A ferrovia estratĂŠgica na cidade central AndrĂŠ Moura
Título A ferrovia estratégica na cidade central Acadêmico André Moura Orientador Edson Silva Revisão André Moura Diagramação André Moura Brenda Cirino Capa André Moura Foto da Capa Chegada de locomotiva e vagões de passageiros da Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (NOB) em Campo Grande, década de 1920 (Acervo Arca)
Sumário 5
Introdução
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A grande reportagem como forma
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A ferrovia estratégica na cidade central 47
Rua velha
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“Era um sertão, era um mato grosso”
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Campo Grande pré-ferrovia
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Japoneses
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Suor dos operários
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As frentes de trabalho se encontram
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Uma estação em silêncio
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Ceroula encomendada
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Campo Grande pós-ferrovia
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Trem que chega, desce gente, na plataforma, na cidade
Introdução
Os dois textos que compõem este livro, ambos constituem a minha primeira tentativa de trabalhar com o gênero mais complexo do Jornalismo: a grande reportagem. O primeiro, o ensaio jornalístico intitulado A grande reportagem como forma é o produto de horas de pesquisa no acervo da nossa biblioteca, vasculhando nos livros tudo o que pudesse ser útil para a reflexão teórica acerca do assunto. O segundo texto, por sua vez, coloca em prática conceitos que a teoria apresenta. Para tanto, estabeleci como tema a presença da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil em Campo Grande e a importância desse meio de transporte para a urbanização da cidade. Sobre tal assunto 5
produzi uma grande reportagem, A ferrovia estratégica na cidade central. Para falar sobre o gênero jornalístico grande reportagem, recorri a alguns pesquisadores da área do Jornalismo. Eles apresentam seus conceitos a respeito do gênero. Alguns utilizam termos diferentes. Uns falam em reportagem de profundidade, outros falam em reportagem mesmo, dividindo-a em modelos para melhor estudá-la. Todos contribuem com suas ideias e pesquisas para que o conceito seja, não definido, mas debatido, refletido. E restou a mim a tarefa de mediar os pensamentos de cada um desses pesquisadores, estabelecendo uma linha de raciocínio. Durante o ensaio, a grande reportagem é abordada a partir de seus aspectos técnicos, éticos e estéticos. Considerando a dificuldade que é conceituar o gênero, a maior parte dos pesquisadores fizeram o exercício de contrastar a grande reportagem com outro gênero, a notícia. A pertinência da primeira, dizem eles, vem da efemeridade, da superficialidade da segunda. A grande reportagem preenche as lacunas que a notícia deixa de lado quando está mais preocupada em caber no espaço e no tempo dos veículos jornalísticos de periodicidade curta.
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Para cumprir a sua difícil tarefa, a grande reportagem se utiliza de outras áreas: a literatura, a história, a antropologia, e tudo o que for necessário para atingir a profundidade. O ensaio se ocupa da etapa da apuração, da pesquisa documental, das entrevistas, da observação direta. Para produzir uma narrativa de fôlego, o repórter tem que se afundar nos antecedentes históricos do fenômeno que ele definiu como sujeito. Tem que palmilhar os espaços onde os acontecimentos de sua narrativa vão ocorrer, observando os detalhes de cada ambiente. Precisa dialogar com as pessoas que serão os personagens da narrativa, e ter com elas conversas e não apenas entrevistas de pergunta e resposta, pergunta e resposta. O ensaio se preocupa também com a forma da grande reportagem, com a engenharia do texto. Depois que o repórter apurou uma quantidade considerável de informações, dados, impressões, ele vai se deparar com a tarefa de encontrar um jeito de escrever a narrativa. Ele não pode, nesse momento, apoiar-se nas fórmulas gastas do jornalismo hegemônico. Tem que ordenar os acontecimentos, descrições, diálogos, ações, argumentações, de uma maneira criativa. Essa tarefa é semelhante à atividade literária. O “namoro” com a literatura tem sido a resposta mais recorrente 7
para o problema da forma. Essas questões que aqui apenas menciono brevemente, no decorrer do ensaio são exploradas com mais atenção. E qual é a relação entre o texto teórico e o prático? A grande reportagem aqui veiculada foi produzida como uma tentativa de colocar em prática as teorias que o texto A grande reportagem como forma debate. Nem todos os conceitos refletidos pelo ensaio foram efetivamente trabalhados na narrativa. E os que foram, talvez não tenham sido levados às últimas consequências. Embora A ferrovia estratégica na cidade central não coloque em prática tudo que acredito ser possível na narrativa jornalística de profundidade, não leve ao cabo todos os conceitos que observei em repórteres como Gay Talese e outros, com certeza marca um rompimento com as fórmulas e filosofias do newsmaking, e procura um caminho mais livre para a reportagem, e por isso mais desafiador e angustiante. Um dos maiores desafios de se produzir uma grande reportagem é adentrar uma floresta densa e pouco explorada de questionamento dos limites do Jornalismo. A ferrovia estratégica na cidade central, por exemplo, explora a apropriação da História, utiliza-
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se de documentos históricos e da memória longínqua das fontes para interpretar o fenômeno “ferrovia em Campo Grande” como sujeito nuclear e outros eventos que orbitam esse núcleo. O Jornalismo, recuperando o passado, tem a oportunidade de dar espaço às facetas da vida e aos detalhes que a história oficial geralmente esquece. A intenção, nesta grande reportagem, é que o leitor campo-grandense, ao descobrir informações do passado, entenda o contemporâneo, entenda o movimento cronológico da sua cidade, e passe a ter uma conexão com as entranhas do ambiente onde habita. Eu mesmo, um repórter forasteiro, durante a etapa de apuração das informações, comecei a ter uma experiência mais íntima com a cidade, como se ela pudesse me confiar segredos, me falar sobre seus sofrimentos. E em seguida, o processo da redação. Escrevi a grande reportagem com a caneta da liberdade formal e a tinta da angústia de quem enfrenta pela primeira vez o desafio da narrativa de profundidade. Utilizei como estribo os modelos de reportagem sugeridos por Oswaldo Coimbra no livro O texto da reportagem impressa, para entender como narrar, dissertar e descrever. O ensaio jornalístico A grande reportagem como forma apresenta tais modelos e os relacio9
na a outros conceitos propostos por autores distintos. E da mesma maneira que aconteceu com os repórteres do New journalism, também me inspirei um pouquinho em romancistas que estabelecem um vínculo forte com a realidade social. Posso afirmar que, em alguns momentos, o livro Suor de Jorge Amado foi o meu manual de redação, assim como outros autores que li durante os últimos meses. Há nesses escritos indicações do meu primeiro interesse em dar à reportagem uma cadência de prosa literária, onde cada frase precisa se encaixar à antecedente e chamar a próxima. E fazer tudo isso de forma fluida, espontânea. O texto de A ferrovia estratégica na cidade central foi estruturado em entretítulos ou retrancas, conforme uma das sugestões de Cremilda Medina. E cada um desses entretítulos se encaixa ao todo como num mosaico. Um mosaico onde passado e presente se mesclam e produzem interpretação. A personagem principal da narrativa não é uma pessoa, mas um ambiente: Campo Grande. No decorrer da grande reportagem, a vila vai se povoando, vai se urbanizando, até se transformar em cidade. Como evento principal neste processo, a construção da estrada férrea e a normalização dos trabalhos fer10
roviários. E uma vez que Campo Grande foi o município onde as duas frentes de trabalho que construíam o trecho mato-grossense da linha se conectaram, a grande reportagem dedica dois entretítulos para narrar a sofrida labuta dos operários que fixaram os dormentes e os trilhos no solo. Esta narração se encontra em Suor dos operários e As frentes de trabalho se encontram. No lugar onde as duas turmas se uniram foi edificada uma estação. E o meu interesse de repórter me fez querer conhecer aquela paragem remota, ainda que ela fosse distante da cidade. Estive ali em duas oportunidades, sujando meus sapatos, tentando estabelecer um diálogo possível com os moradores locais. Um deles, o Seu Pereira, acabou se tornando um personagem da narrativa, com seus hábitos, preocupações, motivações. Também, observando diretamente aquele lugar, e anotando os elementos que os meus sentidos registravam, pude colocar em prática, na grande reportagem, a descrição impressionista, numa tentativa de ambientar, de colorir aquele espaço, a estação, o entorno. O tema é de fato rico, extenso, amplo. Para ex11
plorá-lo melhor, e averiguar detidamente as diversas perspectivas que ele propõe, seria necessário empenhar mais tempo e recurso. Todavia, esse mesmo trabalho, avalio, tem uma característica válida: a de ser uma base com certa solidez, um alicerce onde outros projetos podem se sustentar. Da reflexão sobre a grande reportagem que o ensaio realiza podem ser retirados diversos conceitos de narrativa, de apuração… úteis àqueles repórteres criadores que desejam se aventurar na produção de reportagens de profundidade. E a própria grande reportagem A ferrovia estratégica na cidade central realiza uma reconstrução histórica sobre a estrada de ferro em Campo Grande que tem a condição de estribar o desenvolvimento de novas narrativas dentro deste assunto. A partir dela, o mesmo tema pode enveredar para muitos caminhos. Outros enfoques e outros ângulos podem surgir.
Campo Grande, agosto de 2016.
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A grande reportagem como forma
1 Poder de comunicação e capacidade de criação. Nessa seara, o jornalismo, enquanto conjunto de técnicas operacionais, pouco tem a oferecer. Ele precisa então se estender, incorporar outros campos, abraçar conhecimentos de outras áreas. Cada jornalista, ao produzir uma grande reportagem, tem liberdade para lançar mão do que for particularmente adequado à apuração de informações e construção do texto. A habilidade de observação do repórter pode ser aperfeiçoada, explica Edvaldo Pereira Lima em Páginas Ampliadas, se “acontecer uma absorção, pe-
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los profissionais da imprensa, dos métodos e dos recursos utilizados pelas ciências sociais” (1993, p. 78). Técnicas de coleta de dados oriundas da antropologia, como a observação participante, podem somar à qualidade da investigação jornalística. Como exemplo, o conceito imponderabilia da vida real, criado pelo antropólogo Bronislaw Malinowski. (No início do século vinte, ele foi um dos primeiros a infiltrar-se na sociedade que foi seu objeto de análise, as tribos nativas das Ilhas Trobriand. O resultado dessa pesquisa foi publicado no livro Os Argonautas do Pacífico Ocidental). Imponderabilia da vida real é o termo que ele forjou para falar sobre fenômenos que precisam ser observados em funcionamento e não podem ser recolhidos de outras maneiras. A palavra imponderabilia sugere que se trata de eventos imponderáveis, não mensuráveis, subjetivos portanto, como são as “rotinas de um dia de trabalho”, a “ambiência das conversas e da vida social”, “a existência de fortes amizades ou hostilidades”, as vaidades e ambições pessoais e seus reflexos no comportamento do indivíduo e reações emocionais de todos que o rodeiam (1997, p. 31). Enquanto antropólogo, Malinowski estava preocupado em captar a “verdadeira substância do tecido social”. O jornalista que quiser desempenhar um trabalho semelhante 14
deve, às vezes, abandonar o gravador, o bloco de notas, a caneta, a máquina fotográfica e participar das conversas, intervir no que está a passar. Como espaço reservado para experimentação e lugar onde os jornalistas procuram satisfazer o uso de todo potencial comunicativo, a grande reportagem se apresenta na condição de campo onde a arte renova fórmulas gastas; é o momento para o jornalismo refletir, ao mesmo tempo em que trata de um tema com profundidade, sobre seus próprios métodos de apuração e redação. Segundo Cremilda Medina, em Entrevista: o diálogo possível, “jornalistas e comunicadores devem se aproximar das conquistas artísticas para poderem renovar seu estilo e, em última instância, o grau de eficiência de seus textos quanto à comunicação propriamente dita” (2005, p. 63). O repórter pode, conforme seu interesse, aproveitar dos efeitos da literatura. Em Jornalismo e literatura em convergência, Marcelo Bulhões argumenta que as práticas dos romancistas do período realista-naturalista, como a “postura documental ou fotográfica da realidade circundante”, a “retratação rigorosa dos ambientes sociais”, a “captação de quadros sociais de seu tempo”, são repertórios instrumentais “a serviço das potencialidades da escrita da reportagem” (2006, p. 44). 15
Bulhões seleciona como exemplo o romancista francês Émile Zola, que considerava importante ao escritor sair às ruas de uma cidade, visitar os locais em que se darão os episódios da narrativa, palmilhar os espaços que serão descritos, sentir o cheiro dos ambientes, buscar as fontes que se tornarão objeto de sua escrita, deixar-se impregnar das marcas da vida pulsante (2006, p. 68). Tais práticas enumeradas pelo romancista são informações preciosas aos repórteres que se empenham em tecer o presente.
2 Da maneira como se dá nas grandes empresas de mídia desde a metade do século vinte, o jornalismo reverbera os anseios oriundos do método cartesiano e do espírito positivo comtiano. No século dezenove, a atividade da imprensa adquiriu autonomia social, tornou-se uma prática livre, regular e contínua, que começou a exercer uma função específica para a manutenção da sociedade e a se preocupar em afirmar seu espaço no conjunto das áreas do conhecimento. Quando o jornalismo se propôs como responsável pelo discurso da atualidade, ele absorveu princípios científicos que se verificam na distância entre homem que analisa e objeto de análise, na relação objetiva
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com a realidade, no tom afirmativo perante os fatos, na busca obsessiva pela precisão dos dados como valor de mercado, na ausência de abstrações, e delimitação dos acontecimentos. O cuidado científico com a captação fiel do real foi incorporado pelo jornalismo praticado na Inglaterra. Lá, a expressão “o comentário é livre, mas os fatos são sagrados” foi inventada e, buscando concordar com o pensamento científico, atribuiu-se neutralidade e imparcialidade ao caráter da informação. O jornalista não deve interferir na apresentação da notícia, disseram os ingleses, e o relato objetivo dos acontecimentos foi estimado como ato de respeito ao leitor. Em seu turno, os aspectos subjetivos da vida foram evitados. Em Os mistérios do mundo e a reportagem, Dimas Antônio Künsch escreve que “a literatura jornalística afunda suas raízes na tradição científica ocidental objetivista, encontrando dificuldades de trabalhar temas como objetividade e subjetividade, real e imaginário” (2000, p. 121). Logo o jornalismo norte-americano assimilou o conceito de objetividade, mas o fez com distorções. José Marques de Melo escreve, em Teoria do jornalismo, que a objetividade “converteu-se em sinônimo de verdade absoluta, vendida como ingrediente para camuflar a tendenciosidade que existe na prática co17
tidiana dos veículos de comunicação” (2006, p. 39). Assim ocorreu porque o jornalismo deixou de ser um serviço público e se transformou em ramo industrial lucrativo. As empresas de mídia iniciaram então uma batalha pela hegemonia jornalística, baseada no sensacionalismo e no anseio de noticiar um fato antes dos concorrentes, em aplicar o furo. A objetividade vendida pela imprensa era nada além de subjetividade impregnada de interesses. Assim que manuais de redação e normas de estilo surgiram, somou-se à objetividade o conceito de síntese, a busca por expressar o máximo de informações com o mínimo de palavras. Para resolver tal anseio, a técnica da pirâmide invertida e o lead com as respostas para as perguntas fundamentais foram criados. Essa estratégia atribuiria certa cientificidade nas páginas dos jornais, suavizando a influência de aspectos subjetivos. “A fórmula realmente tornou a imprensa mais ágil e menos prolixa, embora a subjetividade não tenha diminuído. A opinião ostensiva foi apenas substituída por aspas previamente definidas e dissimuladas no interior da fórmula” (2006, p. 15), adverte Felipe Pena no livro Jornalismo literário. De fato, a subjetividade no jornalismo começa com a escolha do enfoque na pauta; continua na apuração, quando o repórter decide o que será ou não noticia18
do; e também se apresenta na etapa da redação, na opção das palavras empregadas no texto. Ou seja, o processo inteiro é subjetivo. O modelo da pirâmide invertida interessou bastante às agências norte-americanas de produção de notícias, que exportavam informações transmitindo-as pelo telégrafo. Entretanto, o exercício da codificação sintética vestiu o jornalista com uma camisade-força, estorvando sua criatividade e diminuindo a aptidão de escrever sobre os acontecimentos, que são apresentados com texto pasteurizado. Foi esse modelo que o jornalismo brasileiro assimilou e, de tão praticado dentro das redações, profissionais da imprensa e observadores da mídia passaram a reconhecê-lo como usual, tradicional, convencional ou hegemônico. De tais formas esse modelo é mencionado na literatura das teorias do jornalismo. O conceito de verdade ou veracidade presente no jornalismo tradicional é reavaliado na grande reportagem. Afirmações como gênero pautado por regras objetivas e narração sem comentários, sem subjetivações foram questionadas inicialmente pelos jornalistas inseridos no movimento new journalism, que permite, segundo Gay Talese, “uma abordagem
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mais imaginativa da reportagem” (Fama e anonimato, 2004, p. 9). Significa poder entrevistar pessoas sobre seus pensamentos e emoções. Escrever a respeito da atmosfera que caracteriza um ambiente, compilando dados que não se ajustam no corpo da pirâmide invertida, nas poucas linhas de um lead. Conforme Felipe Pena, a verdade se torna verossimilhança (Jornalismo literário, 2006, p. 103). Para estabelecer uma relação de correspondência ou identificação com o mundo exterior, sensível, tangível, vivido, o jornalismo articula equivalências, imitações, metaforizações, dramatizações, enfim, estratégias de convencimento, de credibilidade. São as mesmas técnicas que os artistas da antiguidade usavam para tornar seus enredos e personagens críveis e convincentes, tanto no teatro como na literatura. Rogério Borges, em Jornalismo literário, analisa que “os propósitos da literatura e dos discursos de informação diferenciam-se, os processos de construção dos relatos, porém, guardam aproximações mais extensas do que se costuma admitir” (2013, p. 144). A “responsabilidade de conduzir certas identificações com o mundo” (2013, p. 145) que recai sobre o jornalismo está presente também na literatura realista. A dúvida se hospeda naqueles discursos que se dizem incontestavelmente verdadeiros. São, 20
como afirma Borges, “ironicamente, meras ficções”. O vínculo com o mundo real precisa existir, mas é fundamental assumir que as “falas sobre a realidade também são tortuosas, propensas e vulneráveis a mudanças de rumo e de natureza” (2013, p. 126). Esta tarefa – escrever sobre a realidade, sem intervenções – parece se esquecer de que o ato de falar sobre algo que ocorreu é uma tradução e nunca o fato em si. No ensaio Sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral, publicado em O livro do filósofo, Friedrich Nietzsche diz que a palavra é uma figura de linguagem gasta sobre o mundo, e este, fugidio, escapa quando tentam manifestá-lo em representações simbólicas. “Acreditamos possuir algum saber sobre as coisas propriamente, quando falamos de árvores, cores, neve e flores, mas não temos entretanto aí mais do que metáforas das coisas, as quais não correspondem absolutamente às entidades originais”. (2004, p. 68) Nessas condições, haveria no jornalismo um lugar onde pudesse surgir a capacidade de descrever o real objetivamente? Estabelecendo uma conversa com o pensamento de Theodor Adorno em Posição do narrador no romance contemporâneo, no momento em que escreve sobre o que acontece no mundo, o jornalista faz o gesto do foi assim, mas cada palavra é um mero como se. O intervalo que existe 21
entre a realidade e a representação dessa realidade é atravessado pelo esforço de interpretação (Notas de literatura I, 2012, p. 58-59). Reduzidas à condição de mitos, objetividade e imparcialidade sobrevivem ambas na categoria de honestidade dos profissionais envolvidos com produção de informações. Em outras palavras, repousam as duas na ética dos jornalistas como um dever-ser, mas nunca um é.
3 No inverno de 1965, Gay Talese foi enviado pela revista Esquire para Los Angeles com o objetivo de entrevistar Frank Sinatra. O cantor estava resfriado e se recusou a falar com o jornalista. Essa barreira não impediu Talese de realizar a reportagem que estava destinado a fazer: conversando com pessoas que estavam em relação cotidiana com Sinatra, ele foi capaz de reunir informações suficientes para escrever uma das reportagens do tipo perfil mais célebres da história do jornalismo, nomeada Frank Sinatra está resfriado. Além de observar o cantor trabalhando em várias ocasiões, Talese entrevistou atores, músicos, executivos de estúdios, produtores musicais, donos de restaurantes e mulheres que mantinham contato 22
com Sinatra. “Consegui tirar alguma coisa da maioria das pessoas: um fiapo de informação aqui, uma pequena nuance ali, pecinhas de um vasto mosaico que iam dar uma imagem do homem que esteve sobre os refletores da fama durante décadas” (Fama e anonimato, 2004, p. 511). Esta é uma demonstração de ruptura com o modelo operacional do jornalismo corrente, que tem na entrevista seu principal método de captura de dados sobre uma fonte. Se Talese tivesse simplesmente entrevistado Sinatra, conforme determina o modus operandi jornalístico, o produto de seu trabalho seria inferior. A riqueza de sua reportagem reside na visão multi-angular sobre Sinatra. Conhecido por ser um dos principais nomes do chamado new journalism, movimento que nasceu em revistas norte-americanas nos anos cinquenta e sessenta, Gay Talese escapou da mesmice produzindo reportagens com se literatura fosse. As reportagens escritas pelos jornalistas e escritores ligados a esse movimento não eram ficção, mas jornalismo puro, com informações apuradas em campo, verificadas minuciosamente. Os resultados das pesquisas eram depois colocados no papel nos conformes da narrativa literária. No posfácio que escreveu para o livro Fama e anonimato, o jornalista Humberto Werneck afirma 23
que o objetivo de utilizar instrumentos da narrativa de ficção no tratamento da notícia é o empenho em seduzir o leitor, que pode desistir da leitura caso não seja prazerosa (2004, p. 525). Quando trabalhou como jornalista de reportagens especiais para o Herald Tribune, nos anos sessenta, Tom Wolfe dedicava dois dias na mesa local como repórter de assuntos gerais, e, nos outros três, produzia um texto maior para o suplemento dominical, ao mesmo tempo em que escrevia para a Esquire. Uma das histórias a que se dedicou foi a do corredor de stock-car que aprendeu a dirigir transportando uísque clandestino para pontos de distribuição. Como narrador, Wolfe assume, no próprio texto, o tom de um contrabandista de bebidas, “a fim de criar a ilusão de olhar a ação pelos olhos de alguém que estava de fato na cena e envolvido nela” (Radical chique e o novo jornalismo, 2005, p. 33). Essa reportagem foi intitulada O último herói americano, e originalmente publicada na Esquire, em março de 1965. Uma das características distintas do texto de Wolfe é a utilização de várias possibilidades da voz que conta a história. “Nunca hesitei em experimentar qualquer recurso concebível capaz de reter de algum modo o leitor por mais alguns segundos. Eu tentava berrar bem alto no ouvido dele: Fique aqui! (...) Foi 24
assim que comecei a brincar com o recurso do ponto de vista”, e evitar o “tom bege” com o qual costumavam falar os jornalistas (2005, p. 30). Tom Wolfe foi quem mais se esforçou para estabelecer o new journalism como movimento, reivindicando para essa modalidade o título de gênero literário superior ao próprio romance de então, que, segundo Wolfe, retroagira após o realismo social. Aos novos jornalistas couberam a tarefa de buscar inspiração nos autores realistas do século dezenove para escrever sobre uma universalidade de temas. Em 1975, Tom Wolfe e E. W. Johnson editaram um livro chamado The new journalism, que é um manifesto para o novo tipo de jornalismo e uma antologia de exemplos de reportagens que ajudaram a construir e estabelecer o gênero.
4 A maioria dos pesquisadores que buscaram conceituar a reportagem, afirmar o que ela é, fizeram em comparação com o gênero notícia. O caráter efêmero do jornalismo diário apresentado pela imprensa serviu de combustível para estabelecer a grande reportagem como gênero profundo, complexo e completo. 25
O jornalismo convencional logo apresentou suas dificuldades e elas foram profícuas para sustentar a conveniência de um jornalismo interpretativo, aquele que, publicado sobretudo em revistas, busca preencher os vazios informativos esquecidos pela imprensa diária durante a semana. O traço distintivo da interpretação jornalística que salta aos olhos é o empenho em entender o entrelaçamento de forças que atuam em um fato, conectando acontecimentos anteriores e visualizando a possibilidade de consequências. Em Páginas ampliadas, Edvaldo Pereira Lima explica que o propósito do jornalismo interpretativo é “tecer as relações entre a rede de causa e efeitos” (1993, p. 26). É o espaço onde o desejo de abraçar a realidade se apresenta, e esse desejo tem como resultado a reportagem. Em comparação com o gênero notícia, que cuida da cobertura de um fato, a grande reportagem quer levantar respostas mais profundas, mais detalhadas. Para tanto, não se contenta com o hic et nunc, ultrapassa o aqui e o já, enriquece tempo e espaço, tornando o tempo menos presente e o espaço mais amplo. A grande reportagem oferece ao seu autor, portanto, uma liberdade de atuação maior do que
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a proporcionada pela forma convencional de tratamento da informação. Nas teorias do jornalismo, é comum encontrar a reportagem conceituada como “extensão da notícia”, ou classificada como gênero informativo. No entanto, os pilares que sustentam o jornalismo tradicional, pai da notícia enquanto gênero, hesitam diante da grande reportagem. A objetividade fora a primeira a perder o equilíbrio, e com ela a imparcialidade que, afirmam todos, não existe. Com o tempo, a notícia se mostrará inadequada para cumprir sua própria incumbência. Ela sobrevive porque se adapta à liquidez da modernidade, às necessidades da sociedade contemporânea, sobretudo a velocidade de transmissão de informações, e por conseguinte continua largamente praticada nas redações dos jornais impressos. O advento da modalidade jornalística grande reportagem está relacionado ao atendimento das necessidades do público, que precisa ter uma compreensão abrangente sobre os fatos. O leitor pode não encontrar determinado tema de seu interesse nos veículos cotidianos de imprensa, pouco dispostos a publicar assuntos que não agradam os critérios de noticiabilidade. O leitor pode então se satisfazer com uma grande reportagem que, livre em questões temáticas, absorveu o assunto. 27
A notícia rápida, curta e efêmera, cumpre a disfunção de narcotizar¹ os leitores. Conhecendo pouco sobre tantos assuntos, eles se apequenam diante de um volume grande de informação superficial, contentando-se com o status quo estabelecido. Por sua vez, a grande reportagem pode contribuir para motivar questionamentos a respeito da sociedade, e promover os estribos para uma avaliação crítica de sua estrutura. Sobre a atualidade, ela sofre uma dilatação e se torna contemporaneidade. Na grande reportagem, a ocorrência a que se dedica o jornalista não precisa ser rigorosamente atual, mas se torna assunto, desperta o interesse público, ou por um novo acontecimento que lhe renovou a relevância ou por qualquer outra artimanha que transporte para o presente um tema esquecido. A verdadeira preocupação do jornalismo é entender a contemporaneidade. A ele cabe então falar sobre tendências culturais duradouras que, ainda que iniciadas meio século antes, permanecem e se manifestam nos dias atuais, relacionando-se com os contextos vigentes. Trata-se, assim sendo, de desco(1) O termo disfunção narcotizante foi utilizado por Paul Lazarsfeld e Robert Merton – no texto Comunicação de massa, gosto popular e ação social organizada – para explicar uma das influências que a mídia exerce sobre o público.
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brir o passado que ainda existe no presente. A atualidade está conectada com a periodicidade do veículo de comunicação. (Quando muito limitada, a periodicidade pode ser nociva ao jornalismo. Causa fenômenos como fontes legitimadas, ausência de versões diferentes da oficial, pouco tempo destinado à pesquisa e procura de aspas). Os portais de notícias na internet se atualizam a cada minuto. Os jornais diários, com dead line curto, falam sobre acontecimentos do dia anterior. As revistas semanais têm mais tempo para apurar e apresentar os principais assuntos da semana. E o livro-reportagem é livre para discutir sobre temas de interesse permanente, atemporal. A relação entre jornalista e fonte, na grande reportagem, é diferente da que acontece nos conformes do tratamento convencional da informação. A notícia herdou do positivismo o afastamento entre cientista e objeto de pesquisa, que se reflete na distância que o repórter mantém das fontes. Elas são nada além de indivíduos que acrescentam um ângulo diferente à matéria, ora como testemunhas do acontecimento, ora como experts que, especialistas no assunto, explicam o que ocorreu. Em seu turno, a grande reportagem tem por
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natureza entender a fonte não apenas como pessoa que declara entre aspas, mas como personagem de características únicas, e que não se enquadra em um questionário fechado. A grande reportagem se volta para o homem, humaniza suas fontes e valoriza a maneira de ser de cada uma. Para tanto, o repórter precisa se aproximar delas. Quanto às decisões a respeito da organização das informações no texto, a grande reportagem recusa-se a sempre começar com o mais importante ou interessante, desdenha a pirâmide invertida. De fato, quando o jornalista reúne uma quantidade de dados, declarações gravadas, anotações e documentos o bastante para produzir uma grande reportagem, ele encontra problemas para enquadrar o texto nos conformes da pirâmide invertida. Para resolver, Medina propõe o texto baseado em blocos ou retrancas, de forma estratificada, com um modelo dinâmico ou anti-modelo (Entrevista: o diálogo possível, 2005, p. 64-69). No processo de escrever uma grande reportagem, o jornalista, munido de um volume considerável de informações, delibera sobre a engenharia do texto, atividade semelhante à estruturação de uma narrativa literária. Quando extensa, a narrativa precisa de uma montagem inteligente, que ordene ha30
bilmente ações, ambientes, personagens, situações, discussões, “de modo a haver, no todo, uma unidade organizada com lógica, graça e harmonia” (1993, p. 125), explica Pereira Lima. A sequência de eventos pode não aparecer de forma cronológica: o cinema costuma ser uma importante fonte de inspiração para jornalistas, que se apoderaram de cortes no tempo, inversões de lógica, flash back, entre outras técnicas cinematográficas. Significa encarar o texto da grande reportagem como um acontecimento estético e imprimir criatividade para escolher qual processo narrativo utilizar. Há, portanto, como escreveu Pereira Lima, uma “liberdade expressiva centrada na figura de quem reporta” (1993, p. 135). Cabe aqui a analogia que Humberto Werneck criou, no posfácio de Fama e anonimato, para criticar o tratamento padronizado da notícia: “Como se a informação devesse ser, goela abaixo do leitor, uma espécie de pílula para astronauta, que nutre sem a obrigação de ser palatável” (2004, p. 524). Não significa abandonar a clareza almejada pelo jornalismo (a função poética da linguagem estará sempre sujeitada ao compromisso de informar com nitidez), mas evitar o anacronismo da linguagem produzida pela indústria da notícia, que é limitada por manuais de redação, padronizada e sem vida. 31
São produtivas as relações entre literatura e jornalismo. O resultado dessas aproximações, segundo Medina, renova o estilo do jornalista e aumenta o grau de eficiência de seus textos. Trata-se de “introduzir nas fórmulas gastas algumas formas que os artistas já experimentaram” (Entrevista: o diálogo possível, 2005, p. 62). Em Técnicas de reportagem, Sodré e Ferrari notam correlações entre reportagem e conto: ambos têm narrativas condensadas, evitam itens supérfluos e abordam os acontecimentos de forma inovadora. Tudo isso para a “manutenção da curiosidade do leitor” (1986, p. 76), que precisa ser incentivado a ler até o final. E o repórter deseja conduzir o leitor por um processo de fruição.
5 Entre os autores que se preocuparam em elencar os diferentes modelos de reportagem estão Oswaldo Coimbra, no livro O texto da reportagem impressa; e Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari, em Técnica de reportagem. Em seu livro, Coimbra elabora seus modelos preocupado com a função do texto enquanto estrutura. Sodré e Ferrari definem os tipos de reportagem encarando o texto como relato jornalístico. A análise feita por um observa o problema de
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um ângulo que o outro despreza. Coimbra separa as reportagens em dissertativa, narrativa e descritiva. Sodré e Ferrari, em de ação, documental e de fatos. Esta formulação de modelos para a reportagem é feita, sabem os autores, com fins didáticos e analíticos. É desejável que o repórter não enquadre todo o corpo do seu texto nos conformes de apenas um modelo. A leitura fica mais prazerosa quando momentos de coloração de um ambiente se alternam com a exposição de dados que fundamentam uma ideia, quando um diálogo entre personagens se intercala com a descrição de características das pessoas envolvidas na história... O hibridismo, afirmam Sodré e Ferrari, a utilização de vários modelos numa reportagem só, é útil para captar a atenção do receptor. “Evidentemente, os modelos não são rígidos: é possível haver combinações. Para quebrar a frieza de uma reportagem documental, por exemplo, e captar o interesse do leitor para o assunto, muitas vezes usam-se recursos da action story ou da fact story” (1986, p. 57). Cada um dos modelos de reportagem foi esclarecido em poucas linhas por Sodré e Ferrari, em Técnica de reportagem. Conforme o significado que dão ao primeiro modelo, a reportagem de fatos é o relato objetivo dos acontecimentos em pirâmide invertida, 33
por ordem de importância. Nesse caso, para o registro ir além da condição de notícia, precisa ser envolto em circunstâncias que forneçam ao leitor condições de se posicionar criticamente diante do episódio (1986, p. 45). Ainda que nomes da pesquisa em jornalismo tenham criticado as fórmulas convencionais de tratamento do texto, a pirâmide invertida enquanto forma permanece como modelo disponível para qualquer jornalista se ele achar interessante para a engenharia do texto que pretende escrever. (Em verdade, a reportagem é um gênero expressivo porque abraça outros gêneros). A pirâmide invertida não precisa, portanto, ser dispensada como irrelevante para a reportagem. Mesmo dentro desse sistema “engessado”, o repórter pode inserir um pouco de criatividade caso ele, por exemplo, construa, em flashes, pequenas notícias independentes. A reportagem de ação é aquela que prende o leitor através do desenrolar dos acontecimentos, “como num filme” (1986, p. 52). Aqui o repórter precisa participar da ação para aproximar também a percepção de quem lê. No ato de escrever o texto, seu autor pode se ausentar, evitando permear a história com interpretações pessoais, descrição de objetos, argumentação... abandonando o leitor diante dos eventos, tirando-o da posição contemplativa 34
confortável. Isso fará do relato “mais ou menos movimentado” (1986, p. 52). Conforme os esquemas de texto propostos por Sodré e Ferrari para este modelo de reportagem, pode ser cronológico, onde a história começa pelo fato mais remoto e avança no tempo; ou iniciar “pelo fato mais atraente, para ir descendo aos poucos na exposição dos detalhes” (1986, p. 52). Por sua vez, a reportagem documental é definida como aquela que apresenta elementos acompanhados de “citações que complementam e esclarecem o assunto tratado” (1986, p. 64). A ideia é ter informações pesquisadas para conferir fundamentação ao que se enuncia, apoiar o relato em dados concretos. Sodré e Ferrari vêem semelhanças entre este modelo e os documentários de televisão ou cinema. Algumas vezes tem “caráter denunciante” (1986, p. 64), noutras, assume um tom pedagógico. No livro O texto da reportagem impressa, Coimbra dedica alguns capítulos para elencar os diferentes modelos de reportagem e apontar as singularidades de cada um. Diferente do que fazem Sodré e Ferrari, Coimbra se preocupa com aspectos interiores do texto, que ele chama de segunda face, a organização dos elementos textuais em estrutura. O primeiro modelo que ele analisa é a repor-
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tagem dissertativa ou expositiva. Nesse capítulo, Coimbra examina profundamente a construção do parágrafo dissertativo e seus ingredientes. Começa com o que ele chama de comentários generalizantes, frases onde o autor da reportagem raciocina sobre as informações, interpreta os dados, mas fundamenta em seguida, conformando o que ele disse com declarações das fontes. “A relação declaração do entrevistado – declaração do autor é uma relação de confirmação de uma por outra, ou melhor, de exemplificação desta por aquela” (1993, p. 23). Em seguida, Coimbra analisa o tópico frasal, aquele que “traz sucintamente a ideia núcleo do parágrafo dissertativo em um ou dois períodos” (1993, p. 29), é útil para cercar os pensamentos que serão desenvolvidos e estabelecer um rumo para eles. Depois, apresentam-se os argumentos para justificar o tópico frasal, em analogias, exemplos, fatos, números, declarações. Ao fim e ao cabo, dá-se a conclusão, que ora serve para encerrar o parágrafo, concluindo, em resumo, a ideia; ora apresenta uma ideia diferente, uma surpresa, um fato curioso, uma frase poética. No capítulo sobre a reportagem narrativa, Coimbra explica os conceitos que envolvem a ordenação de acontecimentos na reportagem, as mudanças progressivas de estado “nas pessoas ou nas coisas” 36
(1993, p. 44). A intenção deste modelo é “recriar a realidade diante dos olhos dos leitores, mostrando a eles um eterno acontecer” (1993, p. 45). O primeiro conceito digno de atenção foi o foco narrativo, a posição do narrador diante dos acontecimentos, a perspectiva sob a qual será apresentada a história. Ao escrever, o repórter terá que optar qual foco narrativo lhe agrada. Há o narrador testemunha, aquele que fala em primeira pessoa sobre os acontecimentos, “utilizando informações que colheu e aquilo que viu e ouviu” (1993, p. 46). Há também o narrador protagonista em primeira pessoa: nos conformes dessa forma de narrar, a reportagem ou se estriba nos pensamentos e sentimentos do repórter centro da história; ou “ocorre nos depoimentos extensos dos entrevistados em que o texto é escrito como se fosse deles” (1993, p. 47) . Outra opção é o narrador onisciente em terceira pessoa, que é “o modo de narrar de quem não somente conhece todos os acontecimentos mas até mesmo os pensamentos das personagens” (1993, p. 47). O nome “onisciente” aplicado por Coimbra é compreensível na literatura, mas no jornalismo é um equívoco. O repórter não tem a faculdade da onisciência, apenas tem ciência do que apurou. Em verdade, ele cria o efeito de onisciência que oculta o árduo trabalho de apu37
ração. Narrador neutro é um termo mais adequado. (Uma alternativa que Coimbra não menciona é o narrador intruso, aquele que se insere no texto em terceira pessoa, como quando Tom Wolfe coloca-se como personagem da própria reportagem na alcunha de “homem de chapéu de feltro marrom”). O último dos focos narrativos propostos por Coimbra é o modo dramático – o mais comum no jornalismo – onde “o narrador se limita a informar o que as personagens fazem e o que falam” (1993, p. 48). Também é importante para a reportagem o conceito de tempo narrativo, a maneira como o leitor percebe o andamento fluir no texto. Coimbra define quatro diferentes. O psicológico é aquele “composto por uma sucessão de estados internos, subjetivos” (1993, p. 51). Aqui a distinção entre presente e passado é imprecisa, e as medidas temporais são inválidas. No tempo físico os valores são percebidos por meio de eventos da natureza, como em “com o sol já ameaçando a nascer, começavam a acordar” ou “mesmo sendo noite, a maioria dos passageiros...”. Se os acontecimentos se derem no tempo marcado pelo calendário, então é cronológico, indicado por datas específicas, anos, meses, semanas... Há ainda o tempo linguístico, onde o marco temporal está presente no texto, que tem um agora único e di38
ferente do momento da publicação da reportagem. “É apenas um eixo temporal que define o que é passado e futuro na narrativa” (1993, p. 52). É comum no texto jornalístico a técnica da presentificação ou, conforme a denominação de Coimbra, o presente histórico, o ato de aproximar fatos do passado colocando o verbo da ação no presente, como no título “População antecipa Dia de Finados e aumenta movimento em cemitérios”. Outro conceito fundamental para a construção da reportagem narrativa é a personagem. O repórter precisa dar vida às pessoas através das palavras. As personagens podem ser planas, construídas “em torno de uma única ideia ou qualidade” (1993, p. 72), como a de mocinho ou antagonista, como portador de uma característica inusitada ou objeto de glamour. É com certeza uma “visão parcializada” (1993, p. 73) do entrevistado. Em seu turno, a personagem redonda é descrita a partir de suas múltiplas faces, suas preocupações, seus valores, comportamentos, histórico de vida. Ao escrever sobre tal personagem, o repórter tem o cuidado de construí-la em sua complexidade. E quando a pessoa já é conhecida pelos leitores fora do texto, é um famoso “imobilizado por uma cultura”
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(1993, p. 73), trata-se de um personagem referencial. Dentro da reportagem narrativa, as pessoas se movimentam em um espaço, um cenário onde a ação se desenrola. É preciso demarcadores que apontem para um determinado ambiente. Eles podem estar em nomes de cidades, bairros, praças, ou diluídos no texto em palavras como “aqui”, “lá”, “saindo de casa”... O modelo de reportagem sobre o qual Coimbra, em seu livro, trata por último foi o descritivo (1993, p. 86). É o discurso que paralisa pessoas, ambientes e coisas em um momento onde o tempo não avança, com o objetivo de detalhar, pormenorizar. Essa preocupação em descrever promove verossimilhança, uma vez que torna o objeto descrito mais completo para a imaginação do leitor. A predição de qualidades pode ser feita de perto ou de longe. No jornalismo, observar com proximidade os acontecimentos é um ato bem quisto, entretanto o afastamento também é vantajoso porque nele o observador encara o fato de ângulos distintos, tem uma visão completa e menos apaixonada. Cabe ao repórter saber quando aproximar-se para ver e quando afastar-se para entender. A descrição realizada, segundo Coimbra, pode ser fotográfica ou impressionista. No primeiro caso,
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o repórter se contenta em enunciar o que observou; no outro, apresenta sua visão particular sobre o que vai descrever. A atribuição de traços, qualidades ou características na reportagem se dá ou em fragmentos de texto reservados para este fim, ou de forma diluída em declarações, em atitudes de uma personagem perante outras, em reações diante de um acontecimento. As palavras que a fonte escolhe pronunciar dizem não somente o que significam, mas também caracterizam quem as pronunciou. Podem revelar a região de origem da pessoa, caso ela utilize termos comuns de um determinado lugar. Ou sugerir o trabalho que desempenha, se falar um termo técnico de uma profissão específica. Ou, caso ela empregue uma palavra em desuso, isso pode indicar que se trata de alguém antiquado. O modo como a fonte escolhe as palavras pode dizer, sem no entanto dizer, qual é o nível de escolaridade dela, por exemplo. A respeito das características psicológicas, de caráter ou temperamento de uma personagem, o repórter, diz Coimbra, evita ser categórico e aferir conclusões definitivas. É almejado que se acumule indícios sobre como a pessoa se percebe e atua no círculo social, como encara questões políticas ou econômicas, a maneira como enfrenta os problemas do seu meio. Tais informações o repórter apenas consegue 41
captar se estiver em diálogo possível com sua fonte. Sabe Coimbra que sua divisão de modelos de reportagem funciona para efeitos didáticos. Na grande reportagem, narração, descrição e exposição se complementam, coexistem, e cabe ao seu autor estabelecer criativamente as transições entre elas.
6 O meio que veicula a grande reportagem é sobretudo o livro-reportagem. A função dele é, conforme Pereira Lima, “informar e orientar em profundidade sobre ocorrências sociais, episódios factuais, acontecimentos duradouros, situações, ideias e figuras humanas, de modo que ofereça ao leitor um quadro da contemporaneidade capaz de situá-lo diante de suas múltiplas realidades, de lhe mostrar o sentido, o significado do mundo contemporâneo” (1993, p. 37). O trabalho que desempenha, portanto, “é mais ambicioso do que a simples reprodução de matéria publicada em jornal ou revista” (LIMA, 1993, p. 11). Isso porque ele possui uma autonomia peculiar, o que lhe permite experimentações que são incomuns e até impraticáveis nas redações dos veículos periódicos. O livro-reportagem “avança para o aprofundamento do 42
conhecimento do nosso tempo, eliminando, parcialmente que seja, o aspecto efêmero da mensagem da atualidade praticada pelos canais cotidianos da informação jornalística” (LIMA, 1993, p. 16). Outra característica do livro-reportagem é sua universalidade, uma vez que ele promove uma variedade expressiva de temas a serem abordados, e também estimula a investigação de múltiplos aspectos e ângulos dentro do mesmo tema. Ele divide a realidade que focaliza (LIMA, 1993, p. 43). Apesar da recusa em se adequar a algumas características do jornalismo tradicional, o livro-reportagem é um “subsistema do jornalismo” (LIMA, 1993, p. 20) porque: o profissional que o escreve é (quase sempre) um jornalista que utiliza os recursos técnicos oriundos da sua profissão: a pauta, a apuração, a redação. A inquietude do jornalista que não encontra espaço na imprensa quotidiana para utilizar seu poder comunicativo é uma das razões que incentiva a existência dos livros-reportagem. (Editores argumentam equipes reduzidas, pouco espaço para textos maiores e baixo orçamento para financiar o tempo de pesquisa do repórter). Sobre o tempo que passou no Alabama, em 43
1965, cobrindo para o New York Times a marcha de Selma a Montgomery e as manifestações dos negros norte-americanos, Gay Talese revelou, em Vida de escritor, que “como sempre acontecia, estava insatisfeito com o que tinha escrito, desejando ter tido mais tempo para entrevistar pessoas, refazer meu texto e pensar em palavras mais adequadas para descrever o que eu tinha visto” (2009, p. 184). O que aborrecia Talese eram as limitações diárias de espaço, as pressões do fechamento e a sensação de nunca terminar o que escrevia. Tais frustrações levaram o jornalista a abandonar a imprensa diária e a procurar emprego na revista Esquire, para a qual produziu reportagens mais longas. Entretanto, seu potencial somente foi praticado ao limite nos livros que escreveu.
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A ferrovia estratĂŠgica na cidade central
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Rua velha Campo Grande era, nos primeiros anos do século vinte, um vilarejo onde mil e duzentas pessoas habitavam. Viviam sobretudo em pequenos ranchos e casas de pau-a-pique construídas à beira dos córregos Prosa e Segredo, o espaço urbano primitivo. As moradias eram baixas, achatadas, cobertas de telhas de barro e sem varandas, “no velho estilo mineiro”, conforme Abílio Leite de Barros, em Crônicas de uma vila centenária. O historiador Gilmar Arruda, no artigo A ferrovia e o povo do sertão, descreve Campo Grande como “um povoado esquecido no meio do sertão, pequeno, pouco habitado”. Dos córregos impolutos os moradores reti47
ravam a água necessária para abastecer as famílias, escoando-a por valas abertas na terra. E, para evitar que a poluíssem, fizeram acordos verbais, combinaram normas de uso que todos tinham que respeitar. Todavia, essa partilha da água ocasionava, às vezes, controvérsias entre os usuários. Sobre as condições climáticas, as temperaturas não subiam tanto no verão e, no inverno, desciam pouco, sem quedas abruptas. Uma brisa soprava quotidianamente e trazia ar purificado do leste, amenizando os momentos de calor. Tais circunstâncias, favoráveis ao florescimento da vida humana, permitiam uma porcentagem diminuta de óbitos por doença. Mas, se um enfermo falecesse, enterrariam o cadáver no cemitério onde atualmente está a Praça Ary Coelho. A única rua que existia não tinha nome próprio, mas a população chamava-a “Rua Velha” (atual 26 de Agosto), lugar onde eram estabelecidas todas as relações sociais, políticas e econômicas. Havia, na extremidade deste primeiro logradouro público, um espaço que funcionava como estacionamento para as carretas dos mascates, que ali improvisavam seus bazares cheios de quinquilharias, e boiadeiros. Neste local está a Praça dos Imigrantes, revitalizada, trans-
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formada em feira de artesanato. Carroças e carros de boi passavam pela rua única, erguendo poeira, cobrindo a visão dos moradores. Antes da ferrovia alcançar Campo Grande, articulando modos até então inéditos de transporte, as trocas de mercadorias e o contato com novas ideias se davam quando carros de boi ou forasteiros apareciam, breves. Conforme Valério de Almeida, no livro Campo Grande de outrora, quase todo o comércio era feito com Uberaba, de onde vinham tropas de cargueiros para abastecer as casas de negócio da vila. Campo Grande era, por causa de sua posição central, ponto de cruzamento de rotas de circulação e comercialização. Ser equidistante, estar a meio caminho de, foi crucial para a sua fortuna. Também utilizava as rotas o estafeta que, montado no lombo de um burro, distribuía as correspondências para a agência dos correios, de mala postal à garupa. Os boiadeiros e a peonada aproveitavam a ocasião de estarem na vila para frequentar cabarés explícitos ou prostíbulos discretos, as “casas suspeitas”. Eles andavam armados, porque consideravam o revólver um item indispensável de vestuário. 49
Em 1905, a intendência municipal, sem ainda um edifício destinado a ela, funcionava na casa do intendente, e a câmara na casa do seu presidente. Nesse ano, o primeiro código de posturas foi aprovado. “Os habitantes começaram a experimentar algum tipo de normatização que buscava orientar as relações sociais entre os moradores e as relações deles com o espaço que habitavam”, escreveu o geógrafo Antônio Firmino de Oliveira Neto, no livro A rua e a cidade. As normas, elaboradas em doze capítulos, descreviam, por exemplo, os critérios para a comercialização de mercadorias, as regras de higiene e ordenamento para as áreas públicas, a proibição do uso de armas ofensivas, a responsabilidade, para os sacristãos, de badalarem os sinos das igrejas caso houvesse incêndio na vila, o veto ao samba, cateretê ou qualquer outra dança que provocasse estrondo e vozeria, a proibição de vender, nas tavernas, bebidas alcoólicas a quem estivesse embriagado, as penalidades adequadas aos desobedientes... A intenção era incentivar os moradores de características sertanejas a se comportarem conforme o modo de vida urbano. O objetivo era, segundo J. Barbosa Rodrigues, no livro História de Campo Grande, “preservar a ordem na então pequena vila, onde nem sempre as autoridades eram acatadas com o respeito 50
que mereciam”. A vila, afirma o sociólogo Paulo Cabral, por menor que fosse, supunha um adensamento de pessoas, e “o adensamento pode trazer, ensejar o conflito”. Nesse quadro, o código de posturas buscava “harmonizar a vida num espaço tão exíguo, sinalizar como deve ser a convivência, quais os limites das pessoas”. Os artigos do código de posturas eram uma indicação nem sempre observada por todos. “Apesar dessas providências”, adverte J. Barbosa Rodrigues, “por longos anos imperou na vila a lei do mais forte, do mais valente”. A Rua Velha era a única que existia quando o código de posturas foi aprovado, mas ele já normatizava sobre ruas e praças, antevendo a necessidade de compor um plano de arruamento. A intendência municipal solicitou ao engenheiro Nilo Javari Barém o desenho da planta de expansão urbanística. Foi criada em 1909 e executada, depois, por Amando de Oliveira. A proposta urbanística ia de acordo com os modelos e preocupações de então: “o quadriculado de ruas em forma de tabuleiro de xadrez, com largas ruas e calçadas, estava atento às necessidades de in51
dustrialização e higienização”, afirma Antônio Firmino. Durante as obras de implementação da planta, foi necessário demolir alguns ranchos e sacrificar numerosos laranjais dos quintais das residências. Amando, conforme Barbosa Rodrigues, “de punhos cerrados, explicava que a casa do seu fulano ou beltrano não devia forçar a rua a se acotovelar”. Na planta original, uma rua chamada Inhanduí estava prevista, mas foi substituída pelos trilhos da ferrovia.
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“Era um sertão, era um mato grosso”¹ No último capítulo de A Retirada da Laguna, Visconde de Taunay descreve a desgraça dos soldados brasileiros, em Nioaque, em junho de 1867. Aqui vai um trecho, em itálico, que representa o malogro militar, a conclusão catastrófica do episódio. Não poderíamos ter a menor suspeita de semelhante cilada (...) Para melhor nos enganarem haviam os paraguaios espalhado a pólvora sóbria e desigualmente com o minucioso cuidado (...) Só se viu, a princípio (1) A frase do sociólogo Paulo Cabral explora os dois significados do termo mato grosso: um sentido literal, que expressa as condições sertanejas do lugar, e outro sentido que significa o nome do estado.
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brilharem pequenas chamas e aqui e acolá se levantarem sucessivamente ligeiras espirais de fumaça. Já os soldados se precipitavam para conter o fogo (...) quando os oficiais presentes (...) ordenaram que imediatamente fosse a igreja evacuada. A esta voz correram todos, em massa, para as portas (...) deuse a explosão antes que toda a gente se achasse do lado de fora. Pouco faltou para que todo o edifício voasse aos ares; foram as paredes sacudidas, mas o conjunto resistiu (...) Já nos precipitáramos para a igreja; dela saiam, dentre turbilhões de fumo, irreconhecíveis formas, fantasmas enegrecidos e avermelhados pelo fogo. Ardiam uns com as roupas em chamas, outros completamente nus e cuja pele pendia em frangalhos, soltavam urros; alguns ainda rodopiando como alucinados já se debatiam nas angústias da agonia (...) Morreram ali mesmo, no local, uns quinze desventurados. Este episódio da Guerra do Paraguai (18641870), conforme o sociólogo Paulo Cabral, foi um fator decisivo para a identidade de Mato Grosso do Sul, que estabeleceu sua autonomia “em razão de um fracasso militar”: a Retirada da Laguna. “É a partir dessa derrota que o governo central
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percebe a necessidade de guarnecer aquele flanco e não correr novos riscos”, explica Paulo Cabral. J. Barbosa Rodrigues, se estivesse vivo, concordaria com o sociólogo. No História de Campo Grande, ele inicia o capítulo A estrada de ferro argumentando que “a guerra do Paraguai veio demonstrar a necessidade que havia de a então longínqua Província de Mato Grosso ser ligada às cortes imperiais, a fim de que não mais permanecesse ao alcance da cobiça dos povos limítrofes e que pusesse fim às ameaças e lutas”. Portanto, o fracasso militar, a fragilidade que ele indicou, resultou na construção da estrada férrea, a Itapura-Corumbá. Em verdade, as metrópoles ibéricas, Portugal e Espanha, “nunca estabeleceram de forma inequívoca o limite de seus territórios sul-americanos”, explica o historiador Paulo Roberto Cimó Queiroz, no livro Uma ferrovia entre dois mundos. E os países que surgiram após os processos de independência tiveram que definir seus contornos, retomando lutas fronteiriças. Assim aconteceu com a região sul de Mato Grosso, que foi incorporada tardiamente ao Brasil. Com exceção de algumas explorações pontuais, esse 55
território ficou por muito tempo preservado da ocupação europeia. Foi incorporada, mas continuou vulnerável, e os dirigentes brasileiros temiam que um país vizinho a absorvesse. A maior ameaça era a possibilidade da Argentina conquistar esse território, numa hipotética guerra. Além dos casos de conflito externo, incomodavam também os problemas internos. Haviam grupos que buscavam controlar a região, como acontecia nas lutas armadas coronelistas. Na Revolução de 1906, lembra Cimó Queiroz, Cuiabá foi cercada e o presidente do Estado, assassinado. Tropas federais foram enviadas, mas não chegaram a tempo de evitar a vitória dos insurretos. “Nesse episódio, com efeito, patenteou-se a incapacidade, por parte do governo federal, de garantir o poder legal estabelecido”. O acesso às cidades de Mato Grosso precisava ser rápido e cômodo, mas era lento e burocrático. Quem, do litoral, fosse para lá, teria que navegar os rios da bacia platina em territórios argentinos e paraguaios. Este percurso, embora o mais adequado, poderia demorar, em determinadas épocas, um mês, e era politicamente precário, porque dependia do consentimento dos países vizinhos.
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O governo nacional começou, então, a buscar maneiras de ampliar o controle sobre o sul do território mato-grossense. Quis defender sua fronteira. Nasceu a ideia de conectar esta região ao sudeste brasileiro, construindo uma estrada férrea que fosse até lá, num ponto ainda indefinido. Queriam, também, mudar o eixo econômico, que estava preso ao circuito fluvial platino, para o território paulista. Esta medida, esperava-se, aumentaria a órbita de influência sobre os países vizinhos menores, encaminhando para o Brasil o comércio do sudeste boliviano e norte paraguaio. Além disso, o poder estatal, ali escasso, elevaria-se, facilitando a tarefa de combater movimentos perturbadores da “ordem”. A necessidade de comunicação, via estrada férrea, com Mato Grosso, ficava mais e mais evidente, e vieram as sugestões de traçado. Entre os projetos propostos, destacou-se o estudo elaborado pelo engenheiro Emílio Schnoor, impresso e debatido no meio técnico. Conforme seu desenho, a estrada férrea iniciaria em Bauru e atingiria Corumbá, na fronteira com a Bolívia. Conectada à rede ferroviária boliviana, seria possível alcançar o Pacífico. “A ferrovia não foi montada pra transportar pessoas, a ferrovia foi mon-
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tada pra integrar a América. Este era o princípio do Schnoor. Interligar o Atlântico ao Pacífico. Ainda que até hoje isso não tenha acontecido”, afirma o arquiteto e urbanista Ângelo Arruda. Outras vantagens, segundo o engenheiro, eram a posição estratégica e militar em caso de guerra; o futuro aproveitamento de reservas hidráulicas; e os benefícios de atravessar, com a estrada, uma área de criação extensiva de gado, os Campos da Vacaria. Embora o projeto fosse ao encontro dos anseios do governo, foi descartado. Quem adquiriu a concessão para construir a linha foi a Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil. Em julho de 1905, em Bauru, o processo de construção da via férrea se iniciou, e iria até Cuiabá, capital de Mato Grosso, respondendo a um projeto diferente, com destino diferente. A frente de construção dos trilhos estava em território paulista quando o governo decretou, em 25 de abril de 1907, a mudança do ponto terminal, deslocando-o para uma cidade mais ao sul, para Corumbá. Conforme Paulo Cabral, “Cuiabá já estava decadente. O ciclo do ouro já tinha se esgotado. E desde então nunca mais o norte tinha tido uma atividade econô58
mica que justificasse um investimento dessa monta. O sul também não tinha uma atividade econômica que justificasse, mas tinha essa razão estratégico-militar, que é o que determina o traçado da ferrovia”. Essa mudança correspondia ao percurso sugerido por Schnoor. O engenheiro foi então enviado ao sul de Mato Grosso, em 1907, para reconhecer o novo traçado. A Comissão Schnoor foi criada para tal incumbência. Essa equipe de técnicos percorreu a região, reconheceu a área, corrigiu o traçado proposto inicialmente, adequando-o aos acidentes geográficos. “Uma coisa é fazer no papel, outra coisa é ver as dificuldades in loco”, diz o engenheiro Celso Higa. Assim Schnoor chegou, no dia 28 de outubro de 1907, em Campo Grande, sobre a Serra de Maracaju, e ali ficou poucos dias, mas incluiu esta vila no trajeto da via-permanente. Os habitantes, gratificados, foram amáveis com o engenheiro Emílio, cujo sobrenome germânico eles tinham dificuldades para pronunciar. Essa passagem de Emílio Schnoor pelo vilarejo foi descrita mais tarde, brevemente, no relatório do engenheiro, em 20 de fevereiro de 1908: (...) e chegamos no dia 28 de outubro no Cam59
po Grande, e grande centro comercial de criação de gado e o primeiro núcleo de população que encontramos depois de 460 quilômetros de percurso no Mato Grosso. A 3 de novembro, saímos de Campo Grande, encantados das formosas e vastas campinas (...) As opiniões sobre Emílio Schnoor concordam em dizer que ele é um personagem importante para o crescimento da antiga vila, depois cidade, depois capital. Assim dizem os mais velhos, os pesquisadores, os historiadores, os comentários na internet. “Que as novas gerações de campo-grandenses saibam ser gratas ao muito que Emílio Schnoor fez pela região, principalmente por Campo Grande, com os estudos que procedeu para demarcar o nosso caminho de ferro”, escreveu J. Barbosa Rodrigues, no História de Campo Grande. “Apesar de não ter nascido nem morado em Campo Grande, sua rápida passagem e decisão foram fundamentais para o desenvolvimento da cidade”, diz Celso Higa. “Mas nunca é demais avivar os feitos do Engenheiro Emílio Schnoor, que, como homem de visão, trouxe para nossa região os trilhos da NOB e com eles o desenvolvimento. Ele vislumbrou para Cam60
po Grande um futuro promissor”, avalia Tânia Maria Cardoso Arima, na crônica Retalhos de Lembranças. “Campo Grande, hoje capital de Mato Grosso do Sul, deve praticamente todo o seu progresso a Emílio Schnoor… Foi dele o projeto que alterou o traçado da Estada de Ferro Noroeste do Brasil e deu vida à cidade! Hoje é nome de rua e sempre lembrado na história da cidade”, comenta Edson Contar no texto Ao vô Emílio, publicado por Angela Schnoor, no seu blog. Em Campo Grande, no Bairro Tiradentes, há uma via pública com o nome desse engenheiro. É verdade que se chama Avenida Schnoor. Não passa, porém, de uma travessa estreita, de 150 metros, ocupada por algumas residências e um colégio de ensino infantil, “num local sem relação histórica com a ferrovia, que nem trilhos e dormentes tem por perto”, critica Celso Higa, no artigo O engenheiro que impulsionou a Cidade Morena com a estrada de ferro. Higa, quando entrevistado por um repórter -estudante, foi questionado a respeito da mudança da Avenida Schnoor, que antes ficava em qual lugar? — A Schnoor é hoje a João Rosa Pires. Sabe onde é a João Rosa Pires? O repórter conservou no rosto uma expressão 61
de dúvida e admitiu: “Não sei”. E não sabia mesmo, talvez por não viver em Campo Grande tempo o suficiente para conhecer bem as ruas e seus nomes. — Conhece o Mercadão? Celso Higa perguntou esperando que o repórter soubesse onde fica esse ponto de referência, que é bastante conhecido de todos. Ele sabia e respondeu “Uhum”, lembrando-se das lojinhas que lá vendem pimentas, gengibre, canela e outras iguarias e temperos. — Não tem o estacionamento do Mercadão? — Sim. — Você não passa do lado do Colégio Oswaldo Cruz? O repórter acenou positivamente, fazendo que sim com a cabeça, e dizendo “Ah!” Pensou naquele colégio de arquitetura antiga, talvez eclética, que fica perto do Mercadão, na rua de baixo, pintado de amarelo e azul. Ele tem mesmo uns adornos típicos do início do século passado. Entretanto, o repórter ignorava o nome da escola, e por isso o seu “Ah!” saiu da sua boca meio hesitante, irresoluto, titubeante.
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— Aquela rua que vira e cai na Praça das Araras. Essa é a antiga Avenida Schnoor. A alteração para o Bairro Tiradentes aconteceu por decreto municipal, em 14 de janeiro de 1977, quando mudaram nomes das ruas para prestigiar pessoas da cidade. J. Barbosa Rodrigues considerou essa substituição uma injustiça feita por legisladores, “certamente ignorando o que Schnoor fez por Campo Grande”. *** Nos conformes da característica estratégicomilitar da estrada férrea, sobretudo no trecho Itapura-Corumbá, Campo Grande funcionou como o nó da ferrovia, a bifurcação para guarnecer as fronteiras internacionais. Ora, dessa cidade era que a linha se dividia em duas: uma ponta continuava até a fronteira boliviana e outra, o ramal, alcançava a paraguaia. Segundo Paulo Cabral, se o objetivo era guarnecer, se queriam mesmo proteger o território, era preciso também assegurar o apoio de reforços. “Não podia ficar tão próximo da fronteira e distante de recursos que pudessem vir à retaguarda”, analisa. Campo Grande, nesse aspecto, “fica exatamente na metade entre as fronteiras e o Rio Paraná”, o que permitiria trazer ajuda de São Paulo e Minas. 63
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Campo Grande pré-ferrovia Durante anos, Campo Grande prosperou de dia para dia, desenvolvendo-se, atulhando-se de gente. Quando Eduardo Machado descreve esta vila para o Album Graphico de Matto-Grosso, em 1913, ele destacou a “verdadeira febre de construção” que ali se fazia notar. Observou, aqui e acolá, o “casario alegre e de feitio moderno”, onde cinco mil habitavam agora. As ruas e praças, percebeu, obedeciam a um “inteligente traçado”. Eram iluminadas, à noite, com lampiões de querosene fixados nas esquinas e no meio da quadra, em postes de aroeira. Quem acendia um a um os pavios era o Sr. João Vieira de Almeida, 65
o Janjão, com a ajuda de uma escada. Fazia aquilo todas as noites, até o fim de sua vida. Sem os lampiões, as trevas venceriam, e “o passante descuidado se arriscava a duas alternativas cada qual mais perigosa: cair dentro de algum buraco ou fossa abertos pelas enxurradas ou espetar-se nos chifres de um touro ou vaca bravos que faziam a via sacra pelos currais esparsos aqui e acolá”. Assim conta o jornalista Valério de Almeida, na crônica A instalação da luz elétrica em Campo Grande. A notícia de que os trilhos da ferrovia atravessaram o Rio Paraná agitou o povoado. O preço das terras e dos pequenos lotes no perímetro urbano se elevou. Multiplicaram-se as casas de negócios, os armazéns de fazenda, as mercearias, as tavernas, as farmácias. A indústria, por sua vez, foi esboçada. Surgiram os engenhos de cana que fabricavam açúcar, rapadura e aguardente. Apareceram novas serrarias e, também, novas olarias. A agricultura se dava em pequenas quantidades. Cultivavam ali cereais, cana-de-açúcar, café, fumo e mandioca. Mas foi a indústria pastoril a principal atividade econômica. Nos arredores, o solo era coberto de, 66
conforme a descrição de Eduardo Machado, “esplêndidas pastagens”, onde os sertanejos criavam gado e cavalos para exportação. Nesse período, prédios apropriados para as instituições e casas de comércio foram construídos. O vilarejo assumia características de cidade. Seus espaços vazios, os lotes, eram ocupados. E por todos os lados se observava o trabalho de edificação. Construíram a sede do governo municipal, ampliaram escolas, abriram novas pensões… De maneira que as pessoas, ao analisarem a Campo Grande pré-ferrovia, tinham uma indicação de sua prosperidade. Eduardo Machado encontrou, no aspecto financeiro, outro indício de desenvolvimento. Segundo ele, a renda arrecadada por Campo Grande no primeiro semestre de 1913 foi uma quantia superior à do ano antecedente inteiro. “Nada melhor do que isso demonstra a prosperidade do município”. A estrada de ferro, sabiam todos, não tardaria, e isso animava o intendente José Santiago. “Tudo tem progredido nesta zona, agricultura, indústria, criação, valorizam-se os terrenos e a população está quadruplicada”, avaliou. Outra testemunha, o então presidente do Estado Costa Marques, disse: “a povoação ainda é relativamente pequena, mas nota-se entre seus habitantes 67
grande animação pelo prometedor e próximo futuro”. Costa Marques verificou o crescimento da vila quando visitou-a para receber homenagens. Batizaram uma praça com seu nome. Esta praça se localiza no cruzamento da Rui Barbosa com a 26 de Agosto, e hoje se chama Praça dos Imigrantes. Este ambiente, marcado pela inquietude, pelas transformações no espaço, foi propício para o surgimento do primeiro jornal de Campo Grande, O Estado de Matto-Grosso. Quem fundou o periódico foi o Dr. Arlindo de Andrade, em junho de 1913. Antes, circulava mensalmente o Colibri, um papel manuscrito que reunia fatos narrados pelos viajantes. Foi o primeiro jornal entre aspas de Campo Grande.
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Japoneses Atracado nas docas do Porto de Santos, no dia 18 de junho de 1908, o navio Kasato Maru. Desembarcam 781 imigrantes japoneses. Desses, 325 são okinawanos, isto é, nativos da província de Okinawa, um arquipélago que se localiza no sul do Japão. Vieram para a terra da promissão, o Burajiro, conforme a pronúncia nipônica de Brasil. O povo japonês estava desempregado e o Japão, superpovoado. O imperador começara a incentivar seus conterrâneos a buscarem oportunidades no exterior, firmando tratados de amizade com outros países. Em 1895, em Paris, estabeleceu esse acordo com o Brasil. 69
Trabalhando nas lavouras de café, no interior de São Paulo, os imigrantes japoneses tinham que comprar comida nas fazendas. E quando os fazendeiros cobravam, o preço dos alimentos era elevado, custava o dobro, o triplo. “Acabavam mais devendo do que recebendo”, diz Celso Higa. Todavia, os japoneses haviam imigrado com o objetivo claro de juntar dinheiro e voltar ao país de origem. A condição em que se encontravam, segundo Higa, “fez com que eles começassem a analisar que nunca mais voltariam”. Os japoneses, então, começaram a fugir, na calada da noite, para as cidades, onde trabalharam em outros empregos. Nessa época, ouviram que uma estrada de ferro estava em construção, no Mato Grosso, e se interessaram pelo trabalho. Conforme a pedagoga Vera Higa, no artigo Rumo à terra da promissão, “o motivo pelo qual os imigrantes aspiraram trabalhar na construção da ferrovia foi o bom salário”: a diária era de cinco mil réis. Ganhariam mais do que um professor médio ganhava no Japão. E lá os professores eram bem considerados, eram elite. Começaram a procurar as empresas que estavam contratando operários. Os primeiros japoneses 70
foram trabalhar na frente que se iniciou em Porto Esperança (MT). Outros, mais tarde, foram para a outra frente, em Itapura (SP). Durante a construção, eles ficavam em grupos, para se comunicarem. Falavam o idioma japonês ou o dialeto okinawano, o uchinaaguchi.
Acervo pessoal Celso Higa
Kenzo Matsuo e amigo no acampamento da construção da estrada férrea
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Suor dos operários No sul do antigo Mato Grosso, duas frentes de trabalho construíam a estrada de ferro. Uma, de Itapura, seguia para o oeste. Outra, de Porto Esperança, para o leste. Encontrariam-se, em algum momento, as duas frentes, conectando os trilhos. Este trecho logo seria concluído, uma vez que a construção avançava de ambos os extremos. Mas os percalços atrasaram o fim da empreitada. No Breve histórico sobre a Estrada de Ferro Noroeste do Brazil, Sylvio Saint Martin, o engenheiro-chefe da companhia, enumera os problemas e contratempos que elevaram “enormemente” o custo da empreitada. Segundo o engenheiro, faltava mate73
riais para construção, faltava pessoal para trabalhar na estrada, uma vez que muitos operários adoeciam, “além do grande inconveniente da dualidade da administração”. Os trabalhadores que construíam a linha férrea que continuava o trecho paulista atravessaram um planalto de campos limpos, com áreas de cerrado e campinas, onde a expansão da pecuária se encarregara de espantar a presença indígena e eliminar a mata densa. Ali, a ferrovia penetrou pastos adequados para a construção. Foi nos pantanais, onde os terrenos são alagadiços, que a empreitada encontrou inconveniências. Segundo o historiador Cimó Queiroz, em Uma ferrovia entre dois mundos, neste trecho “poucos quilômetros foram construídos com esforços absolutamente desproporcionais”. A linha férrea, apesar de evitar o pântano característico do bioma, sofria ataques de enchentes periódicas, o que “exigia um aterro contínuo”. O trabalho era, de fato, árduo e incômodo, o que resultava em evidente rotatividade de trabalhadores. Faltavam ferramentas apropriadas e o aterro foi erguido, sobretudo, com esforço braçal, sem máquinas, apenas com carrinho de mão e pá.
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O aterro precisava ser bastante elevado, ou não asseguraria estabilidade à estrada. Entretanto, foi erguido em um nível aquém do previsto pelo projeto, por falta de metros cúbicos de terra. Resolveram então, segundo o engenheiro responsável pela obra Antônio Penido, “construir a linha abaixo do grade, colocando-a apenas acima das enchentes normais”. O engenheiro Saint Martin descreve a ineficiência do aterro durante uma cheia, no Breve histórico sobre a Noroeste: As águas transbordadas (...), lentamente, quase imperceptivelmente, encaminharam-se para o sul até encontrarem o aterro da Estrada, que – qual verdadeiro açude – fechava a passagem natural; (...) não encontrando quase saída, ali se avolumaram, confundindo-se numa imensa lagoa com o rio Paraguai (ele mesmo um metro e meio mais alto que os barrancos); desde que o nível deste enorme volume d’água começou a alcançar os primeiros pontos mais baixos do aterro, ali a água galgou a linha e (...) formou rapidamente uns verdadeiros saltos que, em pouco tempo, começaram a atacar o próprio aterro, até rasgá-lo completamente e em tais extensões que permitissem a natural vasão das águas acumuladas do outro lado (...)
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Outro fator que atrapalhava o trabalho era sua condição insalubre, nociva à saúde dos operários. O suor que eles exalavam durante a labuta atraía toda sorte de insetos. Aqueles homens suados eram atacados por mosquitos e borrachudos, como se fossem presas. E, não raro, contraíam malária, ficavam enfermos, com febre e tremedeira, e morriam, por falta de atendimento médico imediato. Para espantar os mosquitos, alguns queimavam fezes de gado numa lata. A fumaça funcionava como repelente natural de insetos. As pesquisas até hoje realizadas não precisaram quantos operários deixaram seus cadáveres na construção da estrada férrea, na região pantaneira. Alguns deles, enfermos, procuravam ajuda médica nos hospitais corumbaenses, o que alarmou a população local. Ali chegaram muitos trabalhadores da Noroeste, em estado precário de saúde, tendo mesmo falecido alguns deles. Os que morriam na labuta eram enterrados nas redondezas da construção, sem formalidades. E os imigrantes japoneses, eles queimavam os cadáveres dos compatriotas, guardavam os ossos, e enterravam, depois, num cemitério. Ou levavam de volta ao Japão, se fosse possível.
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Os homens que construíam, dormente por dormente, a estrada de ferro, modificavam o cenário das cidades e vilas dos arredores da linha. Os habitantes já estabelecidos incomodavam-se com a presença dos outsiders². Escreviam cartas para a imprensa local, denunciando os acontecimentos que envolviam um ou outro operário da Noroeste. “O contraste entre a população local e a força de trabalho empregada era evidente”, afirma o historiador Thiago Moratelli, em sua dissertação de mestrado Os trabalhadores da construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Quando a construção da linha férrea se aproximava de Campo Grande, o intendente José Santiago escreveu para um desembargador de Cuiabá, avisando que havia ali “afluência de trabalhadores da Noroeste, indivíduos vindo de toda parte que dá lugar a roubos, assassinatos inúmeros”. Solicitava então mais praças para o destacamento policial. Em verdade, havia, entre os operários, muitos criminosos, que enxergavam na construção da ferrovia um modo eficiente de se esconder. (2) Conforme o livro “Os estabelecidos e os outsiders”, de Norbert Elias e John L. Scotson, o termo outsiders se refere à presença de um grupo mais novo de residentes estigmatizados como “pessoas de menor valor humano” por outro grupo de pessoas estabelecidas anteriormente num determinado lugar.
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Vinham, sobretudo, de cidades paulistas, a procura de interiores distantes e de difícil acesso, onde a justiça não os encontraria facilmente. Os recrutadores das empreiteiras, no que lhes dizem respeito, aceitavam qualquer um, sem questionar, ávidos por mão-de-obra. E assim fugitivos se confundiam com operários. Outros eram enviados pelas polícias das grandes cidades brasileiras como deportados. Eles tinham que trabalhar à força na estrada de ferro. Todavia, alguns, trabalhando, regeneravam-se. A maior parte dos conflitos que se deram durante a construção ocorriam devido a desavenças entre os próprios trabalhadores, que brigavam por questões de nacionalidade, disputas amorosas, resolução de acordos que envolviam dinheiro e comportamento violento em consequência do consumo excessivo de álcool. No acampamento de Atibaia, em julho de 1909, por exemplo, houve uma discussão “calorosa” entre o apontador José Morgado e os operários da empreiteira. Um deles, o espanhol Bartholo Romão, terminou a briga esfaqueando o apontador, que morreu, apesar dos esforços do médico da empresa. Conforme o historiador Thiago Moratelli, a morte de
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José Morgado, homem que analisava as cadernetas dos funcionários para depois efetuar o pagamento, está relacionada à insatisfação com o salário, que “ficava sempre aquém do valor reivindicado e desejado pelos trabalhadores”. Esses eventos ocorriam porque os operários tinham que comprar comida no armazém da empresa, o que faziam sem rígido controle de gastos. Depois, no dia do pagamento, José Morgado subtraía do ordenado dos trabalhadores o valor que eles gastaram no armazém, comprando comida, bebida, fumo, ou o que fosse. O saldo poderia ser até mesmo negativo, se José Morgado assim afirmasse, baseado em seus cálculos. Por meio dos armazéns, os empreiteiros mantinham os trabalhadores em dívida com a companhia, e eram impedidos de fugir pela ação dos capatazes. E quem entendia as contas de José Morgado, o apontador? O analfabetismo, entre os operários, era fato comum, corriqueiro.
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Acervo Biblioteca digital luso-brasileira
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Construção da Noroeste sobre o Rio Miranda, em 1910.
As frentes de trabalho se encontram Quando o governo nacional decretou caducidade à concessão da Companhia Noroeste do Brasil e assumiu, ele mesmo, em 1913, os trabalhos de finalização da Itapura-Corumbá, restavam quilômetros de estrada férrea para consolidar. Faltava construir o trecho entre as duas frentes de trabalho, que estava por terminar. E alongar o ponto terminal da estrada até a fronteira boliviana, em Corumbá. Onde os trilhos já estavam assentados, o tráfego funcionava provisoriamente. No dia 28 de maio de 1914, a primeira frente de trabalho alcançou Campo Grande, conectando-a a 81
Porto Esperança, às margens do Rio Paraguai. O periódico O Estado de Matto-Grosso noticiou o evento, comunicando, sobre a presença da estrada de ferro, que “o povo parecia cansado de esperá-la todo mês, toda semana, todo dia. Mas enfim chegou. Uma locomotiva já desceu a encosta e acordou os habitantes, a silvar”. Os grupos familiares, rapazes, idosos, crianças, receberam, alegres, os operários “cobertos de poeira”. Promoveram então piquenique e churrasco, em homenagem. “Alguns rapazes improvisaram uma orquestra e entre vivas, risos e foguetes, os operários puderam avaliar a intensidade da gratidão de Campo Grande aos seus serviços”. Três meses mais tarde, as duas turmas de trabalhadores avançaram para o local de encontro, redobrando esforços, entusiasmadas. A narrativa mais detalhada acerca do momento historicamente conhecido como ligação foi escrita por Correia das Neves, na obra História da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil: Naquela data, as duas pontas dos trilhos estavam aparelhadas como nunca tinham estado, tanto em material como em pessoal; não é, pois, de estranhar que nos 50 dias que se seguiram, fossem assentados os 86 quilômetros que faltavam para a ligação das duas secções, sendo de notar que em um 82
dia foram assentados 5.400 metros de uma feita. Em 30 de agosto, ao escurecer, achavam-se as duas turmas de avançamentos tão próximas que, com mais duas ou três horas de trabalho, deveriam se encontrar. Receando, porém, a administração acidentes devido ao entusiasmo com que cada qual mais se esforçava para chegar primeiro ao ponto marcado para a ligação, foram dadas ordens para cessar o trabalho nesse dia e assim só na manhã seguinte foi concluída a ligação com a mais viva alegria de todo o pessoal, no ponto em que se acha locaAcervo pessoal Celso Higa
lizada a estação de Ligação.
Encontro entre as frentes de trabalho, em Campo Grande, no dia 31 de agosto de 1914.
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A alegria foi estrondosa, os foguetes estrugiram, os vivas se romperam, os homens beberam champanhe, os jornalistas cobriram o evento, a máquina 14 atravessou o pontilhão recém-acabado. O trem inaugural, entretanto, demorou mais um mês e meio, chegou no dia 14 de outubro. A estrada férrea estava aberta ao tráfego, com 836 quilômetros, de
Acervo ARCA
Itapura a Porto Esperança.
Inauguração do primeiro prédio da Estação Ferroviária de Campo Grande.
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Uma estação em silêncio Cento e dois anos mais tarde, a Estação de Ligação sobrevive, silenciosa, abandonada, esquecida, apesar de sua relevância histórica. Quase nunca visitam-na. Não se interessam por ela. Raro, um estranho aparece, como os jornalistas que, durante o centenário do evento ligação, em 2014, ali produziram reportagens, com suas câmeras fotográficas e blocos de anotações. A empresa que possui a concessão da via-permanente, a América Latina Logística (ALL), não se responsabiliza em preservá-la. Fixaram na parede 85
frontal da estação uma placa onde se lê “bem desvinculado”. A concessionária não se interessa em utilizá -la diretamente ou como apoio. Nesse caso, o edifício da estação é considerado em situação patrimonial “Não Operacional”, sob responsabilidade da Secretaria do Patrimônio da União (SPU-MS). Com as portas fechadas e o telhado aberto, o edifício da estação continua seu processo lento e obstinado de se transformar em ruína. O buraco no telhado quem abriu foi o vento, que às vezes sopra com violência, arrancando esporadicamente algumas telhas. A parede frontal exibe janelas quebradas, nomes de pessoas há muito rabiscados, e outras cicatrizes. E a parede da cozinha, nos fundos, está rachada, dando sinais de queda. Os adornos com o símbolo NOB, sobre as portas e as janelas, desfalecem pouco a pouco, até sumir. E o nome da estação, gravado nas paredes laterais, o tempo desbotou, tornou difícil de ler. É preciso semicerrar os olhos, esticar o pescoço e focar a visão nas letras, adivinhando algumas parcialmente apagadas. A tipologia arquitetônica da estação lembra a de outras construídas no mesmo período, na década de 20. De Ligação até Água Clara, o modelo, a forma 86
do edifício, era semelhante. “São iguaizinhas, com detalhes sutis de diferenças”, afirma o arquiteto e urbanista Ângelo Arruda. Isso porque a arquitetura ferroviária não era uma arquitetura de invenção, mas de indústria, com repetição, com multiplicidade, com uma linguagem apropriada, longilínea, para receber o trem. Existia uma lógica construtiva, uma estética predominante, uma tipologia standard, que “representavam uma organização de projeto de arquitetura que foi pensado fora do Brasil”, diz Arruda. Em verdade, os edifícios ferroviários, muitos deles têm uma forma similar à de outros encontrados nas demais cidades servidas pela Noroeste, mostrando que havia um projeto e que ele foi repetido diversas vezes. Isso explica o porquê de Ligação ser tão visualmente semelhante a muitas estações da NOB. Ao lado da estação, uma casa de madeira. Nela, moram Euclides Sampaio Pereira, o Seu Pereira, e sua esposa, Dona Enedina. Vivem ali há doze anos, os dois sexagenários, de forma fixa. Outros têm casa também, mas aparecem só nos finais de semana. Diferente do cotidiano urbano, a quietude predomina ali, o que agrada ao Seu Pereira, farto da “loucura do dia a dia” da cidade grande, que agora 87
André Moura
A estação foi construída na década de vinte nos conformes da arquitetura eclética. Antes dela, um vagão de trem era improvisado como estação.
ele só assiste pela televisão. Antes, quando morava na cidade, Seu Pereira “não tava vivendo mais, tava inchado, parado, sem movimentar, sem fazer nada”. Encontrou, naquela paragem remota, um lugar para ficar. “Aqui não tem muita coisa, mas você tá varrendo o quintal, se movimentando, distraindo a mente”. Morando em Ligação, o velho, que estava enfermo, convalesceu. Seu Pereira pratica religiosamente caminhada nos arredores. Ele mostra o percurso, apontando com o indicador. “Sai por aqui, cruza aqui, pega a estradinha, vai embora, devagarzinho, não precisa cor88
rer”. Também cuida dos porcos e galinhas, que cria “para sustento da casa”. E pesca, de vez em quando, no Rio Botas. O silêncio, em Ligação, faz-se ouvir. É interrompido, em intervalos, pelo chilrear dos pássaros, pelo cacarejar das galinhas e pelo barulho distante dos carros passando na rodovia BR-262, velozes. A vegetação, por sua vez, toma conta. Arbustos crescem entre os dormentes, na linha, sem serem incomodados por um capinador. A caixa d’água, tão antiga quanto a estação, conserva-se funcional. É abastecida por uma mina que fica, segundo Seu Pereira, há “mil e quinhentos metros, mais ou menos”, dali. A água flui por uma mangueira enterrada, que começa na mina e acaba no reservatório da caixa. Não raro, dá problema, e os moradores precisam encontrar a origem do defeito e consertá-lo. “Manutenção eu faço desde que estou aqui”, comenta Seu Pereira. Outro dia, por exemplo, ele percebeu que a água estava fraquinha, fraquinha. Chamou o vizinho e limparam a mina, mas a água continuou fraca. Depois, viu que estava transbordando perto de uma cerca. Buscou a enxada, cavoucou e notou que o defeito era ali mesmo: tinha um corte na mangueira. “Amar89
rei lá, e mais pra cá fizemos o mesmo processo”. Antes, a caixa d’água era utilizada por todos os moradores, “pra cozinhar, pra tomar banho, pra tudo”, diz o velho. Quando construíram o alojamento dos funcionários da ALL, construíram também um poço artesiano. Seu Pereira pediu uma conexão para sua casa e eles concederam. A água da caixa agora é utilizada só para fins secundários, como molhar o quintal, lavar louça na pia dos fundos e dar para os porcos beberem. Morando ali, Seu Pereira e Dona Enedina têm a oportunidade de assistir a Estação de Ligação ser destruída, virar destroço, sem poder fazer muito por ela. “Você vê acabando, caindo telha, apodrecendo”, lamenta Seu Pereira, enquanto observa as condições precárias da construção centenária. “E não caiu tudo ainda nem sei como, porque no lado de lá a parte da cozinha chega estar afundada”. Dona Enedina concorda, e acrescenta que, embora não tenha dinheiro para arrumar, tenta zelar. “Tenho dó de ver tudo desabando desse jeito”. A presença deles no mínimo inibe a atividade dos vândalos, que poderiam saquear a estação. Seu Pereira desceu a plataforma de embarque e avançou sobre a estrada férrea. Andando sobre ela, 90
conta histórias, consegue distinguir entre os dormentes mais antigos, apodrecidos pelo tempo, e os mais recentes, trocados pela empresa concessionária. “Esse aqui”, comenta o velho, pisando num dormente específico, “com certeza estava aqui quando passei de trem, com meu pai, em setenta e três…” E começa a narrativa sobre estações lotadas, parentes revistos, locais visitados, cidades pacatas. Entretanto, logo encerra suas histórias, contadas sem muita preocupação com a cronologia, e volta para casa. Ele não pode ficar no calor do sol, porque sofre de pênfigo foliáceo, uma doença dermatológica. “Por isso que eu ando com uma toalhinha na cabeça”. *** No começo dos anos noventa, a companhia diminuiu a quantidade de vagões de passageiros, e o agente de trem Willian Álvaro Monteiro, foi transferido para Ligação, onde trabalhou, entre 1991 e 1997, como agente de estação. O setor em que ele trabalhava antes, e que tinha 84 funcionários, “simplesmente deixou de existir, com quatro anos”. Ele, que preferia ficar no trem, desaprovou a mudança, e pensou em se demitir, mas consentiu, depois de saber que sua esposa estava grávida.
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Era responsável por atender os passageiros e os trens, que passavam vinte e quatro horas por dia. Naquela época, a Noroeste utilizava o sistema de staff para manter a segurança do tráfego na linha. “A gente passava para o trem a licença da estação seguinte e fazia os cruzamentos quando não dava. Quando tinha que cruzar os trens, um parava e outro passava”, lemba Willian. Esse esforço garantia que duas locomotivas não estivessem no mesmo trecho, em rota de colisão. Depois que a ferrovia foi privatizada, em 1996, o staff foi substituído por outro sistema, mais tecnológico, de fibra ótica. Todavia, Willian não vê problemas com o sistema antigo. “Falam ‘ah, mas é uma tecnologia arcaica’. Era arcaica, mas era com essa tecnologia que funcionava a ferrovia, e que funcionou por muitos anos, mais de cinquenta anos. E produzindo, e transportando, e circulando a sessenta, setenta por hora”. Trabalhavam na estação quatro agentes e quatro manobradores. Eles se permutavam em turnos de oito horas. Depois, a quantidade de manobradores diminuiu, e acontecia de Willian trabalhar sozinho, acumulando funções. “Era muito solitário, principalmente à noite. Às vezes, duas horas da madrugada, chuva, frio, e você fazendo troca de staff”. 92
As pessoas que embarcavam e desciam ali vinham das fazendas e chácaras próximas. “Era uma estação para atender passageiros, mas não era de grande densidade”, esclarece Willian, lembrando-se dos passageiros que ele atendia. Vendia-lhes as passagens, picotando os bilhetes com uma tesoura específica. Das mesmas fazendas e chácaras vinha também o gado para ser embarcado. “Em noventa e seis, eu fiz o último carregamento. Carregamos dezesseis gaiolas. A ferrovia, naquela época, transportava gado também”, explica Willian. Encerrado o turno, o agente de estação voltava para casa, em Campo Grande, de ônibus. Na época, ele queria morar em Ligação, que era “um lugar muito bom”, mas não tinha casas disponíveis. Willian agora trabalha no Sindicato dos Trabalhadores Ferroviários, no número 64 da Rua Dr. Temístocles, onde desempenha a função de assistente administrativo. “É um trabalho, por exemplo, de assistência, encaminhamento, resolução de problemas dos trabalhadores, fazer homologações, correr atrás de direitos, contatar advogados, essas coisas todas que envolvem os processos trabalhistas dos trabalhadores daqui. Quando precisa fazer assembleias, a
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gente vai no trecho, reúne os trabalhadores, mostra a situação que tem, entendeu?” Willian foi diretor do sindicato até 2004, ano em que se desvinculou da ferrovia. Agora o trabalho dele não é mais político, é burocrático. Ele vivenciou o processo de decadência da Noroeste e a privatização dessa ferrovia. Viu os trabalhadores serem gradualmente demitidos. “Dois mil funcionários que ficaram em setecentos, oitocentos, quando foi privatizado. A Rede Ferroviária (RFFSA) fez uma parte, mandou muita gente embora. E quando eles vieram, fizeram outro processo de demissão também”. Sobre a necessidade de privatização da Noroeste, costuma-se indicar os seguintes argumentos: a ineficiência da gestão estatal, a deterioração dos serviços, a lentidão do transporte ferroviário, o alto custo e a interferência política nas decisões de investimentos. Em 1996, um consórcio de empresas estrangeiras assumiu a administração da Noroeste, que foi rebatizada com o nome de Ferrovia Novoeste S.A. No mesmo ano, o tráfego de trens de passageiros foi encerrado. Em 2002, a Novoeste desativou completamente o ramal de Ponta Porã. “Um só vagão de cargas dá mais lucro que nove 94
carros de passageiros”, argumenta o engenheiro da Rede Ferroviária José Migliato. Entrevistado pelos então acadêmicos de Jornalismo da UFMS Eldi Inês Willms e Lúdio da Silva, para a reportagem Culturas e raças se integram nesse trem, o engenheiro afirmou que o incremento de transporte de cargas e a extinção do trem de passageiros era a solução para a crise financeira da Rede. Segundo Willian, “o trem de passageiros, aos poucos foram tirando, tirando, até que acabou. Não foi por falta de passageiros, não. Sabe o que eles fizeram, na época? Começaram a mudar os horários do trem, para o trem chegar aqui onze e meia, meia-noite. Fizeram uma série de coisas, aumentaram o preço da passagem, uma série de coisas para justificar a extinção do trem”. E as operações da empresa concessionária, que existia para solucionar os problemas evidenciados durante a gestão estatal, foram cercadas de críticas e denúncias a respeito da falta de investimento e abandono da linha e das instalações arrendadas. O jornal Correio do Estado publicou, em outubro de 1998, a notícia Relatório aponta fracasso na privatização. O documento elaborado por 12 sindicatos e noticiado pelo periódico informou que “o
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processo de privatização é um fracasso, nenhum dos objetivos propostos pelo Governo foi atingido”, e que as metas definidas no contrato não estavam sendo atendidas. Este relatório se refere a um contexto nacional de concessão de malhas ferroviárias à iniciativa privada. Segundo a notícia, a Bauru-Corumbá foi a primeira ferrovia a ser privatizada no Brasil. A direção da Novoeste se defendeu dizendo que as exigências do contrato eram difíceis de cumprir e precisavam ser revistas. Valdemir Vieira, no livro Noroeste do Brasil em trilhos e prosas, afirma que a privatização “foi uma emboscada de má-fé”. Para ele, os recursos aplicados pela empresa foram ínfimos e os principais imóveis, literalmente abandonados. E a nota à imprensa Ferrovia no MS a um passo da desativação, do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias de Bauru, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul (STEFBUMS), lamenta as condições da ferrovia. “A empresa está praticamente parada e nunca esteve com sua malha tão deteriorada como hoje, os trabalhadores apreensivos pelo futuro, a suspensão e o cancelamento de projetos e contratos de transporte, juntamente com desmonte dos processos de recuperação permanente da via férrea, desativação de oficinas de manutenção de material ro96
dante e manutenção mecanizada”. Conforme a nota, os grupos que detêm as concessões alegam sempre a mesma coisa: “trecho antieconômico”. Willian também critica a atuação das empresas concessionárias, descrevendo as atividades realizadas pela iniciativa privada. “Esse pessoal que privatizou tentou implantar uma nova tecnologia. E essa nova tecnologia veio depois de desmontar todos os processos arcaicos. Primeiro, desativaram as estações, diminuíram o número de trabalhadores que acompanhava a linha, diminuíram uma série de situações e mandaram muita gente embora, com a desculpa de que iriam introduzir novas tecnologias. Só que essa nova tecnologia nunca chegou”. E conclui o argumento dizendo que “em vez de melhorar a ferrovia, acabou piorando cada vez mais”. Em verdade, a mudança mais relevante causada pela privatização, segundo Willian, foi o fim do aspecto social que a ferrovia tinha. A Itapura-Corumbá pode ter fracassado economicamente, como dizem, mas foi eficiente no âmbito social. Era uma ferrovia democrática, analisa Willian, que atendia todo mundo. “Se você quisesse, por exemplo, ir lá em Ligação, você estava lá na fazenda, ‘quero levar minha mudança para Campo Grande porque eu estou me mudando’. Você pegava suas coisas e deixava no 97
armazém que tinha ali do lado, a gente relacionava, pesava tudo, o trem parava lá, pegava a mudança e ia embora. Podia mandar qualquer coisa. ‘Quero mandar uma bicicleta pro meu primo que está lá em Corumbá’. Você vinha aqui na estação e mandava”. E quando a ferrovia foi privatizada, parou de atender a população, uma vez que as empresas transportam somente aquilo que elas querem.
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Ceroula encomendada A empreitada terminara assim que a estrada férrea ficou pronta. Entretanto, alguns trabalhadores aguardavam seus vencimentos, morando enquanto isso em barracas ao longo da linha, na miséria. Era o caso do mineiro José Estevam de Castilho, 40 anos, funcionário da empreiteira Francisco de Monlevade. A empreiteira anunciou, em abril de 1915, que pagaria os atrasados àqueles que trabalharam na construção da linha férrea. Convocou-os a comparecer ao armazém da empresa, na Estação Rio Pardo. Como de costume, precisavam levar com eles as cadernetas para o apontador checar os lançamentos negativos e conferir se havia saldo positivo. José Es99
tevam sabia ter dinheiro para receber. Munido da caderneta, subiu no trem e, após o café-com-pão-bolacha-não ritmado, desceu em Rio Pardo. Caminhou até o armazém da empresa, apresentou lá a caderneta, recebeu os devidos vencimentos, um conto de réis e um pouco mais. Quando saiu da sua barraca, naquela manhã, José Estevam vestia uma ceroula encomendada com uma costureira. A roupa íntima tinha um bolso interno onde José guardou prudentemente as cédulas de dinheiro. Tão logo recebeu o pagamento, comprou paletó e calça novos, e vestiu sobre a ceroula que preservava, em segurança, seu salário. Na rua, encontrou Aprígio, que dizia ser um velho conhecido. José Estevam não se lembrou dele, mesmo assim os dois iniciaram uma conversa. O tempo, indiferente, passou e, naquele dia, não haveria mais circulação de trem, obrigando José a pernoitar. José Estevam e Aprígio caminharam então até o Moitinho, um hotel local. Depois que jantaram, um amigo de Aprígio, o Américo, apareceu e sentou-se com eles à mesa. Beberam e a conversa seguiu entusiasmada. Como ainda estava cedo para dormir, deixaram o hotel e andaram até um estabelecimento comercial próximo, onde o consumo de cachaça pôde continuar. 100
Lá, depois de mais conversa, cachaça e troça, o tempo avançou, e o dono do estabelecimento quis fechar as portas da venda, obrigando os clientes a saírem. Aprígio convidou então José Estevam para prosseguir a bebedeira em sua casa. Ele foi, sem poder recusar o convite dos homens que considerava “boas pessoas”. Era noite e a escuridão tomava conta. Ainda assim o anfitrião quis mostrar à visita o “bonito mandiocal” que havia nos fundos da residência, garantindo que seria sim possível contemplá-lo. Mas José Estevam, no escuro, não viu a plantação. Foi quando Aprígio e Américo aplicaram nele uma “rasteira violenta”, e José, bêbado, foi ao chão, sujando a roupa novinha. Desmaiou... Acordou na manhã seguinte, no interior do mandiocal, com a calça e a ceroula rasgadas. Seu dinheiro fora roubado.
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Campo Grande pós-ferrovia Durante a década de vinte, forasteiros de todos os lugares chegam a Campo Grande, atraídos pelo progresso da vila que há poucos anos se elevara à condição de cidade; a vila que, nas palavras do cronista Valério de Almeida, “crescia a olhos vistos”. Caminhando por suas ruas, os forasteiros observaram que a principal delas, a que conservava agora a maior parte das casas de comércio, era a 14 de Julho. Antes da ferrovia, a Rua Velha costumava ser o centro das atividades econômicas e sociais, mas perdeu seus atrativos, afastada do movimento provocado pela chegada e partida dos trens. Os comerciantes estabelecidos na Rua Velha se transferiram para a 14. 103
E também os novos investimentos preferiam estar próximos à estação e distantes da rua mais antiga da cidade. “A inauguração da estrada de ferro e a fixação de linhas regulares de cargas e passageiros foram definitivas no estabelecimento da rua 14 de Julho como a rua principal, assim como a fixação de comércios, preferencialmente no sentido sul-norte”, explica o geógrafo Antônio Firmino, no livro A rua e a cidade. Entretanto, o plano de arruamento desenhado por Nilo Javari Barém planejava a cidade com o horizonte leste-oeste. “Isso é visível na planta”, diz o arquiteto e urbanista Ângelo Arruda, “tinha um pedaço da cidade pro norte e um pedaço da cidade pro sul”. Entre estes pedaços, a Avenida Afonso Pena, que foi projetada para ser a rua principal. A planta de Campo Grande elaborada pelo engenheiro Temístocles reafirma essa hipótese. Nela, o traçado da estrada férrea segue o percurso da Afonso Pena, e vai embora para o aeroporto, entrando antes na cidade pela saída de Três Lagoas. Quando a ferrovia vem e coloca a estação no norte, a lógica da cidade inteirinha precisou ser alterada, e a engenharia ferroviária teve que criar um conjunto de voltas no traçado da estrada³. “Porque o trem era a vapor. Pra subir, (3) Segundo Ângelo Arruda, essa alteração aconteceu por força de Bernardo Franco Baís, “o comerciante mais importante, o homem mais rico da cidade, o cara que foi escolhido pra ser prefeito, e só não foi porque era italia-
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alguém tinha que estar empurrando, e o empurrar não era por força, era hidráulico. Tinha que pegar o embalo para subir, depois descer, subir, depois descer”, explica Arruda. A nova lógica da cidade beneficiou a 14 de Julho, antes um trilheiro deserto e sem saída que os habitantes chamavam de “Beco”. Ela foi se definindo como o coração da cidade, como a artéria vital do centro. Também, os habitantes utilizavam esta rua para alcançar o Jardim Público (a Praça Ary Coelho). Esse era o ponto dominical da cidade. Neste dia, as ruas que lhe davam acesso ficavam interditadas para automóveis e as pessoas podiam então passear, ter lazer. No coreto, uma banda uniformizada se apresentava, tocando músicas de grandes compositores como Mozart, Beethoven, Schumann, Strauss... Enquanto isso, admiradores de pombos alimentavam as aves com migalhas de pão. E os pares de namorados sentavam-se nos bancos de madeira, sob as árvores. As crianças também se divertiam, saracoteando entre as plantações, e depredando as plantas. É por isso que elas estavam daquele jeito, danificadas, quebradas. no”. Bernardo esteve em Três Lagoas e dialogou com o engenheiro da Noroeste para alterar o traçado de Campo Grande.
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Depois das apresentações da banda, o relógio da 14 de Julho badalava, avisando ao povo que a missa estava para começar. O Jardim Público foi planejado e edificado no terreno do antigo cemitério. A cidade precisava então de outro local para enterrar adequadamente os defuntos. O vereador Amando de Oliveira resolveu o problema doando uma área de sua fazenda, delimitada com cerca de arame, para ser o novo cemitério, o Santo Antônio. Poucos dias depois, a caminho de sua fazenda, o vereador foi assassinado. O criminoso, escondido, de tocaia, acertou-lhe um tiro de carabina, à distância, e fugiu sem ser identificado. O cadáver de Amando foi então o primeiro a ser sepultado no cemitério Santo Antônio, o cemitério que ele mesmo idealizou. Outras pessoas foram também morrendo e povoando a nova necrópole, mas não descansavam em paz. Conforme Valério de Almeida, no livro Campo Grande de outrora, “os tatus realizavam vastos festins nas carnes pútridas dos defuntos recém-sepultados”. A estrada férrea trouxe consigo os imigrantes. Muitos deles se estabeleceram em Campo Grande, e fundaram colônias, fincaram raízes. Os primeiros imigrantes japoneses a se fixa106
rem no vilarejo participaram antes da construção da Itapura-Corumbá, nas duas frentes de trabalho. (O operário Kosho Yamaki é apontado como o primeiro morador japonês fixo de Campo Grande. Em maio de 1914, ele deixou a empreitada para começar uma plantação de hortaliças). Os nipônicos, conforme a pedagoga Vera Higa, no artigo Rumo à terra da promissão, perceberam um “ar muito promissor” no vilarejo. E o preço dos lotes era acessível à condição financeira deles. Eles procuraram um terreno adequado para a agricultura, que naquele tempo era pouco desenvolvida. “Os japoneses ficavam em todos os quadrantes, onde tinha cabeceira de córrego, tinha possibilidade de água, para eles praticarem a lavoura da horta e fruticultura, atividades que eles se dedicaram de quando vieram até os anos setenta”, explica o sociólogo Paulo Cabral. Os japoneses a princípio se estabeleceram na região da Mata do Segredo, um terreno fértil, ideal para a atividade agrícola. Ali edificaram suas chácaras, suas casas, suas lavouras, suas roças. E as pessoas, quando observavam esse ambiente, viam várias chácaras pequenas. É por isso que essa região ficou conhecida como Chacrinha.
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Antes, a sociedade campo-grandense estava acostumada a se alimentar de carne e mandioca. Os imigrantes japoneses foram responsáveis pela “difusão de verduras e legumes numa cidade que ainda não conhecia”, afirma Celso Higa. Nas Chacrinhas, “os japoneses plantavam e ofereciam verduras e leguminosas para o povo. Na época, não tinha muito adubo, não. O pessoal fazia artesanalmente as coisas, pelo próprio conhecimento que eles trouxeram de lá, do Japão”, diz Higa. Plantavam frutas, batata, mandioca, legumes. Produziam artesanalmente um líquido escuro, o molho shoyu, feito de soja ou feijão mesmo. “Seu uso como complemento alimentar caiu nas graças do povo”, comenta Higa. E vendiam depois esses produtos no Mercadão ou na Feira Central, transportando -os até lá em carroças tracionadas por burros, atravessando caminhos tortuosos, atoleiros. Os imigrantes japoneses desempenharam outras atividades também. Eles trabalharam, por exemplo, na construção dos quartéis, como carpinteiros e auxiliares de pedreiros. As mulheres, essas improvisavam tanques nas proximidades do Segredo e ali lavavam roupas para hotéis e pensões, e assim complementavam a renda familiar. 108
A imigração nipônica não se limitou à permanência dos operários que trabalharam na construção da estrada férrea. Outros imigraram depois. Um senhor chamado Gonsiro Nakao plantou café em Campo Grande e atraiu mais japoneses para trabalhar com ele nesta cidade. “Ele é um senhor que”, comenta Celso Higa, “daquela primeira fase, foi o maior imigrante japonês que deu certo como empresário. Ele chegou a ter até edifício. Tudo fruto do café que ele plantou lá na Colônia do Segredo. Depois ele veio plantar aqui na saída da UCDB, no Rincão. Teve núcleo de japoneses ali também. E quando ele conseguiu uma boa grana com a empreitada que deu certo na Colônia do Segredo, ele foi pro Japão, quis casar, arranjou uma esposa lá. Ele convidou algumas pessoas, conterrâneos, pra vir trabalhar com ele. Nessa leva aí, esse senhor convidou o meu avô, o pai da minha mãe”. E assim a quantidade de imigrantes japoneses cresceu em Campo Grande. Outros estrangeiros que também se estabeleceram nessa cidade foram os sírio-libaneses. A presença deles é explicada como parte de um fenômeno histórico conhecido como êxodo corumbaense. Este evento foi motivado sobretudo pela construção da Noroeste e pelas mudanças causadas por esta ferro109
via no arranjo econômico antes vigente na região, durante a primeira metade do século vinte. Corumbá atraía imigrantes por causa de sua localização geográfica: a proximidade com o Rio Paraguai. Esta estrada fluvial permitia o intercâmbio entre Corumbá e o mundo. Dava-lhe acesso a Assunção, Montevidéu, Buenos Aires, e todo litoral brasileiro. Antes da ferrovia, os meios de transporte campo-grandenses eram os burros e os carros de boi. E os corumbaenses estavam acostumados aos barcos e navios atracando nos portos da cidade. Corumbá perdeu gradualmente sua condição de entreposto comercial abastecedor. E o eixo econômico do estado foi deslocado para Campo Grande. Corumbá manteve de modo parcial o seu antigo papel, funcionando como entreposto para cidades do norte do estado e oriente boliviano. Campo Grande assume, a partir da década de vinte, o status de ponto central de comunicação e dos transportes do sul de Mato Grosso. Segundo J. Barbosa Rodrigues, “enquanto Campo Grande crescia em ritmo geométrico, Corumbá se esforçava para manter o aritmético”. Os comerciantes de Corumbá, então, percebendo que o trem mudara o centro econômico de lugar, mudaram-se com ele, abriram suas casas comerciais em Campo Grande. A maior parcela desses 110
comerciantes eram imigrantes sírio-libaneses. “Na primeira metade do século vinte, a colônia árabe é responsável seguramente eu acredito por 80% das atividades econômicas na cidade”, calcula o sociólogo Paulo Cabral. O libanês Félix Naglis, por exemplo, saiu de Corumbá e abriu, em 1920, a casa de comércio Au Bom Marche, em Campo Grande, na esquina da 14 de Julho com a Dom Aquino. Quatro anos mais tarde, inaugurou o Palace Royal, na 14 com a Rio Branco. E assim como Félix Naglis fazia, outros comerciantes árabes também utilizavam o transporte ferroviário para se abastecer de mercadorias provenientes de São Paulo. A natureza da atividade comercial exigia que eles estivessem sempre viajando de trem para fazer compras. Traziam novos produtos na bagagem e novas ideias no cérebro. Os campo-grandenses estabelecidos viam os comerciantes árabes e os chamavam de turcos. Este equívoco se deu porque, conforme Paulo Cabral, “todos os imigrantes árabes, nesse momento, por conta do domínio do Império Otomano, eles saíam com o passaporte da Turquia, fossem sírios, libaneses, tudo com passaporte turco. Para os outros, eram turcos. A gente não diferenciava essas distintas nacionalidades”. 111
E diziam que Campo Grande era uma ilha de turcos cercada de japoneses de todos os lados. Os anos vinte foram deveras um período de transformações urbanas, de metamorfoses no espaço. Em novembro de 1923, o ramal da estrada férrea que inicia em Campo Grande e finda na fronteira paraguaia, em Ponta Porã, começou a ser construído, e o marco inicial foi assentado. O Jornal do Commercio noticiou o acontecimento, em 5 de dezembro de 1923, informando que a construção do ramal “representa um largo passo para o nosso mais rápido desenvolvimento econômico, e para a maior eficiência da defesa militar das nossas fronteiras”. E no que diz respeito à defesa de fronteiras, o governo federal transferiu, em 1921, de Corumbá para Campo Grande, os quartéis dos militares. A cidade recebeu então novos atores sociais, passou a conviver com ideias diferentes, opiniões políticas diferentes, e assumiu a condição de capital militar, contrariando o que acontecia nos outros Estados brasileiros, onde a sede militar ficava sempre na capital estadual. E assim as margens da cidade foram se urbanizando, e novos bairros passaram a existir. Nesse período, a iluminação elétrica já tinha substituído os lampiões de querosene. E os campo112
grandenses clamavam por um abastecimento de água encanada. O serviço foi então elaborado e construído, mas funcionava de maneira problemática, incompleta. As águas correntes “umas vezes correm, outras discorrem pensando na sua sorte, entre tubos e canos. E outras vezes ainda, querendo ver a luz do sol, rompem as amarras e nos recreiam a vista com os córregos, lagos e lagoas que formam”. Esta crítica, endereçada ao engenheiro responsável pelas obras de urbanização, foi publicada pelo Jornal do Commercio, em 18 abril de 1927. Segundo o periódico, as obras seguiam “sem método”. “São carradas e mais carradas de pedras que as travessas das ruas engolem, sem proveito prático nem estético”. E também, nas ruas 15 de Novembro e Barão do Rio Branco, conforme a mesma notícia, alastravam-se “disformemente” passadiços de pedras. “O engenheiro executor dessa monstruosidade”, reclama o periódico, “que mastigue a sua explicação ao honrado governador da cidade e ao povo. Que demonstre por a mais b que diabo disto vem ser aquilo”. E na esquina da 13 de Maio com a Afonso Pena, em um terreno particular, o mato crescia, “dando já para cobrir um homem”. Ali, durante a noite, pessoas se aproveitavam da privacidade promovida pela vegetação densa para defecar. “O mau cheiro que 113
desprende esse terreno não pode continuar”, reclama outro periódico local, o Correio do Sul, em 5 de março de 1925. Nessas ruas, circulavam cabriolés, fiacres à tração animal, automóveis. Novas instalações comerciais preencheram as lacunas da cidade, os terrenos antes vazios. E o cenário, outrora sertanejo e bucólico, tornara-se citadino e dinâmico. Apareceram os primeiros cinemas, e os campo-grandenses podiam assistir aos “melhores filmes da Universal” exibidos pelo Trianon Cine, na 14 de Julho. Apareceram também bares recreativos e cafés, onde os moradores consumiam, entre outras coisas, sorvetes, bebidas, charutos, música. Surgiram novas hospedarias, como o Hotel Noroeste, no número 26 da Calógeras, pertinho da estação, “com excelentes acomodações para famílias e viajantes”. Surgiram novas alfaiatarias e camisarias que trabalhavam “no rigor da moda”. E as oficinas mecânicas que reparavam automóveis de qualquer marca⁴. Esses comerciantes, eles eram obrigados, por determinação da intendência municipal, a fechar os estabelecimentos às 19 horas, e aos domingos e fe(4) As frases entre aspas desse parágrafo foram pinçadas das páginas publicitárias dos periódicos locais, publicadas durante os anos 1920. Elas demonstram tanto as necessidades dos campo-grandenses de então, quanto a existência de novos profissionais residindo na cidade.
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Rua 14 de Julho, década de vinte.
riados, o dia inteiro. Insatisfeitos, eles enviaram um requerimento à intendência, para se fazer na lei uma modificação: “conceder que abram as casas comerciais aos domingos e feriados até as 10 horas, e nos demais dias até as 20 horas”. Eles argumentaram que “isso concorre para a vida noturna da cidade, emprestando-lhe um aspecto de vida e animação”. Alegavam também que os trens noturnos chegavam depois das 19 horas, quando o comércio já estava fechado, “dando aos forasteiros uma impressão triste, de paralisação e de abandono”. Esse requerimento foi publicado no Correio do Sul, no dia 26 de abril de 1925. 115
De fato, a presença de forasteiros e imigrantes em Campo Grande é tão intensa que os habitantes sertanejos antes estabelecidos foram se diluindo, e os costumes foram se alterando. Até que não se podia mais distinguir um forasteiro de um campo-grandense. Ambos se misturaram à poeira vermelha que cobria a cidade em dias de vento forte. Essas mudanças ficam evidentes no poema Campo Grande sangra, publicado no livro do 2º concurso campo-grandense de crônica e poesia. A autora, Ivete Saravy, versifica-as na estrofe única a partir de um ângulo pessimista, diferente daquela visão apologética que entende a ferrovia apenas de maneira positiva, como portadora do progresso: O chão vermelho Percorrido ligeiro Da cor do seu habitante primeiro... Que, intrigado, observou A linha de aço que em seu coração penetrou Foi o início, Povoação, exploração... Matando índio, nosso irmão, Tudo pela especulação! De Campo Grande em toda extensão! Forasteiros acolheram-se,
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Hoje ora vejam! Raízes em seus seios eles fincaram... E as nossas eles arrancaram? (...) O Campo-grandense aceitando, A novidade chegando, Em nome do desenvolvimento... Agredindo a memória Desprezando a história... O antigo é destruído O novo é erguido! Nessa corrida... Muita riqueza Muita miséria... A população perdida Em meio dessa agitação Os funcionários da ferrovia se tornaram a primeira concentração operária da cidade. O quadro de pessoal da estrada era constituído de titulados, que recebiam vencimentos, e jornaleiros, que recebiam diárias. Os titulados desempenhavam funções técnicas ou de direção. E os jornaleiros, trabalhos manuais. Ambas as categorias, conforme Cimó Queiroz, aparentemente tinham os mesmos direitos. Todos eram demissíveis ad nutum, isto é, por arbítrio da autoridade competente, sem maiores formalidades. Todos tinham o direito a férias remuneradas de 15 dias. As mulheres grávidas seriam dispensadas do trabalho no mês antecedente e subsequente ao parto, 117
recebendo enquanto isso dois terços dos vencimentos normais. E não se admitia menores de 14 anos como funcionários. Conforme o historiador Gilmar Arruda, no artigo A ferrovia e o homem do sertão, essa concentração operária, o modo de vida que levava, entrou em conflito com a existência bucólica dos sertanejos que ali residiam, quase isolados. A chegada da estrada de ferro e a normalização dos serviços ferroviários provocaram gradualmente o desaparecimento da cultura tradicional do homem do sertão. O trem não deu importância ao passado, não quis ouvir a história, tampouco entender a cultura tradicional, e chegou rasgando o silêncio. O trem trazia nos vagões mercadorias, pessoas, ideias, informações. E aproximava Campo Grande de cidades antes longínquas. “As distâncias diminuíam; as pessoas chegavam mais rápidas e com mais segurança aos seus destinos”, afirma o historiador Gilmar Arruda. De fato, a presença da ferrovia instalou na imaginação dos campo-grandenses paradigmas diferentes de tempo e espaço. A enorme movimentação de cargas e passageiros estimulou o crescimento econômico de Campo 118
Grande. A Itapura-Corumbá, apesar de ser uma ferrovia estratégico-militar, “ela acaba tendo consequências econômico-sociais por decorrência do sentido revolucionário que esse meio de transporte carrega”, acrescenta o sociólogo Paulo Cabral. E os dirigentes da Noroeste avaliaram que deveria haver mais investimentos em Campo Grande. Construíram, na década de trinta, uma esplanada ferroviária, com os imóveis residenciais onde os funcionários da companhia moravam. Nesse período, o armazém e a nova estação foram construídos. Segundo o arquiteto e urbanista Ângelo Arruda, “na realidade, são três estações de Campo Grande: tem uma de inauguração, tem outra de 1915, 1916, por aí assim, e tem essa que está em vigor”.
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Trem de passageiros estacionado na Estação Ferroviária de Campo Grande.
Trem que chega, desce gente, na plataforma, na cidade Pela manhã, numa sexta-feira, dia 24 de abril de 1925, a Estação Ferroviária de Campo Grande estava cheia de pernas. A plataforma de embarque foi de todo ocupada pela massa popular. As salas contíguas também estavam assim de gente. Entre elas, algumas de “destaque social”, autoridades civis e militares, chefes de repartição, membros do diretório político. Todos se reuniram ali pelo mesmo motivo: para esperar o trem especial que trazia o coronel Pedro Celestino, presidente do Estado. Em um canto da gare, cem ou mais alunos da escola do tiro de guerra do Instituto Pestalozzi aguardavam, com presteza, garbo e aprumo marcial. As 121
alunas da mesma instituição também se achavam ali, em grande número, e todas segurando ramalhetes de flores naturais. Em outro canto, uma multidão aguardava, ansiosa, a chegada do trem. Na sala de espera, estavam os alunos do Grupo Escolar Joaquim Murtinho, em filas, acompanhados de professores e professoras. Assim como eles, diversos cavalheiros aguardavam ali a presença iminente do coronel. O comboio apitou na reta às sete horas, e chegou momentos depois, enquanto a banda de música do 16 B. C. tangia os instrumentos, fazendo acordes vibrarem. O carro em que vinha o coronel Pedro Celestino foi então invadido por seus amigos que o aguardavam para lhe dar o abraço de boas-vindas. Depois que o chefe mato-grossense desembarcou, outros admiradores o abraçaram também. A estação, antes barulhenta, fez silêncio para ouvir as palavras da pequena Emilce Ferreira, aluna do Grupo Escolar Joaquim Murtinho. Ela decorou o discurso escrito pelo diretor da escola, exprimiu-o sem erros, dizendo frases de admiração e respeito ao coronel-presidente recém-chegado. Depois, em nome do Instituto Pestalozzi, o professor Allyrio Reivellau, membro do corpo docente, falou, elogiou as 122
características políticas de Pedro Celestino, sua visão de estadista, seu patriotismo. Foi, em seguida, aplaudido pela estação. Clap, clap, clap! Sentindo-se comovido, o coronel agradeceu, e também disse palavras. Não se tem registro das frases exatas que ele pronunciou, que poderiam estar transcritas entre aspas. Sabe-se, pelo menos, que seu discurso foi um elogio ao esforço de diretores e professores de escolas públicas e particulares em reduzir o analfabetismo. Encerrado o discurso, mais aplausos fizeram-se ouvir na estação. Aplaudido, o coronel saiu, cumprimentou pessoas, tomou o automóvel que ali o esperava, e dirigiuse à casa do filho, na Cândido Mariano.
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Agradeço ao professor Edson Silva, pela orientação ao Celso Higa, pelas imagens do acervo pessoal à Rita de Cássia, pelas imagens do acervo histórico do ARCA à Brenda Cirino, por estar comigo
À tragédia da vida dedico este trabalho inacabado
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