O homem chega, já desfaz a natureza Tira gente, põe represa, diz que tudo vai mudar O São Francisco lá pra cima da Bahia Diz que dia menos dia vai subir bem devagar E passo a passo vai cumprindo a profecia do beato que dizia que o Sertão ia alagar O sertão vai virar mar, dá no coração O medo que algum dia o mar também vire sertão SÁ & GUARABYRA
Delfim Martins
58 REVISTA ABIGR AF novembro /dezembro 2018
F OTOG R A F I A Por: Tânia Galluzzi
uando, em 1977, Luis Carlos Sá e Guttemberg Guarabyra compu seram a canção Sobradinho, muito já havia se falado sobre projetos en volvendo o Rio São Francisco. Sá & Guaraby ra protestavam con tra a construção da represa de Sobradinho, que conteria as águas represadas do rio para fazer funcionar a usina hidrelétrica de mesmo nome. Em plena ditadura, não se via nada sobre as ci
Foto: Claudio Edinger
Os Chicos de Delfim dades que desapareceriam sob as águas do Velho Chico, muito menos as consequências da obra. E sempre foi assim. Polêmicas acompa nham os planos para o Rio São Francisco des de o século XIX , sobretudo o mais famoso deles, a transposição do rio, que nada mais é do que a integração do São Francisco a rios temporá rios por meio de canais artificiais. O sonho de fazer o sertão virar mar, agora muito perto de ser integralmente concretizado, tem mais de
59 novembro /dezembro 2018 REVISTA ABIGR AF
dois séculos. O primeiro plano de transposi ção de que se tem notícia remonta à década de 1810, como registra o portal do Senado Federal. Com obras iniciadas pelo governo Lula em 2007, o primeiro eixo, o Leste, com 217 km, foi inaugurado em março do ano passado, benef i ciando um milhão de pessoas em 32 municípios em Pernambuco e na Paraíba. O eixo Norte, que deve estar conc luído ainda neste ano, atingirá um contingente ainda maior: 7,1 milhões de pes soas, em 223 cidades de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.
60 REVISTA ABIGR AF novembro /dezembro 2018
Profundo conhecedor da comunhão entre o homem e a terra, em 2010 Delfim Martins viu na transposição uma oportunidade de do cumentar uma obra sem precedentes no País. E começou a acompanhá-la regularmente. “É a maior obra aquaviária do planeta, um proje to muito interessante. A maioria das pessoas que é contra não conhece a realidade da reg ião”, comenta o fotógrafo. Há 32 anos — depois de passar pela revis ta Visão e de fundar, ao lado do irmão, Juca Martins, de Nair Benedicto e Ricardo Malta, a lendária agência F4 —, ele especializou-se no que chama de agrofotografia, unindo téc nica fotográfica e conhecimentos de agrono mia, passando a atender o mercado corporati vo. Aproveitando a produção não comprometida
Foto: Du Zuppani
Como norte para a documentação da trans posição do São Francisco, Delfim decidiu acom panhar não só a obra em si, mas também algu mas famílias, como a do Seu Zé, cuja casa foi desapropriad a. Na zona rural do distrito de Custódia, no Pernambuco, Seu Zé e a esposa veem no horizonte da nova casa um dos mui tos lagos criados pela obra. O fotógrafo tem convivido também com pessoas transferidas para as vilas produtivas rurais, organizadas para receber aqueles que não quiseram indeni zação financeira, com estrutura (escola, unida de de saúde) a qual os novos moradores não dis punham até então. O acervo traz igualmente o trabalho documental da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), na coleta de amostras da fauna e da flora de locais onde houve supressão de mata.
UMA NOVA PERSPECTIVA
PULSAR www.pulsarimagens.com.br
com seus clientes criou em 1991, também com Juca, mais a esposa Laura, a Pulsar, hoje o maior banco de imagens exclusivamente de dicado a temas nacionais. São mais de 400 mil imagens e 200 mil víd eos, num profundo mergulho no cenário brasileiro por meio do trabalho de 60 fotógrafos.
Recentemente, Delfim descobriu um aliado de cisivo para a documentação dos novos contor nos do Velho Chico: o drone. “É uma ferramenta extraord inár ia. Traz um tipo de imagem antes inexistente, a perpendicular, com resultados que não se consegue de nenhuma outra forma”, derrete-se Delfim, atraído como sempre pelas novidades tecnológicas. Pelo menos dez fotó grafos que clicam para a Pulsar estão usando drones em suas capturas, trazendo frescor para paisagens por vezes batidas. Com a tecnologia, Delfim conseguiu dar vida nova às fotos da nas cente do rio, na Serra da Canastra (MG), e de sua foz, no município de Piaçabuçu, em Alagoas. Esses oito anos de São Francisco já lhe ren deram mais de 10 mil imagens, das quais cerca de três mil foram editadas e duas mil comercia lizadas. O livro sobre a jornada já está a cami nho. Sairá pela Metalivros e aguarda apenas a conclusão do eixo Norte. “Meu prazer é saber que, daqui a alguns anos, quando quiserem fa lar sobre a transposição, terão de se debruçar sobre o meu trabalho.” novembro /dezembro 2018 REVISTA ABIGR AF
61