde a infância, que seu destino era a fama e a fortuna. Entre amizades duradouras e encontros motivados por curiosidade ou pura veneração, a escritora marcou a trajetória de artistas como:

W. H. Auden – poeta

George Davis – editor e romancista

Gypsy Rose Lee – artista burlesca

Marilyn Monroe – atriz

Isak Dinesen (pseudônimo) - escritora

Richard Wright – romancista

Tennessee Williams – dramaturgo

Truman Capote – romancista

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ECOS DA LEITURA

FILME O filme Por que tem que ser assim? (1968) foi lançado um ano depois da morte de McCullers. Adaptação de O coração é um caçador solitário, o longa leva os mesmos personagens do romance para o cenário dos anos 1960. As recepções de público e crítica foram bastante positivas, rendendo ao filme duas indicações ao Oscar: melhor ator para Alan Arkin (interpretando John Singer) e melhor atriz coadjuvante para Sondra Locke, que viveu a personagem Mick Kelly.

PECA Embora outros romances de McCullers tenham recebido adaptações teatrais quando ela ainda estava viva – a peça The member of the wedding (1950) fez tanto sucesso que chegou a ser apresentada 501 vezes –, O coração é um caçador solitário só foi para os palcos em 2005, em peça adaptada por Rebecca Gilman e dirigida por Doug Hughes.

EXPOSICAO Em 2015, a Fraenkel Gallery, galeria de arte estabelecida em San Francisco, anunciou a exposição The heart is a lonely hunter, com obras de 18 artistas contendo fotografias, pinturas, desenhos, livros, vídeos e esculturas. De acordo com a página do museu, os trabalhos selecionados pela curadora Katy Grannan “ressoam com [os temas] pathos, obsessão e vulnerabilidade e dialogam com uma fonte fundamental para a inspiração artística: os anseios privados do coração.”

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ECOS DA LEITURA

O NOVO E O VELHO SUL ESTADUNIDENSE Assim como acontece com qualquer campo artístico, necessariamente inserido em um contexto histórico e sociocultural, a literatura sulista dos Estados Unidos refletiu, por muito tempo, seu passado de injustiças e violências. Até meados do século 19, os principais estudos de literatura do sul privilegiavam a experiência da elite branca americana, dona de grandes terras, escravocrata, que preservava com exclusividade o monopólio dos saberes e das representações. Por volta desse período, no entanto, o país acompanhou a chegada de autores que reivindicavam a necessidade de uma perspectiva crítica e diversificada, que fugisse dos cânones produzidos pela elite

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dominante. Suas obras foram capazes de apresentar muitos panoramas do sul e de trazer para o centro da narrativa personagens até então relegados à marginalidade, subvertendo privilégios baseados em raça, classe e gênero. Dentre as diversas correntes estéticas que surgiram, destacou-se um gênero conhecido como Southern gothic, ou Gótico sulista. Advindo da tradição gótica americana – que por sua vez surgiu do gótico inglês –, o gênero caracteriza-se por abordar, além de discursos opostos à de elite racista e patriarcal, elementos e personagens grotescos, movidos por pensamentos e impulsos transgressivos. Como resultado de uma realidade opressiva e desigual,


ECOS DA LEITURA

os cenários retratados nas obras desse gênero são acompanhados por cenas violentas e chocantes. Enquanto Edgar Allan Poe (18091849) é mencionado como o primeiro e explorar todo o potencial do gótico sulista – como no conto O gato preto, de perceptíveis tons alegóricos relacionados à escravidão –, William Faulkner (1897-1962) é considerado o mais influente escritor do gênero. O condado fictício de Yoknapatawpha e suas marcas de ruptura social, econômica e racial provocada pela derrota na Guerra Civil são recorrentes em sua obra e podem ser percebidos em contos como Uma rosa para Emily (1930) e o celebrado romance O som e a fúria (1929). Além disso, a linguagem complexa e modernista de Faulkner colabora para incutir no leitor a sensação de incerteza e alienação tipicamente góticas.

tros escritores: Flannery O’Connor (1925-1964), cuja obra melhor representou o termo “grotesco” em romances como Sangue sábio (1952); Tennessee Williams (1911-1983), responsável por influenciar todo o teatro americano dos anos 1940 e 1950 com nuances da estética gótica; Richard Wright (1908-1960), um dos primeiros escritores a utilizar elementos da corrente gótica sulista a partir da perspectiva de um homem negro, como no livro de não ficção 12 millions black voices (1941). Por fim, cabe mencionar autores sulistas mundialmente populares cujas obras também foram caracterizadas como góticas: Harper Lee (1926-2016) e seu O sol é para todos (1960), Cormac McCarthy (1933), mais conhecido por suas obras de western, e Truman Capote (19241984), que escreveu Outras vozes, outros lugares (1948).

Carson McCullers faz parte da geração de escritores sulistas que sucederam Faulkner e expandiram sua visão conflituosa entre o novo e o velho sul para uma verdadeira “tradição viva”, como sugeriu o crítico literário Leslie Fiedler. Sua preferência sempre foi pelos freaks e outsiders, vide os protagonistas de O coração é um caçador solitário. Além dela, destacaram-se ou-

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ESPAÇO ECOS DADO LEITURA ASSOCIADO

A música como estrutura e os temas de cada personagem

Spoiler!

A relação de O coração é um caçador solitário com a música atravessa questões mais complexas do que apenas os acontecimentos de sua narrativa. No artigo A voice in a fugue: characters and musical structure in Carson McCullers The heart is a lonely hunter, de C. Michael Smith, presente no livro Modern fiction studies 2 (1979), o autor busca relacionar três elementos: a estrutura do romance, a estrutura de uma fuga – técnica de composição baseada em contrapontos e polifonia popularizado por compositores clássicos como J. S. Bach e Mozart – e o desenvolvimento de seus personagens ao longo da narrativa. No artigo, Smith também apresenta trechos do esboço do romance escrito por McCullers em 1939, utilizado como argumento para convencer a editora Houghton Mifflin a publicá-lo pela primeira vez. Além de explicar brevemente

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a personalidade de seus protagonistas, a autora – que, não devemos esquecer, estudou música por muitos anos em sua juventude – revela que se inspirou na estrutura das fugas para escrever O caçador..., especialmente quando se refere às relações entre os cinco personagens principais. Cabe explicar: uma fuga, como mencionado, caracteriza-se por ser polifônica, ou seja, apresenta várias vozes, e começa com um tema principal, executado primeiramente por uma voz. Ela então é seguida por outras, que vão entrando sucessivamente e relacionando-se com esse tema de forma variada e cada vez mais intrincada. Existem diversos tipos de relações possíveis entre esses temas: relevantes para esta análise são a imitação (a repetição do tema original executada por outra voz) e a inver-


ECOS DA LEITURA

são (repetição espelhada do tema original, que inverte sua progressão). A relação entre as progressões melódicas dessas vozes dá origem ao que se chama de contraponto. Smith revela, então, as semelhanças que observou. O romance de McCullers, dividido em três partes principais assim como o são a maioria das fugas, apresenta na primeira as cinco vozes centrais: Singer, Brannon, Kelly, Blount e Copeland, sendo as quatro últimas uma variação da voz de Singer. Ao final da primeira parte, a narrativa descreve como os quatro orbitarão ao redor do homem surdo. Neste momento, o autor sugere uma ironia no comportamento “tema” de Singer. Segundo ele, o caráter atencioso do personagem seria superficial, e os motivos que o fazem se sentir atraído pelo grego Antonapoulos seriam egoístas, já que seus diálogos são sempre unilaterais e interiores. Smith utiliza como exemplos o jogo de xadrez entre ele e o grego, que Singer joga pelos dois, e as conversas em linguagem de sinais nas quais Singer não percebe – e não se importa com – a falta de compreensão do amigo. Smith justifica-se com um trecho do esboço de McCullers, no qual ela afirma que Singer é gentil e cooperativo “apenas na superfície”, e que “nada do que ocorre à sua volta perturba seu interior”, o que indicaria um comportamen-

to autocentrado e que prefere, de certa forma, a ilusão. O tema irônico de Singer, que se torna mais explícito ao longo da narrativa a partir da relação com os outros protagonistas, é repetido por meio da imitação em outras duas vozes do livro: as de Benedict Copeland e Jake Blount. Ambos são personagens aparentemente bem-intencionados, que pensam no próximo e têm uma visão sensível das injustiças sociais – o que, segundo Smith, os aproxima mais do que quaisquer outros personagens. Ambos, no entanto, progridem rumo à decepção e ao autoengano. O que se vê, mais ao fim da narrativa, é um diálogo intolerante entre os dois, que não conseguem se desprender das próprias doutrinas e visões de mundo. Mick Kelly e Biff Brannon, por outro lado, seriam as vozes que executam a inversão do tema original. Brannon é um personagem observador que progressivamente atinge uma perspectiva mais realista de seu entorno e dos acontecimentos que se sucedem. Já com Mick Kelly essa inversão é ainda mais clara, com seu crescimento rumo à vida adulta definindo com precisão o conflito entre ilusão e realidade que permeia o romance inteiro e servindo de contraponto às histórias de Singer, Blount e Copeland.

NOTA: este resumo do artigo de C. Michael Smith não pretende explorar toda a profundidade do texto do autor, mas apresentar uma outra perspectiva e estimular debates entre os associados. Será que você concorda com ele?

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ESPAÇO DO ASSOCIADO

Foi no início de 2018, voltando da festa de casamento de um primo, em um clima nostálgico e comemorativo, que Rafael Reis soube que queria pedir a namorada, Giovana Vitorassi, para passar a vida ao seu lado. Namorados há seis anos, os engenheiros se conheceram quando eram trainees em uma empresa de mecatrônica em São José dos Campos, no interior de São Paulo. Amigos antes de qualquer coisa, os dois se tornaram inseparáveis após um primeiro beijo em uma festa “onde muitas coisas aconteceram ao mesmo tempo”, como definiu Rafael. Mesmo após um longo relacionamento, casar não estava propriamente nos planos, mas Rafael teve, su-

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bitamente, uma urgente epifania: o pedido estava quase escapando para oficializar os planos de uma vida compartilhada. Mas não era uma tarefa simples ou óbvia. Giovana é descrita por Rafael como objetiva, racional e pragmática. Sempre viajando a trabalho, a jovem escapa da rotina lendo os livros enviados pela TAG – ela é associada do Curadoria e do Inéditos – e participando dos encontros regionais (os quais ela descreve como “verdadeiras comunidades”). Por estar quase sempre longe de casa, é ele que, via chamada de vídeo, mostra o livro, revista e mimo que chegam a cada mês. Rafael conta, inclusive, que Giovana fica super ansiosa


ESPAÇO DO ASSOCIADO

pelos kits e pouquíssimas coisas conseguem deixá-la tão empolgada assim. Querendo fazer uma surpresa que tivesse um significado, Rafael lembrou da TAG: ele diz que associa o clube à felicidade de Giovana. Naquela noite em que voltaram do casamento do primo, ele mal dormiu. Entrou em um “modo ansiedade”, como ele mesmo definiu, e, ainda naquela madrugada, enviou um e-mail para a nossa equipe. “Queria fazer isso de uma forma especial e significativa pra Gi, e não consigo pensar em mais nada melhor do que ter a TAG como pano de fundo para esse tema”, escreveu ele, lá em agosto. Foi algo inédito por aqui. Love is in the air define os dias de preparação para que tudo funcionasse de acordo com os planos. Giovana, sem desconfiar de nada, re-

cebeu um bilhete dourado dentro do kit de setembro com um convite para visitar a TAG. Veio de Florianópolis até Porto Alegre só para isso, e, ao chegar, encontrou os funcionários (que já sabiam de tudo) agindo com naturalidade, como se tudo aquilo não passasse de uma visita de rotina. Durante o encontro, quando Giovana aprendia a montar os kits no pavilhão, Rafael apareceu de surpresa, com um anel de noivado cheio de brilhantes e a pergunta que fez com que todos os funcionários (escondidos atrás das pilhas e pilhas de kits) segurassem a respiração por uma fração de segundo. A resposta, positiva (!), fez com que todos gritassem de felicidade pelo mais novo casal que, agora, terá a TAG para sempre em sua história. A maior ironia de todas? O primeiro livro recebido por Giovana após se associar à TAG foi O casamento, de Nelson Rodrigues, enviado em agosto de 2016.

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LEIA DEPOIS DE LER

Este espaço foi pensado para você retornar à leitura da revista depois de ter terminado o livro. Aqui, mensalmente, um dos colunistas do nosso blog - taglivros.com.br/blog - irá produzir um texto especialmente para você analisar de forma mais complexa a obra.

LER

SPOI

A SINFONIA DAS MULTIDÕES

André Araujo é jornalista, professor e escritor. Atualmente cursa Doutorado em Comunicação e Semiótica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

T um caçador solitário é como

erminar de ler O coração é

tomar uma lufada de ar no rosto, como recuperar o fôlego após um longo período em que nem sabíamos que estávamos prendendo a respiração. Somos sugados por sua atmosfera sufocante, própria do clima quente e úmido do sul dos Estados Unidos, onde o dia a dia é modorrento e sem perspectiva, melancólico e solitário. O período imediatamente após a Grande Depressão e anterior à Segunda Guerra nos deixa presos em um tempo em que tanto o passado quanto o futuro são indesejáveis, e somos obrigados a encarar nosso presente individual como horizonte único de nossa experiência. A partir de uma estrutura engenhosamente construída, o romance de Carson McCullers nos joga para dentro de um microcosmo que consegue unir os anseios mais pessoais de um pequeno grupo de personagens com as mazelas sociais de uma comunidade empo-

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brecida pelo desastre econômico e marcada pelo preconceito racial. A alienação dos personagens em relação a sua vida e ao mundo como um todo encontra uma válvula de escape na figura de John Singer, o surdo da cidade que se torna o centro capaz de articular o desejo de comunicação e entendimento que acaba sendo o verdadeiro motor no coração desse romance. É curiosa a escolha de McCullers de posicionar um surdo como o centro de um romance sobre comunicação. Mas é justamente sobre o problema da comunicação que estamos aqui. As reuniões de John Singer com Mick Kelly, Jake Blount, Dr. Copeland e Biff Brannon se assemelham muito mais a um confessionário do que a uma conversa. Ali, os personagens sentem-se livres para falar sem a angústia de receber uma desaprovação como resposta. John Singer é uma espécie de deus particular, moldado de acordo


LEIA DEPOIS DE LER

com os desejos de cada um de seus interlocutores para atender a esse imperativo de comunhão com o outro. Singer é deus, mas também autor. Afinal, é ele quem nos permite adentrar a vida íntima dos personagens.. É Singer quem possibilita a emergência de seus conflitos e a exposição de suas visões de mundo. Não por acaso, é só através da escrita que Singer pode se comunicar. Mas se temos em Singer uma alegoria do autor imaginado do romance, podemos ver em Mick Kelly o ímpeto literário de McCullers como a autora real. Em uma das passagens mais impactantes do romance, a personagem tenta a todo custo lembrar dos detalhes de uma sinfonia de Beethoven até que entende algo fundamental: que “o mundo inteiro era aquela sinfonia, e Mick era pouca para ouvir aquilo tudo”. Quase como se uma única subjetividade fosse insuficiente para dar conta da sinfonia do mundo. Por isso McCullers se multiplica em cinco diferentes pontos de vista, pois entende que não apenas nós mesmos contemos multidões dentro de nós, como também o mundo é construído como colcha de retalhos a partir de múltiplas perspectivas. A polifonia bahktiniana do próprio romance desfaz as teses de Blount e Dr. Copeland, que enten-

dem a verdade como algo que está “lá fora”, que é autoevidente. Não suportam viver em um mundo onde as perspectivas são distintas, consideram isso uma forma de alienação. O que o romance nos diz é que a alienação é outra coisa, como atesta Biff Brannon e sua paciente observação da vida por detrás da caixa-registradora do New York Café: “porque as pessoas insistiam em pensar que o mudo era exatamente como elas queriam que fosse – quando o mais provável é que tudo não passasse de um engano estapafúrdio?”. O ‘mudo’ aqui poderia ser facilmente transformado por ‘mundo’, numa demonstração das belezas da tradução. O engano estapafúrdio é tentar encontrar um ponto de vista único acerca da realidade. A complexidade do emaranhado de visões e percepções exposta por McCullers torna essa tão almejada busca por compreensão e entendimento de um mundo reduzido a imposição autoritária de apenas “um” modo de vida. A profunda humanidade de O coração é um caçador solitário talvez esteja na descoberta de que a comunicação e comunhão com o outro não diz respeito à transmissão de uma visão unificada, mas de tentar encontrar, com todas as dores e defeitos do real, a verdade de cada ponto de vista.

Erramos: Na seção "Leia depois de ler" de outubro, o texto publicado cita a trilogia Os nossos antepassados como se fosse de autoria do autor Dino Buzzati, quando, na verdade, foi escrita por Ítalo Calvino..

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A PRÓXIMA INDICAÇÃO

J

O curador de janeiro João Anzanello Carrascoza A primeira leitura de 2019 da TAG é uma recomendação de João Anzanello Carrascoza, um dos mais celebrados nomes da literatura brasileira contemporânea. Além de sua extensa e premiada produção literária, constituída de volumes de contos, obras infanto-juvenis e romances – e sempre marcada por uma linguagem poética e tocante –, Carrascoza também publicou livros voltados para a comunicação e publicidade – campos sobre os quais leciona em universidades de São Paulo.

Marcos Vilas Boas

No romance indicado por Carrascoza, o narrador é um aspirante a

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“Um romance belíssimo sobre a compreensão, a discriminação e a procura do amor."

escritor que viaja para uma cidadezinha dos Estados Unidos a fim de dar aulas e encontrar inspiração para seu primeiro livro. Durante a estadia, constrói uma amizade conturbada com um misterioso ex-combatente da guerra do Vietnã. A relação entre os dois vai impactar profundamente a trajetória desses personagens, que terão de lidar com questões como culpa, inveja e sordidez humana. Escrita por um dos mais relevantes autores espanhóis da atualidade, essa obra aborda de forma única as nuances que envolvem a complexidade de ser humano, além de ser uma apologia ao poder da literatura.


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“A leitura é o milagre fecundo de uma comunicação no seio da solidão.” – Marcel Proust


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