abril | 2018
The underground railroad: os caminhos para a liberdade
TAG Comércio de Livros Ltda. Rua Câncio Gomes, 571 | Bairro Floresta Porto Alegre - RS | CEP: 90220-060 (51) 3092.0040 taglivros taglivros taglivros taglivros contato@taglivros.com.br www.taglivros.com.br REDAÇÃO Gustavo Lembert da Cunha Marcio Coelho Marina Brancher Maurício Lobo Nicolle Ortiz produto@taglivros.com.br REVISÃO Antônio Augusto da Cunha Fernanda Lisbôa IMPRESSÃO Impressos Portão PROJETO GRÁFICO Bruno Miguell M. Mesquita Gabriela Heberle Kalany Ballardin Paula Hentges design@taglivros.com.br CAPA Tulio Cerquize tcerquize@gmail.com
Ao Leitor A obra que chega ao associado neste mês trata de um assunto delicado. Como não sentir grande desesperança e angústia quando debatemos a escravidão? Como uma cicatriz, essa marca na história humana não pode ser ignorada. Abordá-la com a gravidade que merece, no entanto, é um desafio ainda maior. Colson Whitehead, destaque da literatura americana contemporânea, esperou mais de quinze anos para começar a escrever The underground railroad: os caminhos para a liberdade. Na lista de prêmios conquistados, entram o Pulitzer e o National Book Award. Na de fãs ilustres do livro, constam Oprah Winfrey e Barack Obama. Cora Rónai, curadora do mês, agradece à curiosa coincidência que a fez querer ler o livro. Não foi preciso devorar muitas páginas para que a jornalista fosse completamente arrebatada pela prosa de Whitehead – ela confia que será a vez de o associado agradecer a indicação. Acompanha este kit uma ecobag feita com algodão ecológico. A arte foi pensada a partir das ilustrações do livro e da ligação às plantações de algodão do sul dos Estados Unidos. A frase, proferida por um dos personagens da narrativa, simboliza a história de uma das principais mulheres envolvidas na verídica underground railroad (ferrovia subterrânea), Harriet Tubman, que você pode conhecer de perto na página 19 da revista. Boa leitura!
Equipe Tag
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C A indicação do mês A curadora Cora Rónai
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Ecos da Leitura
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Caminhos da liberdade
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Leia depois de ler A metáfora viva de Whitehead Sérgio Rodrigues
r!
Spoile
Sumário A INDICAÇÃO DO MÊS
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O livro indicado The underground railroad: os caminhos para a liberdade
ECOS DA LEITURA
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Memória cinematográfica O clube de Oprah A lista de Obama
ESPAÇO DO ASSOCIADO
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Faça você mesmo
A PRÓXIMA INDICAÇÃO
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O curador de maio Milton Hatoum
Divulgação
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A curadora Cora Rónai
Colunista semanal do periódico O Globo, a carioca Cora Rónai é uma das jornalistas mais influentes do Brasil, figurando na lista das principais inovadoras do país pela ZDnet, importante publicação de tecnologia, em 2014. Escreveu livros de conteúdo jornalístico e infantojuvenil e traduziu autores como Agatha Christie e Henry Miller. Nascida em 1953 na capital do Rio de Janeiro, Rónai deve muito de sua relação íntima com os livros a seus pais, Nora Tausz Rónai e Paulo Rónai, estrangeiros com histórias pessoais trágicas, que fincaram raízes em solo brasileiro. Nora, arquiteta, escritora e nadadora profissional, nasceu no território que hoje pertence a Croácia, filha de italianos judeus, e sofreu com a perseguição do governo fascista de Benito Mussolini. Por muito tempo impedida de frequentar a escola, escapou do nazismo com a família, refugiando-se no Brasil. O crítico, tradutor e escritor Paulo Rónai veio da Hungria e teve trajetória semelhante. Também de origem judaica, fugiu da Segunda Guerra completamente sozinho e chegou ao Brasil, país cujo idioma estudara na Europa e no qual era fluente – segundo Cora, Paulo sempre soube mais de língua portuguesa do que ela. Acrescente-se à infância de Cora a relação com o grande amigo de Paulo, Aurélio
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Buarque de Holanda Ferreira – do “Aurelião”, ou, como gosta de chamar a jornalista, “tio Aurélio” –, e descobre-se um pouco mais da origem do seu apreço pela escrita. “A influência da minha família foi primordial para a minha vida”, conta. “Sou quem eu sou porque cresci com a minha família, cercada de livros por todos os lados. Mas, na verdade, não escolhi minha profissão. Ela aconteceu quase por acaso, como um desenvolvimento natural de quem eu era. Quando comecei a trabalhar, muito cedo, nem imaginava outra forma de ganhar dinheiro. Continuo não imaginando.” Quando menciona seus primeiros passos na profissão, lembra do final da década de 1970, em Brasília, quando trabalhou no Correio Braziliense, no Jornal de Brasília e em sucursais da Folha de S. Paulo e do Jornal do Brasil. Mais tarde, de volta ao Rio de Janeiro, motivada pela maternidade, dedicou-se à literatura infantojuvenil – gênero que admira também como leitora. “A minha principal motivação foi ter filhos pequenos. Escrevi para eles. Depois que cresceram, não escrevi mais. Apesar disso, continuo gostando demais de literatura infantojuvenil, e até hoje me lembro do sofrimento que foi esperar o lançamento dos vários volumes do Harry Potter, que, por acaso, li assim que foi lançado na Inglaterra.” Cora encontra prazer no dia a dia das redações quando se dedica às
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colunas de opinião. A imagem do jornalista agitado, ansiando por um furo ou uma entrevista exclusiva, não serve a ela como rotina ideal – ou seja, ela não se considera uma repórter, função na qual pouco atuou. “Não sou boa de entrevistas, nem tenho a intuição que o bom repórter deve ter. Brinco com os meus colegas dizendo que, quando uma notícia vem na minha direção, fico apavorada. Eu gosto mesmo é de observar o mundo e de contar o que eu vi, gosto de contar histórias.” Os relatos e pesquisas de Rónai passaram a receber maior atenção do grande público quando a emergente computação dos anos 1980 surgiu na vida da jornalista. Embora não pudesse prever tudo que a tecnologia proporcionaria à realidade contemporânea, Rónai percebeu um grande potencial nos eletrônicos que começavam a ser lançados em um momento em que pouca atenção era dada ao tema, principalmente no campo jornalístico brasileiro. Então, ela decidiu se aprofundar por conta própria. Lançou, no JB, em 1987, a primeira coluna sobre computação da grande imprensa brasileira, chamada Circuito Integrado. “Comprei um computador em 1987 e não encontrava nada para ler sobre o assunto nos jornais de então. Já que ninguém escrevia, pronto, comecei eu a escrever. Fiquei fascinada com aquela máquina e com as possibilidades infinitas que ela – já então! – apontava. Mas mentiria se dissesse que previa tudo o que ia acontecer, e sobretudo a velocidade
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com que tudo aconteceu – e ainda está acontecendo.” Seguindo seu instinto pioneiro, Rónai foi também a primeira jornalista brasileira a criar e alimentar um blog, o internetc., no qual experimentou também a fotografia digital como uma forma de comunicação. Mais tarde, publicaria o livro Fala foto (2006), primeiro livro de fotografias de celular no mundo. “Acho que o internetc. estabeleceu a forma como escrevemos sobre tecnologia. Ele era inteiramente diferente do resto do jornal – muito ousado e coloquial, com muita primeira pessoa e sem compromisso com a forma ‘clássica’ do texto jornalístico impessoal da época. Como ninguém da redação lia o caderno, nós podíamos, a rigor, fazer o que bem quiséssemos. Acho que, de vez
em quando, um chefe ou outro devia ler e imaginar ‘esses caras são malucos, mas informática é esquisito mesmo’. A experiência pessoal era o que norteava o caderninho e é, ao que me parece, o que norteia hoje o jornalismo digital como um todo.” Apesar de se dedicar muito à escrita, e talvez até mesmo por isso, Cora nunca abandonou a leitura. A indicação da obra deste mês é fruto desse hábito. Seu interesse pelo livro surgiu de forma inesperada: a protagonista de The underground railroad: os caminhos para a liberdade também se chama Cora. A coincidência suscitou uma curiosidade quanto ao destino de sua xará. Rónai, entretanto, foi surpreendida pela prosa de Colson Whitehead e pela importância ainda relevante do tema.
“Seu principal trunfo é contar de forma eletrizante uma história inesquecível. Já se escreveram vários outros romances sobre fugas de escravos, alguns muito bons, mas The underground railroad: os caminhos para a liberdade é único no brilho, na sua mistura de gêneros e, sobretudo, no realismo mágico. Transformar a metáfora da ferrovia subterrânea em realidade foi uma ideia louca e maravilhosamente bem-sucedida; se a estação final daquele trem fosse Macondo, eu acharia perfeitamente natural.”
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U O livro indicado
The underground railroad: os caminhos para a liberdade Colson Whitehead havia publicado cinco romances e dois livros de não ficção bastante celebrados antes de enfrentar o tema que o atormentou por muito tempo. Embora sua boa reputação entre leitores e críticos estivesse próxima da unanimidade, ele pensava não ser capaz de escrever sobre a escravidão, um assunto tão desafiador. Whitehead precisaria, para todos os efeitos, ser um “escritor melhor”. Romance após romance, a pergunta retornava, invariável: “Estou pronto?”, mas a negativa perdurou por mais de quinze anos. A primeira vez em que a ideia lhe surgiu foi enquanto finalizava seu segundo romance, John Henry Days (2001), que entrelaça a vida de um jornalista em crise e a história de John Henry, herói negro folclórico que, com seu martelo, abria caminho entre rochas para a instalação de trilhos nos Estados Unidos do final do século XIX. Deitado no sofá, um certo dia, Colson lembrou-se da infância e da conversa com um professor de colégio sobre a histórica expressão underground railroad – algo como “ferrovia subterrânea”, imaginada pelo menino de forma literal. O professor explicou que o termo era usado, na verdade, para designar a rede clandestina de colaboradores abolicionistas que ajudavam na fuga de escravos por meio de um sistema de esconderijos e postos de assistência, envolvendo trilhas, cavalos, barcos e trens. A reminiscência despertou um grande fascínio no escritor – como
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seria um mundo no qual esses trilhos realmente existissem? O tema da escravidão, no entanto, deixava-o inseguro. Apesar de parecer uma ideia extraordinária, o enredo deveria esperar. E então ele continuou com os outros livros.
comparada a autores consagrados como Toni Morrison e Ishmael Reed. Whitehead faz referência ao trabalho dos romancistas intelectuais de origem africana, como Jean Toomer e seu livro Cane (1923), cujas raízes remetem ao período conhecido como “Renascimento do Harlem”.
Whitehead é um rebento de Nova York: veio ao mundo em 1969, no Brooklyn, mas cresceu em MaEmbora sua escrita mantenha um nhattan, onde ainda reside. Filho padrão de excelência, tecnicamende dois empreendedores bem-sute engenhosa e repleta de referêncedidos, foi estudante de escola cias consagradas, seu estilo é mais particular e veranista de Hampbem categorizado como imprevisítons, espécie de colônia de férias vel. Whitehead cansa rápido da esde celebridades e americanos ricos. trutura de seus livros: se acabou de Circulando em um elaborar uma narterritório de raro rativa em primeira O autor privilégio, espepessoa, provavelcialmente para mente experimenuma família negra tará a terceira em naquele períobreve. O mesmo do, conviveu com vale para as esolhares de estratruturas narratinheza – os pais de vas, os temas e até seus amigos brana dosagem do hucos suspeitavam mor. O exercício que ele e seu irmão fossem prínempregado é, entretanto, sempre o cipes africanos. Experiências tão mesmo: estabelecer e cumprir mesingulares nas mãos de um escritor tas. Oito páginas por semana coscriativo como Whitehead, por sortumam ser suficientes para conte, tornam-se arte: o romance de fortá-lo com a sensação de dever formação Sag Harbor foi publicado (um pouco mais) cumprido. em 2009 e inspirado nas férias de verão de sua juventude. Com esse A disciplina que acelerou a produlivro, passava a explorar as metividade de Whitehead não existia, mórias afetivas e dava um tempo entretanto, nos tempos universitápara os temas mais pesados e para rios de Harvard, período em que se as críticas sociais que geralmente tornou um jovem rebelde e definipredominaram em seus romances. tivamente fascinado por literatura. “Eu não era um estudante partiÀ exceção de Sag Harbor, sua ficcularmente ambicioso. Eu jogava ção é posicionada por críticos cartas. Pôquer e bridge. Mas foi na no campo do realismo mágico e universidade que encontrei pela
Colson Whitehead
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primeira vez James Joyce e Thomas Pynchon e um monte de grandes livros que ainda são referências para mim em termos de inspiração e estrutura”, contou, em entrevista ao jornal britânico The Guardian. Com a graduação em Literatura Inglesa, Whitehead dividiu seu tempo entre escrever para periódicos – resenhas, ensaios e textos de não ficção seus apareceram no The New York Times, The New Yorker, Granta e Harper’s – e, quando possível, dedicar-se a um romance. A estreia veio com A Intuicionista (1998), uma empolgante mistura de noir com fantasia em uma fábula alegórica de uma inspetora de elevadores na Nova York pré-direitos civis. Depois de publicar os primeiros e bem recebidos romances, Whitehead voltou-se a outras duas paixões: Nova York e a atividade jornalística. The Colossus of New York (2003), incursão do autor na não ficção, explora a história e a energia da cidade que nunca dorme por meio de diversificadas facetas, reflexões, vozes, paisagens, moradores e memórias pessoais.
Outras publicações que confirmam seu estilo versátil são Apex Hides the Hurt (2006), uma sátira sobre identidade, cultura e a indústria de band-aids, Zone one (2011), que retrata um apocalipse zumbi em Nova York, e The noble hustle Poker, beef jerky and death (2014), uma hilária sociologia do pôquer. Em 2015 chegou, então, o momento de enfrentar a ferrovia. Whitehead, que, à época, começara a escrever um outro romance, ouviu de sua esposa: "Eu não quero dizer que sua ideia [de escrever] sobre um escritor do Brooklyn passando por uma crise de meia idade seja estúpida, mas esse livro sobre a ferrovia subterrânea me soa incrível". Constatar que estava escrevendo em uma eterna zona de conforto mudou sua percepção quanto à ideia até então rejeitada: “Eu a deixei por tantos anos que parecia uma ideia assustadora – aquela que mais assusta você é aquela que você deveria fazer, e não o livro que você sabe que deveria fazer. Então, eu comecei a pesquisar”. Em 2016, The underground railroad: os caminhos para a liberdade foi publicado.
“The underground railroad entra para o panteão dos grandes romances americanos... Uma fantástica lembrança do que a boa literatura deveria fazer: abrir-nos os olhos, desafiar-nos e nos deixar transformados ao fim.” Revista Esquire
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O cenário são os Estados Unidos de meados de 1850, quando a escravidão ainda era legal na metade sul do país. Em foco, está a história de uma jovem de nome Cora, que passara seus quinze anos de vida – pelos seus cálculos, pois os escravos não têm direito ao próprio passado – em uma fazenda de algodão no estado da Geórgia, propriedade da rica família branca Randall.
Dorothy Hong
Cora herdou um pequeno pedaço de terra, seu único espaço relativamente particular seguindo o conceito de “posse” para um escravo, da mãe Mabel, que, por sua vez, escapara quando a filha ainda era pequena – sendo a única fugitiva bem-sucedida de toda a história
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da fazenda. Como uma reação ao acúmulo de experiências e sentimentos insuportáveis – o rancor que sente pela mãe, a crueldade e as punições dos fazendeiros brancos, a violência física e psicológica entre os escravos e a privação da liberdade –, Cora decide fugir com um jovem recém-chegado de outra fazenda, letrado e ambicioso, que tem a intenção de levá-la consigo, como um amuleto que carregaria uma sorte ancestral. É a partir desse momento que se desenrola a jornada da menina, a começar pela descoberta das – aqui literais – ferrovias subterrâneas e do grupo de indivíduos brancos dispostos a ajudar na liberta-
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ção de escravos foragidos. Colson Whitehead transforma os estados americanos em diferentes universos políticos, definindo muito bem a relação com a escravidão e o negro. Entre os elementos da América racista que o autor pontua estão museus sobre a África e a escravidão “para branco ver”, ladrões de cadáveres, blackface (o uso, por pessoas brancas, de pinturas pretas no rosto a fim de satirizar a população negra), conceitos eugenistas e métodos medicinais criminosos – nem todos são contemporâneos à época retratada, mas Whitehead permite-se a distorção temporal tendo em vista a premissa fantástica que sustenta a obra. A história de é alternada com introduções de outros personagens envolvidos na trama, como o incansável caçador de escravos Ridgeway, cuja única falha na perversa carreira foi nunca encontrar Mabel. Entre os capítulos, encontramos imagens de anúncios classificados reais do século XIX, contendo informações sobre escravos fugidos – fruto de extensas pesquisas do escritor. “Eu gosto de ser como um mímico quando estou escrevendo. Mas, por vezes, você não consegue competir com o documento histórico real.” Outras referências foram indispensáveis para a pesquisa de Whitehead, como a obra Incidents in the life of a slave girl (1861), de Harriet Jacobs, um relato autobiográfico de uma escrava fugitiva, e diversas histórias orais de antigos escravos reunidas pela agência americana
Works Progress Administration nos anos 1930. O romance que você está recebendo encabeçou praticamente todas as listas de melhores livros de 2016, incluindo a do ex-presidente americano Barack Obama e, de quebra, foi finalista do Man Booker Prize e vencedor de diversos outros prêmios – entre eles, o Pulitzer e o National Book Award. A apresentadora Oprah Winfrey, uma das maiores influenciadoras americanas da atualidade, escolheu o livro para seu clube de leituras, e Whitehead tornou-se assunto e atração de inúmeros programas de televisão. Em quase todos, frisou a importância da paternidade – ele é pai de duas meninas – para escrever a obra e estabelecer uma real empatia com seus personagens, ainda mais emblemática considerando-se o tema e os personagens do livro – uma das práticas mais comuns do período escravocrata era separar famílias e destruir suas histórias. The underground railroad: os caminhos para a liberdade é uma obra impactante e provocativa. Mexe com as expectativas, ao mesmo tempo em que não deixa escapar a atenção de seu leitor. Colson Whitehead inspirou-se no realismo mágico para construir seus Estados Unidos. O mais impressionante, entretanto, é a certeza de que a violência, intolerância e brutalidade racistas retratadas estão mais distantes da ficção do que da história da humanidade.
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CAMINHOS e d a d r e b i l a d Embora o caminho percorrido pela personagem Cora, traçado no
mapa no interior dessas páginas, seja fictício, as cidades por onde ela passou estão ligadas ao que os americanos chamavam de underground railroad. Os lugares apresentados a seguir foram pontos secretos de fuga dos escravos rumo à liberdade nos Estados Unidos do século XIX.
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1 A primeira igreja Batista africana, na GEÓRGIA (GA), era usada como ponto de parada seguro para os escravos em fuga. Tanto as imagens presentes no teto quanto nos buracos do chão eram símbolos de que o espaço era protegido, pois eram desenhados com motivos africanos.
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2 Na CAROLINA DO SUL (SC) era possível pegar um barco na costa de Charleston e partir para Nova York. Dentre as diferentes rotas que os escravos realizavam em fuga, algumas delas eram marítimas e nem todas dirigiam-se ao Norte – também podiam levá-los ao México e Caribe.
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Guilford College é uma faculdade localizada na CAROLINA DO NORTE (NC), fundada em 1837 por membros quakers, que em sua maioria eram abolicionistas. Acredita-se que uma das árvores do jardim universitário, a de tulipas, era usada como ponto de encontro dos escravos que fugiam por aquela rota.
4 A casa de Jacob Burkle, situada em Memphis, TENNESSEE (TN), serviu como refúgio para escravos que fugiam para o Norte. Embora sua autenticidade ainda seja debatida, a casa esteve muito presente na tradição oral da underground railroad.
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5 Levi Coffin é considerado o “Presidente da Underground Railroad”. Abolicionista, empresário e praticante da religião quaker, estima-se que ele tenha ajudado cerca de três mil escravos que teriam passado por sua casa e de sua mulher, Catherine White Coffin, em INDIANA (IN).
6 Harriet Tubman fugiu aos 27 anos, em 1849, e ficou conhecida como “Moisés Americana” por auxiliar centenas de escravos a chegarem ao CANADÁ. Em uma década, estima-se que a militante abolicionista e feminista realizou dezenove viagens para guiar familiares e amigos em direção à liberdade. Em 2020, quando o direito ao voto das mulheres completará 100 anos nos Estados Unidades, Harriet será a primeira mulher negra a figurar na nota de 20 dólares.
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ECOS DA LEITURA
Memória
cinematográfica
O longa Race to freedom: the underground railroad, de 1994, foi dirigido por Don McBrearty e conta a história de Thomas (Courtney B. Vance) e Sarah (Janet Bailey). Escravos em uma plantação na Carolina do Norte, a dupla decide fugir e traça caminhos que remontam àqueles que encontramos nas páginas de The underground railroad: os caminhos para a liberdade.
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12 anos de escravidão (2013) é uma adaptação da autobiografia de Solomon Northup, um negro nascido livre em Nova York, mas sequestrado e vendido como escravo em Washington. O filme foi indicado em nove categorias do Oscar e venceu em três: melhor filme, melhor atriz coadjuvante – Lupita Nyong’o – e melhor roteiro adaptado.
Em 1997, Steven Spielberg dirigiu Amistad, roteiro de drama histórico escrito por David Franzoni. O longa, baseado em fatos verídicos, acompanha a história de um grupo de serra-leonenses a bordo do navio La amistad, que desembarca nos Estados Unidos, onde enfrentam um longo processo de luta pela liberdade.
Django livre (2012) foi escrito e dirigido por Quentin Tarantino. O filme se passa no Sul dos Estados Unidos, dois anos antes da Guerra de Secessão, e aborda a história de Django (Jamie Foxx), um escravo liberto que encontra o caçador de recompensas Dr. King Schultz (Christoph Waltz). Tarantino venceu o Oscar de melhor roteiro original e Waltz, de melhor ator coadjuvante.
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ECOS DA LEITURA
O clube de Oprah Em entrevista ao periódico britânico The Guardian, Colson Whitehead revelou um dos momentos mais emblemáticos de sua carreira: “Eu tinha uma leitura dramática em Duke, e meu avião tocou o solo. Sempre dou uma checada no meu celular tão logo ouço os motores reverterem. Havia uma ligação perdida da minha agente. Eu liguei de volta, e ela disse: ‘Oprah’. Eu disse: ‘Feche a porta da frente’, porque eu não queria que desse azar. Ela disse: ‘Clube de livros da Oprah’. Eu disse: ‘Filho da p...’. As pessoas me olhavam, porque isso aconteceu no avião”. Whitehead ainda teve que esconder por quatro meses que seu livro seria indicado por uma das maiores celebridades americanas da atualidade. Quando se considera o lado comercial, ter sido escolhido pela apresentadora Oprah Winfrey como indicação para o Oprah’s Book Club 2.0 foi o maior feito de The underground railroad. A versão 2.0 é uma reedição do primeiro clube de livros de uma das maiores filantropas americanas, criado em 1996 como um segmento de seu talk show. Depois de quinze anos e setenta livros indicados, a iniciativa recebeu um foco maior em mídias e plataformas digitais, como o Facebook e o Twitter. Mesmo sendo um escritor de prestígio, a notícia de que seu livro seria indicado por Winfrey teve um gosto especial para Colson Whitehead. Estar no clube costuma catapultar a fama de um livro e torná-lo um best-seller instantâneo. Ao lado, listamos outras importantes obras indicadas por Oprah Winfrey ao longo dos anos.
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ECOS DA LEITURA
O som e a fúria (1929), de William Faulkner
O olho mais azul (1970),
Livre (2012), de Cheryl Strayed
de Toni Morrison
Já enviado pela TAG!
Amor nos tempos do cólera (1985), de Gabriel García Márquez
A estrada (2006), de Cormac McCarthy
As doze tribos de Hattie (2012), de Ayana Mathis
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ECOS DA LEITURA
A LISTA de Obama “Desde Lincoln, não houve um presidente fundamentalmente formado – em sua vida, convicções e visão de mundo – pela leitura e pela escrita como Barack Obama.” Foi assim que o jornal The New York Times definiu o homem que, entre 2009 e 2017, ocupou o cargo de presidente dos Estados Unidos. Durante seu mandato, Obama fez questão de recomendar diversos livros de gêneros e públicos variados. Popular como poucos presidentes americanos já foram, mesmo depois de deixar a Casa Branca, ele seguiu publicando listas de livros – e playlists – favoritos nas redes sociais, sempre com um respaldo gigantesco. Em 2016, a obra de Colson Whitehead figurou na lista de leituras de verão do então presidente. Confira, ao lado, as outras obras sugeridas por Obama no mesmo ano.
“[Uma] lembrança das maneiras pelas quais a dor da escravidão transmite-se ao longo de gerações, não apenas em maneiras visíveis, mas como ela transforma mentes e corações.” Barack Obama, sobre The underground railroad: os caminhos para a liberdade
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ECOS DA LEITURA
C O L S O N
W H I T E H E A D
Cora é uma escrava em uma plantação de algodão de Geórgia, na década de 1800. Ela não conhece outra vida, mas diferente de seus companheiros, ela ousa sonhar com a liberdade. Quando Caesar, um escravo recém-chegado da Virgínia, conta a ela sobre a ferrovia subterrânea — um caminho de fuga do sul para o norte do país — eles decidem correr o risco e escapar. Mas seus planos não saem como o esperado e Cora mata um homem branco que tenta capturá-la, transformando uma busca por escravos em uma verdadeira caçada. Na concepção fabulosa de Colson Whitehead, a ferroria subterrânea não é uma metáfora, mas uma rede secreta de trilhos, condutores e túneis intricados, espalhados pelo sul dos Estados Unidos. Caminhos onde Cora — assim como o protagonista de As viagens de Gulliver, trava uma batalha em uma jornada no tempo e espaço para ser — finalmente — livre.
O S C A M I N H O S PA R A A L I B E R D A D E
Dias bárbaros (2015), de William Finnegan
The underground railroad: os caminhos para a liberdade (2016),
F de Falcão (2016), de Helen Macdonald
de Colson Whitehead
A garota no trem (2015),
Seveneves (2015),
de Paula Hawkins
de Neal Stephenson
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LEIA DEPOIS DE LER
SPOILER! Este espaço foi pensado para você retornar à leitura da revista depois de ter terminado o livro. Aqui, mensalmente, um dos colunistas do nosso blog - taglivros.com.br/blog - irá produzir um texto especialmente para você analisar de forma mais complexa a obra.
A METÁFORA VIVA DE WHITEHEAD Sérgio Rodrigues Tomar uma metáfora ao pé da letra e explorar as consequências dessa ousadia é uma operação clássica no repertório da arte ficcional. Kafka é provavelmente o escritor que levou o recurso ao maior grau de depuração: quando Gregor Samsa acorda de sonhos intranquilos no início de A metamorfose, ele não apenas se sente como um inseto repulsivo, desadaptado à rotina dos homens e desprezado por todos – o que poderia ocorrer numa narrativa realista sem maiores sustos. Nada disso: a linguagem figurada vira literal e, junto com o monstruoso Samsa, nasce um monstro da literatura. Sem recorrer a doses tão fortes da droga quanto Kafka, literalizar metáforas é um recurso relativamente comum em narrativas que optam por uma ruptura menos drástica com o realismo. Em meu romance O Drible, a proverbial “magia do futebol brasileiro” dos locutores de rádio se materializa na figura de Peralvo, um craque dotado de certos poderes mediúnicos que emprega no campo de jogo. Isso não impede o livro de cumprir uma série de re-
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quisitos de verossimilhança e adesão a fatos históricos. É semelhante o papel que a metáfora viva desempenha no ótimo The underground railroad: os caminhos para a liberdade, de Colson Whitehead, vencedor do prêmio Pulitzer de 2017. No caso, a linguagem figurada tomada ao pé da letra é a que aparece no título original. Underground railroad (ferrovia subterrânea) é uma expressão histórica do inglês americano. Designa uma malha de rotas clandestinas sustentada por pessoas e organizações que, correndo imenso risco, patrocinaram a fuga de milhares de escravos para o Norte livre, o Canadá e o México. Nunca houve nem poderia ter havido uma ferrovia subterrânea propriamente dita riscando o país. No romance de Whitehead, porém, ela se materializa diante do leitor de forma arrepiante quando Cora e Caesar, recém-fugidos da sadicamente administrada
LEIA DEPOIS DE LER
fazenda Randall, na Geórgia, iniciam sua odisseia cheia de peripécias e contratempos em busca de uma liberdade que, como eles, também se revelará sempre fugidia:
"Dois trilhos de aço percorriam toda a extensão visível do túnel, presos ao chão por dormentes de madeira. O aço corria provavelmente para o sul e para o norte, brotando de uma fonte inconcebível e levando para um milagroso ponto final. Alguém fora cuidadoso a ponto de colocar um pequeno banco na plataforma. Cora se sentiu tonta e sentou". Na moldura de uma obra basicamente realista, informada pela história real das perversas relações sociais – entre brancos e negros, negros e negros, brancos e brancos – que aleijam as sociedades escravagistas, deixando-lhes sequelas difíceis de corrigir, a metáfora viva acrescenta à narrativa de Whitehead uma dimensão onírica ou mitológica. É ela que leva um conjunto de dados históricos bastante conhecidos, já explorados ficcionalmente em muitos livros, a reverberar de modo original. Funciona também como uma espécie de licença poética primitiva: fique o leitor avisado de que, depois disso, o autor poderá tomar outras liberdades com seu material em busca de sínteses e iluminações que conduzam a uma compreensão histórica superior àquela que os fatos crus nos permitem obter. A boa ficção mente para melhor dizer a verdade. 27
ESPAÇO DO ASSOCIADO
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Faça você mesmo Imagine a seguinte situação: a caixinha da TAG chegou na sua casa. Alegria, euforia, curiosidade. Você abre o kit, lê a mensagem no verso da revista e do livro, admira o marcador, apaixona-se pelos itens, até que percebe a caixinha de papelão sobrando ali, vazia, sem utilidade… Não precisa ser assim! As caixinhas podem e devem ser muito úteis.
Alguns meses atrás, divulgamos o vídeo da Karina Milanesi – @dikadaka – que fez um trabalho muito bacana apresentando diferentes
funcionalidades para a caixinha. Em seguida, desafiamos os associados a usar a própria imaginação. Desde então, recebemos fotos com ótimas ideias – ao lado, estão algumas delas, compartilhadas no aplicativo da TAG. Esperamos que as fotos e o vídeo inspirem você também! São cerca de duas toneladas de caixinhas que enviamos todos os meses. Contamos com todos os associados para darmos um destino consciente a elas!
goo.gl/RXMaJZ
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ESPAÇO DO ASSOCIADO
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A PRÓXIMA INDICAÇÃO
O curador de maio Milton Hatoum
O livro de maio virá sob a chancela de um dos maiores escritores contemporâneos do nosso país: o manauense Milton Hatoum, cujas vendas de livros ultrapassam a marca de 200 mil no Brasil e receberam traduções para mais de oito países. Hatoum havia participado da TAG com a releitura do conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis, que figurou no livro Uns e outros – contos espelhados, livro escrito especialmente para nosso aniversário de três anos, em julho de 2017.
“Trata-se de uma complexa sondagem na alma humana, que é também uma reflexão sobre o colonialismo britânico na África e uma crítica implacável aos governantes do Sudão pós-colonial.”
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Na obra indicada por Hatoum, um narrador não identificado conta a história de um jovem sudanês que, órfão de pai, abandona a mãe e parte em direção à Europa, onde um extraordinário êxito profissional o espera. Sua condição de expatriado e a visão europeia sobre a África, no entanto, serão fontes de conflitos e decepções para o protagonista. Com esse romance, seu autor, também de origem sudanesa, ganhou a atenção da crítica literária mundial.
LIVRo EXCLUSIVO ESCRITO PARA A TAG Acesse loja.taglivros.com.br e apaixone-se.
“Quando olho para a História, vejo horas de liberdade e séculos de escravidão.” – Joseph Joubert