PAROUSIA

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PAROUSIA

Juli達o Sarmento



www.casino-povoa.com



A atribuição do Prémio de Artes Casino da Póvoa 2013 a Julião Sarmento foi o argumento para a realização da exposição que a Cooperativa Árvore agora apresenta e na qual se recuperam obras muito pouco conhecidas do público das artes visuais. O facto de esta recuperação acontecer na Árvore, no ano em que esta cooperativa comemora 50 anos, e onde o artista apresentou originalmente outras obras do período agora focado, é motivo redobrado de satisfação. A exposição permite também confirmar o percurso e o contributo do artista para a arte em Portugal, não só pelo significado da sua obra mas também pelo exemplo de construção de uma carreira que desde há muito se consagrou internacionalmente. É, pois, com grande satisfação que o Casino da Póvoa e a Cooperativa Árvore proporcionam ao público, aos admiradores e aos interessados no percurso de Julião Sarmento, a restituição de um momento que se afirma tanto pelo seu valor histórico quanto pelo que significa no âmbito dos debates contemporâneos.

The awarding of the 2013 Casino da Póvoa Arts Prize to Julião Sarmento provided the justification for staging the exhibition that Cooperativa Árvore is now presenting and which revisits works that are scarcely known to the art-viewing public. It is all the more satisfying that this event is taking place at Árvore in the year of its fiftieth anniversary and in the venue where the artist originally presented other works dating from the period covered by this exhibition. Parousia adds a somewhat forgotten perspective on the journey undertaken by the artist and his contribution to art in Portugal, which he has enriched not only through the meaning of his work but also through his success in building a career that has long enjoyed international renown. It is therefore with great satisfaction that Casino da Póvoa and Cooperativa Árvore are presenting to the public and to those who admire and follow Julião Sarmento’s work a moment of his career that is significant not only for its historic value but also for what it means in the context of contemporary debates.

dionísio vinagre amândio secca

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apresentação

preface

Na viragem para a década de 1980, o trabalho de Julião Sarmento sofreu uma inflexão aparentemente súbita. Rompendo com o pendor conceptual das experiências que o ocuparam durante toda a década de 1970, e que se materializaram em obras fotográficas, textuais ou fílmicas, o período seguinte vê surgir na sua prática uma inesperada derivação pictórica. De forma porventura surpreendente, as novas pinturas contrapunham à toada analítica e processual que anteriormente vigorara todo um outro programa assente no recurso a imagens e signos heteróclitos que o artista fazia conviver num mesmo plano visual, e cujos encontros produziam campos latos de significação elíptica. De entre todas as rupturas que este novo ciclo instituiu, talvez a mais inesperada se encontrasse no modo absolutamente desassombrado com que Sarmento se muniu de uma ampla panóplia de soluções formais para dar corpo a obras cujas cargas matérica, expressiva, háptica e composicional eram largamente insuspeitas. Muito mais do que um capricho repentino ou uma súbita inspiração, este novo período do trabalho de Sarmento foi preparado por um conjunto importante de obras que são, no entanto, praticamente desconhecidas do

At the turn of the 1980s, Julião Sarmento’s work apparently underwent a sudden transformation. In a break with the conceptual approach that he had taken throughout the 1970s and which manifested itself in photographic, film or text works, this period saw his work take an unexpected pictorial turn. In a way that was perhaps surprising, the new paintings countered the analytic and processual approach that had previously driven an entirely different programme based on the use of heteroclite images and signs that the artist brought together on the same visual plane, their encounter producing extensive fields of elliptical meaning. Of all the departures ushered in by this new period, perhaps the most unexpected was Sarmento’s totally uninhibited adoption of a vast array of formal solutions to create works whose material, expressive, haptic and compositional charge was largely unforeseen. This new period in Sarmento’s work was much more than a passing whim or the result of sudden inspiration. The ground had been prepared by an important group of works which are, nonetheless, practically unknown to the public. They are unknown for various reasons, which are related not only to the limitations which Portuguese historiography has struggled with in terms of retaining and transmitting artistic memory

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público. As razões para esse desconhecimento são variadas e prendem-se não só com os constrangimentos com que a historiografia portuguesa se debateu no que à fixação e circulação da memória artística diz respeito mas, sobretudo, com o facto de algumas destas peças terem sido destruídas num incêndio que atingiu a Galeria Nacional de Belém, onde estavam depositadas, em Agosto de 1981. Em Parousia apresentam-se três desses projectos, datados do final dos anos de 1970, e reconstruídos o mais rigorosamente possível sob supervisão do artista. Neles poderemos encontrar sinais claros do modo como a referida transição para a pintura é pautada por um conjunto de acções de pendor experimental e dominada por um espírito insurgente face aos espartilhos dos processos analíticos que norteavam a prática conceptual do artista. Embora não abdique dos interesses e das problemáticas que até então haviam governado o seu trabalho, Julião Sarmento reformula os métodos com que os vinha operacionalizando, incorporando progressivamente a manufactura, o acaso, o acidente, a surpresa, o imponderado, a contingência e mesmo o improviso na construção de obras orgânicas que perscrutam e testam os limites do encontro entre a pintura,

but, above all, because some of these pieces were destroyed in a fire which broke out at the Galeria Nacional de Belém, where they were deposited, in August 1981. In Parousia three of these projects are presented, dating from the end of the 1970s, and reconstructed as closely as possible under the supervision of the artist. In them we see clear signs of the way that the transition to painting we have referred to is informed by a set of actions of an experimental nature and dominated by an urge to rebel against the constraints of the analytical processes which had governed the artist’s conceptual practice. Without abandoning the interests and issues that had informed his work up to this point, Julião Sarmento reformulated his methods of dealing with them, gradually incorporating manufacture, chance, accidents, surprise, contingent elements and even improvisation into the construction of organic objects which investigate and test the limits of the encounter between painting, the object and a broad and renewed concept of spatiality. Fundamentally, and as the interview included in this catalogue makes clear, Julião Sarmento’s aim was not to reinvent himself artistically with these works. In a very different way, he was attempting to expand his sphere of activity, while simultaneously reinforcing its singularity, since

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o objecto e uma ampla e renovada noção de espacialidade. No fundo, e como se depreende da conversa que incluímos neste catálogo, com estas obras Julião Sarmento não procurava reinventar o seu universo artístico. De modo bem diferente, procurava, sim, ampliar o seu campo de acção, reforçando, simultaneamente, a sua singularidade. Porque as rupturas formais que estas obras tão claramente assinalam não deixam de sublinhar duas características transversais a todo o percurso do artista: por um lado, uma tendência para a síntese e para a economia de meios – dados que viriam a ganhar maior evidência alguns anos mais tarde, particularmente do início da década de 1990 em diante – e, por outro, a condição precária da maioria das suas estruturas, cuja natureza material impõe um regime de intimidade a partir do qual são estabelecidos os parâmetros da experiência artística e se encontra a distância justa para o olhar do espectador. Parousia nasceu de uma incursão que se demorou pelos arquivos profissionais de Julião Sarmento. Criteriosamente organizados e plenos de informação relativa a todo o seu percurso, estes arquivos não só permitem mapear as transformações que ele conheceu

the formal ruptures so clearly signalled by these works also underline two characteristics which run through all of the artist’s work. These were, on the one hand, a tendency towards synthesis and an economy of means – factors which would become more apparent some years later, particularly from the beginning of the 1990s onwards – and, on the other, the precarious quality of the majority of his structures, whose material nature imposes a state of intimacy which sets the parameters of the artistic experience and determines the appropriate distance for the viewer’s gaze. Parousia came about through a prolonged investigation of Julião Sarmento’s professional archives. Carefully organised and full of information relating to his artistic development, these archives not only made it possible to map the transformations he has undergone from the 1960s until the present day, but also reveal the pieces that have disappeared through chance or mishap. In order to offer visitors their own encounter with these archives, a booklet is being published to accompany the exhibition, containing facsimile copies of the contents of the three files in which the artist kept the set of photographic documentation, studies, planning drawings and graphic materials that made it

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desde a década de 1960 até aos nossos dias, mas também sinalizar os apagamentos que as contingências e os acidentes se encarregaram de produzir. Procurando oferecer ao público a experiência do encontro com estes arquivos, a exposição será acompanhada pela edição de um volume que reúne, em formato fac-símile, o conteúdo das três pastas de arquivo onde o artista guardou o conjunto de documentação fotográfica, estudos, desenhos de projecto e materiais gráficos através do qual foi possível reconstituir os projetos agora apresentados. Parte desses materiais encontram também lugar neste catálogo, permitindo fixar uma memória mais ampla e completa deste particular momento da produção de Julião Sarmento. Gostariamos de deixar expresso o nosso agradecimento a Eng. Amândio Secca e Dr. Dionísio Vinagre, respectivamente Presidente da Árvore – Cooperativa de Actividades Artísticas e Administrador do Casino da Póvoa, bem como às suas equipas que viabilizaram e produziram esta exposição. Uma menção particular é devida a Rui Silvestre, Director Executivo da Árvore, cujo empenho em todas as fases deste projecto foi determinante para a sua concretização. Importa reconhecer

possible to recreate the projects that are presented here. Some of these materials have also been included in this catalogue, thereby establishing a more extensive and complete record of this particular moment in Julião Sarmento’s work. We would like to express our gratitude to Eng. Amândio Secca, the President of Árvore – Cooperativa de Actividades Artísticas and Dr. Dionísio Vinagre, Director of Póvoa Casino, as well as their teams, for making this exhibition possible. We owe special thanks to Rui Silvestre, Árvore’s Executive Director, whose commitment to every stage of this project was fundamental to its completion. We also acknowledge the support provided by the artist’s assistants, Ana Anacleto and Romeu Gonçalves in putting together this exhibition, and the contributions made by Rui Vilaça and Roberto Amado, who designed the catalogue and the volume containing the facsimile files, as well as Tiago Cruzeiro Reis, who photographed the exhibition. Finally, we thank João Bonito who diligently undertook the reconstruction of the pieces we now present and, above all, Julião Sarmento, whose enthusiasm and unconditional support have, once more, made a seemingly unlikely project possible.

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ainda o apoio que Ana Anacleto e Romeu Gonçalves, assistentes do artista, concederam a esta exposição, bem como a Rui Vilaça e Roberto Amado que desenharam este catálogo e o volume contendo as pastas de arquivo fac-similadas, e a Tiago Cruzeiro Reis que fotografou a exposição. Finalmente, um agradecimento a João Bonito que se ocupou diligentemente da reconstrução das peças agora apresentadas e, muito especialmente, a Julião Sarmento cujos entusiasmo e incondicional apoio tornaram possível, uma vez mais, um projecto à partida improvável.

bruno marchand

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shelter/abrigo Madeira, lona, cordas, camar玫es e ilh贸s de metal 75 x 451 x 208cm Wood, canvas, ropes, metal hooks and grommets 75 x 451 x 208cm

(1978-2013)









testa Madeira, MDF, tela de linho, pasta de papel, acrílico, arame e fio Dimensões variáveis Wood, MDF, linen canvas, papier maché, acrylic, wire and thread Variable dimensions

(1980-2013)













athenai Duas impressões a jacto de tinta sobre papel baritado montadas em PVC (fotografias), uma impressão a jacto de tinta montada em PVC (texto), acrílico sobre estafe, corda, ferro, arame e buraco na parede Dimensões variáveis Two inkjet prints on Barite paper mounted on PVC (photographs), one inkjet print on Barite paper mounted on PVC (text), acrylic on plaster, rope, iron, wire and hole in the wall Variable dimensions

(1979-2013)









Der Prinz von Homburg (1978) Quatro foto/textos p&b sobre papel colados em cartĂŁo; 49 fotografias a cores sobre papel coladas em cartĂŁo; duas vitrinas de madeira forradas a cetim com vidro acrĂ­lico contendo respectivamente: um ramo de folhas de louro e uma luva de pelica; um pano de cetim bordado 160 x 294,5 cm Four b&w photo/texts on paper mounted on cardboard; 49 colour photographs on paper mounted on cardboard; Two wooden showcases lined with satin, with plexiglass containing: one branch of bay leaves and one leather glove; one embroidered satin cloth 160 x 294,5 cm


a propósito de parousia julião sarmento em conversa com bruno marchand

about parousia julião sarmento in conversation with bruno marchand

Bruno Marchand: Uma das razões para a apresentação desta exposição é a oportunidade que ela configura para visitarmos um período bastante desconhecido da tua produção, nomeadamente a passagem do teu trabalho de base conceptual para o tipo de produção pictórica que te ocupou toda a década de 1980. No final dos anos 1970, e depois de cerca de sete anos a trabalhar quase exclusivamente com fotografia, filme e texto, as tuas obras começam a incorporar elementos visuais estranhos à habitual panóplia de recursos conceptuais. Um exemplo evidente é Der Prinz von Homburg (1978), que, a par de um conjunto lato de fotografias a cores e textos, inclui duas vitrinas, uma luva de pele, folhas de louro e uma echarpe de cetim bordado. De certa forma a introdução deste tipo de elementos vem quebrar a toada analítica e indexical de uma parte muito considerável dos trabalhos anteriores, oferecendo uma crescente dimensão háptica às tuas obras.

Bruno Marchand: One of the reasons for this exhibition is that it allows us to consider a relatively unknown period of your production, namely your transition from work which had a conceptual basis to the type of pictorial production that you were involved in throughout the 1980s. At the end of the 1970s, after working almost exclusively with photography, film and text for nearly seven years, your works began to include visual elements from outside the customary panoply of conceptual resources. An obvious example is Der Prinz von Homburg (1978), which, as well as an extensive collection of colour photographs and texts, includes two vitrines, a leather glove, laurel leaves and an embroidered satin scarf. To an extent, the introduction of such elements broke with the analytic and indexical tone of a large part of your earlier works, imbuing them with an increasingly haptic dimension. Julião Sarmento: More than breaking with this analytic and indexical tone, what interested me at that point was a formal departure from twodimensionality. This desire was already clear in works such as Rosebud (1979), where the impulse for three-dimensionality reached a paroxysmal level. In any case, I never wanted to free myself from the resources that are habitually associated with conceptual practices. Furthermore, I feel I’m the same artist that I was at that point; I feel I have the same concerns, though some of them have become more intense and have evolved, and others less so. Though it might seem gratuitously

Julião Sarmento: Mais do que quebrar essa toada analítica e indexical, o que me interessava na altura era sair formalmente da bidimensionalidade. Essa vontade era já patente em obras como Rosebud (1979), onde o impulso para a tridimensionalidade era levado ao paroxismo. Em todo o caso, eu nunca quis ver-me livre dos recursos que habitualmente se associam às práticas conceptuais. Aliás, eu sinto que sou o mesmo artista que era

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naquela altura; sinto que tenho as mesmas preocupações, ainda que algumas delas se tenham aprofundado e evoluído, outras nem tanto. Embora possa parecer uma provocação gratuita, é com toda a seriedade e convicção que digo que me sinto, e que sempre me senti, um artista conceptual. A prática da pintura é algo que me interessa enquanto espectador; enquanto actor, enquanto criador, a pintura interessa-me apenas tanto quanto outra disciplina qualquer. Todas elas são meios para atingir fins. Nesse sentido, eu não me sinto envolvido na prática da pintura como um pintor no sentido “Richteriano” do termo. Eu recorro à pintura para produzir obras que se inscrevem dentro do quadro alargado das práticas conceptuais.

provocative, it’s in all seriousness and with total conviction that I would say that I see myself, and have always seen myself, as a conceptual artist. Painting is something that interests me as a viewer; as an actor, a creator, painting is no more interesting to me that any other discipline. They are all means to an end. In this respect, I don’t feel involved with the practice of painting as a painter in the ‘Richterian’ sense of the term. I use painting to produce works that fall within the broad framework of conceptual practices.

BM: Mas estás consciente da resistência que esta concepção encontra, sobretudo quando confrontada com a versão “purista” da arte conceptual que a historiografia tende a perpetuar?

JS: Of course I am; and it’s precisely because I’m aware of these obstacles and this resistance that I believe it’s vital to propose a re-evaluation of these phenomena. As far as I’m concerned, I’m increasingly convinced that if we engage in a rereading of the historical beginnings of conceptualism – starting with the proposals of Sol LeWitt and moving on to Joseph Kosuth and Lawrence Weiner – and we look closely at their respective manifestations, we quickly discover that all of their works also resulted in a formal outcome. What’s more, even the ‘nonformalist’ assumptions of what they made, said or stated, are eventually manifested as objects or visual images, meaning that they have a formal importance like everything else. In this respect, all art is conceptual and I don’t feel that I have ever departed from the paths I’ve pursued since the beginning.

BM: But are you conscious of the resistance that this concept encounters, particularly when it comes up against the ‘purist’ version of conceptual art that historiography tends to perpetuate?

JS: Claro que estou; é precisamente por estar consciente desses obstáculos e dessas resistências que julgo ser decisivo propor uma reavaliação desses fenómenos. Pela minha parte, estou cada vez mais convencido de que se fizermos uma releitura dos princípios históricos do conceptualismo – começando nas propostas do Sol LeWitt, passando pelo Joseph Kosuth e pelo Lawrence Weiner – e olharmos com atenção para as suas respectivas concretizações, descobrimos facilmente que nenhuma das suas obras deixou de ter um resultado formal. Inclusivamente, os pressupostos “não-formalistas” daquilo que por eles é feito, dito ou enunciado, acabam por aparecer enquanto objectos ou enquanto

BM: However, you don’t contest the idea that there was an analytical and indexical tone in

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Rosebud (1978) Caixa forrada a espelhos, postes e corda, 19 fotografias p&b, 16 fotocópias emolduradas, seis cartões colados sobre papel e emoldurados, som, circuito de vídeo, plástico, vinil, holofote, plinto e monitor TV pintado Dimensões variadas Box lined with mirrors, posts and rope, 19 b&w photographs, 16 framed photocopies and six framed cards on paper, sound, closed video circuit, plastic, vinyl, spotlight, plinth and painted TV screen Variable dimensions


imagens visuais, o que significa que têm uma importância formal como tudo o resto. Nesse sentido, toda a arte é conceptual e não sinto que me tenha alguma vez desviado dos caminhos que fui trilhando desde o início.

your work which largely disappeared around the 1980s. JS: Deep down, what I was becoming tired of was the overly pragmatic and programmatic aspect of the work I was making. Regardless of what I was planning, I was sure about one thing: the final result wouldn’t deviate one millimetre from what I had planned [laughter]! There was no space for chance, or for discovery, or for what, for me, is even more important – the possibility of being surprised. I soon became aware that without that element of surprise, artistic production became very uninteresting. This was also the reason that the work I started to make at the time moved towards establishing a field of production in which the possibility of surprising myself was a constant reality. Apart from my own desire, the zeitgeist also clearly helped.

BM: Não contestas, contudo, a ideia de que havia uma toada analítica e indexical no teu trabalho que em grande medida se desvanece por altura da passagem para os anos de 1980. JS: No fundo, o que eu já não suportava era o lado demasiadamente pragmático e programático do trabalho que fazia. Independentemente do que projectava, tinha uma certeza: o resultado final não ia desviar-se um milímetro do que havia previsto [risos]! Não havia espaço para o acaso, nem para a descoberta, nem para algo que é, para mim, ainda mais importante – a capacidade de te surpreenderes a ti próprio. Percebi rapidamente que sem esse elemento de surpresa, o trabalho artístico se torna muito pouco interessante. Também por isso, o trabalho que comecei a desenvolver na altura ia no sentido de instituir um campo de produção onde a hipótese de me surpreender a mim mesmo fosse uma realidade constante. Para além desta minha vontade, é óbvio que o espírito do tempo também ajudou muito.

BM: Talking of the spirit of the time, at the very moment that you started to seek out these new challenges, two developments simultaneously occurred in international art: one of them prompted the most orthodox faction of conceptual art to shift towards a critique of media and institutional practices, with their emphasis on issues of power and identity; the other led to the emergence of a completely new generation of artists who implemented the so-called ‘return to painting’ through a break with the modernist idea of progress and with the formalist notion of artistic practice as an ontological and disciplinary reflection.

BM: Por falar em espírito do tempo, precisamente na altura em que começas a procurar estes novos desafios, tiveram lugar dois movimentos simultâneos na arte internacional: um deles promoveu a deriva da facção mais ortodoxa da arte conceptual na direcção da crítica dos media e das construções institucionais, com as suas ênfases nas questões da identidade e de poder;

JS: The key figure responsible for this situation was Achille Bonito Oliva with his work on the Transavantgarde. Personally, I felt closer to Germany’s so-called Erste Generation, which included artists such as Sigmar Polke, Gerhard

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o outro fez surgir toda uma nova geração de criadores que implementou o chamado “regresso à pintura” através da ruptura com a concepção moderna de progresso e com a noção formalista de prática artística como reflexão ontológica e disciplinar.

Richter, Jörg Immendorff and Anselm Kiefer, and to what authors such as Benjamin Buchloch wrote about these artists (despite the fact that he now says he was never really interested in this generation). The sense of freedom that emanated from the works of the artists of this generation made a great impact on me. I know it seems like a cliché today, but I think what really interested informed artists of my generation was this renewed sense of freedom, this idea that art could be anything that dealt with this freedom to create, unrestricted by dogmas, rules, manifestos or any kind of moral or ideological intention.

JS: O grande responsável por essa situação foi o Achille Bonito Oliva com o seu trabalho em torno da Transavanguardia. Pessoalmente, eu sentia-me mais próximo da chamada Erste Generation alemã, constituída por artistas como Sigmar Polke, Gerhard Richter, Jörg Immendorff ou Anselm Kiefer, e com o que autores como Benjamin Buchloh ia escrevendo sobre estes artistas (embora ele hoje afirme que nunca se interessou verdadeiramente por esta geração). O sentido de liberdade que emanava das obras dos artistas desta geração tinha um tremendo impacto em mim. Sei que hoje parece um cliché, mas julgo que o que verdadeiramente interessou os artistas informados da minha geração foi esse renovado sentido de liberdade, essa noção de que a arte era qualquer coisa que versava sobre essa liberdade de poder fazer, de não estar espartilhado por dogmas, regras, manifestos ou intenções morais e ideológicas de qualquer espécie.

BM: When we think about Shelter two diametrically opposed situations can be detected, in terms of the relationships that the work establishes with the premises of minimalism, for example. On the one hand, the work is the result of an action that totally dispenses with the artistic gesture, in that it is composed of materials that are produced industrially, or that have not been handmade in any way; on the other hand, there is an elementariness and a utilitarian suggestion in this piece that transforms it into a hypothetical functional product. JS: Yes. Shelter was made for an exhibition that I had with Patrick Mohr, a North American sculptor who was in Portugal on a Fulbright fellowship. He was an interesting artist and someone I felt an immediate empathy with. Soon after we met we thought it would be logical to have an exhibition together and since we were both quite involved with the theme of architecture, it seemed to us that this could be a common path for the works that we both devised for the event. The sequence of ideas that led us to the theme of Shelter – which was the title of

BM: No caso de Shelter podem encontrar-se duas situações diametralmente opostas no que respeita às relações que a obra estabelece com as premissas minimalistas, por exemplo. Por um lado, ela é o resultado de uma acção que prescinde totalmente do gesto artístico, no sentido em que é constituída por materiais produzidos industrialmente ou sem recurso a qualquer manufactura; por outro, há uma elementaridade e uma sugestão utilitária

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nesta peça que a transformam num produto hipoteticamente funcional.

the exhibition – was fairly simple: we focused on architecture’s most elementary quality which is precisely the sense of and need for shelter. It was that simple! In the case of the piece that I came up with, and which we are now reinstalling in this exhibition, what I was interested in, as you have mentioned, was using some of the characteristics of minimalism – such as its tendency towards restraint, towards adopting elementary and regular forms, and towards the use of industrially produced materials – to construct a version of the most basic and primitive of architectural solutions: the lean-to. I’m referring to two inclined planes which support each other, forming an angle and thus creating an internal space for shelter. My version of this lean-to structure used not just one but two pairs of planes, unfolding the structure within itself.

JS: Sim. O Shelter aparece no contexto de uma exposição que eu fiz em parceria com o Patrick Mohr, um escultor norte-americano que estava em Portugal com uma bolsa Fullbright. Era um artista interessante e alguém com quem tive uma empatia imediata. Pouco depois de nos conhecermos achámos que fazia sentido fazermos uma exposição em conjunto e uma vez que estávamos ambos bastante envolvidos com a temática da arquitectura, pareceu-nos que esse poderia ser um caminho comum para as obras que cada um de nós projectou para o evento. O encadeamento de ideias que nos levou à temática Shelter/Abrigo – que era o título da exposição – foi bastante simples: centrámo-nos no que há de mais primário na arquitectura e que é, precisamente, o sentido e a necessidade de abrigo. Tão simples quanto isto! No caso da peça que eu projectei, e que agora repomos nesta exposição, o que me interessou foi, como referiste, pegar em algumas das características do minimalismo – nomeadamente a tendência para a contenção, para a adopção de formas elementares e regulares, e para o recurso a materiais produzidos industrialmente – para construir uma versão da mais básica e primordial das soluções arquitectónicas: o chamado “lean to”. Refiro-me a dois planos inclinados que se amparam mutuamente e que, nesse ângulo, criam um espaço interior de abrigo. A minha versão dessa estrutura “lean to” contemplava não apenas um, mas dois pares de planos, desdobrando a estrutura sobre si mesma.

BM: The scale, form and materials that you used place this piece in a limbo between the evocation of a shelter and an actual shelter, transported to the exhibition space. JS: That ambivalent quality was something I aimed for deliberately. The piece worked in the exhibition space but also outside of it. Also, I really wanted to install the piece outdoors but my attempts were always frustrated by its fragility. There is also a photographic sequence that I made of the piece installed on Guincho beach. It was a really quick session, as you can imagine, because the wind destroyed the structure in just over a couple of minutes [laughter]. In any case, installing the piece on the beach must have corresponded to what seemed to me at the time to be a romantic solution for the piece [laughter]. At the same time, taking the work outside was a kind of inversion of the logic associated with the practices of post-minimalism or Land Art.

BM: A escala, a forma e os materiais que usaste situam esta peça num limbo entre

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a evocação de um abrigo e um abrigo, ele mesmo, transposto para a sala de exposição.

As if, by installing the piece outside, I was making it function like the reverse of one of Robert Smithson’s ‘non-sites’.

JS: Essa qualidade ambivalente foi algo que procurei deliberadamente. A obra funcionava no espaço expositivo mas também fora dele. Aliás, quis muito instalar esta peça no exterior mas a sua fragilidade foi sempre frustrando as minhas tentativas. Há, aliás, uma sequência fotográfica que realizei com a peça instalada na praia do Guincho. Foi uma sessão muito rápida, como calculas, porque o vento desmanchou a estrutura em pouco mais do que dois minutos [risos]. Em todo o caso, instalar a peça na praia deve ter correspondido ao que na altura me parecia uma solução romântica para a peça [risos]. Simultaneamente, levar a obra para o exterior era uma espécie de inversão das lógicas associadas com as práticas pós-minimais ou com a Land Art. Como se, ao instalar a peça ao ar livre, a pusesse a funcionar como o reverso de um “non-site” do Robert Smithson.

BM: On the other hand, and beyond this functional aspect, the work also has a playful quality. JS: Yes, a playful quality which, curiously, characterised my first incursions into the field of sculpture. For example, in 1972, I created a group of works which I called Caixinhas de Paisagens (Do It Yourself) [Box of Landscapes (Do It Yourself)] and which I regard as my first sculptural works. They were boxes with parallel slots running lengthways. Inside were a group of flat forms which represented many different things such as trees, houses, bushes etc. The viewer could select, organise and arrange these elements in the slots to create possible landscapes. Even before Shelter, I made another sculpture, which has also disappeared, which was called The Purloined Letter. Although the title was taken from a story by Edgar Allan Poe, my piece wasn’t so much concerned with the text by that writer, but with the seminar given by Jacques Lacan which used the text as a starting point. To summarise the conclusions of that seminar, albeit simplistically, it could be said that Lacan demonstrated that the best concealment is total visibility. After I read that, I decided to simply construct a table with drawers, which could be used. In a way, these first experiments with three-dimensionality signalled both a departure from the idea of sculpture as a symbolic and permanent structure, and an interest in ideas of play and interaction.

BM: Por outro lado, e para além da vertente funcional que aqui se enuncia, há também uma vertente lúdica. JS: Sim, uma vertente lúdica que, curiosamente, acompanhou as minhas primeiras incursões pelo campo da escultura. Por exemplo, em 1972 eu fiz um conjunto de peças a que chamei Caixinhas de Paisagens (Do It Yourself) e que considero serem os meus primeiros trabalhos escultóricos. Eram caixas com ranhuras paralelas e longitudinais que, no seu interior, continham um conjunto de formas planas que representavam coisas muito diversas como árvores, casas, arbustos, etc. Esses elementos estavam à disposição do observador que os

BM: Rather than descriptive texts which prompt us to form highly detailed images when we

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Caixinha de Paisagens I & II (Do it Yourself) (1972) Madeira, cart達o e guache Ca. 7 x 15 x 20 cm Wood, cardboard and gouache Ca. 7 x 15 x 20 cm


seleccionava, os organizava e dispunha nas ranhuras criando paisagens contingentes. Ainda antes do Shelter, fiz uma outra escultura, que também desapareceu, e que se intitulava The Purloined Letter. Embora o título fosse resgatado de um conto de Edgar Allan Poe, a minha peça focava-se não exactamente no texto daquele autor, mas no seminário que Jacques Lacan elaborou a partir dele. Resumindo, ainda que de forma simplista, as conclusões do referido seminário, pode dizer-se que Lacan demonstrava que o que melhor se esconde é o que está mais à vista. Na sequência dessa leitura decidi simplesmente construir uma mesa com gavetas, a qual podia ser utilizada. De certo modo, estas primeiras experiências com a tridimensão sinalizavam quer um afastamento em relação à ideia da escultura como estrutura simbólica e perene, quer uma apetência pelas ideias de jogo e de interacção.

read them – for example, in The Waves (1978), Cave (1978) or Roberte (1978) – in Athenai we find an excerpt from Socrates’ Apology, which is a text of a moral and confessional nature that deals with ideas of judgement, justice and death. Since it isn’t so much an actual image as a proposition, this text marks a change from the way that you included literary texts in earlier works. JS: I don’t feel that. That text appeared naturally and because it made sense within the structure of the work. Although I recognise that the text you refer to is less descriptive than the others, I don’t remember that it implied any kind of alteration in my way of working with the written word. Furthermore, reading that text does create an image in the mind of the viewer. BM: Yes, but a rather abstract one. JS: Obviously. That was absolutely what interested me.

BM: Ao invés do recurso a textos de pendor descritivo cuja leitura promove a formação de imagens altamente detalhadas e pormenorizadas – por exemplo, em The Waves (1978), Cave (1978) ou Roberte (1978) – em Athenai encontramos um excerto da Apologia, de Sócrates, que é um texto de natureza moral e confessional que versa sobre as noções de juízo, justiça e morte. Uma vez que não se constitui propriamente como uma imagem mas como uma proposição, este texto traduz um desvio relativamente ao modo como vinhas incluindo textos literários em obras anteriores.

BM: Were the photographic images in the work found or did you make them yourself, in situ? JS: They are photographs that I took of the caryatids, on the facade of the Erectheion in Athens, and they were taken on two different occasions. On one of those occasions, the parapet was being restored. BM: Speaking of restoration, this is a piece dominated by the idea of ruin. There is also a veiled reference to the violence underlying the foundations of European culture.

JS: Não sinto isso. Esse texto apareceu naturalmente e porque fazia sentido dentro da estrutura da obra. Embora reconheça que

JS: Absolutely. But, contrary to what might be supposed, my intention with this piece was in no

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The Waves (1978) Fotografias montadas em cartรฃo cรกvado (35 elementos) 132 x 263 cm Photographs mounted on cardboard (35 elements) 132 x 263 cm

Roberte (1978) Seis fotografias a cores montadas PVC e 14 foto/textos montados em PVC 49 x 234 cm Six colour photographs mounted on PVC and 14 photo/texts mounted on PVC 49 x 234 cm


o texto a que te referes é menos descritivo do que os outros, não me lembro que ele tenha significado qualquer alteração no meu modo de trabalhar com a palavra escrita. Inclusivamente, a leitura daquele texto não deixa de formar uma imagem na mente do espectador.

way to reflect on political issues. On the contrary, Athenai is an absolutely seminal piece, not because of its social or cultural symbolism, but because of what it meant in terms of the internal transformation taking place in my work at the time. Essentially, this is the first symptom of my conviction that I had to turn my work around. If you look at it, this piece has a very cerebral and controlled side – with the photographic documentation – and a side that is fictional and ambiguous – with the simulation of the ruins of a fresco and with the option of the hole in the wall. This open-ended aspect of the project was a breath of fresh air for me. I had finally found space for ambiguity, for another level of the subjective experience of the viewer who, in turn, was much more involved in constructing the meaning of the piece.

BM: Sim, porém uma imagem puramente abstracta. JS: Obviamente. Isso interessava-me absolutamente. BM: As imagens fotográficas presentes na obra foram encontradas ou feitas por ti in loco? JS: Aquelas são fotografias que eu fiz das cariátides, na fachada do Erecteion, em Atenas, e foram realizadas em dois momentos diferentes. Num desses momentos, o varandim estava a ser recuperado.

BM: It seems to me that the way this piece was originally shown, with the fresco placed in the top left-hand corner of the room and angled towards its centre, was by no means casual or innocent. It is a reference to the use of religious icons in household orthodox tradition. I know this because Kasimir Malevich used a very similar solution in the 0.10 exhibition in Petrograd, where he presented his famous ‘Black Square on a White Ground’ in exactly this position. For Malevich, this was a means of showing that his painting was both an object in space and the vehicle for a transcendental relationship. As you have used an ornamental detail of a fresco and since the idea of ruin runs through the work, would you say that Athenai functions as a kind of negative of Malevich’s ambitions for formal purification and liturgical function?

BM: Por falar em recuperação, esta é uma peça dominada pela ideia de ruína. Há também uma menção velada à violência que subjaz aos fundamentos da cultura europeia. JS: Sem dúvida. Mas, ao contrário do que se poderia pensar, não há nesta peça pretensão nenhuma da minha parte em reflectir sobre questões de natureza política. Pelo contrário, o Athenai é uma peça absolutamente seminal, não pelo seu simbolismo social ou cultural, mas pelo que significou na transformação interna que o meu percurso conheceu na altura. No fundo, este é o primeiro sintoma da minha convicção de que tinha que dar uma volta ao meu trabalho. Se reparares, a peça tem um lado muito cerebral e controlado – com a documentação fotográfica – e um

JS: Absolutely.

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outro lado que é ficcional e ambíguo – com a simulação de um fresco em ruínas e com a opção pelo buraco na parede. Esta dimensão aberta do projecto foi uma lufada de ar fresco para mim. Encontrava finalmente espaço para a ambiguidade, para um outro nível de subjectividade do espectador que, por seu lado, tinha uma participação muito mais profunda na construção do sentido da peça.

BM: Testa was originally shown at the Galeria Módulo, in Porto, and what’s immediately puzzling about this work is the total lack of iconography in general. At the same time, the work’s relationship with the experience of space and with architecture is very clear, as if presaging the significance they would later have in your work, albeit in very different ways. JS: Exactly. Whether or not there is iconography in this piece is something that could be debated – I know that some people will see the pointed forms as an allusion to the sexual act and to penetration, but I can assure you that my idea was indeed to eliminate iconic content, to convey everything on the spatial plane. And that decision, as you can imagine, opened up a whole new area for me.

BM: O modo como esta peça foi originalmente mostrada, localizando o fresco no canto superior esquerdo da sala e inclinando-o para o centro da mesma, não me parece ter sido casual ou inocente. Ele remete para a tradição ortodoxa relativamente à utilização dos ícones religiosos em ambiente doméstico. Sei isso porque uma solução muito semelhante foi levada a cabo por Kazimir Malevich na exposição 0.10, em Petrogrado, na qual apresentava o célebre “Quadrado negro sobre fundo branco” exactamente na mesma posição. Para Malevich, esta era a forma de afirmar que aquela pintura era, simultaneamente, um objecto no espaço e o veículo de uma relação transcendental. Uma vez que recorres a um pormenor ornamental de um fresco e que há uma noção de ruína que atravessa a obra, dirias que Athenai funciona como uma espécie de negativo das ambições de depuração formal e de função litúrgica de Malevich?

BM: The play between spaces enacted by this piece must also have led to a new way of working. Where was your studio at the time? JS: At the time my studio was at home. But I understand what you’re saying: making this piece entailed much more of a manual involvement than organising and arranging texts and images. What happened was, though I designed them in the studio, the pieces were actually produced at Galeria Módulo. All the play between spaces that you find in the piece was worked out in a way that wasn’t very different to what I was used to doing before, but at the point of production, I had to roll my sleeves up and collaborate directly with the carpenters and joiners who were involved in making the piece.

JS: Absolutamente. BM: Testa foi originalmente apresentado na Galeria Módulo, no Porto, e a primeira perplexidade que este trabalho suscita é a absoluta inexistência de iconografia em geral. Simultaneamente, é muito clara a relação desta obra com a experiência do espaço e com a

BM: You began your academic studies in architecture and this interest is something which runs through all your work. In the case

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arquitectura, como que prenunciando o lugar que este domínio viria a ter mais tarde no teu trabalho, ainda que em moldes bem diferentes.

of Testa, the architecture which hosts the piece determines its form and even the way it is experienced and its meaning.

JS: Precisamente. É discutível se há ou não iconografia nesta peça – já sei que haverá quem veja nas formas bicudas uma alusão ao acto sexual e à penetração, mas garanto-te que a minha ideia era mesmo eliminar a carga icónica, passar tudo para o plano do espaço. E essa decisão, como calculas, abria um campo totalmente novo para mim.

JS: I’m glad you’ve mentioned that, because in answering it I can make a distinction that isn’t always clear. This is that, in actual fact, Testa is a corollary of my initial interest in space, rather than architecture. Shortly before coming up with Testa I had already started to create works in which architecture played a decisive role. This is the case of Boa Vista (1979/1981) – curiously enough shown at Cooperativa Árvore in 1981 –, in which architecture and the domestic condition were so important that without the original hearth the work doesn’t make sense. With Testa I established a more flexible way of working with space. Here what is totally specific are the relations that are established between the pieces in the space, not so much the architecture in itself. That’s why Testa is more feasible to reinstall – as we are now doing – than any other work of this type from that period.

BM: O jogo espacial que a peça põe em cena deve ter inaugurado também uma nova forma de trabalhar. Em que estúdio estavas na altura? JS: O estúdio que tinha na altura era em minha casa. Mas percebo o que dizes: fazer esta peça implicava um investimento e um envolvimento manual muito maior do que organizar e dispor textos e imagens. Acontece que, embora eu as tenha concebido no atelier, a produção das peças só teve lugar já na galeria Módulo. Todo o jogo espacial que encontras na obra foi esboçado de modo não muito diferente do que fazia anteriormente, mas na hora da produção tive que meter a mão na massa e colaborar directamente com os carpinteiros e os marceneiros envolvidos na construção da peça.

BM: In this work, there’s a suggestion of a ‘total environment’ and of a route that imposes an experience on the viewer, which we might describe as phenomenological. JS: Yes, the fact that you realise that there are spatial relationships unfolding in front of and behind your body, that there are relationships that occur in just one room and others that move between rooms, immediately establishes a relationship that involves your entire body. The viewer is inside the work, immersed in it.

BM: Começaste o teu percurso académico na área da arquitectura e esse teu interesse é algo de transversal a toda a tua obra. No caso de Testa, a arquitectura que recebe a peça é determinante na sua constituição e mesmo na sua experiência e no seu sentido.

BM: But in spite of the clear way that this piece relates to spatial issues, it also deals with geometry, with perspective and with other

JS: Ainda bem que falas nisso porque a resposta permite-me fazer uma distinção nem

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Boa Vista (1979-1981) Fotografias a cores emolduradas, acrílico, cartão, tela e espelho Dimensões variáveis Framed colour photographs, acrylic, cardboard, canvas and mirror Variable dimensions


sempre evidente. É que, em boa verdade, o Testa é um corolário do meu interesse inicial pelo espaço, não tanto pela arquitectura. Um pouco antes de conceber o Testa já tinha começado a desenvolver obras nas quais a arquitectura desempenhava um papel determinante. É o caso de Boa Vista (1979/1981) – curiosamente apresentada na Cooperativa Árvore em 1981 –, na qual a arquitectura e a condição doméstica eram de tal modo importantes que sem a lareira original a obra deixa de fazer sentido. Com o Testa estabeleci um regime de maior flexibilidade no que diz respeito à relação com o espaço. Aqui o que é absolutamente específico são as relações que se estabelecem entre as peças no espaço, não tanto a arquitectura em si. Daí que também seja mais viável repor – como agora fazemos – o Testa do que seria fazê-lo para outra obra deste tipo e deste período.

optical relationships, particularly if we look at the interplay of proportion, correspondence and visual continuity between the various elements.

BM: Há, nesta obra, uma sugestão de “ambiente total” e de percurso que impõe uma experiência, digamos, de ordem fenomenológica ao espectador.

BM: At the time you produced these pieces, Portugal was going through a period of crisis that wasn’t so different to the one we’re experiencing now. Back then, there were signs, as there are now, of a growing social and political instability, of a breakdown of labour, social, and cultural relations accompanied by a disenchantment brought on by the violence of late capitalism and the maelstrom of the temporary, the disposable and the impermanent. And so, like now, signs emerged within art of a particular focus on precarious, fragile, minor structures, such as those you are presenting now. Assuming that this precariousness is not a common trait of your work, what place does this particular way of working occupy within the wider body of your work and how do you see it?

JS: Yes. The optical relations are particularly important because, somewhat ironically even, they reconfigure the play of space in twodimensional terms. When the shape that is drawn over the doorway finds its complement on the wall of the following room, we have a threedimensional game that is achieved through twodimensional forms. This clash of opposites was also something that particularly interested me. BM: A clash, furthermore, that is extended through the inclusion of geometric elements in dialogue with much more organic elements. JS: This contrast and this dichotomy were essential vectors for the energy of the piece.

JS: Sim, o facto de tu perceberes que há relações espaciais a desenvolverem-se à frente do teu corpo e atrás do teu corpo, que há relações que acontecem numa única sala e outras que passam de umas salas para outras, estabelece imediatamente uma experiência que implica todo o corpo. O espectador está dentro da obra, está imerso nela. BM: Pese embora a evidente relação desta peça com questões espaciais, ela não deixa de versar também sobre geometria, sobre perspectiva ou sobre relações ópticas, sobretudo se atendermos aos jogos de proporção, de

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correspondência e de continuidade visual que os diversos elementos estabelecem entre si.

JS: I confess that I think that this precariousness has always been present in my work. This fragility, this precariousness were always present. Looking at my work, I can state that it has never been imposing, has never been imperious or triumphalist. I would even say that mine has always been a chamber work – fragile; in most cases, discreet. I accept that there is a material aspect to these pieces that takes this idea of precariousness to an extreme, but I think it would be a mistake to see these pieces as an exception to my work. They are a logical continuation of what I was doing before and they have a direct consequence on what I did subsequently. To give an example, the paintings I started to work on after 1981 have an umbilical link to these works. They are paintings dominated by geometric forms very much like the ones you see here, sometimes combined with more organic forms. It was a long series in which the spatial games that I had been exploring immediately before took on a new life, this time on a twodimensional support. I could even say that the move from three to two dimensions happened for very practical reasons, in that it was much cheaper to paint than to make this kind of work, something which made all the difference at the time. I mention this to show that, regardless of the solutions that enabled me to carry on making work, I consider that there is a very close material, formal and conceptual link between all the work of this period. Its place within the overall framework of my work is not episodic or marginal. More than it might seem, the pieces shown here have a structural place in the development of my work.

JS: Sim. São sobretudo importantes os jogos ópticos porque, de forma até um pouco irónica, eles reconfiguram o jogo espacial em termos bidimensionais. Quando a forma que se desenha sobre a ombreira da porta encontra o seu complemento na parede da sala seguinte, temos um jogo tridimensional consumado através do recurso a formas bidimensionais. Esse choque de opostos também me interessava sobremaneira. BM: Um choque, aliás, que se prolonga no facto de encontrarmos peças de natureza geométrica a dialogar com peças bem mais orgânicas. JS: Esse contraste e essa dicotomia eram vectores essenciais para a energia da peça. BM: Na altura em que concebeste estas peças Portugal atravessava um período de crise não muito diferente daquele que vivemos hoje. Na altura, como hoje, havia sinais de uma crescente instabilidade social e política, de uma desmaterialização das relações laborais, sociais e culturais acompanhadas de uma descrença face à violência do capitalismo tardio e à voragem do temporário, do descartável e do impermanente. Então, como agora, surgiram sinais na produção artística de uma atenção particular a estruturas precárias, frágeis, displicentes, como é o caso destas que agora apresentas. Assumindo que esta precariedade não é um traço comum no teu trabalho, como é que encaras, e que lugar destinas a este regime particular de trabalhos no corpo alargado da tua obra?

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JS: Confesso que acho que essa precariedade sempre esteve presente no meu trabalho. Essa fragilidade, essa precariedade, essa displicência sempre estiveram presentes. Olhando para o meu trabalho, posso afirmar que ele nunca foi impositivo, imperioso ou triunfalista. Eu diria até que o meu sempre foi um trabalho de câmara – frágil; na maioria das vezes, discreto. Concedo que há um lado material nestas peças que leva essa noção de precariedade a um limite, mas julgo que seria errado pensar-se que estas peças possam ser uma excepção no meu trabalho. Elas são uma continuação lógica do que estava a fazer antes e têm uma consequência directa no que vim a fazer depois. Para dar um exemplo, as pinturas que comecei a desenvolver a partir de 1981 têm uma ligação umbilical com estas obras. São pinturas dominadas por formas geométricas em tudo semelhantes às que aqui encontras, pontualmente conjugadas com formas de cariz mais orgânico. Foi uma longa série através da qual os jogos espaciais que tinha estado a testar imediatamente antes ganharam uma nova vida, desta feita num suporte bidimensional. Posso dizer-te, inclusive, que a passagem da tridimensão para a bidimensão terá acontecido por razões muito práticas, nomeadamente porque pintar era muito mais barato do que fazer este tipo de trabalho, facto que fazia toda a diferença na altura. Isto para dizer que, independentemente das soluções de que me ia socorrendo para continuar a produzir, considero que há uma ligação material, formal e conceptual muito estreita entre todos os trabalhos dessa época. O seu lugar no quadro geral do meu trabalho não é episódico ou marginal. Mais do que eventualmente possa transparecer, as obras que aqui se apresentam são estruturais no meu percurso.

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shelter/abrigo (1978)



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testa (1980)











athenai (1979)











julião sarmento

Julião Sarmento nasceu em Lisboa, em 1948 e vive e trabalha no Estoril. Estudou Pintura e Arquitectura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. No decorrer da sua carreira, utilizou uma enorme variedade de meios – pintura, escultura, fotografia, filme, vídeo e instalação e realizou inúmeras exposições individuais e colectivas tanto em Portugal como no estrangeiro.

Julião Sarmento was born in 1948 in Lisbon, Portugal and lives and works in Estoril, Portugal. He studied painting and architecture at the Lisbon School of Fine Arts. Throughout his career, Sarmento has worked in a wide range of media – painting, drawing, sculpture, photography, film, video and installation. He has had numerous one-person and group exhibitions throughout the world over the past four decades.

Julião Sarmento representou Portugal na 46ª Bienal de Veneza (1997). Foi incluído nas Documentas 7 (1982) e 8 (1987); nas Bienais de Veneza de 1980 e 2001 e na Bienal de São Paulo de 2002. O seu trabalho está representado em diversas colecções públicas e privadas na Europa, America do Norte, America do Sul e Japão.

Julião Sarmento represented Portugal at the 46th Venice Biennale (1997). He was included in Documenta 7 (1982) and 8 (1987); the Venice Biennale (1980 and 2001) and the São Paulo Biennale in 2002. His work is represented in many public and private collections in North and South America, Europe and Japan.

www.juliaosarmento.com


lista de obras expostas

shelter/abrigo (1978-2013)

pp. 13-18

Madeira, lona, cordas, camarões e ilhós de metal 75 x 451 x 208 cm Cortesia Cristina Guerra Contemporary Art, Lisboa / Galeria Pedro Oliveira, Porto Wood, canvas, ropes, metal hooks and grommets 75 x 451 x 208 cm Courtesy Cristina Guerra Contemporary Art, Lisboa / Galeria Pedro Oliveira, Porto

testa (1980-2013)

pp. 21-30

Madeira, MDF, tela de linho, pasta de papel, acrílico, arame e fio Dimensões variáveis Cortesia Cristina Guerra Contemporary Art, Lisboa / Galeria Pedro Oliveira, Porto Wood, MDF, linen canvas, papier maché, acrylic, wire and thread Variable dimensions Courtesy Cristina Guerra Contemporary Art, Lisboa / Galeria Pedro Oliveira, Porto

athenai (1979-2013)

pp. 33-38

Duas impressões a jacto de tinta sobre papel baritado montadas em PVC (fotografias), uma impressão a jacto de tinta montada em PVC (texto), acrílico sobre estafe, corda, ferro, arame e buraco na parede Dimensões variáveis Cortesia Cristina Guerra Contemporary Art, Lisboa / Galeria Pedro Oliveira, Porto Two inkjet prints on Barite paper mounted on PVC (photographs), one inkjet print on Barite paper mounted on PVC (text), acrylic on plaster, rope, iron, wire and hole in the wall Variable dimensions Courtesy Cristina Guerra Contemporary Art, Lisboa / Galeria Pedro Oliveira, Porto Todas as fotografias por: All photographs by: Tiago Reis


lista de ilustrações

der prinz von homburg (1978)

p. 40

Quatro foto/textos p&b sobre papel colados em cartão; 49 fotografias a cores sobre papel coladas em cartão; duas vitrinas de madeira forradas a cetim com vidro acrílico contendo respectivamente: um ramo de folhas de louro e uma luva de pelica; um pano de cetim bordado 160 x 294,5 cm Colecção Fundação de Serralves, Porto Foto: Divisão de Documentação Fotográfica/IPM Four b&w photo/texts on paper mounted on cardboard; 49 colour photographs on paper mounted on cardboard; two wooden showcases lined with satin, with plexiglass containing: one branch of bay leaves and one leather glove; one embroidered satin cloth 160 x 294,5 cm Collection Fundação de Serralves, Porto Photo: Divisão de Documentação Fotográfica/IPM

rosebud (1978)

p. 43

Caixa forrada a espelhos, postes e corda, 19 fotografias p&b, 16 fotocópias emolduradas, seis cartões colados sobre papel e emoldurados, som, circuito de vídeo, plástico, vinil, holofote, plinto e monitor TV pintado Dimensões variáveis Colecção do artista Foto: Estúdio Julião Sarmento Box lined with mirrors, posts and rope, 19 b&w photographs, 16 framed photocopies and six framed cards on paper, sound, closed video circuit, plastic, vinyl, spotlight, plinth and painted TV screen Variable dimensions Colection of the artist Photo: Julião Sarmento’s studio

Imagens das páginas 68 e 86 Estúdio Julião Sarmento Images on pages 68 and 86 Julião Sarmento’s studio

caixinha de paisagens i & ii (do it yourself) (1972) p. 48 Madeira, cartão e guache. Ca. 7 x 15 x 20 cm Paradeiro desconhecido Foto: Estúdio Julião Sarmento Wood, cardboard and gouache. Ca. 7 x 15 x 20 cm Whereabouts unknown Photo: Julião Sarmento’s studio

the waves (1978)

p. 50

Fotografias montadas em cartão cávado (35 elementos) 132 x 263 cm Cortesia Galerie de France, Paris Foto: Divisão de Documentação Fotográfica/IPM Photographs mounted on cardboard (35 elements) 132 x 263 cm Courtesy Galerie de France, Paris Photo: Divisão de Documentação Fotográfica/IPM

roberte (1978)

p. 50

Seis fotografias a cores montadas PVC e 14 foto/ textos montados em PVC 49 x 234 cm Cortesia Galerie de France, Paris Foto: Divisão de Documentação Fotográfica/IPM Six colour photographs mounted on PVC and 14 photo/texts mounted on PVC 49 x 234 cm Courtesy Galerie de France, Paris Photo: Divisão de Documentação Fotográfica/IPM

boa vista (1979-1981)

p. 54

Fotografias a cores emolduradas, acrílico, cartão, tela e espelho Dimensões variáveis Colecção José Barrias, Milão Foto: Estúdio Julião Sarmento Framed colour photographs, acrylic, cardboard, canvas and mirror Variable dimensions Collection José Barrias, Milão Photo: Julião Sarmento’s studio


parousia

exposição / exhibition

catálogo / catalogue

direcção do projecto project management

coordenação geral e direcção editorial / co-ordination and editorial supervising

Amândio Secca Rui Silvestre

produção / production Árvore – Cooperativa de Actividades Artísticas, CRL

curador / curator Bruno Marchand

reconstrução das obras originais de julião sarmento / reconstruction of julião sarmento’s original pieces João Bonito

montagem / set-up João Bonito Nelson Pinto

data e local / date and venue 25 Outubro – 30 Novembro 2013 25th October – 30th November 2013 Árvore – Cooperativa de Actividades Artísticas, Crl

Manuela de Abreu e Lima

secretariado executivo e assessoria geral / executive assistant Sónia Alves

concepção / concept Tande Atelier Bruno Marchand

desenho gráfico / graphic design Tande Atelier

textos / texts Amândio Secca Dionísio Vinagre Julião Sarmento Bruno Marchand

tradução / translation Kennistranslations

fotografia / photography Tiago Reis Estúdio Julião Sarmento Divisão de Documentação Fotográfica / IPM

Os textos incluídos nesta publicação não acompanham o novo Acordo Ortográfico.


organização e patrocínio / organization and sponsorship

Rua Azevedo de Albuquerque, 1 4050-076 Porto – Portugal Tel.: +351 222 076 010 Fax: +351 222 076 019 geral@arvorecoop.pt www.arvorecoop.pt

Edifício do Casino da Póvoa 4490-403 Póvoa de Varzim – Portugal Tel.: +351 252 690 888 Fax: +351 252 690 871 casino.povoa@estoril-sol.com www.casino-povoa.com

julião sarmento agradece a / julião sarmento would like to thank Alexandra Gandra Amândio Secca Ana Anacleto Cristina Guerra Dionísio Vinagre Fernando Santos João Bonito João Brites Laura Soutinho Manuela Abreu e Lima Nelson Pinto Pedro Oliveira Roberto Amado Romeu Gonçalves Rui Silvestre Rui Vilaça Sónia Alves E muito particularmente a: And most specially to: Bruno Marchand


impressão e encadernação / printing and binding Norprint, S.A.

tiragem / print run 500 exemplares 500 copies

depósito legal legal deposit XXXXXX

isbn XXXXXXX






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