DELFIM MARTINS Os Chicos de Delfim

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O homem chega, já desfaz a natureza Tira gente, põe represa, diz que tudo vai mudar O São Francisco lá pra cima da Bahia Diz que dia menos dia vai subir bem devagar E passo a passo vai cumprindo a profecia do beato que dizia que o Sertão ia alagar O sertão vai virar mar, dá no coração O medo que algum dia o mar também vire sertão SÁ & GUARABYRA

Delfim Martins

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F OTOG R A F I A Por: Tânia Galluzzi

uan­do, em 1977, Luis Carlos Sá e Guttemberg Gua­raby­ra compu­ seram a canção Sobradinho, muito já havia se falado sobre projetos en­ volvendo o Rio São Francisco. Sá & Gua­raby ­ra protestavam con­ tra a construção da represa de Sobradinho, que conteria as águas represadas do rio para fazer fun­cio­nar a usina hidrelétrica de mesmo nome. Em plena ditadura, não se via nada sobre as ci­

Foto: Claudio Edinger

Os Chicos de Delfim dades que de­sa­pa­re­ce­riam sob as águas do Velho Chico, muito menos as consequências da obra. E sempre foi assim. Polêmicas acompa­ nham os planos para o Rio São Francisco des­ de o século XIX , sobretudo o mais famoso deles, a transposição do rio, que nada mais é do que a integração do São Francisco a rios tem­po­rá­ rios por meio de canais artificiais. O sonho de fazer o sertão virar mar, agora muito perto de ser integralmente concretizado, tem mais de

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dois séculos. O primeiro plano de transposi­ ção de que se tem notícia remonta à década de 1810, como registra o portal do Senado Federal. Com obras ini­cia­das pelo governo Lula em 2007, o primeiro eixo, o Leste, com 217 km, foi inaugurado em março do ano passado, be­ne­f i­ cian­do um milhão de pes­soas em 32 mu­ni­cí­pios em Pernambuco e na Pa­raí­ba. O eixo Norte, que deve estar con­c luí­do ainda neste ano, atingirá um contingente ainda maior: 7,1 milhões de pes­ soas, em 223 cidades de Pernambuco, Pa­raí­ba, Rio Grande do Norte e Cea­rá.

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Profundo conhecedor da comunhão entre o homem e a terra, em 2010 Delfim Martins viu na transposição uma oportunidade de do­ cumentar uma obra sem precedentes no País. E começou a acompanhá-​­la regularmente. “É a maior obra aquaviária do planeta, um proje­ to muito interessante. A maioria das pes­soas que é contra não conhece a rea­li­da­de da re­g ião”, comenta o fotógrafo. Há 32 anos — depois de passar pela revis­ ta Visão e de fundar, ao lado do irmão, Juca Martins, de Nair Benedicto e Ricardo Malta, a lendária agência F4 —, ele especializou-​­se no que chama de agrofotografia, unindo téc­ nica fotográfica e conhecimentos de agrono­ mia, passando a atender o mercado corporati­ vo. Aproveitando a produção não comprometida


Foto: Du Zuppani

Como norte para a documentação da trans­ posição do São Francisco, Delfim decidiu acom­ panhar não só a obra em si, mas também algu­ mas fa­mí­lias, como a do Seu Zé, cuja casa foi de­sa­pro­pria­d a. Na zona rural do distrito de Custódia, no Pernambuco, Seu Zé e a esposa veem no horizonte da nova casa um dos mui­ tos lagos cria­dos pela obra. O fotógrafo tem convivido também com pes­soas transferidas para as vilas produtivas rurais, organizadas para receber aqueles que não quiseram indeni­ zação financeira, com estrutura (escola, unida­ de de saú­de) a qual os novos moradores não dis­ punham até então. O acervo traz igualmente o trabalho documental da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), na coleta de amostras da fauna e da flora de locais onde houve supressão de mata.

UMA NOVA PERSPECTIVA

PULSAR www.pulsarimagens.com.br

com seus clien­tes criou em 1991, também com Juca, mais a esposa Laura, a Pulsar, hoje o maior banco de imagens exclusivamente de­ dicado a temas nacionais. São mais de 400 mil imagens e 200 mil ví­d eos, num profundo mergulho no cenário brasileiro por meio do trabalho de 60 fotógrafos.

Recentemente, Delfim descobriu um alia­do de­ cisivo para a documentação dos novos contor­ nos do Velho Chico: o drone. “É uma ferramenta ex­traor­d i­ná­r ia. Traz um tipo de imagem antes inexistente, a perpendicular, com resultados que não se consegue de nenhuma outra forma”, derrete-​­se Delfim, atraí­do como sempre pelas novidades tecnológicas. Pelo menos dez fotó­ grafos que clicam para a Pulsar estão usando drones em suas capturas, trazendo frescor para paisagens por vezes batidas. Com a tecnologia, Delfim conseguiu dar vida nova às fotos da nas­ cente do rio, na Serra da Canastra (MG), e de sua foz, no município de Pia­ça­bu­çu, em Ala­goas. Esses oito anos de São Francisco já lhe ren­ deram mais de 10 mil imagens, das quais cerca de três mil foram editadas e duas mil co­mer­cia­ li­za­das. O livro sobre a jornada já está a cami­ nho. Sairá pela Metalivros e aguarda apenas a conclusão do eixo Norte. “Meu prazer é saber que, daqui a alguns anos, quando quiserem fa­ lar sobre a transposição, terão de se debruçar sobre o meu trabalho.” novembro /dezembro 2018  REVISTA ABIGR AF

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