Belo sul Mato Grosso: um percurso sobre arte e cultura em MS

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Sumário Prólogo ----------------------------------------------------------------------------- 09 CapítuloPrimeiro ------------------------------------------------------------ 17 Capítulo Segundo ------------------------------------------------------------ 41 Capítulo Terceiro ------------------------------------------------------------ 61 Capítulo Quarto ------------------------------------------------------------ 82 Capítulo Quinto ------------------------------------------------------------- 109 Capítulo Sexto ------------------------------------------------------------ 157 Capítulo Sétimo ------------------------------------------------------------ 161 Epílogo ---------------------------------------------------------------------------- 189 Referências Bibliográficas --------------------------------------- 199

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“Todas as artes contribuem para a maior de todas as artes, a arte de viver”. Bertolt Brecht

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“Na caminhada vejo um tanto de artistas, que crescem como aquela flor no meu quintal.” Prólogo:

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ão era possível precisar exatamente quando aconteceu. Mas havia acontecido. Paulatinamente. Na medida em que o corpo relaxava sob o compasso rítmico da galha de um jatobá-do-campo feito cajado batido no chão pela cerimonialista, os passos se arranjaram, as palmas acompanhavam junto aos sons vagos, vozes que pareciam gemer num êxtase hipnótico e coletivo. Corpos experimentando a sensação de vislumbrar aquelas cerimônias há muito perdidas, as danças que figuram na arte de milhares de anos inscrita em grutas e cavernas pelo mundo a fora. Momento único de comunhão com a História da Arte que... Sim, nos esquemas cronológicos tradicionais, entende-se por pré-história todo o período que abrange a atividade humana desde suas origens até o aparecimento da escrita. Essa atividade se insere numa conformação social e utiliza uma tecnologia que primeiro se orienta pela economia predatória e, mais tarde, pela subsistência agrícola não-urbana, ou seja, sem a distinção cidade-campo. Existe uma estimativa de que que as manifestações de alguns comportamentos próximos aos que temos hoje, remonta a aproximadamente 50 mil anos. Parte dessas manifestações é o que se chama, na contemporaneidade, de arte pré-histórica das quais são elementos as ferramentas, utensílios, pinturas e gravuras rupestres. Considerada a mais antiga das artes, a dança é uma manifestação espontânea individual ou coletiva do ser humano. Ininterruptamente, acompanha o homem em todos os momentos de sua existência através da História, apresentando-se como elemento de comunicação, afirmação. Desta forma, através do seu próprio corpo, concede-lhe a possibilidade de viver plenamente os símbolos do seu inconsciente. Os primeiros documentos existentes sobre uma forma rudimentar de movimentação corporal coordenada, que se poderia chamar de primórdios da dança, remontam ao final da era glacial, em torno de 15 mil anos atrás. Esses primeiros documentos não são menos que as Do

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Belo Sul Mato Grosso gravações e pinturas rupestres encontradas em diversos pontos do mundo. Frequentemente, essas artes representam cenas onde homens aparecem com máscaras de animais. Cenas de dança ou mímica que tinham por objetivo a fortuna da boa caça. Para os Historiadores, dessas cenas simulatórias, o homem pré-histórico passou facilmente às danças com disfarces de animais, onde a mímica se desenvolveu. A partir daí, com os movimentos corporais sob controle e, consequentemente, aparece a dança grupal, com um objetivo determinado. Aparentemente desordenados, os gestos adquirem uma importância mágica e, posteriormente, tendem a se codificar pela sua repetição, transformando-se numa técnica, sequência de símbolos que podem ser comunicados a um grupo menor ou numeroso de pessoas. Destarte, da penetração desses símbolos, depende sua assimilação ou não pelo processo cultural desse mesmo grupo. Desse ponto em diante, desencadeia o gesto criador, conscientemente repetido e, com ele, a dualidade executante-observador, época em que surgem as pantomimas, primeiras manifestações do que virá a ser o teatro. Assim, dá-se a aparição da arte. Expressão da cultura, ela se apresenta no advento da agricultura, da observação dos fenômenos naturais. Surgem, então, as danças de harmonização com elementos da natureza, objetivando a fertilidade da terra. São as danças em honra ao sol, aos animais protetores. Danças que imitavam as fases da lua, o sopro do vento, o cair da chuva. E que, por muito tempo, permaneceu incógnito de que a presença desses grupos pré-históricos com sua arte, também se desenvolveu nesta região. Segundo o Atlas Enciclopédico Internacional: Um Mundo de Informações Sobre o Mundo que Vivemos, publicado pela editora Michelany, com uma área atual de 357.471 quilômetros quadrados, correspondendo a 4,20% do território nacional, Mato Grosso do Sul — junto a Mato Grosso — é um dos três Estados da região centro-oeste brasileiro. No período do Estado uno, Mato Grosso tinha uma área de 1.258.892 quilômetros quadrados, correspondendo a 14,79% da extensão do país. Com seus quatro milhões de quilômetros quadrados, a Bacia do Prata ou Platina coloca-se entre as maiores do mundo, logo após da Bacia Amazônica. É formada por três importantes artérias fluviais, ou, precisamente, os rios Paraná, Paraguai e Uruguai. A extensa área de planícies drenadas por esses três afluentes constitui a Região do Prata e estende-se pelo Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina.

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS Destarte, corresponde à região do Prata uma área situada na porção centro-meridional formada por uma grande parte das planícies da América do Sul que se estende até a Patagônia. Seus limites a oeste são constituídos pelos Andes e a leste pelo Sul do Brasil e pelo Oceano Atlântico. São cinco os países que possuem terras nessa região: Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia e o Brasil. A região do Prata é, ainda, subdividida em quatro unidades: O Chaco entre Mato Grosso, Paraguai, Bolívia e Argentina; o Pampa, entre a região sul do Brasil, Uruguai e Argentina; a Patagônia, entre Argentina e Chile; e, o Pantanal que abrange porções territoriais do Paraguai, da Bolívia e do Brasil. Com sua extensão em solo brasileiro ocupando 65% na região oeste de Mato Grosso do Sul e 35% na região sudoeste de Mato Grosso, o Pantanal compreende as planuras brasileiras confinantes com o Paraguai. Trata-se de um bioma que se caracteriza por uma região de terrenos baixos, cuja altitude aumenta à medida em que se avança para o norte. É unido à planície amazônica pelos vales da Madeira e Guaporé, o que frequentemente dá origem às chamadas águas emendadas, quando há enchentes simultâneas no alto do Paraguai e nas cabeceiras do Guaporé. Isto porque o solo do Pantanal está sujeito a inundações constantes no período das chuvas, que se estende de novembro a junho. Consequentemente, formam-se tantas lagoas ligadas entre si que, antigamente, suponha-se ser o Pantanal uma extensa região lacustre: O Mar de Xaraés, cantado pelo Grupo Acaba. Algumas dessas formações aquáticas são de água salobra. O clima predominante é o quente semiúmido. Considerando a grande distância em que se encontra do oceano, o clima é de tipo continental, com variações sensíveis entre o dia e a noite. Avaliado como uma das mais exuberantes e diversificadas reservas naturais do planeta, em 2001 o Pantanal foi reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, UNESCO, como Reserva da Biosfera e Patrimônio Natural da Humanidade. Mas nem sempre foi tomado como paraíso terreno. Considerado um documento Histórico acerca da Guerra do Paraguai ocorrida entre 1864 e 1870, encontra-se em Retirada da Laguna, de Alfredo D’Escragnolle Taunay, — que, após o episódio tornar-se-ia o literário Visconde De Taunay —, muitas referências ao “pestilento pantanal” de Mato Grosso, mas também ao Cerrado e à Mata Atlântica, que constituem com o Pantanal os três biomas da região que viria a ser o Mato Grosso do Sul. O leitor que se aventura nas páginas que Taunay dedica ao “soberano da nação”, encontrará os primeiros povoados mato-grossenseDo

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Belo Sul Mato Grosso -do-sul como Nioaque, Aquidauana e Corumbá. Também, notará que a massiva presença de ruralistas vindos das regiões sul, sudeste e centro oeste, correspondentes as áreas dos atuais Estados de Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Rio Grande Do Sul e Santa Catarina. Se atentar-se as situações e às palavras que o Visconde autor dedica aos Guaicurus, verificará os efeitos da colonização sobre as nações indígenas que habitavam toda essa vasta região há muito mais de 500 anos e compreenderá que... De fato! Foram estes colonizadores que — numa desleal competição com os povos originários —, constituíram o povoado contemporâneo do Estado. Finalmente, talvez questionará — como eu me questionei ao ler essa antiga missiva de caráter oficial em tom de memórias — se foi assim que tudo começou. Ou... — Ops! Está na hora. —, avisa-me o relógio do telefone. De roldão, tomei minha bolsa de estudante e segui rumo ao laboratório de Radiojornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, UFMS, meditando sobre. Por certo. Tudo começou antes do começo. Isso porque, antecipara há muito o tema do tão temido Trabalho de Conclusão de Curso de Jornalismo. Ah, sim, o tema! Este que se torna objeto de inquietação de muitos acadêmicos nesta derradeira fase da vida de graduando, apresentou-se a mim bem de início. Deveras, recordo-me bem a tarde primaveril em 2017, onde o mormaço que faz em Campo Grande, por esse período, majorava os trabalhadores e estudantes que tomavam o coletivo de volta para a casa. Havia tido uma aula da disciplina Cultura de Massa quando encontrei Erico Bispo no coletivo que saia do terminal Guaicurus para o bairro Los Angeles, região sul da capital. Velho conhecido do curso de Artes Cênicas, Teatro e Dança da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, a UEMS, hoje Érico segue à frente da Cia de Artes Rob Drown, acumulando os papeis de diretor, ator e músico. Assim que nos reconhecemos, travamos conversa sobre os ocorridos naquele curso após eu o abandonar no terceiro ano. Contou-me dos debates frequentes sobre a posição dos artistas locais. Das dificuldades enfrentadas pela classe, de salários não pagos por serviços prestados a instituições privadas e públicas... Decerto que não eram exatamente novidades para mim, todas aquelas situações enumeradas. Entretanto, acadêmico do segundo semestre de Jornalismo que era, imaginei que pudesse haver, ali, algum valor-notícia. Afinal, não há importância na

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS arte? E se. Sim. Naquela tarde, os comentários da professora Marcia Gomes sobre o TCC em Jornalismo reverberavam em minha mente. E junto a eles emergiram diversas recordações de colegas artistas insatisfeitos com a falta de incentivos, de estruturas e de valorização da classe, então. Por que não? Sim. Ajuizei que era uma boa ideia, e assim, antes de saltar do ônibus e deixar Érico seguir seu trajeto, expliquei-lhe: — Sabe? Uma de nossas professoras de Jornalismo explicou, por alto, que no TCC a gente pode escolher um produto. Pode ser um documentário de rádio ou televisão, uma reportagem, um programa ou livro. Quero fazer um livro-reportagem sobre a arte local. Principalmente o teatro, claro. É uma forma de me manter dentro do meio artístico e dar voz a esse setor. Érico sorriu, reflexivo. — Seria uma boa. Despedi-me. Saltei no ponto da praça ao lado da escola estadual Eteotônio Villela, no bairro Universitário II, onde morava. Segui para casa refletindo sobre aquela resolução declarada. Falar sobre a arte local. As dificuldades. A construção de um espetáculo, quem sabe. Sobre a questão dos incentivos que, há pelo menos um ano, havia causado um protesto desses artistas na Fundação de Cultura do Estado... Ah, sim! Iria tratar desse setor no meu trabalho de conclusão! Mas, seria possível? Não sei! Mas, caso seja. Defini-lo agora é uma vantagem e tanto, eu conjeturava quase indiferente ao pôr do sol que fazia, considerando as queixas tantas vezes ouvidas por conhecidos que no andamento natural da graduação deparavam-se com todos os dilemas do TCC de última hora. E, nos dias seguintes, procurei saber se aquela seria uma proposta válida, obtendo uma resposta satisfatória por parte de colegas veteranos e professores do Jornalismo. Com efeito, o tema do TCC foi definido no início do curso de bacharel em Jornalismo da UFMS, ainda em 2017. Saído do curso incompleto de Artes Cênicas, Teatro e Dança da UEMS e tendo envolvimento com pessoas e grupos de teatro da região, não poderia ser de outro modo. Estabeleci, assim, que falaria sobre o valor da arte do Estado num livro de não-ficção, um livro-reportagem. A partir dessa definição prévia, aproveitei diversas oportunidades oferecidas nas disciplinas do curso de Jornalismo para realizar entrevistas e reportagens sobre a área da cultura e das artes. Também aproveitei as ofertas de outros cursos da instiDo

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Belo Sul Mato Grosso tuição para ampliar o meu conhecimento e constituir o corpo teórico. Assim, considerando que nem sempre as reportagens e notícias apresentam todas as informações levantadas durante a apuração, ficando muita, muita coisa de fora, todas essas coisas reunidas num conjunto prévio de investigação, poderiam ser utilizadas em sua totalidade junto as novas investigações e entrevistas para o livro-reportagem do TCC. Dessa forma, paulatinamente, consegui reunir um volumoso material teórico e, ao mesmo tempo, uma série de trabalhos jornalísticos realizados nas diversas disciplinas do curso, sobretudo, as laboratoriais. Essas informações, essas experiências, essas reportagens e notícias são as bases deste livro-reportagem que começou antes do início, tal qual a própria cultura artística do Estado. Origem, esta, que muitas vezes me conduzia a tarciturnas conjecturas. Lembrava de que, alguma vez nos anos idos de escola, algum professor de alguma disciplina havia tratado do tema Mato Grosso do Sul em ao menos uma aula. Contudo, prevalecia uma sensação de pouco conhecimento sobre o assunto. Havia mais a saber? Sim. Certamente! Seria, no mínimo, uma grande oportunidade para saber as origens e as relações da cultura local com os povos que constituiram a região. Os fundamentos da cultura e das expressões artísticas local. Como terá sido no ínicio? Será que advém da recôndita história narrada por Taunay a cultura primeira do povo sul-mato-grossense traduzidas no valor agrário e na subserviência do trabalhador humilde da região, ao seu suserano, expressos no comportamento servil do bom Guia Lopes? Ou não? Ou ainda só podemos considerar que a cultura mato-grossense-do-sul foi forjada a partir do governo de Harri Amorim, logo após a divisão? — ... Outra coisa. Você está falando Rarry”! —, corrigiu-me a. Deveras. Recordei. (Mas falarei logo a diante) Antes dessa memoria, é preciso reportar as primeiras manifestações artísticas do atual Mato Grosso Do Sul, o que significa retomar o que ocorreu há muito, muito tempo atrás, quando surgiram os primeiros grupos humanos na região.

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“Os celeiros de farturas, sob um céu de puro azul, reforjaram em Mato Grosso do Sul uma gente audaz.”

Capítulo Primeiro:

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aquela noite. Sob o comando da professora da disciplina História da Dança no curso de Artes Cênicas Teatro e Dança, da UEMS, em meados do primeiro semestre de 2012, a turma numerosa — porque mesmo os acadêmicos dos semestres mais avançados abriram mão de suas aulas para reviver aquele instante didático —, tomados pelo transe dos sons das batidas ritmadas dos nossos pés descalços sob o solo, acompanhados de um pandeiro, de palmas intermitentes, sumamente entregues ao transe, realizávamos nossa própria dança primitiva. Uma aula prática sobre a dança na Pré-História. Eu, então, ignorava completamente a presença de vestígios dos povos primitivos nesta região do atual Mato Grosso do Sul. Decerto porque os conteúdos da disciplina de Artes nas escolas em que estudei sempre se concentraram alhures, nas plagas do Brasil litorâneo do Sudeste ou nas terras ultramar de Grécia, Roma, Itália, França e Inglaterra. E, no entanto, a exploração das paisagens sul-mato-grossenses remonta a períodos que antecedem até mesmo aos primeiros povos indígenas. Aos grupos que as teorias mais avançadas consideram ter vindo da África pela Beríngia — também chamada Ponte Terrestre de Bering —. Teoria, esta, reforçada com a descoberta de sítios arqueológicos, como Cactus Hill, nos Estados Unidos, datados do período entre 12.000 e 25.000 anos antes do presente. Daí surgiram os povos que registraram em abrigos locais as primeiras manifestações artísticas da região, como a dança. Tomando como documentos as figuras encontradas em diversos sítios arqueológicos da Europa e da África do Sul, os pesquisadores da Antropologia e das Artes estimam que a dança tenha surgido na época Paleolítica, período histórico anterior ao cultivo da terra, quando o homem ainda migrava em busca de caça, coleta e pesca, conforme a arte-educadora e artista visual pela Universidade Federal de Sergipe, UFS, Laura Aidar em seu artigo O que é dança? “A dança foi uma das primeiras demonstrações expressivas do ser humano. Surgiu ainda na pré-história, Do

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Belo Sul Mato Grosso como consequência de experimentações corpóreas que homens e mulheres realizavam, como bater os pés no chão e bater palmas”. Especialista em Dança Terapia pela Faculdade Unyleya, a bailarina e coreógrafa, Maria Cecília Bazzotti, descreve em seu artigo A Dança da Pré-História e Contexto Histórico, os motivos de um desses desenhos do Paleolítico, a figura de trois-Frères, em Montesquiou-Avantès. “Nelas, a cabeça está voltada para frente, o tronco apresenta-se num falso perfil, os dois braços em semi-extensão, com o direito um pouco mais alto que o esquerdo. O corpo está inclinado em relação às pernas, que estão levemente flexionadas. A perna esquerda está à frente da direita, com o pé no chão, e o pé direito está em relevé. O conjunto do desenho aparenta um giro com as pernas flexionadas, e a figura está vestida com uma pele de bisão e máscara de rena ou cervo”. Segundo a dançarina, embora encontrados em lugares muitos distantes, esses desenhos representam alguns movimentos similares, o que leva a dedução de que a humanidade possuí um fundo cultural em comum. De acordo com a arte educadora Laura Aidar, a dança e a música surgiram juntas como forma de culto ao sagrado. “Portanto, é muito provável que a dança tenha surgido juntamente com a música, também como uma forma de comunicação. Além disso, estava bastante relacionada a cerimônias ritualísticas e espirituais”. De acordo Maria Cecília Bazzotti, na medida em que o homem pré-histórico mudou seus hábitos no período Neolítico, passando a cultura e ao surgimento das civilizações antigas, as expressões como a dança, e a música ganharam sofisticação. O estabelecimento de uma classe religiosa que irá supervisionar os ritos de dança confere um caráter de representação dos mitos e deram origem ao primeiro ator de teatro. Conhecidas como danças milenares, essas expressões eram realizadas com utilização de máscaras, e foram as primeiras danças em grupo de roda e em filas onde, na maioria das vezes, os participantes são representados de mãos dadas, caso das celebrações das mudanças de estações e da colheita dos antigos celtas, romanos e egípcios. Com o avanço do Cristianismo e sua política de sincretização, essas expressões foram ressignificadas em festejos de caráter popular e religioso, caso das Festas de São João, do Divino Espirito Santo e Do Dia De Reis que agregam elementos das antigas celebrações pagãs e que, no Brasil, também ganharam características regionais, caso do Banho de São João de Corumbá.

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Da Pré-História Ao Banho De São João de Corumbá Experiências extremamente produtivas para o projeto que eu me propunha realizar no trabalho de conclusão de curso, funcionando como experiência no âmbito do jornalismo de rádio, os dois laboratórios de Radiojornalismo, junto às demais disciplinas práticas, serviram de instrumento para o levantamento de informações deste livro junto aos entrevistados. Assim, nos trabalhos sobre a formação eas características do Estado de Mato Grosso do Sul, encontrei algumas curiosidades sobre as heranças dessa evolução artistítica e cultural em solo sul-mato-grossense. Destarte, durante o primeiro semestre de 2019, ao lado do primeiro grupo de equipe de trabalho do Laboratório I, formado junto aos meus colegas acadêmicos Cauê Reis, Letícia Monteiro, Letícia Schiavon e Gustavo Bonotto, descobri, por exemplo, que a procissão que acompanha os andadores até o rio Paraguai com dança caipira no percurso são um exemplo dos resquícios das antigas tradições de danças milenares, como esclareceram aos colegas Letícia Schiavon e Cauê Reis, o antropólogo, professor e pesquisador Álvaro Banducci e a mestranda de Letras, licenciada em arte educação pela UEMS, Jane Motta, durante a gravação do podcast sobre as festas juninas: — O primeiro questionamento que trazemos é: por que, na sua visão, Álvaro, as festas juninas são tão populares? —, indagou Letícia Schiavon. — Bom. Na verdade, a princípio é uma festa pagã, mas que celebrava o solstício de verão, na Europa. Em várias regiões, vários países da Europa. E ela é uma festa que a igreja católica acaba por trazê-la para si, e aí celebra como as festas juninas e em específico, São João. E essas festas foram trazidas para cá desde o período da colonização. Os jesuítas faziam essa festa com os índios e a fogueira, a cantoria, e isso fascinava bastante as comunidades indígenas. Então desde o início da colonização já é uma festa que percorre o território brasileiro pelas mãos dos jesuítas. E vai ficando uma festa de caráter tradicional nos rincões brasileiros. Uma festa que consegue se estruturar por todo o território nos rincões e depois ela vai chegando para a cidade. Assim, é uma festa de muito tempo, diante dessa tradição religiosa num país católico. Fortemente católico como no Brasil. —, respondeu o professor. — E para você, Jane? Por que as festas juninas são tão populares? —, questionou Cauê. — Bom. Partindo do princípio, como o professor disse, da origem pagã das festas. De colheita. Da celebração de colheita. Do

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Belo Sul Mato Grosso Nos primórdios, a função era evitar que tivesse perda de colheitas, estiagem. Os bichinhos dos cereais e tal. Com a chegada dos jesuítas ao Brasil, exatamente, como ele disse —, explica com um gesto vago de mãos para Álvaro —. A primeira festa joanina, foi comemorada pelos jesuítas com o uso da fogueira. Nós temos o início do inverno no dia 20 de junho, e a Festa de São João no dia 24. E, realmente, a catequese usou isso. Usou. Os Jesuítas para catequizar os indígenas usaram a adoração deles aos deuses através das danças e fogueiras. Letícia Schiavon emendou outra questão: — Mas em suas origens as festas herdaram as tradições pagãs e ao longo do tempo no Brasil foram incorporados elementos de religiões de matriz africana, você pode falar um pouquinho para gente sobre essa perspectiva? — Religiosamente falando, a cultura africana, a cultura aos orixás, não traz referência religiosa nenhuma com a festa junina. —, respondeu Jane, com veemência. — Corumbá traz. E isso é tão bonito lá! —, sussurrou Álvaro a Cauê. Contudo, é preciso esclarecer: só temos, hoje, alguma ideia dessas manifestações artísticas da era primitiva, por meio de representações em cavernas. De outra forma, o que na contemporaneidade conhecemos sobre a dança primitiva só chegou aos nossos tempos por meio de amalgamas originando as danças espontâneas e emocionais encontradas em alguns rituais contemporâneos que. Sim. Após milênios, ainda se fará presente no Banho de São João. Letícia Schiavon prosseguiu: — Álvaro. Voltando para as festas de Corumbá, elas têm momentos de religião de matriz africana também? O professor respondeu com evidente entusiasmo: — Excelente essa pergunta, porque ela vai remeter a outro aspecto que singulariza a festa de Corumbá. E, você sabe que o São João Batista, nas religiões afro-brasileiras, é considerado o orixá Xangô. No dia de São João-Xangô. Tem os dias de São João nos terreiros de Corumbá e Corumbá tem aproximadamente quatrocentos terreiros. Muito provavelmente muito mais do que isso. Os terreiros promovem a festa para Xangô e levam Xangô para ser batizado no rio Paraguai. E isso é de uma beleza indescritível porque você tem toda uma mistura. Você tem os terreiros de Umbanda em que de manhã cedo, no dia da festa de São João, os andores são levados para a igreja católica e lá eles são benzidos pelo padre, com água benta; à noite, esses mesmo andores, são reverenciados e são recebidos pelos filhos

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS de santo. Então, o Preto Velho vem, reverencia o andor onde está São João-Xangô e aí eles são levados para o porto. Às vezes como São João, as vezes como Xangô, mas sempre como os dois. Dependendo do terreiro, eles podem chegar e fazer um ritual, muito mais próximo do ritual afro-brasileiro do católico, inclusive, há pessoas que dizem que a festa do banho de são João na cidade de Corumbá só permaneceu vivo por causa dos terreiros que levavam Xangô para tomar banho no rio. Naquela tarde, logo após a gravação do podcast, enquanto transitávamos pelos corredores da UFMS e mantínhamos uma conversa informal sobre o assunto, Jane explicou-me sua posição com base no pensamento decolonial. Segundo a mestranda, trata-se de um movimento latino-americano emergente que objetiva libertar a produção de conhecimento de sua origem eurocêntrica com críticas à suposta universalidade do conhecimento e ao predomínio da cultura ocidental, de modo que ela se sentiu completamente incômoda com a associação entre Xangô e São João no banho: — Veja bem. Minha crítica se fixa, única e exclusivamente no contexto do sincretismo. Como praticante e pesquisadora de uma religião de matriz africana, simplesmente, não entra em minha cabeça que se pegue um orixá do fogo, e se dê banho. Não faz sentido. Daí você me diz, “mas tem o sincretismo”. Realmente, tem. Mas ele pertence a um tempo que já não existe, Giovanni. Porque, veja bem, estamos libertos disso desde a abolição. Um outro golpe sofrido pelo povo negro, ok? Então, é uma associação enganosa, depreciativa, desvalorizadora de um povo específico. Que foi historicamente construído a partir do período colonial. Então, você pensa: para dominar um povo, ou uma pessoa, neste caso os negros traficados do continente africano, foram tiradas deles a língua materna, suas crenças religiosas de maneira que a única forma de conservar suas tradições foi por meio de associações com as crenças impostas pelo seu colonizador explorador. Não obstante, no dia 19 de maio de 2021, após dez anos de processo aberto pela Prefeitura Municipal de Corumbá, por meio da então Fundação de Cultura e Turismo do Pantanal, em parceria com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, o Conselho Municipal de Políticas Culturais, entre outros, a Festa do Banho de São João de Corumbá foi declarada Patrimônio Imaterial do Brasil — notícia recebida com emoção na cidade e por mim, que soube por meio de um telejornal —. Segundo o site municipal Corumbá MS, o Banho de São João teve origem na Europa com o costume português do banho de rio obrigatório no dia do santo a partir do século 14. Conforme relatos de historiadores, em Corumbá, a despeito da evidente Do

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Belo Sul Mato Grosso presença da cultura africana, a tradição surgiu com a chegada dos árabes por volta de 1882. Para o professor Álvaro Banducci, que desenvolve trabalho na região, essas manifestações religiosas no Banho de São João costumam agregar mais seguidores durante o percurso até o Rio Paraguai: — Não raro, quando chega no rio Paraguai, depois do batismo ritualizado ao santo, o pai de santo ou a mãe de santo continuam batizando as pessoas que que estão ali. Então é uma mistura, porque às vezes eu tenho um santo católico mas vou lá receber a benção de pai de santo ou de uma mãe de santo, e a população encara isso com muita naturalidade. Isso faz parte da beleza da festa que é a festa do banho de São João de Corumbá. Há um diálogo religioso intenso, fortíssimo e extremamente poderoso. Essa é a característica do São João de Corumbá que você não irá encontrar em nenhum outro do país. —, arrematou o antropólogo. Considerando o passado pré-histórico e milenar da dança, a procissão que acompanha os andadores até o rio Paraguai com dança caipira no percurso é um exemplo dos resquícios das antigas danças pagãs que, provalvemente, foram praticadas pelos homens primitivos que habitaram a região. Danças acompanhadas de sacrifícios e oferendas organizados em forma de ritual. Ritual que antecedia a dança com procissão preliminar — como a que fizéramos ao sair da sala de aula no primeiro piso da Escola Estadual Hércules Maymone em direção a quadra de esportes —. Ah, sim. Ritual. Ritual que tinha seu ápice com uma dança circular em torno do altar. Tais as explicações que acompanharam a aula prática de História da Dança sintetizadas no trabalho História Da Dança – Linha Do Tempo, da doutora em comunicação e semiótica e pesquisadora do Centro de Estudos em Dança da Pontíficia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP, Rosana van Langendonck. “Os rituais e oferendas em forma de dança têm o sentido de festejar a terra e o preparo para o plantio, de celebrar a colheita e a fertilidade dos rebanhos. A identificação, pela dança, com os movimentos e as forças naturais representa uma forma de o homem se sintonizar com o ritmo da natureza, auxiliando-o na programação de suas ações.” Assim, vemos pela História da Dança e pela entrevista com o antropólogo Alvaro Banducci com a arte educadora Jane Motta que a arte e a cultura estão interligadas. Com o objetivo de avançar em minha investigação sobre elas no contexto do Estado, iria aproveitar uma nova oportunidade no semestre seguinte. Precisamente, no início de uma tarde quente de primavera, quatro de novembro de 2019, uma segunda-feira. Após a aula de Assessoria de Imprensa, ficara um bom tempo vagando pelos corredores e bancos da UFMS enquanto aguardava o horário da aula de Laboratório de Radiojornalismo II. Nesse ínterim, revisava a pauta da entrevista que gravaria no estúdio de Radiojornalismo 22

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS do curso de Jornalismo, considerando que, dos trabalhos programados para esse segundo Laboratório, finalmente, sobrava o derradeiro. Um radiodocumentário. O fim de um processo excitante de aprendizados e experiências no âmbito do jornalismo de rádio. Momentos de tensão, dúvidas, tomadas de decisão e descontração que seguiam para o ato final da equipe formada por Cauê Reis, Angel Angelis, Mayara Nascimento, Letícia Monteiro e eu. Uma vez que a equipe se encontrava — como sempre ocorre no final de um semestre pleno de atividades —, deveras exausta, houve um acordo de que o tema do trabalho final deveria abordar um assunto tão importante quanto acessível. A primeira ação foi deliberar sobre o tema considerando o acordo do grupo. Sugeri algo sobre a cultura local. Letícia propôs um tema sobre esportes. E mais outros três assuntos foram sugeridos. Ao final, cada um defendeu as vantagens de suas matérias propostas, sendo que a cultura terminou por conquistar a maioria. Um êxito, afinal. Intimamente, considerava os conhecimentos que essa atividade traria para mim e como poderia agregar ao projeto de livro-reportagem que iria realizar na fase do TCC. Com esse pensamento, caminhei com a equipe para o passo seguinte: definir a angulação e elaborar a pauta com as questões. Desta forma, avaliei que a primeira coisa, antes mesmo das questões das problemáticas no campo cultural artístico debatidos com Erico Bispo naquela tarde em que nos encontramos no coletivo, seria... Óbvio! A constituição do Estado, suas características culturais. Ah, que coisas as fontes convidadas poderão contar sobre esta terra onde nascemos, todos nós, sul-mato-grossenses, e da qual tão pouco — sim, pouco! Muito pouco — sabemos? Nessa elucubração, rebuscava na memória as velhas aulas e livros didáticos trabalhados nos tempos de escola. Figuras sobre a Casa Pimentel, sobre os Bugres da Conceição, sobre José Antônio Pereira, enaltecido como explorador e fundador da capital nos livros didáticos e. Sim. Principalmente. Não apenas isto: quase que exclusivamente. A Fauna e a Flora do Pantanal, Bonito e os demais pontos turísticos. Quanta coisa não terá permanecido de fora?, cogitava. Para construir a pauta, contudo, era preciso buscar referências nos outros trabalhos realizados nas outras disciplinas em semestres anteriores. Um dos primeiros, tratava sobre a diversidade cultural da região, realizado para a conclusão da disciplina de Antropologia da Cultura Brasileira, no terceiro semestre. Embora não se constituisse um trabalho jornalístico, havia uma base para tanto: a pesquisa. Foi ali, naquele início de junho de 2018, que tive de compilar as primeiras noções sobre cultura para uma atividade avaliativa sobre um tema pertinente ao meu projeto de livro-reportagem: a cultura mato-grossense-do-sul.

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Estado Uno E Cultura Sul-Mato-Grossense Logo no primeiro momento, compreendi que a definição de cultura é ampla, polissêmica. Tanto que, durante cada semestre, reencontrei esse tema em diversas disciplinas. Em meados de outubro de 2019, no sexto semestre, quando me preparava para realizar um seminário sobre o assunto na disciplina optativa de Estudos de Libras, deparei-me com o livro Cultura Surda, da pedagoga Karin Strobel. Segundo Karin, cultura é uma palavra com mais de 250 conceitos. Para o pensador britânico-jamaicano Stuart Hall, um dos fundadores da escola de pensamento conhecida como Estudos Culturais Britânicos ou a escola Birmingham dos Estudos Culturais — temática a mim introduzida em Sociologia no Ensino Médio e melhor explorada na disciplina de Cultura de Massa —, “a cultura se relaciona a sentimentos, a emoções, a um senso de pertencimento, bem como a conceitos e ideias.” Em um entendimento sintético, podemos dizer que a cultura se refere a um conjunto de aparatos de convivência, participação no meio e expressões artísticas que moldam o caráter e a individualidade de um sujeito. É um conjunto de crenças, hábitos, formas de vestir, pensar, agir e falar. É tudo o que é passado, vivido, adquirido, compartilhado entre as pessoas. São costumes que se intersecionam e que, teoricamente, seriam de outras culturas. No mundo contemporâneo e mundializado, os processos de trocas culturais ocorrem de formas cada vez mais rápidos. As culturas são fluídas, mutáveis, modificam-se continuamente sem perder sua essência, pois não existe pureza cultural. A humanidade é o reflexo de um extenso processo de acumulação cultural e é a manipulação desse processo acumulativo que permite inovações, melhorias e avanços tecnológicos. Além disso, cultura é um campo da existência humana entremeado de várias práticas cultivadas. O conceito de cultura é diferenciado de prática cultural ou costume. De outra forma, podemos dizer que a cultura é um sistema amplo de conhecimentos teóricos que encontram na prática, nos costumes, uma parcela de suas manifestações materiais. Uma dança específica como o vanerão, a katchaka ou a guarânia por exemplo, constitui uma prática cultural, embora não venha a ser a cultura como um todo. Isso porque essas três modalidades de música e dança estão restritas a um espaço geográfico (Argentina, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande Do Sul), constituindo a expressão dos povos que habitam essas regiões e três dos vários estilos da dança e da música, que são duas das várias linguagens 24

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS artísticas culturais conhecidas. Assim, pode-se dizer que ter cultura, também se refere a pertencer a um povo e ser ao mesmo tempo, único e igual. A cultura é o que fortalece a união de um povo por meio de tradições transmitidas e reforçadas pelas mais diversas expressões artísticas, pedagógicas, esportivas, via de regra, em razão do funcionamento das instituições reguladoras, bem como igrejas, órgãos públicos, núcleo familiar, escolas e a imprensa. A partir desse prévio conhecimento, pude conjeturar sobre a cultura sul-mato-grossense e pensar nas perguntas que poderiam contribuir para elucidar minha investigação sobre as origens, as caraterísticas e, principalmente, o valor das manifestações artísticas locais — especialmente o teatro —. Sim, porque a relação do mato-grossense-do-sul com sua arte, diz muito sobre sua percepção de si, sua identidade. Afinal, estaria a cultura sul-mato-grossense restrita à forma estereotipada do “homem do campo”, do sertanejo que aloja em si valores de outras regiões? — meditava enquanto revia o trabalho de Antropologia da Cultura Brasileira para criar o roteiro de perguntas do radiodocumentário. Com essa pesquisa, em pouco tempo elaborei o primeiro rascunho da pauta dividindo o programa em três partes sobre a cultura e a arte do Estado: a primeira, relacionada às origens e formação da cultura regional; a segunda, sobre as características e a identidade; e a terceira, sobre a valorização do setor pelas instituições públicas e privadas. Restava o elenco de fontes. Realizamos uma nova deliberação via grupo remoto no aplicativo WhatsApp. Estabelecemos, assim, potenciais entrevistados: a jornalista Marinete da Costa Gomez Pinheiro, formada em direção de documentário na Escola Internacional de Cinema e Televisão de Santo Antônio Dos Banhos em Cuba, autora de pesquisa sobre os cinemas de Mato Grosso do Sul, e, coordenadora do Museu da Imagem e Som do Estado, o MIS; a gerente dos Fundos de Investimentos Culturais de Mato Grosso do Sul, Solimar Alves de Almeida; a mestra em educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, pesquisadora e ativista cultural referente ao Patrimônio Imaterial e ao Folclore Brasileiro, com experiência na área de Antropologia com ênfase em etnologia, Marlei Sigrist; e, finalmente, o ator, produtor e diretor teatral da Urgente Cia, licenciado pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Vitor Hugo Samudio. Segundo o rodízio estabelecido de tarefas, Mayara, Angel e Kauê ficariam com as edições das sonoras e da finalização do programa. Letícia Monteiro e eu nos responsabilizamos pelo contato com as fontes e pelas entrevistas, sendo que as graDo

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Belo Sul Mato Grosso vações com os entrevistados estariam, a priori, a meu cargo. E era por este motivo que naquele início de uma tarde quente de primavera, quatro de novembro de 2019, uma segunda-feira, as 14 horas, me encontrava no Laboratório de Radiojornalismo onde Letícia Monteiro apresentou as convidadas Marlei Sigrist e Marinete Pinheiro para a turma do curso e, em especial, para a professora Daniela Ota e a mim. Dos quatro convidados, apenas Marlei e Marinete foram entrevistadas juntas. Na sequência, rumamos para o estúdio de Radiojornalismo anexo, tomamos lugares junto à bancada com os microfones. Finalmente, principiamos a entrevista. — No dia 11 de outubro de 1977, concretizou-se o desmembramento de Mato Grosso do Sul, mas somente em 1º de janeiro de 1979 o presidente Ernesto Geisel a elevou a categoria de Estado sendo o primeiro governador empossado, Harri Amorim Costa. Depois da divisão, como se constituiu a cultura sul-mato-grossense? —, perguntei. Marlei e Marinete tiveram um momento de hesitação sobre qual delas responderia primeiro. Por fim, Marlei assumiu a premissa: — Não é por uma simples divisão política do Estado que a gente tem o início de uma nova cultura. —, declarou a professora-antropóloga. Segundo Marlei, a cultura do Mato Grosso do Sul é um amalgama de culturas que remontam a mais de 500 anos da colonização portuguesa e da chegada dos bandeirantes na região do antigo Mato Grosso uno. Trata-se de um processo social-histórico que açambarca a vinda de povos diferentes, como espanhóis, portugueses e gente de outras nacionalidades e regiões do país que chegam no período mais recente de dois séculos. — ... E essa cultura foi se formando a partir do encontro dessas formas de ser, de viver e de pertencer a um lugar nem sempre de formas pacíficas, algumas vezes até conflitantes. —, explicou. Para Marlei, o que se denomina cultura-sul-mato-grossense refere-se à formação de uma cultura que é resultante da miscigenação ou da sobreposição de outras formas culturais trazidas pelos imigrantes. Esse arcabouço cultural resultante influencia diretamente na identidade dos mato-grossenses-do-sul na medida em que os revela imbuídos de valores, práticas e expressões culturais únicas. Isto é, os estrangeirismos competiram para a formação da cultura estadual.

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS — Por que as pessoas têm medo de dizer que é nossa alguma coisa que tenha vindo de fora? Mas, se for pensar, todos os países tiveram suas formações culturais dessa maneira. Outros povos que foram para lá e essas culturas se misturando e acabou sendo daquele país. —, concluiu a pesquisadora. Passei a palavra a Marinete: — Antes da divisão, temos que ver ainda algumas cidades que eram pequenas. Por exemplo, Corumbá que foi uma metrópole antes da divisão, uma cidade muito importante com a abertura do Rio Paraguai para a navegação. Ela tem uma série de outras influências trazidas pelos navios, pela importação que adentra o Brasil através do Rio Paraguai. Então é muito difícil você traçar que houve uma diferença cultural do Mato Grosso uno com o Mato Grosso do Sul, com esse aspecto da divisão. —, opinou. Na perspectiva de Marinete, não é possível tratar da cultura de Mato Grosso do Sul sem atentar para o fato de que este é um acontecimento histórico que não dispensa a história pregressa do Estado uno. Contudo, o Estado uno não era tão unido desde muito antes da divisão.

A História da Divisão E A Construção Da Identidade Regional Em sua entrevista para o radiodocumentário, a gerente dos Fundos de Investimentos Culturais de Mato Grosso do Sul, Solimar Alves de Almeida, avaliou que as diferenças entre o Mato Grosso e o Mato Grosso do Sul remontam às divergências do período anterior à divisão: — Bom, na verdade, Mato Grosso do Sul sempre teve as suas diferenças do norte, né? —, destacou, com sua voz rouca, — Então, até por isso o processo divisionista no Estado. Na análise de Solimar, um dos diferenciais entre os dois Estados, é a presença de influência paraguaia, japonesa, italiana e árabe que se contrapõe ao norte — atual Mato Grosso — onde não há uma presença igualmente significativa desses povos. Assim, as diferenças entre os dois Estados não se restringem à política que levou ao processo de divisão, mas, perpassa pela divergência cultural entre as duas regiões. — Para Cuiabá, para a região norte do Estado, as influênDo

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Belo Sul Mato Grosso cias eram de outros locais e não dessas mesmas regiões com tanto impacto. Então, já existia essa diferença, não era só uma diferença política que levou ao processo de divisão. Existia, também, um processo político e cultural que não aproximava os dois (Estados). —, explicou-me, Solimar. Contudo, houve uma intensa movimentação política de teor divisionista. Em sua dissertação apresentada para obtenção do título de mestre em comunicação no Programa de Pós-graduação em comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul intitulada A Diversidade Cultural Nas Matérias Dos Cadernos De Cultura De Campo Grande, a assessora de comunicação na Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, Gisele Guedes Colombo, revela o cenário divergente entre os ruralistas do sul e os habitantes do norte do antigo Mato Grosso uno. Segundo Gisele Colombo, a secção entre as regiões norte e sul do antigo Mato Grosso uno era um anseio dos coronéis formados por imigrantes gaúchos que vieram durante a guerra farroupilha, desde meados do século XIX. Esses personagens realizaram diversas manifestações e articulações políticas a respeito da divisão passando esse legado para seus filhos que mesmo radicados no Rio de Janeiro, criaram, no final de 1932, a Liga Sul-mato-grossense promulgando três manifestos de cunho divisionista entre 1933 e 1934. — Quais as características da cultura sul-mato-grossense e no que ela difere da cultura de outros Estados ou do Estado uno depois da divisão? —, inquiri, dando sequência à entrevista no estúdio de rádio. Desta feita, foi Marinete quem assumiu a argumentação: — É muito difícil você traçar que houve uma diferença cultural do Mato Grosso uno com o Mato Grosso do Sul, com esse aspecto da divisão. E o pensar o Estado, quando a gente vê a necessidade de ter uma bandeira, ter um hino, ter esses símbolos que marcam o Estado, aí eu acho que é quando começa uma reflexão sobre “qual é a cultura do Mato Grosso do Sul? ”. —, avaliou a jornalista. Marinete aludiu sobre a emergência de se criar uma cultura diversa daquela que competia ao antigo Mato Grosso uno com a elaboração de símbolos que expressassem a identidade do povo insurgente com o novo Estado, como o hino e a bandeira. Para a coordenadora do MIS, é nesse momento histórico que ocorre uma reflexão sobre a cultura de Mato Grosso do Sul. Além disso, toda a política e manifestação separatista do Mato Grosso uno bem como a própria ideologia que permeia a 28

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS construção da identidade regional foi, segundo Gisele Colombo, assumida pelos fazendeiros da região que constituíam a elite sulista. Norteado por uma hegemonia coronelista, a construção da identidade cultural do novo Estado teve a pretensão de imbuir uma imagem de sertanejo ruralista protetor do meio ambiente. Assim, a primeira tentativa de formular uma identidade regional também pendeu para os elementos do campo, do homem pantaneiro marcado por um discurso ecológico que, agregado ao fazendeiro, imprime neste um caráter inequívoco de protetor do meio ambiente. Porém, trata-se de um discurso excludente que, desde o período dos movimentos separatistas, põe de lado uma parcela étnica — em especial os povos originários, os negros e estrangeiros —, e, de outro, nega o protagonismo às parcelas menos abastadas da sociedade estratificada do Estado. Essa imagem construída, não obstante, encontrou flagrante contradição desde os incêndios que atingiram a região do Pantanal em fins de agosto de 2020. Na segunda semana de setembro daquele mesmo ano, investigações da Polícia Federal indicaram que parte dos incêndios havia sido causado por pelo menos quatro fazendeiros da região de Corumbá que pretendiam limpar a área ambiental para aumentar seus pastos. Segundo as estimativas da polícia, o fogo proposital pode ter queimado cerca de 25 mil hectares do Pantanal. De acordo com a organização não governamental Ecologia e Ação, Ecoa, a ação desses criminosos repercutiu no cenário internacional pondo em cheque a imagem construída do pantaneiro integrado a natureza e protetor da fauna e da flora do sul-mato-grossense até então predominante no exterior desde há muito tempo.

Diferenças com outras regiões — Vitor, existe, hoje, diferenças culturais entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul? —, indaguei em mais uma gravação no estúdio de radiojornalismo. Como se estivesse buscado antever a questão, Vitor Samudio, diretor e ator do grupo Urgente Cia, não tardou em responder, embora reflexivo: — Olha, apesar de serem Estados irmãos, né? Uno. E tudo vir de uma cultura só, percebemos que com certeza há distinção cultural nos dois Estados. Inclusive geograficamente porque é uma região muito grande, então, assim, do norte para o sul, a percebemos já diferenças muito contrastantes em relação ao aspecto cultural, ao aspecto artístico. Então, com certeza conDo

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Belo Sul Mato Grosso seguimos de uma forma muito nítida perceber aí as diferenças entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Ao seu turno, Marlei considerou a influência dos povos da fronteira com Estados e países, destacando a presença da cultura paraguaia como um fator de diferenciação de Mato Grosso do Sul em relação a outras regiões: — O Estado de Mato Grosso do Sul tem algumas características diferenciadas do restante do Brasil. Principalmente por essa fronteira com o Paraguai e com a Bolívia. Mas, principalmente eu diria, com o Paraguai. Essa paraguaidade está em todos nós aqui, em Mato Grosso do Sul, principalmente do centro de Mato Grosso até a região sul. Mesmo porque todo esse território, antigamente era um território paraguaio, né? Ele acabou sendo brasileiro por conta da chegada dos bandeirantes. Segundo a professora e antropóloga, essa herança cultural se faz presente por meio das músicas entrecortadas pelo sapucai — que nada mais são senão gritos eufóricos —, da dança e da língua nheengatu da família indígena tupi-guarani: — Essa paraguaidade está em nós, na musicalidade, que é muito forte. Você não pode ouvir qualquer nota musical relativa à polca ou à guarânia que sai todo mundo dando os seus gritos e já querendo dançar. Está também nessa fala, essa fala que eu tenho chamado fala nheengatu ou seria uma fala translinguageira. Ou seja, não tem em outro lugar do Brasil que exista esse entrosamento, essa forma de se falar no coloquial, né, e que depois desse coloquial a gente ainda vê uma extensão disso até na literatura ou algumas músicas. Esse é um grande diferencial que nós temos em Mato Grosso do Sul. Isso só para citar a questão paraguaia. — Hoje, 40 anos depois da divisão, existe alguma diferença entre a cultura do Mato Grosso do Sul e do Mato Grosso? —, questionei. Marlei tomou a frente: — Existem algumas similaridades e algumas diferenças... Como eu disse anteriormente, da cultura paraguaia dificilmente você vai ver isso lá em Mato Grosso, então é uma identidade muito nossa daqui do sul, do antigo Mato Grosso uno. Mas, existem outras que estão extremamente ligadas a Cuiabá, Poconé e Chapada, e também formas de falar. Se você for pensar no cururu, na viola de cocho que vieram ali, dessa região pantaneira de Mato Grosso e se estabeleceram também em Mato Grosso do Sul na região, principalmente de Corumbá. Corumbá e Ladário. Então, assim. Existem alguns pontos, sim, que não se repetem em Mato Grosso e muito dos outros pontos se repetem nos dois Estados. —, concluiu, voltando-se para Marinete Pinheiro.

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS Atendendo ao gesto da colega, Marinete assumiu a fala: — Por conta dessa questão geográfica mesmo. Também é o pantanal que se divide. Então, nessa região pantaneira você vê muitas similaridades entre o que eles consomem, o que eles escutam. Tem uma relação cultural muito grande que também é uma definição geográfica. A demarcação do que é o pantanal faz com que esse Mato Grosso e esse Mato Grosso do Sul tenham uma ligação cultural muito forte. Marlei retomou a palavra: — Há também essa parte da cultura japonesa, principalmente da alimentação que nós já absorvemos no nosso dia-a-dia. Nós vamos à feira, queremos comer sobá toda a semana, toda hora. E já é uma culinária modificada, porque foi adaptada ao gosto aqui da região. Então, em nenhum outro lugar do mundo, nem mesmo no Japão você irá encontrar esse, dito, sobá campo-grandense. — Por que a identidade sul-mato-grossense estaria ligada mais a cultura culinária do que a outros movimentos culturais? —, questionei. Reflexiva, Marinete respondeu: — Às vezes porque é um elemento de necessidade. E é interessante, porque as vezes quando você recebe alguém na cidade, você pensa “vamos na feira comer sobá”, é meio automático. Então acaba sendo um elemento que de certa forma é da necessidade. Quando temos uma quantidade de turistas que visita o pantanal por exemplo. Quando você está no Pantanal, de certa forma você toma ali um contato com a cultura pantaneira através dos peões, através dessa relação que você tem ali daquele ambiente que é muito específico dele. A culinária entra como uma necessidade vital do ser humano que precisa comer e acaba trazendo esse elemento para o entorno. — Olha. Eu penso que a culinária, tem mais destaque. Acho que é isso que você quis dizer. Ela só tem um destaque maior por conta do turismo. Então você tem aí, embrincando dentro dessa cultura, dentro dos hábitos alimentares, a questão do turismo que investe bastante nesse setor. Tem como atrativo a culinária da região porque as pessoas se deslocam para outros locais para conhecer e saber do prato típico de lá e experimentá-lo. —, disse Marlei. De fato, a mesa do sul-mato-grossense agrega uma mixórdia de alimentos típicos. Segundo o portal Cultura de MS do governo estadual, da região norte, nordeste, sudeste, sul e centro oeste do país, como o porco no rolete, a linguiça e o churrasco, com algumas predominâncias regionais há uma vasta seleção culinária no cardápio do mato-grossense-do-sul. É o caso do Do

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Belo Sul Mato Grosso peixe à pantaneira assado na telha do lado oeste e do arroz com guariroba e frango ao molho pardo com quiabo e pimenta malagueta no norte, além do arroz com pequi herdados dos vizinhos goianos e mineiros, muito apreciados na região leste. Não raro, o tradicional quebra-torto — um verdadeiro almoço, onde se inclui de tudo, da linguiça ao ovo frito, com sopa paraguaia, chipa, lambreado (bife com ovo e farinha de mandioca) e ensopado de batata e carne — é servido logo no café da manhã. O mesmo site Cultura do MS indica a presença de paraguaios, com cerca de 300 mil habitantes, dos quais 80 mil se concentram em Campo Grande, evidenciando a influência da cultura do país vizinho com hábitos culinários difundidos em todo o Estado. Assim, o churrasco com mandioca, a chipa (espécie de pão de queijo frito ou assado) e a “sopa” paraguaia, tipo de bolo de queijo, milho e cebola, são exemplos de iguarias muito presentes na mesa dos mato-grossenses-do-sul. — Está bom, é ótimo, acho que tem que investir mesmo na culinária, mas está faltando investir também em outras questões culturais. Eu me lembro. Teve uma época que fizemos aquele livro de culinária Pantanal Sinfonia de Sabores e Cores para o SENAC nacional, —, disse Marlei Sigrist, rememorando uma vivencia junto ao Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial —. O Senac nacional ele tem uma série de publicações e essa sobre a culinária das regiões brasileiras. Então eles já haviam feito a culinária do Nordeste, do Amazonas, os doces de Santa Catarina, o mineiro. O nosso foi o 11º livro. Por quê? Porque é um livro bilíngue e que eles promovem workshop em todos os países e principalmente na Europa, para divulgar as regiões brasileiras através da sua culinária, porque é uma coisa que eles vão lá. Colocam os livros, os vídeos e as pessoas folheiam e falam: “puxa, eu vou lá experimentar”. Embora o nosso atrativo principal seja o meio ambiente, mas eles também querem provar esse prato. Então é uma forma de divulgar. Uma forma mais barata? Eu não sei se isso seria mais barato, mas talvez mais rápido, atrativo principal. Deve ser por aí. —, finalizou a antropóloga. Comércio que remonta aos áureos tempos da ferrovia, disputada pelos passageiros em cada estação, as chipas que hoje são vendidas nas feiras, mercados, pontos de ônibus, repartições públicas, via de regra acondicionadas em caixas de isopor, lembram-me dos tempos que morei em Ponta Porã, onde as chiperas — como são conhecidas as vendedoras dessa iguaria —, desfilavam pelas calçadas de Pedro Juan Caballero com cestos de chipas trazidos sobre as cabeças envolvidas em panos brancos que lembravam os turbantes das vestes tradicionais das baianas em Salvador. Isso, claro, sem olvidar aquela que é marca registrada dos sul-mato-grossenses. Costume amplamente difundido na re-

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS gião e que também é popular no Paraguai. Habito que se apresenta na vida do sul-mato-grossense como forma de socialização, uma vez que, via de regra, é servido em roda de confrades, constituindo uma verdadeira inserção em grupos de debates diversos, camaradagens, elos de amizade que... Sim. Herança de nossos ancestrais indígenas.

As Heranças Culturais das Nações Originárias — Quando aconteceu essa divisão estávamos num contexto de ditadura e aí há uma divisão territorial. Só que essa divisão territorial, não faz com que os laços culturais se percam. Isso podemos ver, por exemplo, até na própria divisão da América. Quando temos aqui as comunidades indígenas guarani e kaiowá falando o mesmo guarani que a população paraguaia fala e estudos mostram que são os mesmos povos que estavam aqui... Enquanto Marinete Pinheiro prossegue com seu raciocínio, eu, embora atento a suas falas, rememorava a pesquisa que dera início àquele trabalho de Radiojornalismo. Deveras, a influência dos povos originários é um fator essencial da cultura sul-mato-grossense. Sobretudo, no que ela tem de semelhante e diversa em relação às regiões fronteiriças. Isso ficara comprovado numa entrevista anterior com o professor de Antropologia da Cultura Brasileira, Victor Ferri Mauro, para o primeiro Laboratório de Radiojornalismo, em meados do quinto semestre do curso de Jornalismo no primeiro semstre de 2019. Naquela ocasião, eu produzia uma reportagem sobre a instituição da Lei municipal 6.172 que estabelece a Semana da Consciência Cultural Indígena na capital do Estado. Assim, no dia 8 de março, às 14 horas e 43 minutos eu encontrava o professor na sede do curso de Ciências Sociais da UFMS. — Boa tarde, jornalista. Então você quer fazer uma matéria sobre a Lei Municipal da Consciência Cultural Indígena? —, disse-me o professor ao aproximar-se de bermuda e camiseta casual. — Oi, Victor, é isso mesmo. Daí lembrei que o senhor é pesquisador do assunto. —, respondi. Imediato, Victor — que seria minha fonte para essa temática em outras ocasiões — convidou-me a acompanha-lo até o complexo multiuso à frente do Parque Aquático da UFMS onde conseguiu uma sala para a realização da entrevista. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista, UNESP, especialista em Antropologia com enfoque nas culturas e história dos povos indígenas pela UFMS; mestre e Do

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Belo Sul Mato Grosso doutor pela Universidade Federal da Grande Dourados, Victor contou-me que já atuou no quadro permanente da Fundação Nacional do Índio, FUNAI, entre 2004 e 2009, sendo também orientador de pesquisas sobre a população indígena brasileira, além de coordenador do projeto de extensão intitulado Formação de Professores em História e Cultura Indígena. — Mato Grosso do Sul é o Estado com a segunda maior população indígena do Brasil. O censo do IBGE de 2010 registra uma população de mais de 70 mil indígenas aqui no Estado de nove etnias diferentes. —, explicou o professor. De todas as nações indígenas a Guarani é uma das que mais se destacam por sua presença representativa com ampla região de ocupação de territórios tradicionais na América do Sul. Segundo o site Cultura De MS do governo estadual, a Nação Guarani constitui-se de “remanescentes dos ervais da fronteira com o Paraguai e com uma área superior a dois milhões de hectares, a nação Guarani, do tronco Tupi, tem sua população dividida em 22 pequenas áreas em 16 municípios no sul do Estado”. O site ainda elenca seis nações presentes no Estado, como a dos Guató, identificados como o povo do Pantanal por excelência, conhecidos canoeiros da região de Bela Vista; os Kadiwéus, cavaleiros que dominaram uma região entre o Paraguai e São Lourenço; os Kaiowás, subgrupo contemporâneo dos povos guaranis habitantes da região sul do Estado; os Ofayé Xavante que outrora dominavam a extensão entre Ivinhema e Vacarias, atuais habitantes em uma reserva em Brasilândia com cerca de 50 pessoas; e, a Nação Terena que, com 18 mil índios, é a maior em Mato Grosso do Sul, embora sua ocupação esteja fragmentada em diversas regiões... Segundo o professor Victor Mauro, o estabelecimento do indígena precede a presença do colonizador no Estado, sendo de inestimável importância na formação cultural sul-mato-grossense. — Grande parte daquilo que valorizamos como cultura no nosso Estado, inclusive o habito de tomar tereré, que se tornou um símbolo cultural de Mato Grosso do Sul, é um habito de origem indígena que pouca gente sabe disso, então tem que ser mais bem trabalhado. — disse-me o professor. Assim, o costume que se tornou marca registrada dos sul-mato-grossenses. Hábito amplamente difundido no Estado e que igualmente é popular no Paraguai. Prática que se apresenta, na vida do sul-mato-grossense como forma de socialização, uma vez que, comumente, é servido em círculos de amizades, o tereré que consiste em uma autêntica inserção em grupos de conversas diversos, camaradagens, elos de amizade, tem suas raízes nas tradições indígenas que antecederam aos colonizadores. 34

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS Sempre atencioso e disposto a colaborar, Victor, explicou-me ainda que o tereré é uma das características diversas de consumo da erva-mate, que vai da bebida quente nos Estados do Sul do Brasil à forma gelada no Mato Grosso do Sul, embora ambas se tratem da erva de mesma espécie e o consumo também ocorra igualmente servido numa guampa. De qualquer modo, sempre se trata de uma herança dos povos originários, quase sempre recriminados. Em outro trabalho da disciplina Laboratório de Radiojornalismo, um podcast sobre a violência contra povos indígenas que contou com a participação do filóeu mesmosofo e, doutor em Antropologia pela Universidade de Salamanca, na Espanha, o professor Antônio Hilário Aguilera Urquiza, tive oportunidade de saber um pouco mais: — Professor Hilário, como a pluralidade cultural dos povos originários contribuiu para a construção da cultura regional? Com experiência na área de Etnologia, assim como nas áreas de Educação Indígena e Direitos Humanos, Hilário respondeu prestativamente: — A formação da cultura regional deve muito aos povos tradicionais, aos povos nativos dessa região que até cento e poucos anos atrás era uma mistura da fronteira Brasil, Paraguai e, inclusive, com a Bolívia. Tem influência na área da linguística, nos nomes dos municípios. Por exemplo, 27 municípios do Estado têm nomes de origem indígena. Quase todos da etnia Guarani. Na culinária, nem se fala. Enfim, são muitas influências que temos no cotidiano das culturas e dos povos que vivem nessa região do Brasil. Letícia Monteiro propôs outra questão: — Pode-se dizer que essa cultura, a cultura indígena, é marginalizada na nossa sociedade ou até mesmo desvalorizada? — Olha. Totalmente! —, afirmou o professor com veemência. E prosseguiu: — Se olharmos para trás, por exemplo, quando nós estudamos na educação básica, no fundamental, no médio, muito pouco se dizia das culturas indígenas. E quando se falava do indígena é aquele indígena pretérito do período colonial. Muito pouco se dizia ou se dizia de uma forma muito negativa dos indígenas contemporâneos. E na atualidade, esse cenário não mudou muito. Percebemos o aumento do preconceito. Preconceito por falta de conhecimento, preconceito por falta de entendimento da importância deles e de como eles vivem, de como eles exercitam suas práticas culturais, sua cosmovisão, o cotidiano deles nas suas aldeias. Sejam aldeias no contexto rural ou aldeias no contexto urbano. Essa resposta do professor Hilário Urquiza faz coro com o Do

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Belo Sul Mato Grosso pensamento de seu colega, Victor Mauro, expresso na entrevista sobre a Semana da Cultura indígena: — Na sua experiência, como a cultura indígena tem sido tratada nas escolas? —, indaguei-lhe. — Eu mesmo, pela UFMS, já desenvolvi projeto de extensão que consistia numa formação continuada para professores das escolas. Para trabalhar a temática de história e cultura indígena em sala de aula e para levar subsídios a esses alunos, para que conhecessem melhor a realidade que vivem a população indígena. E percebi uma grande defasagem aqui do Estado até mesmo por parte dos educadores. Pode-se tirar um exemplo prático dessas exposições dos professores antropólogos na resposta de outro convidado para o podcast sobre a Violência Contra Indígenas, o cacique Josué Martins, da etnia Terena, que reside na aldeia urbana Estrela do Amanhã, nas imediações do Jardim Noroeste, na capital. Entre outras coisas, Josué relatou um preconceito sofrido num coletivo. — Meu amigo estava dentro de um ônibus, e eu estava pertinho dele. Aí, uma mulher entrou. Não indígena. E inclusive, esse meu amigo, ele estava de colar. Um colar mais ou menos assim, ó. —, disse, tímido, mostrando-me o colar artesanal que trazia no pescoço. — É um colar muito bonito. —, respondi, inclinando-me sobre a mesa dos microfones e, a seguir, retomando a postura, esperei-o. Josué compreendeu o gesto e prosseguiu: — Aí essa mulher olhou. Dos pés até a cabeça. E. Eu pensei que ela estava gostando. Mas, não. Daí ela falou assim: “Vixe! Que nojo! ” Falou desse jeito. — Falou assim? —, inquiri. — Sim. Aí eu falei para o meu colega: “ Não deixa assim, não. Sem ligar. Procura algum direito”. Porque isso, é uma discriminação. — Sim. — Ele falou: “Não. Eu não vou fazer isso, porque eu tenho que ir para o trabalho, porque eu vou perder tempo com isso”. E aí são as coisas que a gente encontra assim. Nas escolas também. — Nas escolas? — Sim! Mas nem todos, como falei. Alguns. —, ponderou o cacique, sempre tímido. E, com este acanhamento, disparou: — Porque. A minha neta também sofreu. 36

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS — Na escola? —, indaguei, redobrando a minha atenção sobre ele. — Sim! Eu nem vou citar aqui o nome, né? Aí a minha neta chegou chorando. — Mas qual foi a situação que ela passou? — Foi. Mais ou menos assim: diz que a professora falou: “É! Porque que não estuda lá na aldeia, não volta lá para a aldeia? ” Mais ou menos um tom assim de preconceito. O lugar do indígena tem que ser na aldeia, o que ela queria dizer, né. — E isso a própria professora? — Sim. Sim! Aí eu fui na escola. Eu queria dar parte e tudo. E aí a diretora falou: “não. Eu vou resolver essa situação”. Aí, parou. Eu acredito que. — Resolveu? — Resolveu. Assim, percebe-se que os conflitos com os povos indíginas não não se restringem aos confrontos e persecuções diversas pelas demarcações de terras com os fazendeiros, mas se apresentam em preconceitos antigos. Preconceito que atinge cada etnia, até mesmo nos seus valores estéticos. Publicado na Revista Eletrônica Díke, em 2011, a pesquisa Direitos Culturais E Direitos Humanos: Uma Leitura À Luz Dos Tratados Internacionais E Da Constituição Federal, do advogado especialista em Direito Processual Civil, José Estênio Raulino Cavalcante traz uma série de tratados históricos ocorridos a partir do término da Segunda Guerra Mundial, com o surgimento de organizações como a ONU, a UNESCO e o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional além da própria Constituição Federal do Brasil. Ao abordar os debates desses órgãos e as normas deles surgidas com relação ao campo das culturas das minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, o jurista encontra no artigo 27 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos as garantias para os membros desses grupos, embora estranhe a ausência desse princípio como objeto de tratamento no âmbito dos direitos culturais. “Esse lapso foi parcialmente corrigido pela ONU que aprovou, em 1992, a Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes às Minorias Nacionais, Étnicas, Religiosas e Linguísticas, na qual se formula a obrigação dos Estados de proteger a existência e a identidade das minorias no interior dos seus respectivos territórios. No quadro atual, marcado pela fragmentação das identidades coletivas e pelo enfraquecimento dos Estados nacionais, esse princípio adquiriu uma importância capital. A chamada identidade nacional, em nome da qual foram praticados verdadeiros atos de genocíDo

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Belo Sul Mato Grosso dio, não é — e nunca poderia ter sido vista como tal — um bloco monolítico. Não é um conjunto maior do que suas partes. Cada subcultura constitui, por si mesma, um todo independente. Por mais complexo que isso possa parecer — e de fato o é — a identidade nacional deve ser encarada como um todo composto de todos”, afirma José Cavalcante. — Como o senhor vê a valorização da cultura indígena aqui no Estado? —, torno a questionar o antropólogo Victor Mauro na sala de aula vazia que ele escolhera. Lançando um novo olhar para o celular que gravava sobre a mesa, o professor respondeu com tranquilidade: — Ainda há pouco destaque sendo dado à participação dessa população na formação da cultura aqui do Estado e da discussão de uma série de problemáticas, de reinvidicações do movimento indígena contemporâneo que tem pouca visibilidade. E, geralmente, quando alcança alguma visibilidade nos meios de divulgação, costuma ter uma ênfase muito negativa. —, denunciou Victor Mauro. Claro está. — Com a criação do Estado eles se dividiram em países diferentes, mas mantiveram o mesmo guarani. E aí vemos também na construção de Mato Grosso do Sul uma série de aspectos porque a cultura tem essa dinâmica de transformação que é o que temos, por exemplo, anterior a chegada dos japoneses, aqui. Que eles acabam trazendo elementos que o sul-mato-grossense identifica como da sua cultura, que é uma adaptação de um país bem longe. — Marinete concluía sua resposta no estúdio do Laboratório de Radiojornalismo. Voltando-me para a pauta aberta no celular, busquei a próxima questão enquanto meditava sobre até que ponto as manifestações artísticas locais poderiam expressar todo esse arcabouço cultural do Estado, espelhando a identidade do sul-mato-grossense. Contudo. Naquela noite de verão, eu ainda não sabia, mas estava posto o problema que, passados nove anos — esse número cabalístico de fins de jornadas — seria a essência do tema que encerraria toda a minha caminhada no curso de Jornalismo. A arte... Mas. “O que é a Arte?”

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Capítulo Segundo: “Trago

comigo todas as lendas boróras A grandeza de minha raça Fala nos meus cinco sentidos”

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ecordo que, durante o período escolar, em meados dos anos 1990, a temática da arte pré-histórica referia-se, via de regra, aos vestígios de utensílios daquele período em solo europeu; ao Bisão da gruta de Altamira, na Espanha, e a pinturas rupestres na Caverna de Chauvet, de Vallon-Pont-d’Arc na França, com cerca de 32 mil anos. As referências às pinturas rupestres brasileiras só surgiram nos livros didáticos de minha irmã caçula por volta do final dos anos 1990 e início dos anos 2000, com referências desse tipo de arte em regiões do Estado do Piauí. Assim, a arte rupestre e os vestígios do homem pré-histórico local ficavam apagados, embora haja no Estado uma série de tratados sobre o assunto.

Pré-História Integrante do livro Ensaios Farpados: Arte E Cultura No Pantanal E No Cerrado, organizado por Ivan Russef, Marcelo Marinho e Paulo Sérgio Nolasco dos Santos e publicada em 2004 pela editora UCDB, o artigo Arqueologia do Brasil Pré-Colonial: O Povoamento No Pantanal E No Cerrado, da doutora em arqueologia pela Universidade de São Paulo, USP, Emília Mariko Kashimoto, explica que as artes rupestres encontradas em diversos sítios arqueológicos do Estado — lugares que se estendem até mais de um quilômetro e onde foram encontrados vestígios de atividade humana antiga indicam a presença de povos pré-históricos na região há cerca de 10.000 anos. Segundo Rodrigo Aguiar e Keny Lima, pesquisadores da UFGD, datações por carbono 14 revelaram períodos distintos de ocupação humana dentro do atual Mato Grosso do Sul. Os grupos mais antigos correspondem a caçadores nômades mais adaptados ao ambiente de savana que, no Estado, podem chegar a até 11 Do

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Belo Sul Mato Grosso mil anos. Para Emília Kashimoto, não obstante a economia relativa e simples das populações pré-históricas, os sofisticados e abstratos painéis de arte registrados em abrigos e cavernas nos municípios de Aquidauana, Coxim, Costa Rica, Maracaju, Rio Negro e Alcinópolis revelam complexas representações da realidade. No artigo Continuidades e transformações nas manifestações rupestres da tradição planalto em Mato Grosso do Sul, Brasil. O caso das pinturas rupestres do município de Rio Negro, os professores da UFGD Rodrigo Luiz Simas de Aguiar e Keny Marques Lima, em parceria com Laio Guimarães Freitas, graduado em Ciências Sociais, remetem às importantes pesquisas na região, feitas pelo antropólogo Pedro Ignácio Schmitz que classificou este período de ocupação como Tradição Itaparica da Fase Paranaíba. Já as pesquisas desenvolvidas ao longo do curso da região de Mato Grosso do Sul, na bacia do Rio Paraná, pelos arqueólogos Emília Kashimoto e Gilson Rodolfo Martins, apontaram o estabelecimento a partir de 6 mil anos antes do período presente como o mais antigo da ocupação às margens desse grande rio denominada Tradição Serranópolis. Segundo Aguiar e Keny Lima, há povos que remontam a um período que antecede a cerâmica e outros que datam da presença de artefatos ceramistas. Muitas vezes, esses produtos são encontrados numa mesma gruta dentro de um sítio arqueológico com diferentes profundidades de localização. Isto revela que essas cavernas foram ocupadas em diferentes períodos por diversos povos, grupos humanos da era primitiva. Cada região do Estado possui artefatos que demonstram características de grupos distintos segundo o bioma do local. Na Tradição Planalto tratada pelos pesquisadores Rodrigo Aguiar e Keny Lima, há características que se relacionam a outras artes rupestres encontradas em outras regiões do centro do país, embora com características próprias no Estado de Mato Grosso do Sul. Dentro dos primeiros grupos de ceramistas, os pesquisadores encontraram sítios arqueológicos que não se enquadram em nenhuma outra tradição identificada e que necessitam de mais pesquisas para sua correta classificação. Além dessas, há a presença de três tradições no Estado: a Una, a Aratu-Sapucaí e a Tupi-guarani, cada uma com caraterísticas específicas. Identificada por recipientes de pequena dimensão e ausência de decoração, os ceramistas da Tradição Una são datados na região do Estado no período de 4 mil anos e, embora haja sítios de céu aberto dessas ocupações, os pesquisadores afirmam que, por vezes, ocupam as mesmas grutas — como na região do Rio Negro — anteriormente utilizadas por outros grupos como a 42

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS dos não-ceramistas caçadores-coletadores. “Com efeito, durante os trabalhos de campo em Rio Negro foi constatada presença desta modalidade de cerâmica junto a um abrigo com arte rupestre”, afirmam os pesquisadores. Descritos pelos antropólogos como os ceramistas das grandes aldeias anelares, os grupos da Tradição Aratu-Sapucaí ocuparam áreas abertas próximas às margens de rios. A cerâmica desse grupo continha preparo com antiplástico como o cariapé, nas paredes de vasilhames que atingiam até 30 centímetros de espessura. Essa cerâmica “possui forma e dimensão variadas, predominando as vasilhas piriformes, esféricas ou elipsoides grandes, que podem chegar a comportar centenas de litros”, descrevem Rodrigo Aguiar e Keny Lima. Finalmente, há os Tupi-guarani que, segundo Kashimoto e Martins, tiveram grande dispersão pelo território de Mato Grosso do Sul por volta de 1300 antes do presente — medida de tempo associada a certas datações em campos científicos como a arqueologia e a geologia, a fim de situar um acontecimento do passado —. Sua tradição arqueológica se caracteriza pela produção de recipientes de grande dimensão decoradas com motivo que vão de pintura à plástica. Para Emília Kashimoto, as características dessas expressões encontradas nesses sítios na região do Estado sofrem variações conforme a paisagem onde estão inseridos, “as características da cultura material de ocupantes de sítios localizados no Pantanal, por exemplo, diferem daquelas dos extintos habitantes da região nordeste do Estado — no Cerrado —, ou ainda da serra de Maracaju”, explica em seu texto. Keny Lima e Rodrigo Aguiar esclarecem que na faixa transitória entre as terras altas do complexo serrano mato-grossense-do-sul e a planície pantaneira ocorrem motivos rupestres de estilo atribuído à Tradição Planalto. Essa arte é encontrada no município de Rio Negro, 150 quilômetros da capital Campo Grande com presença de sítios arqueológicos de pinturas rupestres com grafismos típicos da Tradição Planalto, embora tragam temas particulares da região. “Desta forma, entende-se que a área em questão apresenta continuidades que garantem o vínculo à tradição mencionada, mas também transformações regionais em relação à macro tradição”, explicam os pesquisadores que estudaram as características próprias dessa arte em relação ao território do atual Mato Grosso do Sul. Segundo os resultados obtidos pela equipe do Grupo Ibero-americano para Pesquisa e Difusão da Antropologia Sociocultural, Gipedas/UFGD, as ocorrências de grafismos rupestres no município de Rio Negro, embora haja muitas artes rupestres da Do

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Belo Sul Mato Grosso Tradição Planalto, com a presença de motivos animalistas produzidos, em maioria com pigmentação vermelha junto ao amarelo, branco e preto, ocorrem também representações monocromáticas com motivos peculiares à região. Para Keny Lima e Rodrigo Aguiar, há uma continuidade transformada em relação à estilística da Tradição Planalto encontradas nos Estados do Paraná, Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais, principalmente pela ocorrência de representações de quadrúpedes, em especial, os cervídeos — animais da família dos veados. Isso porque, os motivos da região sul-mato-grossense possuem representações de aves, cervídeos, quelônios — repteis da ordem das tartarugas, cágados ou jabutis —, tatus, capivaras e outras figuras animalistas que permite identificar uma subtradição no Mato Grosso do Sul. “Há diferentes estilos representados neste sítio: além daqueles peculiares à Tradição Planalto há outros de estilo geométrico, com representações de linhas paralelas, figuras astronômicas e séries de pontos. Associadas a essas ocorrências geométricas há uma figura emblemática, que se repete sempre em pares, composta de um campo delimitado – retangular ou oval – preenchido com pontos e com linhas paralelas que partem das extremidades superior e inferior”, explicam Keny Lima e Rodrigo Aguiar. Em seu artigo A Arte Rupestre, a pedagoga, licenciada em Artes Visuais pela UFMS, Carina Domingues Marques afirma que, considerada o meio de comunicação dos povos da pré-história, a arte rupestre é de suma importância na expressão cultural de cada canto do mundo. “A arte rupestre atualmente nos mostra que de alguma maneira os povos na antiguidade tentaram representar suas festividades e até mesmo o dia a dia de suas vidas efetuando registros de suas experiências, desde as mais corriqueiras às ocasiões mais especiais, sendo declarada esta como arte rupestre”, conclui.

O que é Arte? Note o leitor que a análise da arte pré-histórica se baseia nos artefatos encontrados dos períodos correspondentes aos vestígios deixados pelos grupos humanos primitivos. De fato. Em 2012, enquanto a sede da universidade ainda não saia do papel, a UEMS mantinha parte de seu curso na Escola Estadual de Educação Profissional Hércules Maymone. Era uma noite de verão, início do primeiro semestre do Curso de Artes Cênicas Teatro e 44

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS Dança quando. Isso. Eu não poderia imaginar que a proposição do professor de História da Arte, Júlio Galharte, pós-graduado em Teoria e História Literária pela Universidade de Campinas, UNICAMP, mestre e doutor em Letras pela USP iria ecoar nove anos depois na construção de meu TCC de Jornalismo: roldão.

— O que é arte? —, indagara Júlio, atingindo a turma de

Em poucos instantes, a sala estava tomada pelo debate acalorado. De acordo com a própria experiência como artista, como professor, como dançarino, como cinéfilo, cada acadêmico defendia sua concepção de arte que, inevitavelmente era dissonante da concepção de algum outro colega. Compreensível, se levar em consideração de que se trata de uma questão difícil de resposta objetiva. Não obstante, o conceito definitivo sobre Arte parece muito longe de ser encerrado. Deveras, muitos estudiosos do assunto têm reconhecido a dificuldade de enquadrar o termo e suas expressões numa afirmação definitiva. É o caso do historiador de arte estadunidense Horst Waldemar Janson, que em seu livro História Da Arte, publicado pela primeira vez em 1962, antecede a questão lançada pelo professor Júlio Galharte: “ Por que isto é arte? O que é arte? Poucas perguntas provocarão polêmica mais acesa e tão poucas respostas satisfatórias”, afirma o historiador. Tomando as civilizações antigas, podemos pensar que certos objetos encontrados em escavações arqueológicas possuíam alguma forma simbólica que traduzimos como arte. Exemplo desses vestígios são as artes da pré-história encontrados na região de Rio Negro e outras localidades do Estado. Embora a tomemos como utensílios e objetos artísticos nos dias contemporâneos, é difícil compreender o significado que aqueles povos atribuíam a esses pertences. Fica claro, assim, a dificuldade revelada por Horst Janson ao se conceituar arte. Contudo, essas dificuldades não devem deter a investigação sobre o assunto: “Embora não conhecemos a nenhuma conclusão definitiva, podemos ainda assim lançar alguma luz sobre estas questões. Para nós, arte é, antes de mais nada, uma palavra, uma palavra que reconhece quer o conceito de arte, quer o fato de sua existência. Sem a palavra, poderíamos até duvidar da própria existência da arte, e é um fato que o termo não existe na língua de todas as sociedades. No entanto, faz-se arte em toda a parte. A arte é, portanto, também um objeto, mas não é um objeto ”, reflete Janson. Doutor em Literatura Italiana pela USP onde era profesDo

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Belo Sul Mato Grosso sor titular aposentado do curso de Literatura Brasileira, ensaísta e integrante da Comissão de Lexicografia e da Comissão de Publicações da Academia Brasileira de Letras, Alfredo Bosi, morto pela covid 19 em 2021 aos 84 anos, é considerado um dos maiores críticos literários do país. Segundo Bosi, a arte se apresenta sob dois importantes aspectos: “A objectualidade: um quadro, por exemplo, é um ser material. E o Efeito psicológico: uma obra é percebida, sentida e apreciada pelo receptor, seja ele visitante de um museu ou espectador de um filme”. Presente em todas as sociedades, a arte e a estética são um campo de interesse que caracteriza a espécie humana. Assim, a arte está relacionada ao modo individual de ler o mundo, ao contexto, ao tempo. Ademais, o conceito de arte, tal qual o conhecemos, é muito recente e remonta ao período Renascentista. A palavra, entretanto, é originada do vocábulo latino ars, arte, significando técnica ou habilidade. “A palavra latina ars, matriz do português arte, está na raiz do verbo articular, que denota a ação de fazer junturas entre as partes de um todo. Porque eram operações estruturantes, podiam receber o mesmo nome de arte não só as atividades que visavam a comover a alma (a música, a poesia, o teatro), quanto os ofícios de artesanato, a cerâmica, a tecelagem e a ourivesaria, que aliavam o útil ao belo”, explica Alfredo Bosi. Em Reflexões Sobre a Arte, o professor aborda a arte sob a perspectiva do filósofo Luigi Pareyson, que viveu no início do século XX. “Um dos maiores penetrantes pensadores italianos do nosso tempo, Luigi Pareyson, ao retomar a discussão dos temas centrais da Estética, considera como decisivos do processo artístico três momentos que podem dar-se simultaneamente: o fazer, o conhecer e o exprimir”, explica Alfredo Bosi. Assim, Bosi apresenta a arte como uma atividade na qual o homem transforma a matéria que lhe é dada pela natureza e pela cultura na qual está inserido. A busca de um ideal estético por meio do labor intelectual e manual definem a produção que junto ao poder criativo do autor se relaciona com a regra estabelecida de produção e a liberdade de construção. “A arte é uma produção; logo, supõe trabalho. Movimento que arranca o ser do não ser, a forma do amorfo, o ato da potência, o cosmos do caos. Techné: chamavam-na os gregos: modo exato de perfazer uma tarefa, antecedente de todas as técnicas de nossos dias”, filosofa Alfredo Bosi. Ao longo da História, a Arte se apresentou como um labor criativo e técnico que foi superado a cada período. Assim, não vemos as mesmas técnicas entre uma obra da antiguidade e ou46

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS tra do Renascimento, mesmo esta segunda utilizando a primeira como fonte de inspiração. Aqui, o artista criterioso se encontra no campo do conhecimento onde abre mão dos estudos e pesquisas para dar vazão a sua inspiração. Poderia exemplificar com... Sim. Isso mesmo. Imagine o leitor que estas frases interrompidas não tenham surgido por puro capricho do acadêmico de jornalismo que, por meio destas páginas vem tratando de cultura e arte em Mato Grosso do Sul. Não. De maneira nenhuma! Para chegar a esse tipo de conversa com leitor, tive de recorrer as aulas da disciplina de Literatura Dramática Brasileira ministrada pela professora Cristina Moreira nos anos do curso de Artes Cênicas. Mais precisamente, a construção do dramaturgo que levou o teatro brasileiro ao modernismo das artes, o também jornalista. Claro. “É batata. Batata, entende? ” Nelson Falcão Rodrigues. Portanto, trata-se de uma obra jornalística que, junta a forma de construção textual própria desta área, a forma de diálogo dramático que Nelson empreendeu a partir do conhecimento sobre a estética da vanguarda europeia. O resultado da utilização dessa técnica previamente conhecida, é a expressão de pensamentos interrompidos e a sensação de diálogo com você que me lê acerca dessa grande reportagem sobre a cultura artística sul-mato-grossense.

Identidade Outra questão é que a arte penetra e se relaciona estreitamente com a cultura na qual está localizada. Manifestações de interesse individual e coletivo é quase impossível separar a arte e a estética de seu contexto social, cultural e histórico. Há muitos casos onde a manifestação artística ocorre de modo intencionalmente coletivo, refletindo a identidade e os valores sociais de uma sociedade. Decorre, então, que a arte se projeta como campo de interesse de diversas áreas do conhecimento como a filosofia, a antropologia, a história, a sociologia, e etc... Contudo, é impossível que alguma delas consiga analisar a arte de modo independente. Isso porque a complexidade que envolve as manifestações humanas impele a interação entre essas áreas numa interdisciplinaridade constante. Afim de conhecer sobre essa relação entre identidade e as artes no contexto de Mato Grosso do Sul, entrevistei o artista visual, doutor em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade de Campinas, Unicamp, mestre em Estudos de Linguagens e graduado em Artes Visuais pela UFMS, professor do curso de Do

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Belo Sul Mato Grosso Artes Cênicas na UEMS, Marco Antônio Bessa-Oliveira. — O senhor poderia falar sobre a relação da arte com a identidade de um povo no contexto de Mato Grosso do Sul? —, inquiri. — A discussão sobre identidade é problemática no contexto brasileiro e, em especial, no acadêmico. Vários estabelecem a discussão acerca das perspectivas de identidades modernas que estabeleceram para nós. Poucos estão dispostos a reconhecer nossa característica identitária a partir da situação e condição de ex-colonizados e colonizados ainda hoje pelos sistemas que têm origem no processo de colonização mais antigo: cultural do século XVI e econômico do século XIX. Nesse sentido, de qual identidade nós estaríamos falando para falar de uma “arte com a identidade de um povo no contexto de Mato Grosso do Sul”? No meu caso teórico-epistêmico e crítico, mas também artístico e docente de discussões, preciso te dizer que estamos longe de entender essas questões todas. Até porque a arte ainda é mais arma de identidade de fazer política do que arma de identidade como política contra políticas ineficientes de identidades. —, respondeu, denunciando sua personalidade crítica. Conforme verificamos no capítulo anterior, Mato Grosso do Sul é um Estado formado por uma mistura de culturas trazidas por imigrantes de outras regiões do país e do exterior, com destaque para as fronteiras internacionais com o Paraguai e Bolívia e as nacionais com Mato Grosso, Minas Gerais, Goiás, São Paulo e Paraná de onde vieram os primeiros colonizadores. Com esses dados em mente, lancei um novo questionamento ao professor: — A arte sul-mato-grossense possui características próprias? Quais? — A situação de ser uma arte “em”, “de”, e, “a partir de” fronteiras múltiplas deveria ser a característica mais própria e importante da arte local. Mas é claro que não estou falando de fronteira geográfica pura e simplesmente. Mas, a priori, poderia dizer que trato como fronteira tudo que implementa qualquer tipo de delimitação à produção artístico-cultural e de conhecimento que emerge daqui e de lugares não hegemônicos. —, disse-me Bessa-Oliveira. Com isso, naturalmente, o professor alude a visão generalizada do país onde o circuito artístico está restrito à região sudeste tendo o sul e o nordeste algum destaque neste setor enquanto no restante do país as manifestações artísticas e culturais são tratadas como expressões regionais criando uma hierarquia que beneficia as primeiras em detrimento das demais. Outros48

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS sim, o professor se mostra crítico em relação à presença de um referencial europeu e estadunidense que na estética local impede o reconhecimento da influência de fronteiras geográficas e delimitantes da produção artística sul-mato-grossense que mais ganharia em se reconhecer como portadora de uma “estética bugresca”: — A impossibilidade de circulação de qualquer tipo de arte. Do mesmo jeito, essa arte “em”, “de”, e, “a partir de” fronteiras tem uma especificidade que ainda não faz muito sentido para a maioria dos discursos sobre arte no Estado: ser uma arte literal de fronteira (agora também falo de fronteira da ótica geográfica, mas ainda assim não é somente) é o ponto crucial da nossa arte. E digo isso, com toda certeza, para o bem. A arte local sul-mato-grossense é multíplice, sem ser híbrida tá? Esse conceito não nos representa, e isso é o que deve caracterizar nossa produção emergente daqui: urgentemente. O dia em que reconhecermos na arte local uma “estética bugresca” (como tenho defendido), estaremos falando de uma arte que tem muito mais relações biogeográficas nela, com ela e a partir dela com as pessoas que estão nesse lugar. Portanto, a identidade artística do Estado assume características bastante complexas. Assim, não é surpreendente que a imposição da arte e da cultura de origem europeia se faça presente nas manifestações locais. Não obstante, é observável a sobrevivência de outras culturas ancestrais, como a africana e a indígena, que seguem enraizadas na formação cultural dos sul-mato-grossenses, muito embora, via de regra passem desapercebidas e estereotipadas. Portanto, é preciso considerar que desde as pinturas rupestres ao cinema contemporâneo, a arte manifesta-se de forma onisciente por meio de suas linguagens de forma a causar reflexão, questionamentos e validações de aspectos culturais. No Mato Grosso do Sul, esta relação é bem evidente entre as nações indígenas.

Arte indígena de Mato Grosso do Sul Em meio às vicissitudes trazidas pelas relações com os não-indígenas, as nações dos povos originários de Mato Grosso do Sul também precisam vencer os preconceitos estéticos em relação a suas produções artísticas. Um primeiro preconceito é tomar as expressões artísticas dos povos indígenas como manifestações primitivas equivalentes as do homem pré-histórico. De fato, os já citados pesquisadores antropólogos Emília Kashimoto e Gilson Martins dividem a História da Civilização anDo

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Belo Sul Mato Grosso terior à colonização na região de Mato Grosso do Sul em dois períodos: o pré-histórico e o indígena. Esta classificação evidencia o equívoco em relação às artes dos indígenas, conforme esclareceu-me o professor e antropólogo Victor Mauro Ferri durante a aula de Aspectos da Cultura em Mato Grosso do Sul no segundo semestre de 2021: — Porque até mesmo para você fazer uma inferência quando se encontram vestígios arqueológicos, vamos supor, os professores Emília Kashimoto e o Gilson Rodolfo Martins: nas escavações que eles fizeram na bacia do Rio Paraná, aqui em Mato Grosso do Sul, encontraram vários fragmentos de cerâmica que devem datar de mais ou menos 800 anos atrás. Então é difícil você estabelecer com segurança se esses fragmentos, aquela população que produziu esses artefatos, corresponde a ancestrais de grupos que hoje são localizados. Segundo o professor e antropólogo Victor Mauro, é preciso considerar a descontinuidade dessas sociedades distintas que, no surgimento dos primeiros tratados antropológicos em meados do século XIX, não eram considerados. Tomadas dessa forma, essas teses assumiam um caráter bastante enganoso onde eram negligenciadas a ruptura de sociedades inteiras extintas, as necessidades de adaptação ao meio ambiente, as interações e as transformações sociais e econômicas ao longo da História. Ademais, Victor Mauro denuncia uma tendência de generalização ao equiparar sociedades distintas sem nenhum contato temporal ou qualquer paralelo. — Isso seria impróprio, seria antiético até. No máximo, quando se compara sociedades diferentes, que isso seja feito entre grupos que, comprovadamente, tiveram contato ou convívio entre si e se influenciaram mutuamente num sentido plural. Até impróprio querer fazer comparações da cultura material de uma sociedade indígena das américas com uma sociedade africana ou com uma sociedade que vive na Oceania, separadas a milhares de quilômetros umas das outras, não tendo uma possibilidade lógica de comprovar interação entre elas. E isso é pior ainda quando tentam comparar sociedades em tempos separadas. Teólogos, no século XIX, que são chamados evolucionistas culturais faziam muito isso de maneira descuidada, por isso eles foram severamente criticados pelas gerações que os sucederam. Hoje em dia, essa antropologia do passado não é nem considerada mais uma ciência criteriosa, mas uma pseudociência baseada em inferências muito pouco rigorosas e preconceituosas. —, explicou-me. Entretanto, advém ainda dessa Antropologia um outro equívoco: o de colocar as expressões indígenas abaixo das mani50

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS festações artísticas ocidental, conforme apontam em Arte Indígena em Mato Grosso do Sul, Brasil, o pesquisador e professore da UFGD Rodrigo Luís Simas de Aguiar — desta vez — em parceria com o pós-doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, USP, o professor e pesquisador da UFGD Levi Marques Pereira. “Ao despir-se do conceito ocidental de arte, a antropologia passou a perceber com maior clareza a relação entre arte e vida social. Isso abriu o caminho para se estudar as manifestações artísticas de sociedades tradicionais”. Embora essa nova postura antropológica não seja um consenso, Rodrigo Aguiar e Levi Pereira acreditam que seja uma perspectiva mais equitativa quando se trata de estudos de manifestações não ligadas à concepção tradicional: “A antiga divisão que via a arte como algo unicamente atrelado à autoria, classificando as manifestações artísticas étnicas como artesanato, caiu por terra”, sentenciaram. Assim, criar uma barreira entre a arte ocidental e a arte tradicional, arrogando a superioridade da primeira é inadequado. “.... Vemos a arte como condutora de ideias e ideologias. Os produtos artísticos expressam forte conteúdo ideológico, verdadeiros discursos simbólicos materializados”, refletem. Para Rodrigo Aguiar e Levi Pereira, é perfeitamente possível analisar a arte indígena com seus símbolos, marcações étnicas com sentido de identificação, pertença a um grupo. “Diademas, cocares, maracás, colares, enfim, toda uma sorte de objetos será apropriada ou reapropriada como expressão de uma etnicidade idealizada. Segundo os pesquisadores, o comércio com não-indígenas provoca trocas e ressignificações dos objetos produzidos nas aldeias. “Elementos que talvez antes não integrassem a cultura de certas etnias são incorporados e ressignificados, pois a própria representação do indígena ideal mantida pela sociedade nacional também influenciará o imaginário indígena”. Desta forma, ocorre uma recriação de paramentas tradicionais pertencentes a classes específicas como a dos rezadores e das lideranças políticas. “O importante é dotar de sentido à vida dos atores sociais, criando dispositivos eficazes para isso. E a arte é um elemento indispensável para dotar a vivência social de significação e expressar simbolismos”, escrevem Levi Pereira e Rodrigo Aguiar. Ainda segundo os antropólogos, a arte indígena engloba objetos que têm ou tiveram alguma função utilitária. É no ato de adornar que o artista indígena atinge a qualidade artística. Do

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Belo Sul Mato Grosso Esta, entretanto, consiste em atribuir qualidade estética a um objeto. “Mas adornar é também vestir um objeto de etnicidade”, escrevem. Contudo, uma vez que a etnicidade se refere a cada povo em específico, é de se esperar que, no território de Mato Grosso do Sul, haja uma considerável diversidade étnica e artística dos povos indígenas. Historicamente negligenciadas pelo Estado, as etnias indígenas têm alcançado algum destaque na área cultural e artística regional nos últimos anos. Parte dessa visibilidade decorre das ações de pesquisadores e de lideranças indígenas que tem se esforçado no resgate e na preservação dos costumes, da tradição e das expressões desses povos. Exemplo desses avanços é a Lei Municipal da Consciência da Cultura Indígena, na capital, que prevê uma série de eventos nos sete dias que antecedem o dia 19 de abril. — Qual a avaliação do senhor sobre a instituição da Semana da Cultura Indígena na capital? —, questionei o professor Victor Mauro. — Os indígenas aqui de Mato Grosso Do Sul já têm o costume. No dia 19 de abril, todo ano fazem ações comemorativas nas aldeias, festejos, exibições artísticas de canto, de dança. Muitas vezes eles se apresentam nas escolas estaduais e municipais. Então vejo, assim, uma grande importância no fato de o poder público municipal querer dar relevância à temática indígena. Sobretudo, no mês de abril, na semana que antecede o dia do índio. —, concluiu. Em sua dissertação de mestrado, Cerâmica Kadiwéu Processos, transformações, traduções: uma leitura do percurso da cerâmica Kadiwéu do século XIX ao XXI, a mestre em artes plásticas pela USP, Vânia Perrotti Pires Graziato, explica que qualquer produção indígena é permeada de sentidos que transcendem o utilitarismo dos objetos. “Os motivos e significados semânticos impressos em um pote de cerâmica, um cesto, um utensílio de madeira ou em um instrumento musical, conferem a estes a identidade visual que os diferencia dos demais grupos”. Segundo Vânia Graziato, as sociedades indígenas brasileiras fizeram uso da abundante variedade de vegetais da flora nacional, como madeiras, cipós, fibras, palhas, resinas, sementes, nozes além de pedras, ossos, dentes de animais, conchas penas e argilas tomadas como matéria-prima para a construção de canoas, casas e artefatos revelando um apuro na técnica de manipulação desses materiais. 52

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS Já em A Arte Indígena em Mato Grosso do Sul, Brasil, os pesquisadores e antropólogos Rodrigo Luís Simas de Aguiar Levi Marques Pereira analisam aspectos artísticos entre os Kadiwéus, Kinikinaus e Terenas de Mato Grosso do Sul. Segundo os antropólogos, embora não se conheça a origem do desdobramento, há nos Kadiwéus e nos Guaranis traços de continuidade e de ruptura que fazem deles povos diversos. Originários de uma mesma raiz como remanescentes dos Guaicurus chaquenhos, agregam o espírito guerreiro que a História lhes atribui. Para Rodrigo Aguiar e Levi Pereira, há uma combinação de elementos estéticos guarani e kaiowá que constituem formas hibridas de artesanato nessa nação. Segundo os antropólogos, as etnias apresentam concepções cosmológicas diversas entre si, sendo que os kadiwéus, terenas e kinikinaus denunciam a produção da cerâmica como fator de continuidade da etnia e reforço de identidade, embora com a permeabilidade de elementos estrangeiros vindos das trocas comerciais com os não-indígenas. Entre os guaranis e os kaiowá ocorre uma maior transmissão dessas concepções para as peças artísticas embora, paralelamente, estas duas etnias foram as que mais incorporaram as produções materiais. “... os Kaiowá e Guarani foram bastante receptivos a adoção de elementos da cultura material, como a cerâmica e outros instrumentos tecnológicos associados à produção, mas mantiveram forte apego à produção e uso de objetos rituais”, explicam. Na cultura dos Kadiwéus há objetos que são considerados seres, com atributos mágicos e temperamento humanos, de modo que os membros da comunidade que atém relações com eles se consideram seus tutores e não donos. Segundo Rodrigo Aguiar e Levi Pereira, esses objetos exigem cuidados específicos e são transmitidos para alguém da confiança do xamã quando este se sente velho e cansado. Mas, também essa transferência assume um caráter de tutoria do objeto. “Alguns objetos, enquanto formas espirituais materializadas, são dotados de especial valor simbólico e só podem ser manuseadas pelo xamã que detém sua curadoria”, observaram os pesquisadores. Conforme Rodrigo Aguiar e Levi Pereira, a cerâmica não pertencia ao repertório dos guaicurus, ancestrais dos kadiwéus: “eram seminômades e, portanto, a cerâmica originalmente não faria parte de sua cultura material. A incorporação da cerâmica certamente se deu mediante contato com outros grupos e com o tempo passou a ser uma das marcas distintivas dos kadiwéu”. A mestre em artes plásticas pela USP, Vânia Graziato avalia que os Guaicurus teriam assimilado a técnica de modelagem da arDo

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Belo Sul Mato Grosso gila dos ancestrais dos atuais Terenas, os Guanás. Considerado o fundador da antropologia estruturalista, em meados da década de 1950, e um dos grandes intelectuais do século XX, o professor e filósofo francês Claude Lévi-Strauss esteve em contato com os Kadiwéu na década de 1930, descrevendo com detalhes o processo de produção da cerâmica. Segundo Lévi-Strauss, para a composição da argila agregava-se o antiplástico, material responsável por distribuir o calor e impedir que a peça se parta durante a queima. Entre os Kadiwéu o antiplástico é obtido de fragmentos de outras peças de cerâmica, que após a quebra são triturados e misturados à massa. A construção dos recipientes se dá pelo acordelamento que é a sobreposição de roletes de argila. Concluída a forma, cordões eram empregados nas paredes dos recipientes para imprimir formas geométricas. Antes da queima, os recipientes ainda eram pintados, normalmente com óxido de ferro. Terminado o processo de queima, a cerâmica recebia, por fim, uma camada de resina que lhe conferia brilho. Conforme os antropólogos Levi Pereira e Rodrigo Aguiar, embora atualmente sejam raros os homens artesãos, originalmente a arte kadiwéu era dividida em naturalista e geométrica. Caberia aos homens a primeira forma estética, isto é, a parte naturalista representada pelas elaborações de esculturas quase sempre zoomorfas, representações de elementos cósmicos e personagens místicos. Quanto às mulheres, estas tinham o importante atributo das pinturas que, ainda hoje, são utilizadas em ocasiões especiais, conforme explicam os dois professores. “Historicamente, os Kadiwéu mantinham diferentes classes sociais, muito bem marcadas nesta sociedade. Para comunicar essa diferenciação hierárquica à coletividade faziam uso de pinturas corporais, destacando-se aí o importante papel da mulher como a detentora das técnicas de pintura dos intrincados motivos geométricos. Além de diferenciar as castas, a pintura corporal simbolizava uma fronteira antropogênica, separando homens de animais. ” Em tempos passados, entretanto, somente um grupo seleto de mulheres poderia se dedicar a essa arte: “Na antiga sociedade kadiwéu, somente as senhoras de casta se dedicavam à arte pictórica, ao passo que em atividades do cotidiano, como coleta de material ou preparo da comida, eram de responsabilidade das cativas. ”, explicam os antropólogos. Paralelo à disciplina de Projeto Experimental II, cujo resultado é este livro, cursei a disciplina de Aspectos Culturais de

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS Mato Grosso do Sul já citada e que também é lecionada pelo professor Victor Ferri Mauro. Na aula do dia 31 de agosto de 2021, tomando como referência o trabalho do antropólogo e pensador Darcy Ribeiro sobre a década de 1940, Victor apontou 4 aspectos que influenciaram sobre a produção do artesanato de cerâmica indígena. Segundo a explicação do professor, a maior frequência de turistas nas regiões pantaneiras e o confronto com uma cultura europeia que se arrogava superior, imprimiu no indígena um sentimento de inadequação e inferioridade. Ademais, estes fatores resultaram em uma penetração de produtos industrializados nessas comunidades. Para o professor e antropólogo Victor Mauro, o aumento do contato com a população não-indígena crescente na região, vindos de outras localidades do país com seu olhar europeu, produziu uma emergência de produção de artefatos nas comunidades indígenas ao nível da produção capitalista — isto é, organizado em um formato único, com o objeto de lucrar. — Essa, imposição e mais o aumento de ofertas de produtos industrializados causaram uma diminuição no esmero das confecções ceramistas. Acresce a esse quadro a carência de elementos primários dessas confecções nos ambientes cada vez mais restritos de ocupação dos povos indígenas, ilhados e fixados em suas comunidades. Segundo Levi Pereira e Rodrigo Aguiar a divisão em camadas da sociedade antiga em senhores e servos contribuiu para o apuro dos kadiwéus nas artes, decorrendo em pouco esmero a partir da extinção dessa estrutura, pois implica em aumento de tarefas para a mulher que, além das artes, tem de realizar as tarefas domésticas. De acordo com os pesquisadores, apesar de a arte kadiwéu ter sofrido adaptações decorrentes das relações de comércio com a sociedade circundante, consegue manter seus valores étnicos de modo a preservar sua identidade. Conforme os pesquisadores Rodrigo Aguiar e Levi Pereira, a produção da cerâmica é uma atividade exclusivamente feminina apresentando formas modeladas que vão de animais a grandes jarros que atualmente constitui uma importante fonte de recursos financeiros na sociedade kadiwéu, sendo comercializada como artesanato especialmente nas cidades de Bonito e Bodoquena. Quase extintos a partir da Guerra do Paraguai, os Kinikinaus estão, atualmente, assentados na Aldeia São João, região da Serra da Bodoquena que hoje integra a Terra Indígena Kadiwéus. Segundo Rodrigo Aguiar e Levi Pereira, os kinikinaus mantém estreitas ligações com as outras etnias: “compartilham uma ancestralidade com os Terena, tendo por raiz os grupos Chamé-Guaná. Do

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Belo Sul Mato Grosso Aspectos da tecnologia oleira teriam sido compartilhados com os Kadiwéu, haja vista que seus ancestrais, os Guaicurus, provavelmente incorporaram dos antigos Guaná o hábito de produzir peças de cerâmica. ” Outro traço marcante apontado pelos pesquisadores nos kinikinau é o fato de que, apesar de quase extintos e habitantes de terras estrangeiras, eles permanecem com firme propósito na ressalva de sua identidade. “... estes indígenas continuam evocando uma etnicidade e uma ancestralidade compartilhadas como forma de se apresentar ao outro como Kinikinau”, informam Levi Pereira e Rodrigo Aguiar. Segundo os antropólogos, embora o Estado somente há bem pouco tempo tenha atentado para as nações indígenas que entremeiam as cidades e propriedades rurais, os kinikinaus têm empreendidos esforços para se fazer reconhecidos desde antes da sociedade circundante — os não indígenas —, com sua estrutura política e econômica importadas. “Para grupos étnicos que enfrentam o problema de negociar seu reconhecimento pelo Estado nacional, a produção da arte com feições étnicas pode ser um importante instrumento de luta política”. Essa luta por reconhecimento e manutenção da identidade étnica parece redobrada na arte dos quase extintos kinikinaus: “é possível perceber a persistência da técnica indígena tradicional de sobreposição de roletes na produção dos vasos, que na sequência são moldados e por fim encaminhados para a queima”, analisam os antropólogos. Apesar desse esforço, Rodrigo Aguiar e Levi Pereira apontam certas semelhanças na forma de produção dos kinikinaus e dos kadiwéus: “O processo de queima é similar ao adotado pelos Kadiwéu, com o amontoamento das peças sobre galhos secos que em seguida são incinerados. A queima aeróbica dá à cerâmica sua cor parda característica. Embora não se possa sustentar a existência de compartilhamentos culturais nas regras de composição artística, percebe-se alguma semelhança nos grafismos da pintura kinikinau com aqueles dos Kadiwéu” Segundo o site Cultura de MS, do governo estadual, além de habilidade na agricultura, os terenas são bons artesãos. As aldeias mais próximas dos centros urbanos abastecem as feiras com arroz, feijão de corda, maxixe, mandioca e milho, produtos que formam a base de sua própria alimentação. Em Campo Grande eles expõem seus produtos ao lado do Mercadão Municipal. Atividades que representam um nítido resgate de sua arte ancestral indígena, o atual artesanato Terena é um meio de sub-

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS sistência que se dá, principalmente, através do barro, da palha, e da tecelagem. Para os pesquisadores Rodrigo Aguiar e Levi Pereira, a arte Terena sofreu um processo de perda da identidade que tem sido retomada nos últimos anos. Os terenas têm sido conhecidos pelas produções de peças naturalistas. “No artesanato, predominam esculturas em madeiras que reproduzem animais da natureza em estilo marcadamente naturalista. Observamos a incorporação de elementos do artesanato caboclo na produção artística terena, especialmente nas aldeias situadas na região pantaneira”, observam. A cerâmica e a tecelagem são apontadas, historicamente como as produções em que essa etnia se destacava, embora atualmente não se encontrem com facilidade seus tecidos. “... como a demanda de mercado recai mais sobre as esculturas e sobre as peças de cerâmica, há dificuldade em encontrar elementos de tecelagem”. Segundo o professor e antropólogo Victor Mauro, essa confecção obedece a regras e crenças tradicionais: — As mulheres indígenas, na confecção de cerâmica, precisam seguir algumas regras de cunho religioso e tradicional. Por exemplo, não pode ir para a cozinha em dia que se vai fazer cerâmica, pois acredita-se que o sal é inimigo do barro. Outra coisa. Elas também não podem trabalhar no barro quando estão menstruadas. Na maioria das nações indígenas, cabem aos homens, por tradição, somente o trabalho de extrair o barro e processar a queima, tarefas que exigem maior vigor físico —, explicou Victor durante a aula de Aspectos Culturais da Cultura de Mato Grosso do Sul. O site Cultura de MS, do governo estadual, detalha o processo de produção terena. De acordo com a página, as peças são modeladas manualmente com a técnica de roletes — espécie de “cobrinhas” —, e, dependendo da região, as mulheres terena usam em seus trabalhos, argilas de diversas cores: preta, branca, vermelha e amarela. Visando a obtenção de cores contrastantes e realces pictográficos, fazem engobes com algumas delas para serem usados na decoração das peças. Segundo o site do governo, os Terenas produzem peças utilitárias e decorativas: vasos, bilhas, potes, jarros, animais da região pantaneira — cobras, sapos, jacarés que são chamados de “bichinhos do Pantanal” —, além de cachimbos, instrumentos musicais e variados adornos. Os padrões dos grafismos são basicamente o estilo floral, pontilhados, tracejados, espiralados Do

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Belo Sul Mato Grosso e ondulados. O acabamento das peças é feito com ferramentas rudimentares: seixos rolados, espátulas e ossos. O barro ou massa é preparado misturando aditivos — que eles chamam de temperos —, para regular a plasticidade: pó de cerâmica amassado e peneirado, conchas trituradas e cinzas de vegetais. Numa fase anterior são retirados da argila resíduos como restos de vegetais e pedras. As queimas são feitas em fogueiras a céu aberto ou em fornos rudimentares, usando lenha como combustão. Os indígenas verificam o estado do ciclo da queima tilintando com um pedaço de taquara nas peças. Através do som obtido constatam o estágio da cozedura. Para os pesquisadores Rodrigo Aguiar e Levi Pereira, é sobretudo no município de Miranda, onde possuem um Centro Referencial da Cultura Terena que grande variedade de produtos artísticos vindo das aldeias pantaneiras terenas são encontrados. Segundo o site Cultura de MS, do governo estadual, além de Miranda, as peças produzidas pelos Terena podem ser encontradas em Aquidauana, na Casa do Artesão e no Memorial Indígena na Aldeia Urbana Marçal de Souza, ambos em Campo Grande. A herança e a influência dessas nações no segundo Estado com a maior população indígena do país não poderiam deixar de influenciar na identidade artística cultural dos sul-mato-grossense e. Naturalmente! Nos bugrinhos, nossa identidade bovinoculturista.

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“Aruanã Etô é lugar das máscaras, Maste Purú é lugar dos homens”

Capítulo Terceiro:

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gravação da entrevista com a gerente de fundos de investimentos culturais de Mato Grosso do Sul, Solimar Alves de Almeida, foi marcada por uma série de pequenos incidentes. De início, a gentil senhora enganou-se sobre o horário marcado. Isso prolongou a minha espera no corredor central da UFMS num dia de calor primaveril. Decorreu cerca de meia hora até que finalmente nos encontrássemos no lugar combinado, isto é, próximo às agências bancárias. A seguir, já no estúdio de gravação, foi minha vez de cometer o deslize de me perder no roteiro de perguntas aberto no aparelho smartphone: — Solimar Alves de Almeida, psicóloga e gerente do fundo de cultu... E de investimento. — Passei a língua entre os lábios — Psicóloga e gerente dos fundos de investimento culturais de Mato Grosso do Sul. — Fiz uma pausa, buscando a questão na folha de pauta — No dia 11 de outubro de 1977 concretizou-se o dois mil desme... O desmembramento de Mato Grosso do Sul. Mas somente em 1º de janeiro de 1979 o presidente Ernesto Geisel elevou a categoria de Estado, sendo o primeiro... Governador empossado Harry Amorim. Harry Amorim Costa. — A professora corrigiu-me num tom de sussurro: — Harri. — Harri? —, questionei com um riso nervoso — Harri Amorim Costa. —, repeti ao microfone. — Depois da divisão.... —, busquei retomar e, imprimi novo vigor: — Depois da divisão, como se constituiu a cultura.... — Não, volta desde o início —, interveio Letícia Monteiro, sentada em uma cadeira ao meu lado. — É Geovani. Você está mudando a entonação. Na gravação toda você fez isso. Pode ir. —, juntou a professora Daniela Ota. — De novo. —, disse eu a Solimar, resignado. — Tranquilo! —, ela assentiu. Do

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Belo Sul Mato Grosso — No dia 11 de outubro de 1979, concretizou o desmembramento de Mato Grosso do Sul, mas em 1º de janeiro de 1979 o presi. — Dessa vez o celular onde eu lia a pauta emitiu alarme e desligou por falta de bateria. — Não acredito nisso, gente. Sacanagem! —, sussurrei. — Desculpa. —, disse à Solimar num tom quase inaudível. — Volta tudo. —, respondeu-me a gerente do fundo de cultura, sorrindo, divertida. — Agora vai. —, afirmei. Tinha apanhado um outro aparelho que trazia já com a pauta aberta no aplicativo WhatsApp do grupo de trabalho do Laboratório de Radiojornalismo II. Assim, veladamente, respirei fundo, concentrado, e finalmente retomei: — No dia 11 de outubro de 1977, concretizou-se o desmembramento de Mato Grosso do Sul, mas somente em 1º de janeiro de 1979, o presidente Ernesto Geisel a elevou a categoria de Estado sendo o primeiro governador empossado, Harri Amorim Costa. — Arri Amorim Costa. Isso é outra coisa. Você está falando Rarry! De onde você tirou isso. É nome de brasileiro. Estamos no Brasil. É Harri Amorim Costa. —, corrigiu-me a professora Daniela Ota, numa voz baixa, porém firme. —, enquanto Solimar dissimulava o riso pousando uma mão sobre a boca. — Harri Amorim Costa. —, repeti. — Depois da divisão, como se constituiu a cultura sul-mato-grossense? —, concluí, enfim. — Bom, na verdade, Mato Grosso do Sul sempre teve as suas diferenças do Norte, né? Então, até por isso o processo divisionista no Estado. O que era mais pertinente a Mato Grosso do Sul, são aquelas influências do Paraguai, de japoneses, italianos, o pessoal árabe. No Norte não tem tanta essa influência como existia e existe até hoje aqui em Mato Grosso do Sul. Para Cuiabá, para a região norte do Estado, as influências eram de outros locais e não dessas mesmas regiões com tanto impacto. Então, já existia essa diferença não era só uma diferença política que levou ao processo de divisão. Existia, também, um processo político e cultural que não aproximavam os dois Estados um do outro. —, disse Solimar em resposta, com sua voz rouca. E enquanto Solimar delineava o passado secular do movimento divisionista — já relato de outra maneira no primeiro capítulo —, eu, claro, me perguntava como essas transformações

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS políticas e históricas haviam contribuído para a formação das artes sul-mato-grossenses e construído sua identidade.

As Artes Clássicas no Sul de Mato Grosso Uma das mais ricas e diversificadas produções humanas, a arte registrou desde a pré-história todo o legado dos nossos antepassados durante todas as épocas. Passados milênios após o período da Pedra Lascada, precisamente com a chegada dos colonizadores e as primeiras vilas e cidades no Sul de Mato Grosso — aqui, uso a premissa dos Historiadores, segundo os quais não é adequado referir a Mato Grosso do Sul antes da divisão —, surgiram as primeiras manifestações na região. Em Mato Grosso Do Sul: História, Divisão e Sociedade, pesquisa de mestrado defendida na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, UEMS, da historiadora Andréia De Arruda Machado, são relatados aspectos importantes da História anterior à criação de Mato Grosso Do Sul. Segundo Andréia de Arruda, o antigo Estado de Mato Grosso compreendia uma extensão que corresponde aos atuais Estados de Rondônia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Essa área era subdivida em três regiões com características específicas de formas diferenciadas: norte, centro e sul. Há notícias de que o primeiro português a pisar no que hoje é Mato Grosso do Sul, teria sido Aleixo Garcia, por volta de 1524. Conforme Andréia de Arruda, os primeiros caminhos abertos nas matas, até então, eram as picadas. “Os caminhos eram percorridos nos lombos dos animais, seguindo, a partir de 1900, de algumas estradas boiadeiras e carreteiras. As viagens duravam muitos dias. Para sair da capital do país - Rio de Janeiro - e chegar a Cuiabá, demorava, praticamente, um mês. Assim, até a construção de estradas no início do século XX, as vias fluviais eram os meios principais de locomoção. “Tomava-se um navio que partia do rio da Prata, com escala em Montevidéu e Buenos Aires (Argentina), era necessário subir o rio Paraguai, com escala em Assunção, passar em Corumbá e depois chegar em Cuiabá”, explica a historiadora. Não obstante, essas condições adversas não impediram que os povoados que surgiam, sobretudo as cidades mais desenvolvidas no final do século XIX, tivessem algum conhecimento das manifestações artísticas que se formavam após a fuga Do

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Belo Sul Mato Grosso dos monarcas portugueses para o Brasil, como o Romantismo, o Neoclassicismo e o Realismo.

A estética paisagística-romântica Surgidos no mesmo período, o Romantismo e o Neoclássico são atualmente considerados duas faces de uma mesma moeda, conforme explica no trabalho de pesquisa Identidade Regional e Pintura de Paisagens em Mato Grosso do Sul, a mestra em estudo de linguagens e arte educadora Morgana Duenha Rodrigues, que atua como técnica pedagógica na Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do Sul. “Nesta mesma perspectiva, os estudos de Argan tanto sobre arte neoclássica como sobre arte romântica, mostram que ambas, apesar de parecerem divergentes, pertencem ao mesmo ciclo de pensamento. A diferença está sobretudo no tipo de postura (predominantemente racional ou passional) que o artista assume em relação à história e à realidade natural e social”. Tomando a natureza e a vida humana como espaço de apropriação e campo de investigação científica, a arte romântica encontra na pintura seu objeto de expressão por excelência. “Nas artes plásticas, o que diz respeito à grande realização do romantismo encontra-se no campo da pintura; esta, assim como a arquitetura, começou como forma de crítica/reação à artificialidade barroca. No romantismo pregava-se a presença concomitante da razão e da natureza”, explica Morgana Duenha. Dessa forma, a arte educadora já observa em obras românticas como as de Goya, Delacroix, Daumier a presença de paisagens, embora, estas ocupem o segundo plano. Segundo Morgana Rodrigues, apenas em Bonheur e Corot a paisagem aparece em toda extensão. “Sabe-se que a Pintura de Paisagem está presente nas produções subsequentes ao Romantismo, que permanece reconhecido como o iniciador deste gênero de pintura que, a rigor, melhor traduziu o estado de espírito romântico em suas variadas contingências subjetivas”. Graduado em Ciências Sociais e mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará, UFC, o professor e pesquisador de História e Sociologia da Arte da Universidade Federal de Ouro Preto, Paulo Monteiro Nunes, explica no artigo Academicismo em três tempos: Regulação, Adesão e Controle, publicado em julho 2011, pelos Anais do XXVI Simpósio Nacional de História, ANPUH, de São Paulo, que durante o século XIX, as Academias de

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS Arte Francesas — modelo tomado pelo Brasil — começaram a impor uma combinação estética que reunia os valores técnicos do Neoclássico com a temática e a dramaticidade romântica. Tomados como únicas expressões artísticas aceitáveis nas Escolas de Belas Artes, tais técnicas resultaram no período denominado Academicismo, que só foi superado a partir das correntes de Vanguarda das quais se destacam o Expressionismo, o Dadaísmo, o Fauvismo, o Futurismo e o Impressionismo. Na análise de Morgana Rodrigues, esta última ainda mantém a relação paisagística herdada no Romantismo. “É inegável que a paisagem romântica propiciou o aparecimento de uma das rupturas mais radicais em relação à linguagem clássica: o Impressionismo”. Segundo a mestra em estudos de linguagens, há na pintura artística de Mato Grosso do Sul uma predominância do estilo paisagístico que remonta ao Romantismo, origem das pinturas de paisagem como gênero artístico. Essa característica de origem europeia foi introduzida no país a partir da transferência da corte de Portugal para a colônia brasileira. Os proprietários de terras com anseio de ascensão criaram uma espécie de nobreza que levou a coroa a “civilizar” a paisagem por meio de obras públicas. Em 1816 chega ao Brasil a Missão Artística Francesa com o objetivo de trazer a monumentalidade do Neoclássico à corte, contudo a realidade brasileira impôs dificuldades que obrigaram a missão a criar mecanismos para suavizar as circunstancias. “No entanto, é importante salientar que nos primeiros estatutos da Imperial Academia e Escola de Belas Artes, redigidos em 1820, a relação entre paisagem e nacionalidade, a ‘brasilidade’, já se fazia presente, considerando-se ‘o quanto as próprias condições físicas do território brasileiro convinham e mesmo exigiam o amplo desenvolvimento da pintura paisagística”, observa Morgana Rodrigues. Essa escola paisagística nacional ganharia mais relevo com a chegada do pintor alemão Georg Grimm que, no início da década de 1870, assumiria o estudo da Pintura de Paisagem no Brasil. Para Morgana Rodrigues, os ensinamentos de Griim tiveram como base a observação direta da natureza. “Esse ‘método’ coincide com o período do movimento romântico, quando a paisagem aparece como um gênero autônomo de pintura, de maneira mais consistente, como já explicamos, pois, a paisagem que se definia anteriormente equilibrava-se entre o natural e o ideal e se configurava sob domínio do pitoresco e do sublime”, observa.

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Belo Sul Mato Grosso Assim, durante os anos de 1884 e 1886, sob a orientação de Georg Grimm, um grupo de sete jovens artistas passou a encontrar-se regularmente para pintar nas praias e arredores da cidade de Niterói, no Estado do Rio de Janeiro. Formado pelos pintores Antônio Parreiras (1860 - 1937), Garcia y Vasquez (1859 - 1912), França Júnior (1838 - 1890), Francisco Ribeiro (1855 1900), Castagneto (1851 - 1900), Caron (1862 - 1892) e o pintor alemão Thomas Driendl (1849 - 1916), que por vezes substitui o mestre, esses artistas se caracterizaram pela pintura ao ar livre que teve origem na própria Academia Imperial de Belas Artes, AIBA, do Rio de Janeiro.

Os Primeiros Artistas Eruditos no Sul de Mato Grosso Posteriormente ao Grupo Grimm, na segunda metade do século XIX, surgiram novos nomes que criariam uma suposta natureza tipicamente brasileira, como Antonio Parreiras, Giovanni Battista Castagneto e Henrique Bernadelli, que viria a ser o professor da artista mato-grossense-do-sul Lígia Baís. Durante a sua pesquisa História Expressões do Mundo Moderno Na Cidade De Campo Grande No Antigo Estado De Mato Grosso: Arte De Lígia Baís Como Fonte de Pesquisa Histórica, apresentada para o mestrado de História da UFGD, Fernanda Reis, hoje doutora pela mesma universidade, relata o anseio modernista da elite do Sul de Mato Grosso alimentado pela necessidade de superar a pecha de região atrasada. Essa aspiração foi buscar inspiração no eixo Rio-São Paulo, com quem mantinha contato por meio das navegações. Ademais, o surgimento da Companhia Erva Matte Laranjeira a partir do arrendamento de terras por Tomás Laranjeira na localidade onde surgia a povoação de Ponta Porã, explorando imensos ervais nativos — sob o regime de trabalho análogo de escravidão, especialmente entre paraguaios e indígenas —, e, a chegada da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, em 1914, ligando São Paulo a Corumbá, provocaram um crescimento demográfico contribuindo para o desenvolvimento da região. Essa presença de migrantes trazidas pelo avanço da malha ferroviária é registrada pela escritora Maria Manoela Renha de Novis Neves em Elites Políticas: Competição e Dinâmica Partidário-Eleitoral, publicado pela Edições Vértice, em 1988. “A mão de obra contratada de imigrantes para ferrovia trouxe

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS substancial contingente de agricultores, que se fixaram posteriormente ao longo do eixo da estrada e promoveram a diversificação da agricultura, dando à pecuária histórica e fixacionista, novo suporte que mais acentuou a diferença estrutural entre sul e a região norte”, relata Maria Neves. Uma das mais notáveis artistas deste período foi Lígia Baís que, segundo Fernanda Reis, era a sétima filha de um total de nove herdeiros de Bernardo Franco Baís e de Amélia Alexandrina Baís. Rebelde desde criança, aos 15 anos Lígia começou os estudos em arte, com aulas de piano e outros instrumentos. Chegou a estudar em vários internatos fora do país, como em Assunção, no Paraguai, e na Europa. Nos anos 1920, passou uma temporada no Rio de Janeiro onde teve aulas com o pintor, desenhista e professor da Escola Nacional de Artes, Henrique Bernadelli e com o pintor, crítico, professor e historiador de arte brasileira Osvaldo Teixeira. Ao lado de seu cunhado Vespasiano Martins e de sua irmã Celina, Lígia passou uma temporada na Europa em 1925, visitando vários países que influenciaram profundamente sua perspectiva artística de modo a repercutir em suas obras que ganharam aspectos modernistas e surrealistas. Assim, ao retornar para o Brasil, Lígia promoveu uma exposição de pinturas a óleo no Rio de Janeiro. A escolha do lugar teria sido devido a Campo Grande ainda não possuir nem luz, nem referência sobre arte contemporânea. Conforme Fernanda Reis, Lígia era uma artista versátil e exercia diversos talentos artísticos como a pintura, a literatura, além de tocar instrumentos e compor músicas. Sua vida pessoal, entretanto, foi marcada pela tragédia, incompreensão, profunda religiosidade e isolamento. O pai, Bernardo Franco Baís, foi atropelado pelo trem em frente à casa da família. Sua família, aproveitando-se de um momento de fraqueza, casou-a para transferir a responsabilidade sobre seus atos — casamento este que foi logo desfeito —; por fim, em 1985 Lígia faleceu cercada pelos gatos que alimentava, isolada em sua casa. Sua história, não obstante, tem inspirado diversas narrativas e representações teatrais e de dança. — Lígia Baís é lembrada como proeminente artista do Estado, no entanto, pouco se fala sobre a estética de suas obras e sua relação com os artistas da Semana de Arte Moderna. O que o senhor poderia dizer a respeito? —, perguntei ao professor Bessa-Oliveira. Aludindo à contenda sempre contemporânea do recoDo

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Belo Sul Mato Grosso nhecimento do Estado de Mato Grosso do Sul desmembrado de Mato Grosso em 1977 — esse “Sul” sempre esquecido em outras regiões brasileiras! —, o professor elucidou: — Se após quase 50 anos da divisão dos Estados o nome Mato Grosso do Sul ainda é motivo de controvérsias, imaginemos o que era Mato Grosso uno em 1922 para o Sudeste do Brasil?! Do mesmo modo, se me permite dizer, a “estética” de Lídia Baís de que você fala não dialogava com o proposto pelos Modernistas à época. Não há nas obras executadas por Lígia Baís um “retrato” localista-regionalista de MT (da época, por exemplo) como buscavam fazer, por exemplo, Mário de Andrade com “Macunaíma” ou Tarsila do Amaral com “Abaporu”. Pelo contrário, sua obra (Baís) está muito mais influenciada pela arte europeia inclusive pela temática. O que não quer dizer que os Modernistas brasileiros tenham deixado de lado os mesmos pressupostos europeus como modos de produção. No entanto, esses últimos, os brasileiros, por uma perspectiva mais regionalista fazem ressaltar as mesmas características locais que constavam nas culturas europeias e estadunidenses que os artistas daqueles lugares faziam em suas obras (por exemplo, Picasso com as guerras espanholas em Guernica). Eu tenho escrito 3 ou 4 textos nessa perspectiva de discussão da Arte Moderna brasileira ainda ser ranço da arte europeia pela ótica do “devorar” para produzir. Contudo, se o modernismo não se apresentou por meio das telas simbólicas, impressionistas e surreais de Lígia Baís, na literatura, embora de modo tardio, não se pode dizer o mesmo, conforme explica o ator, diretor, arte-educador, pesquisador e produtor cultural Fernando Cruz durante entrevista para este livro. Graduado em artes visuais pela UFMS e pós-graduado em ciências da linguagem, pela UEMS, Fernando é diretor e ator do grupo Teatro Imaginário Maracangalha. — A obra literária do Lobivar Matos, ela reverberou para o Brasil na época do modernismo tardio, quando ele foi escritor na revista Fon Fon no Rio de Janeiro, apresentou Manuel de Barros como artista para o Brasil na década de 1930 e até hoje não é reconhecido no seu lugar. Morto aos 32 anos, o escritor Lobivar Matos nasceu em 11 de janeiro de 1915, em Corumbá. Em sua tese de doutorado O projeto literário do escritor Lobivar Matos, a pesquisadora Susylene Araújo chama a atenção para o fato de que, ao seguir para o Rio De Janeiro, com a ajuda de sua avó que, inclusive havia lhe alcançado a tutela de Filinto Müller chefe da polícia política do Governo Vargas, sobre quem paira relatos de prisões arbitrárias e até o uso da tortura. “Tal informação exige uma 68

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS atenção especial, já que parece ser bastante contraditório que alguém que seja protegido pelo governo getulista da época pudesse dar vozes aos parias desprovidos, como Lobivar o fez. O relato segue para revelar aqueles que seriam os anos mais significativos da vida de Lobivar Matos. Após ingressar na Faculdade Nacional de Direito do então Distrito Federal, o poeta contrai núpcias com Nair Gomes de Araújo, com quem teve dois filhos: Silvio e Suely”, observa Susylene Araújo. Entretanto, para o dramaturgo, Fernando Cruz que realizou pesquisas sobre o autor junto ao grupo Teatro Imaginário Maracangalha, resultando no cortejo Areôtorare, Lobivar Matos é um personagem local que se destaca por trazer a manifestação modernista ao pantanal do Sul de Mato Grosso, abrindo mão do olhar idílico sobre a região para destacar as questões sociais e a realidade daquela época: — E sobre o Areôtorare, no caso a vida que redescobre, encontra, a obra de Lobivar Matos, escrita em plena década de 1930, e no Manifesto A Minha Gente, que é o prefácio que ele escreve, o texto de abertura do Sarobá, onde fala de uma maneira bem direta. Por isso nós tratamos como manifesto modernista aqui da região do Pantanal, do centro do Brasil, do centro da América do Sul, onde ele busca uma arte que não falasse mais das pequenas coisas. De coisas corriqueiras ou de desejos. De vaidades artísticas no período, parnasianas. Uma arte que falasse dos trabalhadores, da vida, das pessoas, dos miseráveis sem pão e sem trabalho, considerando esse o papel dos poetas de sua geração. Poeta, jornalista e crítico literário, Lobivar Matos se autointitulava o Poeta Desconhecido. Segundo Juliano Antunes Cardoso, mestre em Letras pela UFMS, que em seu trabalho de pós-graduação A Poética Metafórica De Lobivar Matos: A Profecia De Um Areôtorare analisa a estrutura poética de Lobivar Matos, o autor corumbaense já manifestava em seu primeiro livro, Areôtorare, sua imersão no espírito modernista, que voltado para o realismo com sua crueza construía e revelava a “comédia dramática da vida”. Prossegue o dramaturgo Fernando Cruz: — Os poemas, são poemas modernistas que trazem personagens reais que são as mulheres negras, as mulheres indígenas, os homens, as crianças do pantanal, os moradores de rua, os bêbados, as prostitutas as trabalhadoras sexuais. Ele traz todo um universo do Pantanal que não nos é mostrado, que não é contado e também desvela a primeira das favelas do centro-oesDo

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Belo Sul Mato Grosso te do Brasil, em pleno pantanal, que era o Sarobá, uma favela composta por pretos que sobreviveram à Guerra do Paraguai. E ali tocavam o seu tambor, faziam o seu terreiro, as suas festas, e onde a burguesia iria se divertir. Outra característica observada nas obras de Lobivar Matos é seu aspecto histórico do período Getulista no Sul de Mato Grosso, atual Mato Grosso Do Sul. A política expansionista, colonizadora e agrária com o objetivo de unificar o mercado interno e garantir a diversificação da produção nacional, sobretudo por meio da campanha Marcha para o Oeste, de 1938, difundida pelo regime getulista, resultou no crescimento demográfico da região, mas também trouxe as mazelas inerentes às relações do capital. Na análise de Fernando Cruz, esse olhar para a realidade da época desvela a sociedade capitalista com suas mazelas: — Então ele faz um retrato de um período histórico que dialoga até hoje com a violência contra a mulher. A exploração da criança, com o descaso. Desumanidade com as pessoas que habitam as ruas, com os pobres desse país. Mostrando um Pantanal além da paisagem, onde há diferenças sociais. As diferenças de classe, de raça, de cor. E de forma muito humana ao mostrar, também, um lado festivo do povo brasileiro, desse povo pantaneiro. Desses trabalhadores daquele período. Fazendo uma grande denúncia contra o desmatamento do Pantanal, o desvio das águas, a invasão das mineradoras com a poluição e com todo o impacto social, além do impacto ambiental. As enchentes que mudavam de cursos e destruíam a vida das pessoas. E faz uma denúncia, também do empobrecimento das pessoas que tinham uma vida cotidiana, ali, muito ligada à terra e, de repente, perdem a sua terra para as mineradoras. E que não consegue emprego na mineradora, torna-se um desempregado ou morador de rua.

“Ah. Cancioneiro das horas. Quebre o molejo, agora. Destrua o Espaço” Após o período Vargas com sua campanha da Marcha Para o Oeste, a região Sul do Mato Grosso encontrou no período Juscelino Kubitschek um novo fôlego de desenvolvimento. Em Mato Grosso Do Sul E Sua História: Em Perspectiva O Período Divisionista (1977-1998), dissertação apresentada à UEMS durante o mestrado em Ensino da História, Andréia de Arruda Machado relata que a política do “50 anos em 5” do governo Kubitschek

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS acentuou as políticas de interiorização do Brasil. Essa política trouxe novos elementos como a rodovia asfaltada que ligou Campo Grande a São Paulo dez anos antes de Cuiabá, então capital, evidenciando uma série de divergências entre as duas regiões, norte e sul, do então Mato Grosso uno. “Houve uma evolução desigual entre as duas regiões do Estado, proporcionando uma divisão territorial, muito antes de qualquer manifestação divisionista. A divisão foi uma consequência das diferenciações regionais que se deram desde seu povoamento, intensificadas com o passar dos anos”, explica Andréia de Arruda Machado. Graduada em Artes Visuais com Licenciatura Plena pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, especialista em Didática e Metodologia para o Ensino Superior, Morgana Duenha Rodrigues, aborda em seu projeto de mestrado em estudos de linguagens pela UFMS Identidade Regional E Pintura De Paisagem Em Mato Grosso Do Sul, uma exposição do contexto histórico e social que originou o estilo de pintura do Estado. Segundo Morgana Duenha, o processo divisionista de Mato Grosso em dois Estados diferentes está relacionado a movimentos rebeldes de coronéis sulistas que desde o século XIX se recusavam à submissão a capital Cuiabá. “Nas primeiras décadas do século XX terá continuidade em movimentos diversos e de forma mais expressiva durante a Revolução Constitucionalista de 1932”. Até a década de 1940, a região Sul de Mato Grosso se via em flagrante diferença com relação às políticas desenvolvidas no então Estado uno, a região Sul permanecia em precariedade quanto a comunicação e o desenvolvimento de estradas. Ademais, mesmo se tornando a região mais populosa, não gozava de representatividade junto ao Estado que, limitava-se a enviar representantes cuiabanos a região sul. Para Morgana Rodrigues, todo esse quadro levou a uma expectativa de adesão por parte da população. “Delineado este quadro, havia a expectativa de que a separação fosse resultado de lutas populares reivindicatórias de uma profunda mudança política, na distribuição da receita pública ou mesmo nas trocas culturais. No entanto, o processo de criação do Estado foi de forma “pacifica”, observa a arte educadora. Conforme a mestra em ensino de história Andréia de Arruda Machado, ao longo dos anos essas divergências que remontam ao período coronelista da República Velha marcado, inclusive, por episódios de confrontos armados e até assassinatos de Do

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Belo Sul Mato Grosso lideranças divisionistas do Sul, sempre ressurgia de tempos em tempos. A divisão, tão almejada pela elite do Sul de Mato Grosso, entretanto, só irá chegar no final dos anos 1970. Esse contexto naturalmente repercutiu nas expressões artistas da região.

Bovinocultura: A Arte De Mato Grosso Do Sul É inegável que o Estado se apresenta como celeiro de grandes artistas, desde sua formação no período do Mato Grosso Uno. Lígia Baís, Wega Nery, Ilton Silva, Jorapimo e Humberto Espíndola são alguns dos artistas plásticos locais premiados reconhecidos até mesmo no cenário internacional. Contudo, foi a partir da criação do Estado de Mato Grosso do Sul que os artistas locais se encontraram comprometidos com a busca de uma expressão que revelasse a identidade do sul-mato-grossense. Essa atitude, portanto, encontra-se estreitamente ligada ao movimento separatista e ao protagonismo assumido pelas classes ruralistas mencionadas nos capítulos anteriores. Dessa combinação de interesses irá emergir uma proposta de arte única do Mato Grosso do Sul que será apresentada no artigo A Produção Artística Contemporânea De Mato Grosso Do Sul: Resgate De “Memórias E Inven-Tações” Artísticas, do professor do curso de Artes Cênicas na UEMS, Marco Antônio Bessa-Oliveira. Nesse tratado, o autor discorre sobre as imposições de uma criação imagética cultural denominada bovinocultura. Segundo Bessa-Oliveira, a bovinocultura aparece no instante em que artistas locais são reconhecidos em eventos nacionais pelas artes caraterizadas pelas imagens de bois. “Ressaltando um certo ‘centro do Brasil’ como exótico na arte nacional. Um localismo, assim como foi o nacionalismo na produção cultural de 1980 para cá”, explica. Para o professor, a bovinocultura caracterizada pela insistência de alguns artistas em manter o boi em suas produções se deve a uma estrutura complexa. “Artistas que continuam insistindo na presença dos bois nas obras porque têm apoios estatais e privados e são apoiados porque representam esses discursos político-partidários com suas obras e também uma continuação desenfreada dos mesmos pressupostos movimentistas da arte europeia também em MS” Entrevistado para esse livro, Marco Antônio Bessa-

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS Oliveira analisa que essa estrutura já está enraizada na cultura local: — A bovinocultura está e estará presente nas obras de Mato Grosso do Sul (seja pela presença literal da imagem do boi ou não), porque esta está inscrita na cultura local sul-mato-grossense. Faz parte da cultura bugra, xucra, entre outros termos sem sentidos pejorativos. Mas nesse caso, a inscrição é colocada por meio de “retratos” e “paisagens” biográficas (ou biogeográficas de cada sujeito local. Sem ser partidarista, mas identificação identitário-cultural). —, explica. — É possível dizer que as estruturas econômicas que implementam a bovinocultura no Estado agem como uma versão local da indústria cultural? —, questionei. — Sim, é possível dizer à medida que entendemos essa perspectiva a partir da ideia de manutenção de determinada característica (o boi) para manter outras (agronegócio e seus desdobramentos que mantêm a cultural econômica e agora política em MS). Mas a discussão acerca da indústria cultural, em certa medida, da minha perspectiva, precisa ser bem cuidadosa. Pois, de certo modo, qual cultura não evidencia uma atividade não visando angariar recursos também econômicos? De fato, o agro é (pop, tech é tudo em) MS. A frase “Arte aqui é mato! ”; pode ser literal aqui por motivos já discutidos por mim também. Aliás, qual é a indústria hoje que também não é cultural? A discussão demanda cuidado, inclusive, porque não pode ser ancorada por pressupostos muito retardados à cultura contemporânea. — Existe arte para além da bovinocultura no Estado? —, perguntei a Bessa-Oliveira. — Sim, claro, e muito certamente uma arte que é bovinocultura que é além do estado estatal. Mas essa arte ainda está por ser reconhecida pelas próprias pessoas do Estado. Enquanto tivermos formações profissionais que se atenham mais às artes europeias e estadunidenses como modos de produção, discussão e ensino de artes, menos essa produção que se caracterizaria “para além da bovinocultura” terá lugar na cultura do Estado, mas nem ela também será reconhecida pelas pessoas do Estado. Não estou falando de reconhecimento institucional, por isso critico as formações dadas. Essas fazem “bem” os seus trabalhos: vender imagens a fim de instituir um padrão identitário moderno para MS —, conclui o professor. Assim, segundo Bessa-Oliveira, a hegemonia da bovinocultura objetiva supervalorizar uma classe privilegiada da sociedade local associada à bovinocultura. Essa imposição engessa as Do

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Belo Sul Mato Grosso expressões artísticas locais na medida em que os espaços e as políticas de valorização são excludentes em relação à busca de outras estéticas e temáticas, apresentando-se como uma modalidade específica da indústria cultural, a indústria cultural da bovinocultura, contudo. E quanto a arte intuitiva, de cunho indígena da Conceição, os Bugres, tema de pesquisa na disciplina de Entrevista e Pesquisa Jornalística no curso de Jornalismo?; meditei.

Os Bugrinhos da Conceição As primeiras aulas do professor Edson Silva na disciplina de Entrevista e Pesquisa Jornalística já indiciavam uma nova primeira oportunidade de abordar um assunto relativo ao tema que eu pretendia desenvolver no TCC, portanto, havia um sentimento de identificação. Este sentimento se confirmou na medida em que o professor incumbiu a turma de formar grupos para a realização de um trabalho prático ao longo do semestre: a realização de uma pesquisa jornalística de um dos seis temas proposto por Edson e, democraticamente, escolhido pelos grupos formados. Foi assim que, ao lado de Jenifer Alves, Felipe Dias e João Vitor Barbosa, formamos o grupo que terminou com a temática Mulher. Imediatamente, compreendemos a amplitude de assuntos que poderíamos abordar a esse respeito, sendo o mais comum que tomássemos o viés da violência e da discriminação salarial. Contudo, mais uma vez, tomei meu propósito sobre a cultura artística local como referência, sugerindo uma pesquisa sobre a importância da mulher para a cultura do Estado. Inicialmente, houve uma hesitação e até uma resistência. João Vitor, por exemplo, propôs que abordarmos o preconceito contra mulheres transexuais ou que falássemos sobre o pioneirismo de algumas mulheres em trabalhos vistos como de domínio masculino. Debelamos. Cada um expôs seus argumentos e ponderações. Por fim, acordamos que o gancho seria a importância das Mulheres para a Cultura do Estado. Mais tarde, na seleção de personagens, escolhemos seis, uma das quais, me reporto para este trabalho: Conceição dos Bugres. Destarte, era uma tépida tarde de sexta feira, do dia 18 de maio, às três e meia, quando Joseane Fátima Gaboardi, gestora de eventos da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, dispôs-se a interromper o trabalho, em meio a correria emergencial dos preparativos para o Festival da Cultura do Estado.

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS — Bom. Eu gostaria que me falasse sobre Conceição dos Bugres, sua obra e importância para a história do Estado. —, comecei após ativar o gravador do celular e deixá-lo sobre a mesa. Passando páginas de arquivos no computador, Joseane respondeu: — Eu fiz um resumo dela. Bem resumido. Tem bastante coisa. E também não tem, porque o cineasta Cândido da Fonseca fez uma matéria com ela em 1979. Segundo Joseane Gaboardi, em 1914 nasceu Conceição Freitas da Silva em Povinho de Santiago, Rio Grande do Sul. Descendente de indígenas, sua família encontrou em Mato Grosso do Sul o asilo para a perseguição que sofria por parte dos bugreiros — carrascos especializados em atacar e exterminar indígenas brasileiros sob paga de mandantes —, descendentes de europeus que cresciam na região. “Aqui residiu nas cidades de Ponta Porã e Campo Grande, onde faleceu em 1983”, relata a professora e escritora Maria da Glória de Sá Rosa no suplemento cultura do Correio do Estado publicado em 04 de outubro de 2014. “Viveu longos anos numa casinha de tábuas do Bairro Universitário, no espaço do desconforto da água do poço, da terra vermelha”, conta Maria da Glória de Sá Rosa. Mais tarde, mulher feita, residente na região do atual bairro Universitário na capital, Conceição de Freitas teve uma experiência mística que a faria autora da obra que levaria o rosto do sul-mato-grossense para outras regiões do Brasil e do mundo: Após uma revelação num sonho, teve uma inspiração numa tarde em que realizava tarefas costumeiras em sua casa, conforme relata Joseane. No primeiro semestre de 2018, época em que entrevistei Joseane para a matéria de Entrevista e Pesquisa Jornalística, soubemos que a Fundação de Cultura do Estado havia iniciado um processo para tornar os bugrinhos de Conceição patrimônio Imaterial de Mato Grosso do Sul. — É do ano passado. É que fizemos um levantamento no ano passado, porque os bugrinhos não são um patrimônio imaterial do Estado. Então fizemos uma abertura de registro para que se torne. — Um patrimônio imaterial? — Isso. Então, ele foi aberto, e eu fiz esse descritivo para o registro como um bem imaterial. —, respondeu. Do

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Belo Sul Mato Grosso Ao término da entrevista, Joseane imprimiu e entregou-me uma cópia do documento descritivo para registro de Bem Imaterial. Segundo consta no memorial, “conhecida e reconhecida nacional e internacionalmente como alta expressão de arte popular, pela criação ‘dos bugres’ por si só seria dispensável qualquer defesa dessa notável obra”. O registro seguia relatando que a criação, desenvolvimento e inspiração “dos Bugres”, com quase 40 anos, “merecem registro oficial por parte dos órgãos responsáveis do Poder Público, por perpetuar a história cultural e as raízes das mais variadas manifestações artísticas”. — Diz que estava no quintal da casa dela, e viu uma rama de mandioca, ela chama cepa de mandioca. E ali ela teve, como a gente olha para o céu, vê as nuvens e começa a encontrar características de rostos, de animais de alguma coisa. E penso que foi dessa maneira. Olhou para a cepa de mandioca e disse que parecia que aquela cepa estava olhando para ela. É como se tivesse uma pessoa olhando para ela, então... —, relatou-me Joseane. O fenômeno o qual a jornalista se refere não é muito raro. Conhecido como pareidolia facial, se caracteriza justamente pela capacidade de ver rostos em objetos do cotidiano. No caso de Conceição, esse incidente resultou numa realização criativa: O relato consta no documento logo após as citações de pesquisas realizadas no âmbito acadêmico. Segundo o texto, o momento de criação dos Bugres foi narrado pela própria Conceição no livro Artes Plásticas no Centro Oeste, de Aline Figueiredo, publicado em 1979: “Um dia, me pus sentada embaixo de uma árvore. Perto de mim tinha uma cepa de mandioca. A cepa de mandioca tinha cara de gente. Pensei em fazer uma pessoa e fiz. Aí a mandioca foi secando e foi ficando parecida com uma cara de velha. Gostei muito, depois eu passei para a madeira”, teria dito Conceição. Mestre em Letras pela Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD, Grazielli Alves de Lima, em seu trabalho de pesquisa Mulheres Artistas De Mato Grosso Do Sul: Interrelações E Pertencimento, observa que ao criar a obra que se tornaria ícone do Estado, Conceição partiu de uma experiência completamente alheia ao conhecimento acadêmico de arte. “A escultura de Conceição dos Bugres se torna ápice da cultura de seu Estado por se configurar como uma obra peculiar que sintetiza em figuras semelhantes a riqueza e a diversidade de um povo. A artista,

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS que nunca partilhou de estudos acadêmicos, imprime em suas obras um caráter cosmopolita. Conceição dos Bugres, que jamais havia saído dos limiares de seu quintal, elabora um contínuo de miniaturas que alcançam além-fronteiras, espalhando sua arte pelo mundo”. — Poderia se dizer que os bugrinhos da Conceição, tomados como ícones do povo sul-mato-grossense, fogem as imposições da bovinocultura? —, questionei o professor e doutor em artes visuais, Marco Antônio Bessa-Oliveira. — De jeito nenhum. Os “bugrinhos da Conceição” tornam-se “ícones do povo sul-mato-grossense” por definições institucionais im-postas. Mas, a partir do lugar que tenho pensado arte, essas esculturas (também característica estético-formal pré-definida pelos sistemas) são o retrato paisagístico (bugre, xucro, entre outros adjetivos) da cultura local sul-mato-grossense: indígena, paraguaia, boliviana, mineira, mato-grossense, paulista, carioca, entre tantos outros povos que circulam nesse local de/em fronteiras que tanto caracteriza a cultura de MS. Digo isso porque preciso te perguntar: qual é a forma dos “bugrinhos da Conceição” que não ilustra qualquer um desses povos diferentes? São as diferenças na própria obra que caracterizam essa diversalidade cultural de MS. Talvez, arrisco a dizer, um japonês não conseguiria evidenciar por meio da cultura japonesa tantas diferenças culturais. Não sei se me entende?! Esta indagação do professor Bessa-Oliveira parece vir de encontro ao que o documento Descritivo Para Registro De Bem Imaterial revela sobre os Bugres de Conceição: “são todos parecidos, mas nenhum idêntico um ao outro. Apesar da mesma posição de sentido, da cabeça reta e a pintura preta imitando os cabelos, os bugrinhos sempre cultivaram diferença”. Pesquisadora e escritora sobre a cultura e arte do Estado, a professora Maria da Gloria de Sá Rosa, descreve, no suplemento cultura do Correio do Estado o processo de feitura dos Bugres: “Depois de modelados, cobertos com cera de abelha, os totens adquiriam vida própria, ao revelar na mais sensível das linguagens o talento da artista Conceição, que, sem frequentar escolas de arte, sem ter transposto outras fronteiras que as de seu quintal, tornou-se símbolo da cultura sul-mato-grossense, seu ícone mais significativo, marcado pelo gênio criador desenvolvido com humildade”, diz a professora. Segundo o documento, nas décadas de 1970 e 1980 Conceição tinha uma demanda grande de encomenda. Parte da fama Do

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Belo Sul Mato Grosso dos Bugres se deve ao artista plástico bastante premiado, Humberto Espíndola e a crítica e produtora de arte Aline Figueiredo, sendo ambos grandes descobridores e propagandistas da obra de Conceição. — E a procura pela artista, pela própria Conceição, aqui, é muita? —, perguntei a Joseane. — Olha. Eles ainda tinham algumas peças dela, em casa, a última peça que foi vendida dela, foi comprada no valor de sete mil reais. —, respondeu-me. Segundo a gestora de eventos da Fundação de Cultura do Estado, um dos filhos de Conceição, Mariano Neto, tem prosseguido com o trabalho legado pela mãe. Conforme o documento Descritivo Para Registro de Bem Imaterial, a obra de Conceição esteve presente em diversas exposições dentro e fora do Estado. Recentemente, o Museu de Arte de São Paulo, MASP, vem divulgando a exposição Conceição dos Bugres: tudo é da natureza do mundo, com os bugres sul-mato-grossenses da artista de origem indígena que deve permanecer até o dia 30 de janeiro de 2022. Mais uma vez, a cultura dos povos originários se sobressai como identidade dos sul-mato-grossenses como não deixou de ser nos. Ah, sim! Nossos festivais cantantes!

Os Festivais de Música Participantes diretos do festival da Musica Brasileira de Campo Grande, a professora, escritora e pesquisadora da cultura local, Maria da Glória Sá Rosa, em parceria com o cineasta e jornalista, mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa no curso Ciências Políticas de Moscou, Cândido Aberto da Fonseca, que nos anos 80 assumiu o cargo de diretor executivo na Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, e, o cantor, compositor e instrumentista Paulo Simões registraram no livro Festivais de Música em Mato Grosso do Sul, os acontecimentos a cerca desses eventos. Denominada a capital econômica de Mato Grosso nos anos 1960, Campo Grande viveu nesse período a época dos festivais de música. Segundo Maria da Glória Sá Rosa relata, estes festivais foram realizados com o objetivo de aproximar os compositores, fazê-los conhecidos e, também, para saber que tipo de música se fazia na região. Assim, tomados pelo espírito dos festivais que ocorriam no eixo Rio-São Paulo, promovidos pela TV Record, o Clube Surian, que tinha como diretor Nelson Nachif, a 78

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS Aliança Francesa, na qual a diretora era a própria professora Maria da Glória Sá Rosa, e o Jornal do Comércio, dirigido pelo Padre Félix Zavattaro, se uniram em benefício desse evento. Segundo a professora Maria da Glória, o festival contribuiu para a fama de nomes até hoje importantes no cenário cultural artístico da região. “Esse festival, o primeiro de uma série, revelou nomes que se destacaram posteriormente no cenário artístico-musical do Estado, como Geraldo Espíndola, Paulo Simões, Rubens de Aquino, José Boaventura, Celito Espíndola, Paulo Simões, Grupo Acaba, Tetê Espíndola, Carlos Colman, Lenilde e Lenice Ramos, entre outros”, informa. Ao longo dos eventos, as manifestações artísticas da música se apresentaram com toda a sua diversidade, com a presença de canções tropicalistas, marcha-rancho, samba, sertanejo entre outras. Segundo Maria da Gloria, alguns artistas levaram ao palco uma síntese rural urbana, além de construções temáticas parnasianas e românticas. Também não faltaram músicas de protestos. O festival da TV Morena promovido logo após a divisão tinha o inconveniente de primar pelo interesse lucrativo, escolhendo como local de acontecimentos o ginásio da UFMS. Ademais, segundo os autores de Festivais de Música em Mato Grosso do Sul, havia também o financiamento do governo que induziu os jurados a valorizar especialmente as manifestações com temáticas regionais. “Kananciuê, do Grupo Acaba, era a música que mais claramente empunhava essa bandeira e, não por acaso, foi premiada com o primeiro lugar. De autoria de Moacir Lacerda e João Luiz Bittencourt, sua letra dicionariza diversos vocábulos tupis-guaranis, tornando-se de difícil compreensão para não-iniciados, o que explica sua pouca penetração popular”, analisam. O livro também traz diversas menções às interferências da censura nas canções dos participantes. “Mas o fato mais significativo, no tocante às letras apresentadas neste festival, foi a canalização da maioria dos autores para os temas românticos, como resultado da atuação da censura no período imediatamente posterior à edição do AI-5. Esse esvaziamento do festival, como um dos raros espaços abertos ao debate de novas ideias, causa naturalmente a extinção deste ciclo, marcado pela participação ativa da comunidade”. As músicas, como linguagem das artes sul-mato-grossenses, não seriam as únicas que passariam por essa experiência. — “Na carência de um pensamento que refletia nossas contradições e conflitos, a música e o teatro foram nossas úniDo

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Belo Sul Mato Grosso cas formas de expressão artística que sintetizaram isso no seu conjunto. ” —, sintetiza a professora Maria da Glória de Sá Rosa durante a entrevista concedida a Cândido da Fonseca para o livro Festivais de Música em Mato Grosso do Sul.

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“Lá tinha revolução, enfrentei forte bataia”

Capítulo Quarto:

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ma das expressões mais antigas do espírito lúdico da humanidade, o surgimento do teatro remonta aos ritos da pré-história. Contudo, é no desenvolvimento das outras linguagens artísticas que o teatro atinge sua plenitude, participando dos movimentos que se sucedem ao longo da História da Arte até nossos dias. Assim, é observável que em todas as épocas e em todos os povos sobrevive o desejo de desempenhar temporariamente o papel de outrem, vestir-se e falar à maneira de um personagem que, afora do rito cênico, pouco ou nada tem a ver com aquele que o encarna. Dentro do rito dramático, esse personagem pode ser qualquer criatura, inclusive um ditador perante o rebelde ou. Deveras. Alguém. Alguém conhecido que se deseja ridicularizar: e esta é uma das raízes dos jogos carnavalescos e da comédia, sem que se exclua, também para esta, uma origem litúrgica. Porém, há entre o teatro e a literatura uma relação de dependência. Isso porque, com exceção de certas representações mudas — a pantomima, os títeres — ou improvisadas, como ocorre na Commedia Dell’Arte, o teatro não é uma arte totalmente independente: como base, ele precisa de textos literários, a literatura dramática que irá formar o seu gênero entre a comédia, a tragédia, o épico. Assim, o teatro faz parte da literatura como um dos seus mais importantes gêneros. Essa literatura, entretanto, só se realizará plenamente no palco junto às outras linguagens artísticas, especialmente o canto que junto à literatura — texto sonorizado, verso falado —, formam a unidade básica da dramaturgia. Não obstante, essas duas linguagens não dispensam a pintura, a arquitetura etc. Dessa forma, o teatro chegou aos nossos tempos como a sexta arte.

Teatro no Brasil No Brasil, o teatro surgiu como instrumento dos jesuítas para catequizar os indígenas, sendo lembrados por esse exDo

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Belo Sul Mato Grosso pediente os padres Manuel da Nobrega e José de Anchieta que adaptaram os autos medievais à realidade do Novo Mundo. Entretanto, somente na segunda metade do século XVIII apareceria, em muitas cidades, um teatro regular, funcionando nas chamadas casas da ópera. A construção de edifícios próprios atesta o progresso da atividade cênica. Dessa época, remonta a narrativa Crônicas do Cuiabá, de José Arouche de Toledo Rendon, a cujo manuscrito está acrescentada pelo prefaciador A. de Toledo Piza à descrição de festas celebradas em 1790, com grande brilho na parte teatral. Segundo a atriz, pedagoga e mestra em educação pela UFMS, Amirtes Menezes de Carvalho e Silva, autora de Teatro Num Fazer Pedagógico, lançado em 2006, pela editora Alvorada, a institucionalização do teatro no Brasil ocorreu em meados do século XIX: “Quando o romantismo teve seu início através das comédias de costumes de Martins Pena juntamente com outros nomes como João Caetano (ator e empresário), Arthur de Azevedo (dramaturgo) e Machado de Assis (escritor) ”. Deveras, a independência proclamada em 1822 abriria caminho para que eclodisse o Romantismo. O poeta Gonçalves de Magalhães seria, então, o iniciador da nova escola e o responsável por introduzir o Romantismo no palco do Teatro Constitucional Fluminense do Rio, a peça Antônio José ou O Poeta e a Inquisição em 13 de março de 1838. O assunto é a vida do dramaturgo Antônio José, queimado em auto-de-fé pela Inquisição, em Lisboa, por suposta prática de judaísmo. O teor melodramático da figura de frei Gil, o inquisidor que denuncia o poeta, na esperança de tomar-lhe a amada Mariana não desequilibra totalmente as tendências mais neoclássicas do que românticas de Magalhães. Mariane tem uma morte súbita quando os familiares do Santo Ofício prendem Antônio José. Essa morte é essencial para que o frei compreenda seus pecados e se arrependa, voltando ao seio da igreja. Entretanto, o gênero de comédia de costumes brasileiro, cada vez mais adaptado à vida pequeno burguesa da sociedade que se formava no país, levaria muito tempo para ser superado pelo modernismo dramático. Muito embora diversos dramaturgos tenham empreendido esforços para trazer o teatro à Semana de Arte Moderna de 1922, entre os quais se destaca o escritor, poeta e dramaturgo Oswald de Andrade, com O Rei Da Vela, foi somente após as transformações de cunho mais teórico e reflexivo iniciado nos anos 1930, com o surgimento do Teatro do Estudante do Brasil, que se abriria caminho para um novo teatro nacional. Essa busca contou também com a colaboração de imigrantes que vieram a partir da Segunda Guerra. Assim, precisamente em 1943, o grupo Os Comediantes, sob a direção do dramaturgo polonês Zbigniew Marian Ziembińsky, levou aos palcos

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS cariocas, a peça que, reunindo elementos do impressionismo, do expressionismo e do realismo, seria o marco da entrada do teatro no modernismo brasileiro: Vestido de Noiva, do... Claro. Batata! O dramaturgo e jornalista, Nelson Rodrigues. Outro período marcante do teatro brasileiro foi o surgimento do Teatro de Arena no final dos anos 1950, que atendeu as críticas dos jovens estudantes da época com reivindicações de um teatro nacional como instrumento político. Essa militância que irá se espalhar por todo o país com obras como A Moratória de Jorge Andrade, O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, O Pagador de Promessas de Dias Gomes, Eles Não Usam Blacktie, de Gianfrancesco Guarnieri, entre outros, encontrará nos anos que se sucederam ao golpe de 1964, sobretudo após a criação do Ato Institucional nº 5 sua relevância histórica, conforme aponta Amirtes Carvalho. “Os trabalhos dos grupos Arena, Oficina e Opinião foram caracterizados pela resistência ao golpe militar”, observa a pedagoga.

Teatro de Mato Grosso do Sul Com várias experiências e pesquisa sobre o teatro em Dourados e região, o ator, produtor, mestre em artes cênicas pela UNIRIO e doutorando em Artes Cênicas pela USP, Fabrício Moser apresenta em sua pesquisa A Trajetória Conceitual Do Teatro Sul-Mato-Grossense: Considerações Sobre Suas Origens, Apontamentos Para Novas Narrativas Históricas, uma série de fatos documentais que desvelam a presença do teatro nas primeiras cidades do Estado, sua estrutura e desenvolvimento. Ao conceder entrevista para esse livro, Fabrício revela que o Teatro aparece na região muito mais cedo do que vem se documentando até então, no atual Mato Grosso do Sul: — Conforme demonstram os registros históricos, o teatro começa a fazer parte do cotidiano das cidades de Mato Grosso do Sul muito antes da criação do Estado, pelo menos 100 anos antes da divisão do antigo Mato Grosso. Há indícios de que muito antes disso, por volta de 1729, pode ter havido representações teatrais em Camapuã, por ocasião da passagem de uma comitiva rumo a Cuiabá, onde apresentou comedias nesse ano, esse é o primeiro registro do teatro em Mato Grosso. Conforme a pedagoga e atriz Amirtes Carvalho, o desenvolvimento de Corumbá e a chegada da Companhia Noroeste do Brasil foram as razões que permitiram a presença do teatro des-

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Belo Sul Mato Grosso de o século XIX com grupos vindos de Buenos Aires e visitando, além de Corumbá, cidades como Nioaque, Miranda e Aquidauana. “Em 1914, com a inauguração da Companhia Noroeste do Brasil, os grupos teatrais de São Paulo e Rio de Janeiro passaram a se apresentar em Campo Grande, Aquidauana e Corumbá com maior frequência”, afirma Amirtes Carvalho. — Na segunda metade do século XIX surgem as primeiras instituições ligadas ao teatro na região que hoje configura Mato Grosso do Sul. Eram associações e empresas dramáticas que muitas vezes administravam espaços como teatros e casas de espetáculos. Quando o Rio Paraguai virou uma rota internacional de circulação de pessoas, Corumbá e Ladário, junto a Cuiabá e Cáceres, se tornaram praças atraentes para inúmeras companhias artísticas, circenses e teatrais nacionais e estrangeiras, um movimento que se expandiu no início do século XX para cidades como Miranda, Aquidauana, Campo Grande, Três Lagoas, Ponta Porã, especialmente por conta da chegada das ferrovias ao antigo Mato Grosso. —, conta Fabrício. Para o pesquisador, o conhecimento da história do teatro no antigo Mato Grosso é importante para compreender a arte e a cultura local: — É fundamental conhecer o lugar da história do teatro no antigo Mato Grosso no curso da história do teatro em Mato Grosso do Sul, pelo menos, desde o século XIX, pois sua trajetória não remonta à década anterior à criação do Estado e aos rumos dessa atividade em Campo Grande, que se tornou nesse período a capital. Ela é muito mais antiga e complexa, como demonstram os documentos, e esse ciclo da história do teatro em Mato Grosso do Sul precisa deixar de ser lido de maneira localizada e passar a ser entendido em rede, de modo a reconhecer nesse contexto o papel das outras cidades do Sul de Mato Grosso, como algumas aqui mencionadas anteriormente, locais onde surgiram edifícios e instituições teatrais e por onde circularam inúmeras companhias artísticas nacionais e estrangeiras. — Como eram e como atuavam os grupos de teatro no passado do atual Mato Grosso do Sul? —, pergunto a Fabrício Moser. — Eram e atuaram de muitas formas, o que torna problemático tratar do assunto em poucas linhas. De maneira geral, os grupos de teatro de Mato Grosso do Sul, antes chamados associações e sociedades, não fugiram dos modelos teatrais nacionais e globais de produção nos séculos XIX e XX. Esse é um dos meus objetos de estudo no Doutorado, entender como surgiram

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS e atuaram no Oeste do Brasil, e nisso em Mato Grosso do Sul, essas instituições teatrais do período: teatros, cineteatros, circo-teatros, associações, companhias, sociedades dramáticas e grupos de teatro. Entretanto, segundo a pedagoga e atriz Amirtes Carvalho, há diferenças entre o desenvolvimento estético do teatro nas cidades de Mato Grosso do Sul com relação ao Rio de Janeiro, São Paulo e outros centros urbanos. “A inserção da atividade teatral numa sociedade agropecuária não foi de forma sistemática. O seu movimento foi composto de lances, momentos dramatúrgicos, sob a responsabilidade de algumas pessoas. Mas como em outros Estados, o teatro, apesar dos percalços, conseguiu mostrar ao povo, uma maneira de ver e entender as coisas”. Segundo Amirtes Carvalho, nas décadas de 1940, 1950 e 1960, o Estado recebeu apenas duas apresentações de destaque no país, sendo as companhias de Mário Salaberry, com a peça O Burro, e a de Procópio Ferreira, com o espetáculo Deus Lhe Pague, ambas do dramaturgo Juracy Camargo, que realizaram apresentações em Campo Grande e Aquidauana no ano de 1944. Os lugares de apresentações eram improvisados em colégios, lonas de circos e cines. Apesar disso, a futura capital do Estado desmembrado da porção Sul do antigo Mato Grosso tornou-se receptiva a sediar festivais de música, dança e teatro neste mesmo período, conforme relata Amirtes: “ Nos anos 1940, jovens campo-grandenses do Clube dos Cincos, entre eles Gabriel Spipe Calarge e os irmãos Abrão e Rahe, encenaram algumas peças com a participação de Nelly Hugner Dal Farra, Hélida França, Zuleica Scaff, Aldo Derzi e Júlio Silvo, cujo conteúdo era de comédias e esquetes, visando a apenas o entretenimento e a diversão”. Os grupos, especialmente as grandes companhias, só encontrariam um espaço mais adequado a partir da inauguração do Teatro Glauce Rocha na UFMS no ano de 1971 e do Teatro Dom Bosco das, então, Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso, FUCMT, em 1974. “Devido a sua localização central permitiu que o público assistisse às peças como Um Grito Parado no Ar, de Gianfrancesco Guarnieri, e Mural Mulher, de João das Neves”. Outro fato narrado em Teatro Num Fazer Pedagógico é sobre a influência das irmãs e dos padres salesianos que se utilizavam de peças sobre a vida cotidiana — o teatro de costumes — com o objetivo de cativar os alunos na transmissão do conhecimento. Naquele período, os espetáculos eram um grande evento local. “Devido aos escassos meios de comunicação, Do

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Belo Sul Mato Grosso as apresentações de uma peça eram, nesta época, um grande acontecimento social que atraía a elite aos salões dos colégios”, explica Amirtes. A partir da inauguração da Universidade de Mato Grosso, em 1962, o teatro local sofreu uma mudança, pois a institucionalização de cursos superiores em Campo Grande permitiu a criação do Teatro Universitário Campo-grandense, o TUC. Vindo do Rio de Janeiro, o ator Sérgio Cardoso passou a empregar o método do teatro de Arena chegando a montar Arena Contra Zumbi, de Gianfrancesco Guarnieri e Edu Lobo. Esse grupo ensaiava até altas horas da noite e contava com o apoio da prefeitura, do Estado e comércio revelando seu alto prestígio na sociedade da época. Entretanto, o TUC encerrou suas atividades em 1970 com a encenação de Diadorim Meu Sertão, adaptação do livro de Guimarães Rosa, Grandes Sertão Veredas, feita por alunos do 3º ano de Letras, da Faculdade Dom Aquino. Em 1964, entretanto, o país se viu presa de um golpe que não deixou de se fazer presente no Sul de Mato Grosso. Durante a disciplina Jornalismo de Revista, com a implementação da Revista Laboratório Ponto Livre, no segundo semestre de 2018, fui incumbido de produzir uma reportagem sobre o assunto. Os relatos e os documentos, entretanto, eram demasiados para ocupar duas páginas de uma revista. Recordo do professor Felipe Quintino — como se adivinhasse minhas intenções — dizer que eu poderia retomá-la durante o TCC. De fato, sabia que ao abordar a constituição das artes sul-mato-grossense, acabaria por esbarrar, novamente, no contexto da censura implementada durante o regime militar.

Contesto Social Histórico no Regime Ditatorial “Olha, o senhor me dá licença de acreditar na natureza humana? ” Com esse questionamento, a atriz sul-mato-grossense Glauce Rocha se dirigiu ao coronel Meneses Cortes, responsável pela proibição do filme Rio, 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, no qual ela participava. A corajosa declaração abre caminhos para as implicações de suspensão dos direitos essenciais à existência durante a ditadura militar. Em primeiro de abril de 1964, o Brasil entrou num período histórico controverso, documentado com narrações de privações de liberdade e expressão, torturas e mortes praticadas pelo aparato coercitivo. Recordo-me que, durante o período de estudos em escolas estaduais, o tema da ditadura era sempre abordado no con-

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS texto de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, criando a sensação de que o então Sul de Mato Grosso nada tinha em relação ao acontecimento. Para conhecer esse cenário que repercutiu na política, na história e na formação cultural e artística da região, realizei pesquisas e entrevistas com investigadores e testemunhas daqueles dias. Não obstante, ao contrário do que se presume, o Estado não foi um campo livre das ações implementadas durante o regime ditatorial que ocorreu no país. Foi com minha inquietação que iniciei a entrevista para este livro com a doutora em História pela UFGD e professora no Curso de História da UEMS, Susana Arakaki: — Quando ouvimos falar sobre o Regime Militar, há uma sensação de que se trata de uma ocorrência em terras distantes, especialmente no sudeste brasileiro, a que a senhora atribui essa experiência, especialmente nos sul-mato-grossense? — As pesquisas sobre ditadura militar por muito tempo ficaram restritas aos grandes centros: Rio, São Paulo, Rio Grande do Sul... a abertura dos Programas de Pós-Graduação em outras regiões do país possibilitou a pesquisa em outros centros. Assim ocorreu com a região Centro Oeste e, no caso, com o Estado de Mato Grosso do Sul. De entremeio a entrevista com a atriz, escritora e dramaturga Cristina Mato Grosso, recordo da famosa frase da artista sul-mato-grossense diante da censura prévia do longa no qual participou: — Em minhas pesquisas encontrei uma matéria sobre a censura de Rio, 40 Graus, de Nelson Pereira Santos, caso em que ficou famosa uma frase da atriz Glauce Roche dirigida ao coronel Meneses Cortes, responsável pela proibição. — Certa vez, quando Glauce fazia Antígona, sob direção de Antônio Abujamra, dado o efeito da resistência política da personagem, a Censura Federal queria interditar e prender esse tal de Sófocles —, recorda Cristina Mato Grosso, provocando risos. — Incrível! Chegou a conhecer a Glauce, Cristina? — Não. Ela faleceu exatamente quando estreamos o Teatro da UFMS, em outubro de 1971, dia 12. Atual Glauce Roche. — Pena. —, declarei, e... Irônico. Duas ironias: a morte da atriz e... prender Sófocles? Meditei. Tão irônico quanto a ideia de prender um autor da era clássica com base em uma obra de expressão artística é o fato de que isso ocorria pouco mais de 16 anos da celebração pelas Nações Unidas da Declaração dos Direitos Humanos. O Brasil foi um dos assinantes, mas os compromissos ficaram esquecidos no meio Do

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Belo Sul Mato Grosso de uma histeria coletiva sobre o avanço comunista que, pouco a pouco, tornou-se questão de guerra dos militares brasileiros durante o início do governo de João Goulart, o Jango. Isso porque o presidente recém-empossado demonstrava intenções de empreender reformas que atendessem às demandas de trabalhadores e famílias de produtores sem moradia pela reforma agrária, o que causou suspeitas de uma governança comunista, que desagradava, principalmente, aos grandes proprietários. Assim, em resposta, ocorreram, em vários Estados, as manifestações denominadas de Marcha Pela família com Deus pela Liberdade, que contaram com apoio de uma parcela dos educadores. — Queria saber se recorda de ter sofrido repressão por aqui. —, questiono Cristina Mato Grosso. — Sim. Desde o golpe de 1964. Estudava no colégio Estadual, hoje Maria Constança. Fui obrigada a participar da passeata Família Tradição e Propriedade. Fomos pressionados pela diretora. —, respondeu-me. Deposto Jango, e com a ascensão do regime militar, observou-se uma gradativa suspensão de direitos, principalmente na esfera política, primeiro com a supressão do voto direto à presidente, depois com a redução de partidos em apenas dois, o ARENA e o MDB. Em Ditadura militar em Mato Grosso do Sul: história e historiografia, a doutora em História pela UFGD, Susana Arakaki, que vem desenvolvendo pesquisas sobre o regime, explica que no legislativo do Sul de Mato Grosso a perseguição foi quase que imediata com especial foco aos petebistas, sendo requerido a cassação de mandatos sob alegação de simpatia com o comunismo por parte das vítimas. — Quem eram as pessoas da região que agiram em favor do regime militar? —, interrogo a pesquisadora. — Políticos e também pessoas da sociedade ligadas aos partidos conservadores, em geral a UDN, mas também de outros partidos. —, informou Susana Arakaki. Para o cineasta e dramaturgo Mhiguel Horta, o conservadorismo já estava presente no Estado bem antes do golpe: — Nós temos uma sociedade naturalmente conservadora, cheia de quartéis. Nós temos muitos quartéis em Campo Grande, muito funcionário público, então é um povo que vinha de uma tradição de ordem, tudo certinho e tal, e tudo mais. Obviamente que tinha os jovens que eram rebeldes que faziam uma e outra coisa. O que você notava era que o comportamento era muito mais fechado, as pessoas eram muito menos expansivas. E tem muitas outras coisas sobre a questão comportamental, aqui no Estado, e na maneira como o Estado atuava na 90

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS relação com a população. Segundo a pesquisa de Susana Arakaki, as ações ostensivas dos agentes do regime contaram com a participação de civis que buscaram se impor ao poder constituído nos órgãos legislativos e jurídicos, chegando a ameaçar governantes locais e impor a caça a seus inimigos tomados como comunistas. Ao lado desses civis, houveram também agentes das forças armadas e do poder público que apoiaram o golpe de 1964 e iniciaram uma caçada contra os supostos comunistas. Conforme Arakaki, dentro do Movimento Udenista, destacou-se o General Meira Mattos que passou como “herói” no antigo Mato Grosso por sua participação no golpe. — Porque o regime contou com tanto apoio da sociedade civil local? —, questiono a professora. — Como já disse, o apoio vinha das camadas populares já devidamente insufladas e com medo do perigo comunista. —, respondeu-me Susana Arakaki. Segundo a pesquisadora, essas vítimas das persecuções sistemáticas desses golpistas eram, em geral, pessoas ligadas ou simpáticas ao PTB, ou colonos humildes da Colônia Agrícola Nacional de Dourados, órgão implementado como modelo do projeto Marcha para o Oeste de Getúlio Vargas e visto pela população como sinal de sua boa vontade em realizar as reformas agrárias. O interesse pelos debates de cunho socialista era visto como sinais de uma filiação comunista e fez do município um dos lugares mais atacados com a maioria dos colonos tomados como alvos de perseguição. Até mesmo os vizinhos costumavam denunciar os que de alguma forma revelassem inclinação para o debate social ou estivessem ligados à Colônia. “Petebistas eram chamados de comunistas”, afirma a pesquisadora. — Quais os aparatos ideológicos e coercitivos utilizados pelo regime na região do atual Mato Grosso do Sul? —, questiono Susana Arakaki, novamente. — O controle ideológico vinha sendo feito há muito tempo na região. Havia toda uma estrutura de controle que atingia todo país. —, respondeu-me. O AI-5 permitiu que as forças policiais prendessem qualquer pessoa sem a necessidade de mandado judicial e suspendia a garantia de defesa e o princípio de inocência pelo acesso à um advogado e habeas corpus, resultando em abusos diversos por parte das autoridades. De acordo com a pesquisadora Susana Arakaki, era comum as abordagens contra grupos, pois havia proibição de reuniões. O cineasta Mhiguel Horta conta que já foi enquadrado no centro da capital: — As pessoas achavam normal, mas eu achava o procediDo

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Belo Sul Mato Grosso mento, por exemplo, da polícia, dos policiais um pouco demais. Não era uma coisa muito calma, muito tranquila. Você ia andando pela rua, ou às vezes você estava na praça Ary Coelho, sentado, ou estava em qualquer outro lugar, eu tinha uns dezessete, dezoito anos. Às vezes a gente se reunia em praças para conversar. Eu e meus amigos, e tal. Aí a gente sentava para conversar, para bater papo, cara, era direto. Vinha a polícia “que vocês estão fazendo aí? ”; “não pode ficar aí”; “tem que ir embora e isso e aquilo e pá pá pá! ”; tá? Aqui era bem complicado. — Poderia se dizer que a presença de agentes do Regime Militar no Sul do antigo Mato Grosso uno criou um estado de pânico e cerceamento de expressões no âmbito público? —, pergunto à professora Susana Arakaki. — Não houve estado de pânico, mas cerceamento a órgãos de imprensa que se opunham à ditadura, houve, inclusive, empastelamento de um jornal. Uma exceção porque a maioria dos jornais apoiavam os militares. O povo sul-mato-grossense era muito conservador e isso pode ser comprovado através das manifestações de apoio publicadas no Diário Oficial do Estado. Manifestações de diversas cidades da região sul do Estado atestam o apoio ao novo regime. Havia no sul do Estado um grupo denominado Ação Democrática Mato-Grossense, ADEMAT, que policiava tudo. Esse grupo existiu somente aqui na porção sul. —, explicou-me Susana Arakaki. Entretanto, conforme o artigo da pesquisadora, nas detenções eram cometidos os mais diversos crimes contra o Estado de Direito e os Direitos Humanos, sobretudo por meio de ameaças a vida, vias de fato, acusações caluniosas e emprego de violência psicológica. No caso dos colonos detidos, as vítimas eram duplamente violadas, em primeiro lugar, pelas ações dos agentes golpistas, em segundo, pelo estigma que eram obrigadas a carregar após a prisão perante a sociedade tomada pelo discurso da ameaça comunista que passava a discriminar essas pessoas. Assim, os presos eram duplamente vítimas, uma vez que além das humilhações e ameaças e torturas psíquicas que sofriam na detenção, também acabavam discriminados e taxados de comunistas com conotação pejorativa. A sistematização dessas prisões arbitrárias e persecutórias resultou na instalação de um pavor coletivo na Colônia Agrícola Nacional de Dourados. “Após serem liberados, os colonos passaram a ser discriminados em seus locais de origem. Eram apontados como comunistas por pessoas de outros partidos políticos. Uma espécie de temor atingiu toda colônia, confundindo petebismo com comunismo”, relata a professora. Com a criação dos órgãos de vigilância e repressão, como os pares DOI-CODI, Destacamento de Informação – Centro Operações de Defesa Interna, as ações truculentas eram legitimadas 92

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS pelos atos institucionais. No artigo Direitos Humanos e a Ditadura em Mato Grosso do Sul, o jurista Joatan Loureiro da Silva que foi presidente da Comissão Permanente de Direitos Humanos Ricardo Brandão da Ordem dos Advogados do Brasil de Mato Grosso do Sul, OAB/MS, em 2009, recapitula as ações arbitrárias da Ditadura contra o Estado de Direito. Segundo Joatan, o regime ditatorial estruturou uma série de aparatos coercitivos e de controle que lhe permitiram uma arbitrariedade legalizada contra o Estado de Direito, salvaguardando suas ações contra pessoas consideradas subversivas por se opor a ela. O cineasta Mhiguel Horta recorda de outra ocasião em que foi vítima do regime no centro de Campo Grande: — Eu estava com um amigo meu, quando ali na Afonso Pena, mais ou menos na frente do Banco do Brasil, tinha uns 16 anos, ele também, era umas dez da noite e parou o carro da polícia, chegaram “o que vocês estão fazendo? “; “não, nada”; “não vocês não estão fazendo porra nenhuma, dá o documento, não sei o quê. Vocês são de onde? Vocês são filhos de quem? ” E fizeram um monte de perguntas. O detalhe da abordagem é que ela nunca foi educada, ela nunca foi numa boa. A gente não estava armado, a gente não era bandido, entendeu? A abordagem era muito agressiva, cara, sabe, muito agressivo mesmo. Aqui eu levei pancada, porrada também. Porque eu fui reclamar, levei uma porrada do policial. Eles pegaram a gente, colocaram no camburão porque estávamos sem fazer nada, andando; não podia! Entramos no camburão, chegou lá na delegacia, tinha um corredor comprido lá, cheio de sela, eu fui andando assim. Eu lembro que eu virei para trás, assim, o cara me deu um soco na minha cara. Simplesmente o cara me deu uma porrada na minha cara, sabe, que doeu para cacete, sabe? Uma das coisas mais horríveis! Fiquei a noite inteira naquela cela imunda, nojenta, com um monte de gay, de travesti, não foi legal. De acordo com Mhiguel Horta, a intolerância contra LGBTs, refletia no tratamento truculento e no grande número de gays e travestis presos apenas por ocupar espaços públicos, situações dramáticas que vivenciou em Campo e, com mais violência, em São Paulo. — Era muito claro pela polícia, entende. Você ser LGT nessa época, era um crime! Era uma coisa horrível. Então tinham surras, sim. Tinham empurrões. Eu fui machucado, porque estava num lugar frequentado por gay. Por exemplo, teve um gay, que era chamado de Bonitinha. Ele era um rapaz de 1,80 metros, era um cara estudioso, lia para caralho, usava óculos fundo de garrafa. Era apelidado de Bonitinha naquele pedaço. Todo muno conhecia ele como Bonitinha. Que que fizeram com ele? Levaram ele para o banheiro. Tinha homofobia para caralho naquela época. Então você ser gay, cara, era um risco. Aliás, se Do

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Belo Sul Mato Grosso você tivesse que escolher um grupo, você tinha que escolher um grupo homofóbico para você não ser morto ou não ser agredido. — Fez uma pausa com um suspiro profundo e prosseguiu: — Aí o que eles fizeram com esse cara? Eles levaram para um banheiro, estupraram o cara, enfiaram uma garrafa no ânus dele e quebraram a garrafa, meu caro. Só isso. Realmente, Giovanni, eram coisa muito foda. O cineasta também relatou a metodologia de tratamento de suspeitos dos policias do regime em Campo Grande: — Aqui eu me lembro que estava com a gente, na sela um rapaz. Ele estava todo machucado, ele estava com a boca inchada, sangrando e tal. Eu não sei. Suspeitaram dele em alguma coisa, eu não sei se era roubo ou alguma coisa assim, mas o cara estava totalmente espancado. Por quê? Qual que era o lance? Aqui quando a polícia suspeitava de alguma coisa, eles não iam investigar. Eles batiam na pessoa até a pessoa falar. Às vezes as pessoas falavam porque já não aguentavam mais, né? Outra coisa que eu observava aqui, em relação ao jeito deles abordarem é que. O que você nota num governo militar é o seguinte, é que você é impotente, porque eles têm muitos militares e eles tem os aliados, né, e você é um idiota, você é uma coisa qualquer. Qualquer coisa você leva um tiro e tal. Então ouvia-se muito falar que eles tinham técnicas de tortura naquela época. Isso era um papo que rodava entre a galera, a moçada jovem e tal, que eles tinham técnicas para bater na pessoa e não aparecer o hematoma, entendeu, esses detalhes, essas lendas, essas coisas aí que falavam deles. Mas eles arrancavam a verdade da pessoa na porrada, não tinha investigação, não tinha nada não, era bem outro papo, era outra conversa, entende? E, assim, o cara estava armado e ponto, sabe, aliás a abordagem da polícia em Campo Grande eu sempre reclamei, sempre achei ela esquisita, poucos policiais abordam você com educação, numa boa, mas assim, de modo geral, a abordagem em lugar estranho, suspeito, à noite é sempre muito agressiva. Eu sei. Eu entendo o lado deles também, mas, assim, dois adolescentes, bem arrumados, filhos de família normal. Então eu achava muito esquisito a coisa toda. E aí tinha esse detalhe, mesmo da vadiagem. Medo. É isso, as pessoas sentem medo. Acho que governo autoritário trata você igual a soldado, igual criança, entende, porque no exército o soldado ele tem que respeitar a hierarquia. Ele é obrigado a atender o cara que é superior a ele, fazer exatamente o que o cara fala e não discutir, e não se questiona. O cara fala assim, mata aquele cara e o cara tem que matar, então, assim, o governo autoritário trata o povo como um ignorante, idiota, retardado, como um soldado, entende, e tal hora tem que dormir, tal hora tem que acordar etc. , eu sei porque meu pai era militar e tinha horário para dormir, horário para acordar, eu com treze para quatorze anos aprendi a atirar com espingarda, aprendi a atirar com uma

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS trinta e oito, com uma vinte e dois, né, e tal, e era assim, e tinha arma em casa, você convive e tal. O jeito de ser do militar é muito diferente do jeito mais humanista, do jeito mais artístico. É bem diferente.

Os Festivais e o desenvolvimento dos grupos. Inspiradas pelos programas Televisivos do Rio e de São Paulo, as décadas de 1960 e 1970 também foram marcadas pelos festivais de teatro e música. Segundo Amirtes Carvalho, os alunos do Colégio de Aplicação, da Faculdade Dom Aquino, iniciaram um movimento de festivais de teatro que eram organizados ao fim de cada ano letivo. Esses festivais compreenderam o período entre 1969 a 1972 e se destacaram por incutir o gosto pelo teatro e a criação de dramaturgias com temas locais. “Alguns trabalhos premiados foram: Oxil, de Cândido Alberto da Fonseca; Autodissecação e Intravagostil; de Américo Calheiros; A Palavra, de Afonso Romano, entre outras”, elenca a pedagoga. Conforme Amirtes Carvalho, os festivais de teatro promovidos pelo Colégio de Aplicação, da Faculdade Dom Aquino contribuíram para revelar diversos artistas da região como Hélio de Lima, Nilcéia Paco, Cristina Mato Grosso, Américo Calheiros e outros. Ademais, deu ensejo à criação de grupos importantes para a história dramática do Estado, como o Grupo Teatral Amador Campo-grandense, GUTAC, criado pela iniciativa de Cristina e Américo com o objetivo de formar atores e usar o teatro como instrumento de educação, chegando a participar de festivais nacionais. “Com a peça Foi No Belo Sul De Mato Grosso, texto de Cristina, foi que o grupo participou do Mambembão e de outros festivais nacionais, mostrando o trabalho teatral do Estado”, informa Amirtes em seu livro. Segundo a tese Militância e linguagem na rota da educação, Experiências de três grupos teatrais: TUOV, Ventoforte (SP) e GUTAC (MS), a doutora em Teatro pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, ECA-SP, Maria Cristina Moreira de Oliveira — a Cristina Mato Grosso —, o contesto de criação do GUTAC não se restringe ao festival universitário e a a educação escolar, mas, também é ligado ao Movimento Amador dos anos 1970, e a militâncias políticas de esquerda. Cristina também destaca que o Mambembão estava relacionado ao movimento modernista brasileiro que buscava uma identidade nacional. “Daí a existência, até os dias atuais, de alguns pontos de Do

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Belo Sul Mato Grosso liderança teatral engajada, assinalando a permanência de focos irradiadores. Um fenômeno banhado nas tintas da posição cultural do movimento modernista brasileiro, porque se caracterizou, sobretudo, pela vontade de imprimir a personalidade brasileira nas produções nacionais. Fato que vai refletir na personalidade do lendário projeto Mambembão do antigo Instituto Nacional de Artes Cênicas (INACEN), no esforço de superação do interregno, conforme já foi visto”. Em outro trabalho, Teatro Brasileiro Contemporâneo, Linguagem e Militância, publicado pela Fundação de Cultura do Estado, Cristina Mato Grosso dedica um capítulo ao GUTAC onde relata o trabalho do grupo junto à Secretaria de Educação e seu papel pedagógico. Conhecida como Dama do Teatro Sul-Mato-Grossense, Cristina não esconde a influência de Ventoforte e do Teatro Popular União e Olho Vivo, TUOV, movimento ligado a Elias Kruglianski, mais conhecido por Ilo Krugli. Filho de imigrantes poloneses que fugiram da Europa após a Primeira Guerra Mundial, Ilo Krugli foi ator, diretor de teatro, artista plástico, figurinista e escritor argentino-brasileiro reconhecido como uma das principais figuras do teatro para crianças no Brasil e que impressionou a dramaturga sul-mato-grossense pelas novidades apresentadas. “O grupo de Ilo Krugi, pelo impacto estético de História de lenços e Ventos, entrou na vida do GUTAC, que antes limitava-se praticamente a montagens teatrais, cuja concepção cênica seguia a sugestão dos textos de Maria Clara Machado. O encontro com um exercício teatral que trazia para dentro do espetáculo os quatro elementos foi uma novidade. Também nos surpreende a presença de objetos, panos, papel, metal e outros, que estabeleciam relações psicológicas e afetivas com o ator e o público e a construção de personagens, adereços e cenários, por vezes em processo interativo’, relata Cristina Mato Grosso. Assim, sob a coordenação de Glorinha Albuez, da Secretaria de Educação e Cultura do Estado de Mato Grosso, o grupo conseguiu patrocínio para a vinda de Ilo Krugli que ministrou um curso rápido em Campo Grande. Posteriormente o grupo de Cristina e Américo criou o Instituto de Educação e Cultura Conceição de Freitas, INECON, passando a ministrar cursos com o objetivo de alterar o comportamento e a habilitação profissional em várias áreas da arte. — É possível atribuir alguma característica específica ao teatro local? —, pergunto ao teatrólogo Fabrício Moser. — Os registros mostram que o teatro das cidades do anti-

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS go Mato Grosso esteve sintonizado com as correntes nacionais e globais do período, como a produção do Rio de Janeiro, São Paulo, Buenos Aires, Montevideo e Assunção, e com os movimentos de modernização de suas instituições, com a circulação artística transnacional e com as esferas públicas criadas nas cidades onde a atividade teatral se inseriu socialmente, em escala global, nos séculos XIX e XX. —, revela. Outro acontecimento de destaque para a História teatral do futuro Estado de Mato Grosso do Sul foi o surgimento do Teatro Universitário de Dourados, TUD, em 1974. Com apenas 4 anos de existência, por falta de apoio político e do comércio, o TUD conseguiu permanecer na História do Teatro sul-mato-grossense graças aos talentosos artistas, conforme relata Amirtes Carvalho: “com Wilson W. Biasoto, Telma V. Loro e Ariane F. Gonçalves. Suas montagens foram Piquenique no Front (1974), de Fernando Amaral; O juramento e o Capataz (1974), de Antônio Rodrigues de Oliveira; Reflexo (1975), de José Luiz Sanfelice e Os Vendedores (1976), de José Edward.” Também em Aquidauana, surgiram dois grupos de teatro a partir de 1976. Formado por profissionais liberais, o Bataclã utilizava a dublagem de músicas como linguagem estética e realiza diversas apresentações pelo interior do Estado durando até 1981 devido a dificuldades de conciliar a carreira artística com a profissional. Com maior longevidade, o Centro de Educação Rural de Aquidauana, CERA, criado sob a direção de Paulo Corrêa de Oliveira, com o intuito de integrar as atividades cênicas à vida social da cidade, testemunhou a divisão do Estado em 1977. — Qual a contribuição das cidades do interior do Estado no âmbito do Teatro? —, questiono o pesquisador e teatrólogo Fabrício Moser. — O contexto histórico da minha pesquisa no mestrado, o Sul do antigo Mato Grosso, hoje Mato Grosso do Sul, era formado por cidades do interior do Estado, inclusive Campo Grande era considerada desse modo, por que nesse período a capital era Cuiabá. Os registros históricos mostram que muitas cidades do antigo Mato Grosso, para além da Cuiabá, tiveram papel estratégico na construção dos rumos do teatro no Oeste do Brasil no período, algumas delas já mencionei anteriormente. Para falar em uma história do teatro no antigo Mato Grosso eu rompo com um modelo de escrita localizado na capital, Cuiabá, por que ele me dá uma visão muito parcial dos fatos ocorridos nesse imenso território de fronteira. Em busca de uma visão mais complexa e territorialmente abrangente dessa atividade, eu busco observar em rede, como uma cartografia teatral, a atuação das instituiDo

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Belo Sul Mato Grosso ções, o surgimento de rotas de circulação e das esferas públicas do teatro nas cidades do antigo Mato Grosso nos séculos XIX e XX, em busca de um panorama mais fiel e plural dos rumos da história do teatro no Oeste do Brasil. —, explicou-me.

A Censura Embora o teatro no Sul de Mato Grosso tenha se desenvolvido bastante a partir da década de 1940, é preciso acrescentar que a presença do regime militar teve uma interferência. — Em seus trabalhos, a senhora apresenta casos de perseguição e violação de direitos por agentes do Regime Militar no Estado. Há relatos de situações envolvendo artistas? —, pergunto a Susana Arakaki. — Em Dourados houve caso de interferência no grupo de teatro da UFMS, que era coordenado pelo professor Wilson Valentin Biasoto, um dos professores perseguidos pela ditadura. Ele foi demitido da UFMS durante a ditadura, mas foi reintegrado ao quadro docente posteriormente. O teatro era vigiado e submetia os textos aos censores, geralmente policiais. —, relata a professora. Segundo narra a pedagoga Amirtes Carvalho, por meio da Rede Municipal de Ensino, REME, a prefeitura de Campo Grande promoveu festivais de teatro com o objetivo de incentivar a criatividade dos alunos e desenvolver as relações entre a escola e a vida. Esse festival iniciado em 1974 foi bruscamente interrompido em 1978. “ Foram realizados quatro festivais que foram paralisados em 1978, quando, o então Secretário Municipal de Educação ao assistir à peça Vila Nhanhá: toda Vila tem uma História Para Contar, de Hélio de Lima, que fazia uma reflexão da relação autoritária entre professor/aluno, viu retratada a hierarquia de sua administração e ordenou que a peça fosse interrompida, encerrando o festival da REME, que nunca mais foi retomado”. Esse fato teria desmotivado os professores da futura capital, sendo principalmente traumático para Hélio de Lima que, na ocasião sofreu duras censuras pelo seu trabalho. “Isto foi um fato bastante contraditório vindo de uma autoridade que deveria estimular o teatro na escola, uma vez que esta poderia ter sido um meio eficaz e eficiente de refletir a realidade social e de formação de uma consciência cultural nos alunos”, opina Amirtes Carvalho. — Pior.... Muita censura.... Em pleno 1983 ainda sofríamos censura de espetáculo, Pedro Palito e o Monstro Devorador 98

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS (O personagem Sem-Terra) não podia usar cenário verde-amarelo. Minha primeira peça, Contramão, escrita em 1973, encenada em 1976, sofreu cortes tais como em Salve O Domingo E O Feriado Nacional!... E outros tantos.... Nada é grátis, de Américo Calheiros, totalmente proibida em 1976... —, recorda a dramaturga Cristina Mato Grosso. Em Teatro Brasileiro Contemporâneo: Linguagem e Militância, Cristina descreve outros episódios de truculência no contexto do regime militar que envolve a mídia e o sistema de ensino: “Duas ocasiões foram nitidamente marcadas por estas agressões. Uma foi durante a IV Mostra Sul-Mato-Grossense de Teatro Amador, realizada na cidade de Dourados, entre os dias 21 e 24 de julho de 1983. A agressão partiu de uma nota do jornal Correio do Estado, denunciando a reunião teatral, dizendo que, de arte e artistas, ali não havia nada, e que se tratava de pretexto para agitadores e subversivos ganharem espaço. Na verdade, eles presenciaram a reunião do GUTAC com a Pastoral da Terra, movimento da Igreja Progressista, membros do ‘Comitê dos Sem-Terra’ e elementos da organização do Movimento Amador, para discutirem sobre a estreia da peça teatral Pedro Palito e o Monstro Devorador, que seria seguida de debates, com a presença destes segmentos. O segundo momento foi durante a participação do mesmo espetáculo no cronograma de trabalho do ‘Movimento Popular pelas Eleições Diretas’, em apresentação dentro de uma escola municipal da capital, bairro Nova Lima. A diretora do estabelecimento pertencia ao último reduto dos grupos ligados ao regime militar e denunciou o grupo, num programa de TV de alta audiência popular, alegando apresentação de cenas imorais em contexto escolar. O programa, que até hoje vai ao ar, ‘O Povo na TV’, durante várias locuções denegriu a imagem do grupo, com calúnias de cunho moral, aconselhando as escolas a lhe fecharem os portões”. Transitando no eixo Mato Grosso-São Paulo, Mhiguel Horta, que já tinha conhecimento de casos em que atores eram censurados e até detidos no próprio teatro, recorda bem como os efeitos da vigilância ditatorial influenciava as produções do Estado: — Então, eu percebia que na época, apesar de ter um desejo nos grupos de teatro, participei de alguns grupos de teatro aqui, as pessoas queriam gritar, queriam falar e tal, mas, era uma coisa meio ingênua. Não tinha uma consciência política, um povo de esquerda militante, não tinha isso. Era uma coisa do adolescente ser meio rebelde e aproveitar o teatro para falar de coisas que vinham na cabeça dele. Eu participei de algumas peças teatrais, inclusive participei do VI Festival de Teatro, em Campo Grande, então havia assim, um comentário “ah, isso aí a gente não pode falar”. Isso aí tinha, entende? “Ai! Isso aí está demais! A gente tem que controlar”; esse tipo de coisa porque já Do

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Belo Sul Mato Grosso havia uma noção de que havia alguém que controlava tudo isso. Mais ou menos isso. O receio, entretanto, não impediu que houvessem dissidentes. Conforme relata Amirtes Carvalho em Teatro Num Fazer Pedagógico, o Teatro Universitário Campo-grandense, TUC, passou para a história da dramaturgia sul-mato-grossense pelas apresentações de peças marcantes que se opunham à situação política com humor e mensagens contra a opressão. “No período da ditadura militar, algumas peças do TUC só foram estreadas depois de passarem por uma minuciosa análise de censura. Dentre elas: Arena Contra Zumbi (1967), Liberdade-liberdade (1968) e Morte e Vida Severina (1969), nas quais, durante as apresentações, o representante da censura estava presente para garantir que nenhum ator fugisse do script, mesmo quando eram apresentadas no interior do Estado”. Nenhuma manifestação contra o regime era permitida, e toda forma de expressão deveria submeter-se ao crivo da censura, em Campo Grande, presente pela figura sem sobrenome da jornalista Jenise com quem Cristina Mato Grosso recorda-se de conversar algumas vezes: — Eu soube que tinha uma jornalista da censura por aqui. Você a conheceu? —, questionei. — Jenise? — Sim. — Ela era a censora de espetáculos. — Então você chegou a dialogar com ela. — Bastante. — E como eram esses diálogos? — Difícil lembrar detalhes, mas sempre em torno de explicações... A peça Foi no Belo Sul de Mato Grosso, 1979, Vila Paraíso, Bom Dia, 1989, Pedro Palito em 1983 (estas já não eram mais herméticas, a linguagem já era diretamente crítico-social), então eles (ela – Jenise – nunca estava sozinha...) taxavam proibição de faixa etária, 18 anos, e isto era rigoroso. À porta do teatro sempre havia fiscalização... A gente tentava amenizar tudo, tipo dando uma de inocentes na apresentação para eles.... Mas, eles eram antenados. Lembro-me bem da peça do Guarnieri, quando veio aqui Um Grito Parado No Ar, com Othon Bastos, eles judiavam dos atores, tinham que apresentar o espetáculo inteiro para eles, horas antes de abrir só para o público, havia uma atriz grávida, Sueli, bem barriguda, passou mal... Nosso grupo era anfitrião deles e sofríamos juntos.... Em suma, a conversa era polarizada. A gente tentando enganar a censura e eles tentando interditar o que pudessem, desde que o conteúdo questionasse 100

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS qualquer problema social. — Você disse hermética em que sentido? — Eu disse hermético, porque éramos obrigados a elaborar metáforas muito sutis, escondidas, que chegavam a adotar simbolismo de difícil compreensão para quem não tinha o hábito de teatro... E mesmo assim eles caceteavam, desde que desconfiassem das “intenções de subtexto” como já disse: Salve O Domingo E O Feriado Nacional!, frase de uma personagem... No ato eles sacavam que a frase significava “salve o dia de nada fazer, da mente parada, da ausência de reflexão, o dia do vazio... Preenchido com partidas de futebol (Pra frente Brasil!)”, e por aí vai... Você devia ver o filme com este título, feito nos anos 1980... Pra Frente Brasil... Pesado, hein! —, recomendou a dramaturga. O professor, escritor, poeta e ativista cultural Américo Calheiros, complementa o relato de Cristina: — Cheguei em Campo Grande, no início da década de 1970, para cursar a faculdade de Filosofia Ciências e Letras na FUCMAT – Faculdades Unidas Católicas, atual UCDB. Dois anos depois, fundei, com outros parceiros, dentre os quais destaco Cristina Mato Grosso, o Grupo Teatral Amador Campo-Grandense. Foi na minha atuação nas artes que senti, mais de perto, a repressão institucional. Para montar uma peça teatral, primeiro era necessário enviar o texto para o responsável pela censura na polícia federal em Brasília. Depois, antes de estrear a peça, era preciso apresentá-la para o responsável, aqui em Campo Grande, que analisava os cortes no texto, se houvesse, e a dramatização em si, para conferir se essa atentava contra a segurança nacional. O cineasta Mhiguel Horta também falou de quando foi apresentado a Jenise com sua peça Metanoia: — Mas depois eu comecei a ter consciência política porque eu comecei a fazer teatro e a minha peça era bem rebelde. Minha peça falava em Hitler, minha peça falava em fascismo. Era meio inspirada no Geraldo Vandré que, as pessoas comentavam em São Paulo, como uma lenda urbana, que o Geraldo Vandré estava louco, que estava internado num hospício, que tinham dado um monte de comprimido para ele. Que ele não tinha mais consciência de nada. Então eu fiz essa minha peça baseada na vida de Geraldo Vandré, como se ele estivesse num manicômio, entende. Ele louco, falando um monte de coisas que vinham na cabeça e tal, e nessas é que tinham coisas positivas e também tinham muitas coisas negativas, um protesto contra tudo, contra o poder e essa coisa toda. Então a minha peça tinha cunho bastante político, entendeu, e sem querer, não era a minha intenção. Eu apenas, expressei aquilo que eu achava que não estava legal, entendeu, as injustiças sociais, a polícia batendo em todo munDo

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Belo Sul Mato Grosso do, as pessoas não podiam falar disso ou falar daquilo, tudo isso estava representado na minha peça, algumas coisas inconscientes e outras coisas bastante conscientes. Era mais ou menos isso o panorama. Fui ter contato, também com a malícia do poder e com essa coisa da repressão quando eu fui fazer Romeu e Julieta aqui em Campo Grande e a professora Sara que era da escola onde eu estudava, disse “não, você tem que apresentar a peça para a doutora Jenise, que é da censura federal, aí ela vai te liberar para você apresentar sua peça ou não”. Nós fomos. Apresentei Romeu e Julieta, ela não gostou da música, falou “tem que tirar essa música”, que era uma música francesa, meio sensual. Ela falou “ah, vocês não podem colocar essa música, não sei o que e tá-tá-tá”. Mesmo assim a gente apresentou a peça e tal, etecetera e tal. Porém, a minha outra peça (Metanoia) teve que passar pela censura que era essa inspirada no Geraldo Vandré. Nessa peça, sim, deu um pouco de B.O. por que ela chegou para mim e disse assim: “você tem que mudar o final da peça”. Eu falei “por quê? ” Porque a minha peça, o cara morria no final, entendeu, tipo assim, o sistema não deu conta dele, mataram ele, ele foi dopado. O cara morreu sozinho gritando, falando um monte de coisas. Para o professor, escritor, poeta e ativista cultural Américo Calheiros, a censura representou o fim de um sonho: — Tivemos, nesse período, vários cortes nos textos enviados e o ápice aconteceu com a proibição integral de um texto escrito por mim, denominado, Nada É Grátis, o que para mim representou uma violência incomensurável. Fui tolhido no meu direito de expressão. Depois daquele episódio, jamais escrevi um texto teatral —, afirma. — Quais as táticas de repressão utilizadas pelos agentes do regime na região sul do antigo Mato Grosso uno? —, interrogo a pesquisadora Susana Arakaki. — Os militares estavam em todos os lugares, principalmente nas instituições, mas sem aparecer. A atuação consistia em influenciar pessoas a agirem. Assim ocorreu em Ponta Porã, cujo prefeito foi cassado logo após o golpe, em 1964. Quem articulou a cassação foi um oficial do Exército que, inclusive, produziu o relatório que culminou na cassação. Mas oficialmente foi a Câmara de Vereadores quem cassou o prefeito e vários outros vereadores. Assim ocorreu em várias cidades do Estado. —, respondeu-me, fazendo-me recordar da entrevista com Cristina Mato Grosso: — Eu soube que houve um caso onde apagaram as luzes do teatro durante a apresentação. Você estava presente? —, questionei a dramaturga. — Sim. Apagaram a luz. Os atores esperaram quietinhos e 102

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS depois continuaram. O público também.... Com dignidade, sem pânico, sem um pio... O jogo era assim... — Mas depois tudo seguiu tranquilo? — Sim, depois prosseguiu. Era comum na época a gente receber pedradas.... Nos ensaios... Cesar Vieira tem uma passagem quando estava no Glauce Rocha com eles.... Houve agressão assim... — E essas agressões vinham de agentes identificados? — Não. No caso do encontro da Glauce com o Cesar Vieira, o ataque partiu visivelmente de agentes disfarçados, provocações para amedrontar. Mhiguel, também relata experiência similar ao ignorar os cortes impostos pela censora Jenise, para quem teve de prestar novos esclarecimentos: — Aí ela falou que eu tinha que mudar a peça, e tal. Aí quando eu apresentei no Dom Bosco, tinha uma galera enorme que me apoiava, e tudo, apresentei no Dom Bosco e eu não mudei o final da peça. E ela falou para mim assim, que se eu não mudasse teria uma pessoa na primeira fila que poderia ser um policial federal e que poderia me levar preso. E eu fui completamente rebelde. Eu falei assim: “ah tá, obrigado. Eu vou mudar sim, valeu”, e não mudei porra nenhuma, fiz a peça. Não aconteceu nada, graças a Deus. Depois quando eu fui com a peça para o festival da REME, foi aí que deu um B.O. lascado, que a gente estava no palco, eu, a Lu Bigatão e tal, estava a Fernanda Pedrossian que eram, aí, amigos, e que estava encenando junto comigo e tal. Porque era um manicômio, a ideia era essa. A Lu fazia uma oligofrênica e eu fazia um esquizofrênico. Nós estávamos no meio da peça e simplesmente ficou tudo escuro, do nada. Ninguém avisou pombas nenhuma. Ninguém avisou nada! Simplesmente apagaram todas as luzes. Aí eu ouvi uma voz da coxia, que eu acho que era um policial militar. Acho porque eu não via ele no claro. Eu vi meio na penumbra, e depois ele sumiu. Um policial, que estava atrás da coxia; ele falando alto, um cara de roupa normal, não era farda nem nada, aí eu ouvi ele falando, “olha, ou você para isso aí, ou então nós vamos ter que entrar aí e te tirar”. Eu não sabia o que fazer. Não sabia! Depois que ele falou isso, aí é que eu entendi que eu não podia continuar. Fiquei igual um idiota, eu e a Lu, nós dois parecendo uns idiotas. Sabe o que aconteceu? Os caras que entregavam os troféus já subiram imediatamente no palco, estava todo mundo sabendo que iria ser interditado, que a peça iria ser. E fingiram que nada aconteceu, que a peça já tinha terminado. Deram um troféu de participação para cada um e ponto e acabou, entende. É mais ou menos isso que eu vivi na pele e tal. Mas eu vi em São Paulo e no Rio um monte de artistas falando que a peça tal estava censurada, Do

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Belo Sul Mato Grosso que não podia ser apresentada, tiveram novelas, Roque Santeiro foi uma delas, que já tinham gravado não sei quantos capítulos e não pôde ser apresentada porque a censura não deixou. Todas as matérias eram vistas antes. Eu tive amigos jornalistas que trabalhavam na Folha de S. Paulo e tudo mais, e eles me contavam, sabe, sobre essas questões. Que eles estavam na redação e de repente entra a polícia federal, censor. E liam todas as matérias, tudo o que ia sair e depois, só arrancavam aquilo que não podia. Como, por exemplo, antigamente os jornais eram diagramados à mão, era tudo impresso. Aí o cara colava a página para depois tirar o fotolito. O que acontecia? Ficavam uns buracos no jornal que eles preenchiam com receita de bolo. A pesquisadora Susana Arakaki relata que durante o período surgiram boatos sobre a presença da resistência pelos Grupos de Onze, organizados por Leonel Brizola. Esses boatos alimentavam a paranoia sobre ameaças e delírios de uma invasão comunista encarnada pelo PTB que manteria uma suposta ligação com os Grupos de Onze e eram usadas como causas das detenções e perseguições no Estado que contava com o Comando de Caça aos Comunistas, o CCC composto por elementos civis. “Na cidade de Itaporã, o CCC foi coordenado por Dalmário. Seu modo peculiar de forçar cooperação ao seu intento era o de ameaçar as pessoas do lugar a caçar e prender ‘comunistas’ sob pena de serem considerados como tais, caso se recusassem a fazê-lo. Os colonos eram presos e trazidos para a delegacia de polícia de Dourados”, exemplifica a pesquisadora. Em vista de crimes contra os direitos básicos do ser humano, como o de expressão, de ir e vir, a ONU denunciou o regime várias vezes desde 1972. Uniu-se a esta uma comissão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, por ocasião da morte do jornalista Vladimir Herzog, em 1975. — Os horrores da ditadura que ninguém quer falar disso, né, das mortes. Eram coisas assustadoras. Hoje em dia a gente revendo, por exemplo, a TV Tupi foi fechada por uma questão da ditadura, sabia disso? Você pode ver vídeos na internet daquela época da TV Tupi, eu passei por esse processo. Eu estava vendo a TV Tupi quando foi fechada pela ditadura. Então, tipo assim, jornais fechando, eles entravam em jornais, quebravam tudo, arrebentavam tudo. Leva as pessoas presas, qualquer um que fosse comunista era torturado. Mas comigo não aconteceu nem a metade do que aconteceu com outras pessoas. Tiveram valas. Valas com pessoas enterradas, cemitérios clandestinos —, lembra Mhiguel.

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Desenvolvimento após a criação Em 1979, no contexto do novo Estado recém instituído, foi criada a Federação Sul-Mato-Grossense de Teatro Amador, FESNATA, que, seguindo Amirtes Silva, atualmente denomina-se FESMAT. Desde então, essa instituição teria contribuído para o incentivo e o fazer teatral por meio de encontros, mostras e oficinas nos diversos municípios do Estado com o apoio da Fundação de Cultura. Segundo sua página oficial, “a FESMAT é uma entidade de classe, com 33 anos de história e 30 festivais realizados por todo o Estado. Voltada para o fomento do teatro e à representação de sua classe artística em Mato Grosso do Sul”. De acordo com a pedagoga Amirtes Silva, a partir de sua instituição a FESMAT contribuiu para o surgimento de diversos grupos teatrais do Estado. “Com este incremento surgiram vários grupos, como: Alma de Circo e Alabian da UFMS; Senta Que O Leão É Manso, hoje é um grupo da UCDB; Grupo de Risco, Voa, Tareco Treco e GUTAC, Ypurinã, todos de Campo Grande: Passo a Passo, de Fátima do Sul; CERA, de Aquidauana e TPI, de Três Lagoas, continuaram seus trabalhos. Também nesta época o CESUP (Centro de Estudos Plínio Mendes Santos) inaugurou em Campo Grande um moderníssimo teatro com 400 lugares, aparelhagem técnica e rudimentos de última qualidade”, relata em Teatro Num Fazer Pedagógico. Conforme o livro Teatro Popular: Estética e Política, de Cristina Mato Grosso, junto ao Instituto Nacional de Artes Cênicas, INACEN, e à Confederação Nacional de Teatro Amador, CONFENATA, a Federação Sul-Mato-Grossense de Teatro Amador, FEMASTA, assumiu um importante papel político de militância pela redemocratização do país, recuperação do setor cultural — frequentemente perseguido e subjugado pela censura do regime militar — e até pela criação da Fundação de Cultura do Estado de Mato Grosso do Sul. “Lembramos que junto ao artista plástico Henrique Spengler, mentor do movimento GUAICURU, o GUTAC abriu um espaço de ensaios e encontros políticos na Avenida Calógeras de Campo Grande, nos fundos da residência dos Spengler. Destes encontros resultou uma forte união de produtores culturais que saíram às ruas no Movimento Pró-Diretas ‘Desperta Brasil. ’ Disto resultou uma integração inédita e única até os dias atuais, para a organização da V Mostra Sul-Mato-Grossense de Teatro Amador que aconteceu entre 7 e 10 de junho de 1984, no Teatro Glauce Rocha de Campo Grande, sob a coordenação geral da FESMATA (Federação de Teatro Amador-MS), cuja presidente era Cristina Mato Grosso. Partiram as associações de: Fotógrafos, Do

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Belo Sul Mato Grosso Artistas Plásticos, de Músicos, de Artesãos; A Academia de Letras e Movimento Literário Independente, a Produção Cinematográfica Independente, o Sindicato de Jornalistas, a própria Unidade Guaicuru e a CONFENATA (Confederação Nacional de Teatro Amador). Dos órgãos públicos, participaram a Divisão de Cultura do município de Campo Grande, a UFMS — Universidade Federal de MS, a Secretaria de Desenvolvimento Social e o INACEN”. Ao término da entrevista com a professora Maria da Glória de Sá Rosa para o livro Festivais de Música em Mato Grosso do Sul, o cineasta, teatrólogo, músico e jornalista Cândido Aberto da Fonseca, propõe uma análise: “Cândido — Professora, faça uma cronologia entre o surgimento e o desaparecimento dos festivais e o momento brasileiro. Pois podemos constar que todo protesto brasileiro surgia nas músicas dos festivais. Glorinha — Isso aconteceu como todas as formas de expressão e no caso dos festivais de música havia o agravante de canalizar o protesto para um público maior. Pode-se afirmar que os festivais se constituíram nos termômetros da época. Surgiram e acabaram conforme o fluxo do momento político. A música com o recrudescimento da censura também refletiu, em princípio um momento de inconformismo e depois de alienação. Agora em plena ressurreição, os festivais mostram mais uma tentativa de ampliar o mercado de venda de disco. Mais nada”. Por certo, advém de reflexão semelhante a conclusão da pedagoga Amirtes Silva de que a partir de 1979 o teatro sul-mato-grossense só teve mudança considerável em relação à organicidade dos artistas enquanto que, no campo político e financeiro, os problemas aumentaram. Será? Mas, e as Leis?

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“Só Amor, Paixão e Aventura Nos Seduz à Senda da Guerra” Capítulo Quinto:

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ra uma manhã comum de aula em 1999. A professora Lourdes aplicava sua matéria de Literatura para a sala. Os grupos formados por colegas a um canto da porta ouviam a professora compartilhando assuntos comezinhos entre si, dissimuladamente. Os assentados na frente a ouviam com atenção, os do meio quase não escutavam, conversando entre si em um muxoxo constante que a obrigava a chamarlhes atenção intermitentemente. Os do fundo seguiam o mesmo caminho, embora mais contidos. O meu grupo, assentado em seis carteiras juntadas de dois em dois a partir da mesa da professora, permanecia concentrado na explicação quando alguém bateu à porta: — Professora... A prefeitura mandou um ônibus. Você poderia escolher dois dos alunos mais comportados e desenvolvidos na disciplina para ir até o teatro? —, explicou, sucinta, a coordenadora pedagógica Veronice Rossato. turma:

Lourdes voltou-se para a sala, correndo os olhos na

— Geovani e Elaní. Vocês podem ir. —, disse a professora, voltando-se para o meu grupo. Assim, um tanto acanhado, levantei-me com Elaní e retiramo-nos, com nossos pertences. Na entrada da escola, encontramos um ônibus da aviação Andorinha estacionado onde outros alunos de outras salas, selecionados em duplas entravam em busca de acento. Era a segunda vez que eu recebia essa oportunidade. Na primeira vez havia assistido a um show de Geraldo Espíndola, com seu repertório de polca rock. O que seria agora? Indagava-me, ao lado de Elaní. O fim do mistério chegou meia hora após, quando, depois de um engano, o motorista que havia se dirigido ao palácio da Cultura no Parque dos Poderes, mudou de rota e estacionou em frente ao Centro Cultural José Otávio Guizo onde, junto aos outros alunos, Elaní e eu fomos encaminhados ao Teatro Aracy Do

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Belo Sul Mato Grosso Balabanian — que, obviamente, homenageia sua atriz homônima nascida na capital sul-mato-grossense — para assistir Um Fantasma Para Duas Mulheres. A essa experiência somou-se o esforço da professora Adriana que, sem obter transporte e autorização para levar a sala para acompanhar os bastidores de uma produção teatral in loco, conseguiu vídeos de atores locais nos momentos de ensaio e decoração de texto, os quais apresentou à turma numa manhã de aulas na sala de vídeos. Um terceiro elemento eram as atividades das aulas de História, onde, pela primeira vez, me encontrei num grupo de teatro. Como o professor José Carlos propunha atividades práticas em grupos, podendo ir de jogral, apresentações de músicas ou teatros relativos aos temas da disciplina, o envolvimento artístico fazia parte do aprendizado. Naquele tempo, por não poder participar das aulas de Educação Física devido à minha cardiopatia congênita, aproveitava esse período para pesquisar os assuntos da matéria afim de construir o texto dramático e orientar o grupo quanto ao figurino e cenário. Assim, desde o início, ficara claro que o teatro não se restringia à mera feitura de texto tirado exclusivamente da imaginação com o trabalho de decoração. Até o momento de apresentação, a produção de uma peça exige muito trabalho, conforme verifica-se nos relatos dos artistas locais.

Um Direito Humano No capítulo A Comissão de Direito das Artes do ensaio O Direito das Artes, Uma Visão Jurídica Da Cultura, produzido pela Comissão do Direito das Artes da Ordem dos Advogados de São Paulo, OAB/SP, a jurista Cindia Regina Moraca explica a relação das artes com as modalidades do Direito. Essas relações passam pelos filtros civilizatórios ou desenvolvimentos sociais que estabelecem as interações humanas. De acordo com Cindia Regina Moraca, desse processo social resultam as relações de usos, hábitos, conquistas e direitos que também afetam o progresso da cultura e das artes, influenciando o pensamento, as legislações e as práticas legais sobre esse setor. “São esses processos, sua origem histórica e seus impactos no cotidiano da sociedade que se tornaram objeto de estudo do Direito às Artes e do Direito da Arte, que, de forma complexa, encampam diversas modalidades das ciências jurídicas, em especial os Direitos Humanos, incluindo, mas não se limitando a essas disciplinas, o Direito Civil e o Direito Criminal, os Direitos Autorais e Patrimoniais, a Propriedade Industrial e 110

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS Intelectual, o Direito de Família e das Sucessões, entre tantos outros nichos, específicos e derivados, que compõem o espectro estudado e discutido pelo Direito”, explica. No período colonial, o Brasil manteve certa legislação a respeito das manifestações públicas. A partir da chegada da corte em 1808 as leis que tratavam de arte e cultura ganharam uma atenção maior. Ao longo dos períodos históricos do país, as Leis se sucederam umas às outras, desde o período Republicano à abertura democrática com o estabelecimento da Constituição Federal de 1988. Não obstante, é especificamente no artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que o direito às artes ganha sua defesa como atividade fundamental para o ser humano. Segundo o artigo, deve ser garantido a toda pessoa o acesso à expressão artística e cultural: “1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios”, e, “2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja autor”. Com uma longa história de engajamento nos movimentos sociais e fóruns de representatividade artística no Estado, o ator, produtor e diretor do grupo de teatro Urgente Cia, Vitor Hugo Samudio, mencionou a complexidade do tema em sua entrevista para o radiodocumentário sobre cultura no Laboratório de Radiojornalismo II: — Olha. É um debate bem complexo, né, porque a gente entende, assim, primeiro que a cultura é um direito do cidadão. Dentro dos direitos universais, a cultura é um dos pontos que são essenciais para o indivíduo, para o seu desenvolvimento. Porque quando se fala em cultura, a gente não fala só de arte. Acho que é importante sempre frisar muito isso que é algo muito maior. A arte, na verdade, as linguagens artísticas são apenas uma fatia da cultura. A cultura, na verdade, é como a gente se veste, o que a gente come, o nosso sotaque, toda a nossa convivência em sociedade. Então tudo isso entra em um aspecto cultural. Na pesquisa Direitos Culturais E Direitos Humanos: Uma Leitura À Luz Dos Tratados Internacionais E Da Constituição Federal, do advogado especialista em Direito Processual Civil, José Estênio Raulino Cavalcante — já apresentados no primeiro capítulo —, o jurista informa que o artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos é reforçado nos artigos 13 e 15 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966. Em atenção a essas normas, as nações comprometidas com tratado dos Direitos Humanos — entre elas, o Brasil — devem ater-se ao fato de que o direito da arte diz respeito à uma regulamentação jurídica da atividade artística. Do

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Belo Sul Mato Grosso Desde meados da década de 1970, a UNESCO vem promovendo instrumentos relevantes para pensar os direitos dos artistas como a Recomendação sobre o Estatuto do Artista em 1980, e a Convenção da UNESCO sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, de 2005. “A Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas, proclamada num encontro realizado em 1886, foi o primeiro documento a consagrar universalmente os direitos dos autores sobre as suas obras”, relata o advogado José Cavalcante em seu trabalho de pesquisa. Segundo o Relatório sobre os Direitos Fundamentais 2017: Pareceres da Agência Europeia Para Direitos Fundamentais, em 2016 a União Europeia e os Estados‑Membros trabalharam no sentido de reforçar a proteção dos direitos fundamentais, apesar de haver tomado algumas medidas que ameaçaram comprometer essa proteção. “O artigo 21.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia proíbe a discriminação em razão da religião ou convicções. O artigo 22.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia prevê ainda que a União respeite a diversidade cultural, religiosa e linguística”, reitera a Agência Europeia. O Relatório também lembra que o tema da cultura e das artes está presente no Direito Penal Internacional, adotado em 17 de julho de 1998, em Roma, na Itália e que... Isso. Embora tenha ocorrido uma série de dificuldades com longos embates políticos com relação ao documento, o tratado terminou validado pelo Brasil. Deveras, por meio do Decreto Nº 4.388, de 25 de setembro de 2002, o então presidente Fernando Henrique Cardoso promulgou o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional aprovado pelo Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo no 112, de 6 de junho de 2002. De acordo com o Direito Penal Internacional, e as leis do conflito armado, em algumas circunstancias, ataques a locais de importância cultural ou itens culturais, são reconhecidos como crimes de guerra. Esse Estatuto do Tribunal Penal Internacional traz no inciso IX de seu artigo 8º a definição do que é considerado crime de guerra: “Dirigir intencionalmente ataques a edifícios consagrados ao culto religioso, à educação, às artes, às ciências ou à beneficência, monumentos históricos, hospitais e lugares onde se agrupem doentes e feridos, sempre que não se trate de objetivos militares”, afirma o texto. Outra garantia jurídica brasileira às artes, está presente na Constituição Federal de 1988, que confere o direito à liberdade de expressão no artigo 5º. “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Decorre desta legislação que as ameaças à liberdade artística por meio de leis de censura, difamação, segurança nacional, blasfêmia,

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS manutenção da “moral e dos bons costumes” estão sujeitas a inconstitucionalidade por entrar em flagrante contradição com a Constituição Federal. Especialistas em gestão cultural pelo Centro de Pesquisa e Formação do Sesc-SP, o advogado Albervan Reginaldo Sena; a gestora cultural, assessora de desenvolvimento social, Elaine Pereira Aguiar, o ator, coordenador de produções, Igor Augustho Mattos Kijak, e a atriz, professora e produtora, integrante do Grupo de Risco, Tamara Batista Borges, realizaram a pesquisa Censura, Teatro E Golpe: Um Panorama Das Artes Cênicas No Brasil Pós-2016. Publicado na Revista Do Centro De Pesquisa E Formação, edição de julho 2021, esse trabalho dos especialistas em gestão cultural revela que, desde o período colonial, os poderes estabelecidos se mostraram mais interessados em controlar o discurso artístico por uma via moralizante que, de fato, estimulá-los, com ressalvas pontuais ao longo da História do Brasil. “Como se vê, a prática censória por parte do Estado brasileiro é, historicamente, maior do que a prática democrática. Durante a maior parte da história nacional, não foi a liberdade de expressão a máxima, ao contrário disto, a produção criativa nacional esteve quase sempre sob contexto censor, estando este, na maior parte das vezes, regido por dinâmicas morais, religiosas e culturais”, concluem os especialistas. Embora esse tema da censura prévia e das restrições impostas às artes sejam comumente relacionada a períodos históricos como o da Ditadura Militar, há nos dias contemporâneos uma série de fatos que suscitam debates sobre uma perseguição ideológica e política das artes.

Salvem o Amanhã do Anteontem! Ao longo da década de 2010, os produtores de arte de Mato Grosso do Sul vieram a público em várias ocasiões reivindicando direitos ou manifestando descontentamento com as políticas sobre a arte e a cultura. Após a queda do governo Dilma Rousseff do PT, em 31 de agosto de 2016, uma série de eventos, com destaque na imprensa, apontava para uma crise da arte no país com repercussão em Mato Grosso Do Sul. De fato, um ano antes do impeachment da presidenta Dilma Roussef, falavase em uma reforma ministerial que poderia impactar o Ministério da Cultura, MinC, entre outras coisas, pela diminuição da verba destinada a esse setor. No dia 18 de maio de 2016, o presidente interino extinguiu o Ministério da Cultura, MinC e o incorporou ao Ministério da Educação com status de Secretaria a cargo do ministro Mendonça Filho, (DEM-PE), ligado à agroindústria e a iniciativas empresariais e sem nenhuma atuação com a cultura. Do

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Belo Sul Mato Grosso Esta atitude causou uma onda de protestos dos trabalhadores da cultura em todo o país. Em Campo Grande, os artistas tomaram o prédio do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, conforme recorda o ator e diretor do Urgente Cia, Vitor Samudio: — A questão da ocupação do IPHAN foi por conta disso, na verdade. Foi quando a comunidade artística, não só daqui, não só do local, mas do Brasil inteiro se rebelou contra o ato, na ocasião, do presidente em extinguir o Ministério da Cultura e nós, artistas e fazedores de cultura, compreendendo a cultura como algo essencial em que aquilo não poderia acontecer. Porque embora o Ministério não vá garantir avanços para a cultura, mas na dimensão simbólica, ele é importante porque você mantém a cultura no primeiro escalão. Com a repercussão negativa da extinção do MinC, Michel Temer (então PMDB, hoje MDB), voltou atrás três dias depois anunciando, ainda no sábado, dia 21 daquele mesmo mês, a volta da pasta. Na segunda-feira, 23 de maio de 2016, o governo Temer recriou o MinC sob o comando do diplomata Marcelo Calero, que havia ocupado a secretaria da cidade do Rio de Janeiro desde o início de 2015. O setor cultural pôde respirar com alívio, embora por pouco tempo. Isso porque, uma vez eleito em 2018, o governo de Jair Messias Bolsonaro (então PSL, atualmente sem partido) extinguiu o MinC em 2019, criando a Secretaria da Cultura, pertencente hoje ao Ministério do Turismo. Sucedeu-se então uma série de escândalos ligados a uma verdadeira dança de cadeiras, começando pelo primeiro secretário da pasta o dramaturgo Roberto Rêgo Pinheiro, conhecido pelo nome artístico Roberto Alvim. Elogiado por Bolsonaro, Alvin publicou na noite do dia 16 de janeiro de 2020 um vídeo onde faz um discurso diretamente baseado em Paul Joseph Goebbels, um político alemão e Ministro da Propaganda na Alemanha Nazista entre 1933 e 1945. Tal discurso, manifestava o desejo de cercear a produção artística e cultural brasileira sobre os moldes ideológicos da direita. Após a repercussão negativa internacional, Alvin foi substituído pela atriz direitista Regina Duarte, que escreveu que que já em 2017 havia sido favorável à extinção do Ministério da Cultura. Após uma série de polêmicas por falas de Regina que negavam os crimes do regime militar e diminuíam a importância do número de mortos pela covid-19, Bolsonaro a removeu e, no dia 19 de junho de 2020, nomeou o ator Mário Frias como novo secretário especial de Cultura. Embora seja o terceiro ocupante do cargo em menos de um ano, Mario Frias, assim como seus antecessores, segue fiel à pauta negacionista e de viés ultraconservador do governo. — O Ministério da Cultura foi resumido a uma secretaria 114

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS especial de cultura. O que para a gente é lamentável, mas a gente tem também essa política em que o atual governo hoje, não dá a mínima prioridade para a cultura de uma forma em geral. Pelo contrário. A gente faz a leitura de que ele percebe a cultura de uma certa forma como uma inimiga. O que é lamentável, porque a cultura não tem que ser lida dessa forma, não tem que ser trabalhada dessa forma, já que garantir o acesso e a produção cultural às vezes quer dizer uma libertinagem ou. Enfim. Os setores mais conservadores eles conseguem fazer essa leitura de que é algo que pode ser ruim. Mas, na verdade, a essência da arte é essa. É a liberdade. Então, assim, se a gente não conseguir garantir a liberdade de expressão artística em um país, realmente acabamos fadados a algumas questões muito retrogradas, a questões muito complicadas em vários aspectos, e não só o aspecto artístico, não, são vários outros. —, declarou o ator, produtor e diretor da Urgente Cia, Vitor Samudio, durante a entrevista para o radiodocumentário. A tentativa e a posterior extinção do MinC com as sucessivas polêmicas causadas pelo discurso ideológico ultraconservador contra as artes, entretanto, atingiria outras instituições pelo país afora, incluindo Mato Grosso Do Sul. Segundo os especialistas em gestão cultural pelo Centro de Pesquisa e Formação do SescSP, o impeachment que derrubou Dilma Rousseff da presidência marcou o início de um novo processo de censura e perseguição ideológica e política às artes no país. “Golpe de 2016 — que culminou na queda da presidenta Dilma Rousseff (PT) — marcou a retomada da censura pública à produção artística nacional. Paralelamente a ele — e a seu favor — foram cada vez mais comuns as manifestações populares e políticas em favor de supostos bons costumes, valores tradicionalistas e conservadorismo. Essas pautas, em ascensão após 2016 e bastante similares às manifestações pró-golpe de 1964, encontraram força política no então candidato à presidência Jair Bolsonaro, enquanto Michel Temer ocupava o cargo de presidente interino, com poucas realizações significativas, ofuscadas pelo processo eleitoral já anunciado”. Esse quadro de retrocesso também é apontado no capítulo Os Direitos Culturais nas Constituições Brasileiras do ensaio O Direito das Artes, Uma Visão Jurídica Da Cultura, produzido pela Comissão do Direito das Artes da Ordem dos Advogados de São Paulo, OAB/SP. No texto, o advogado especialista em Direitos Culturais, mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP, Rodrigo Guimarães Buchiniani observa que, atualmente, o Brasil vive um paralelo com o período do regime ditatorial com ataques às manifestações artísticas até mesmo no âmbito das entidades cuja missão e valores deve ser a luta pelos direitos culturais. “Certo é que, nos últimos anos, temos visto como esses direitos são frágeis e Do

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Belo Sul Mato Grosso como a população em geral, os artistas e os coletivos vêm sendo silenciados em suas manifestações culturais. O preconceito, o conservadorismo e o desconhecimento da importância da cultura e da arte como agentes de educação são os principais motivos que vêm dizimando a história cultural brasileira e principalmente, o acesso às políticas públicas de fomento e incentivo à cultura e às artes”, afirma o jurista que integra o Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, IBDC, e é membro efetivo da Comissão de Direito das Artes da OAB/SP. De fato, é possível observar, a partir da segunda metade da década de 2010, um debate constante e polarizado sobre a veracidade dos crimes cometidos pelo regime ditatorial e de suas formas de política adotadas nas áreas de segurança, saúde e educação. Até mesmo os direitos humanos entraram na berlinda. Pouco a pouco, o saudosismo da era militar tomou rumos mais concretos no cenário político, causando apreensão sobre o futuro. Segundo os pesquisadores de Censura, Teatro E Golpe: Um Panorama Das Artes Cênicas No Brasil Pós-2016, o quadro de ataques à arte pelo Brasil encontrou em Bolsonaro seu maior expoente com a extinção do Ministério da Cultura, a reformulação da Lei Rouanet e instabilidade da pasta, além da revisão e cancelamento de patrocínios e estímulos concedidos às produções artísticas por entidades estatais. “Eleito em 2018 e empossado em 2019, Bolsonaro deu sequência ao seu discurso eleitoral, atendendo às demandas do conservadorismo políticosocial que o elegeu. O presidente colocou em prática uma série de ataques à classe artística e às políticas públicas de incentivo à cultura”. No segundo semestre de 2018 — período das eleições presidenciais — os artistas da capital sul-mato-grossense entrevistados para a matéria Censura Nas Artes, da 1ª edição da Revista Laboratório da disciplina Jornalismo de Revista ministrada pelo professor Felipe Quintino, revelaram grande apreensão com o futuro do setor cultural artístico a partir da ascensão de Bolsonaro e dos ataques às expressões artísticas por ele encampados, além de sua reiterada negação dos crimes cometidos pelo regime ditatorial: — Atualmente há um grupo de pessoas dizendo que os órgãos públicos, como as escolas, o sistema de saúde, e os programas sociais, além da segurança, funcionavam no militarismo. E que também havia respeito com os índios, negros, as mulheres, enfim, a atual minoria. Você concorda, Cristina? A sua vivência faz coro a essas afirmações? —, pergunto à dramaturga Cristina Mato Grosso. — Não. Para começar, não havia liberdade para questionamento ou construção de projetos, em quaisquer áreas. —, respondeu-me de pronto.

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS — As pessoas que demonstram saudosismo, dizem que era uma época mais tranquila, de segurança em relação à criminalidade. Você concorda? —, interrogo o cineasta Mhiguel Horta. — Exatamente como está acontecendo hoje. Tem uma classe que é conservadora. Essa classe conservadora, classe média, como dizem alguns, sociólogos aí, bem batem nessa tecla, é exatamente isso mesmo. A classe média, por exemplo, você é filho de um militar, meu pai, ele ganhava bem, em casa tinha empregada, estudava em colégio particular. Eu vou reclamar do que? Só que eu tinha horário para dormir, horário para acordar, horário para estudar, eu não podia receber gente em casa, entende. Não adianta nada você ter tudo. Por exemplo, as famílias militares compravam fusca, tinham seu carro, na época que apareceu o fusca ou outro carro mais elegante, mais chique. Na verdade, eles imitavam aquele consumo norte americano, a pessoa com a casa, com o carro, a mulher cheia de eletrodomésticos. Tem muitos filmes e comédias que satirizam isso. A família militar era enorme e tinha muita gente conservadora que frequentava a igreja, o povo que só pensava em prosperidade, ele não queria saber de comunista, — relata o cineasta. Segundo Mhiguel Horta, assim como nos dias contemporâneos, já naquele período havia um sistema de difusão de falsas verdades no sentido de impor terror por uma corrente ideológica de esquerda ou, até mesmo, aos movimentos progressistas e sociais: — Outra coisa que havia na época, que era muito, igual como fazem hoje pelo WhatsApp, “é o seguinte, comunista come criancinhas”, “comunista não acredita em Deus”. Foram coisas que eu aprendi com 16 anos de idade. Não acredita em Deus. Aí você chega para um conservador e fala, nós não acreditamos em Deus e o cara tem um choque, ele cai, ele tem uma síncope, ele tem um enfarto e era isso. Você não podia falar que não acreditava em Jesus, que não acreditava em Cristo, porque senão você era comunista. Perante às disseminações de fake news por parte dos ultraconservadores, a dramaturga Cristina Mato Grosso previu a onda de decretos de sigilos sobre as ações do novo governo Bolsonaro ao recordar que o regime ditatorial investiu em propagandas que mascararam a realidade econômica e social com altos índices de inflação e aumento da pobreza durante o período, enquanto se criavam formulas para incutir um patriotismo alienador: — O caldeirão fervente da comoção social não pode se resolver... A Ditadura mascarava tudo. Até mesmo fomos obrigados a estudar o livro Desafio Brasileiro, o qual citava o Do

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Belo Sul Mato Grosso Brasil como país abençoado, nivelado, sócio economicamente, culturalmente cordial e bondoso, riquíssimo por todos os ângulos. Quiseram na época, imitar o livro Desafio Japonês. Esporte era zero. Só o futebol vingou porque dava amparo à cegueira do povo em relação ao que acontecia. Devo dizer que ela veio, agora, mais forte.... Não seria a hora de uma autoinvestigação na leitura de Ensaio sobre a Cegueira? Ironicamente, o exemplar que tenho em mãos, comprado na Fundação Saramago de Lisboa, vem com a caligrafia de Chico Buarque. —, reflete Cristina. O cineasta Mhiguel Horta observa que os discursos dos ultraconservadores contemporâneos indicam o interesse de recuperar a estrutura social normalizada da época ditatorial que permitia uma hierarquia social onde os mais abastados assumiam uma liberdade maior na exploração dos menos favorecidos sem questionamentos aos abusos que praticavam: — Então para essa grande massa conservadora que vai à missa, que vai aos cultos, que a filha está na faculdade, que o filho está estudando no melhor colégio, que o papai trabalha no governo do Estado. Analise o número de pessoas que trabalham no governo do Estado que derivam no governo federal. Por exemplo, antigamente era chique o cara trabalhar no Banco do Brasil, o banco do Brasil é uma coisa federal. Então, quer dizer, você tinha uma interdependência dessas pessoas por causa do dinheiro, por causa do salário, porque eram pessoas ligadas à classe conservadora, e os menos favorecidos dependiam deles. Por exemplo: toda família conservadora e classe média tinha uma empregada, e o pessoal pobre trabalhava. Em casa tinha empregada. Ou seja, tinha uma pessoa para lavar a louça, fazer a comida, está entendendo? Você podia agredir a empregada, xingar. Tudo isso rolava no tipo de comportamento do meio autoritário que os pais passavam para os filhos. Era ordem e progresso ao pé da letra. Para a historiadora Suzana Arakaki, parte da responsabilidade sobre a onda conservadora recaí na ausência de um ensino que negligencia as ações do regime militar: — Muitas pessoas, por desconhecimento das ações de repressão ocorridas na ditadura militar apoiam o regime. E nisso a educação tem responsabilidade ao não conseguir furar a barreira do silêncio e da sensibilidade que o tema impôs. Essas pessoas que apoiam o governo, veem a ditadura como vitória sobre o comunismo, mesmo sem saber do que se trata. Com um presidente que tem como herói um militar torturador, essas pessoas se veem representadas. —, explicou-me a historiadora Susana Arakaki. De acordo com os pesquisadores de Censura, Teatro E Golpe: Um Panorama Das Artes Cênicas No Brasil Pós-2016, existem semelhanças entre o contexto dos ataques à arte pós 118

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS impeachment de Dilma Rousseff e o estabelecimento do regime militar. “Em ambos, a base fundamental do movimento são pensamentos e valores religiosos, certa aversão ao comunismo e o não reconhecimento”, observam. Para Mhiguel Horta, em seu devaneio de alcançar o status quo das elites milionárias, a classe média foi o artífice dos eventos que culminaram na queda do governo Dilma Rousseff e na polarização política do Brasil, com o saudosismo da exploração de classes sem as restrições dos direitos alcançados por trabalhadores e minorias historicamente marginalizadas: — É uma classe enorme. É um povo enorme. O que derrubou a esquerda no Brasil foi a classe média, entende? Foi isso, sem a menor dúvida. Eles não têm sonhos, eles não têm nada não, eles querem imitar os ricos e ponto final, não querem que nada incomode. —, afirma o cineasta. De acordo com os pesquisadores de Censura, Teatro E Golpe: Um Panorama Das Artes Cênicas No Brasil Pós-2016, depois do impeachment e com a popularidade e a ascensão da extrema direita representada por Bolsonaro, tornaram-se recorrentes na imprensa manchetes que reportavam um possível retorno da censura por parte do Estado. “Elas noticiavam, de modos distintos, diversos casos de cancelamento de espetáculos teatrais em todo o território nacional, principalmente por empresas estatais federais patrocinadoras ou apoiadoras das produções. São marcantes, nos cerceamentos noticiados, as similaridades estéticas, temáticas e dramatúrgicas entre as criações que coincidem com temas sensíveis aos discursos sociais defendidos pela autointitulada maioria conservadora e defensora dos costumes tradicionais e, consequentemente, pelo então recém-empossado presidente da República”, descrevem. Inaugurada em meados de agosto e prevista para ficar em cartaz até 8 de outubro do mesmo ano, o fechamento da mostra Queermuseu em Porto Alegre no dia 09 de setembro de 2017 estimulado pelo Movimento Brasil Livre, MBL, é um dos exemplos desses ataques ultraconservadores. Nas redes sociais, o MBL alardeava que uma exposição de arte contemporânea em Porto Alegre fazia apologia à pedofilia, zoofilia e promovia a blasfêmia contra símbolos católicos causando uma onda de protestos contra a exibição do Queermuseu. Contando com mais de 270 obras sobre a temática LGBTQIA+, o evento foi cancelado pelo Santander Cultural. Em setembro de 2019 a produtora O2 Filmes noticiou o adiamento da estreia do longa Marighella, dirigido por Wagner Moura, previsto para o dia 20 de novembro do mesmo ano em comemoração ao mês da consciência negra. Segundo a produtora, a Agência Nacional de Cinema, Ancine, barrou o pré-lançamento com a justificativa de que o filme “não cumpriu os trâmites Do

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Belo Sul Mato Grosso exigidos”. A esse episódio somou-se, também, a tentativa de cancelamento de A Vida Invisível, dos livros LGBTQIa+ na Bienal do Rio, sob acusação — infundada — de que livros impróprios para menores de idade estariam à venda. Tal acusação partiu da prefeitura da capital carioca cujo prefeito à época era o aliado de Bolsonaro, Marcelo Crivella, que ameaçou censurar os exemplares do gibi Vingadores - A Cruzada das Crianças, por conter imagens de um beijo gay. Na capital de Mato Grosso do Sul, essa onda de ataques veio por meio dos deputados estaduais Coronel David (sem partido), Paulo Siufi (MDB) e Herculano Borges (Solidariedade), que se dirigiram até a Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente, DEPCA, na manhã do dia 14 de setembro de 2017, após receber a imagem da tela Pedofilia, da artista Alessandra Cunha. Integrante da exposição Cadafalso, a obra onde uma criança aparece entre dois homens nus, pretendia denunciar e provocar reflexões sobre os abusos sexuais praticados contra crianças e adolescentes, mas foi acusada pelos três deputados de incitar a pedofilia e de ferir “os bons costumes”. Naquele mesmo dia, acompanhado dos três parlamentares, o delegado da DEPCA, Paulo Sérgio Lauretto, foi ao museu com policiais que lacraram e retiraram a tela do museu. No dia seguinte, a obra foi devolvida e recolocada em uma das paredes do Museu de Arte Contemporânea, MARCO após a celebração de um acordo com o secretário de Cultura e Cidadania de Mato Grosso do Sul à época, Athayde Nery, que se comprometeu a reclassificar a faixa etária da exposição para 18 anos. Apesar das justificativas dos deputados de que haviam “zelado pelos bons costumes”, a ação teve repercussões negativas e acusação de censura por parte de entidades ligadas à cultura e arte, de partidos políticos e até mesmo das instituições do Direito. Assim, no dia 16 de setembro de 2017, a associação de magistrados Juristas pela Democracia de Mato Grosso do Sul publicou uma carta aberta de repúdio à apreensão da obra Pedofilia. “Os parlamentares estaduais e o delegado da DEPCA viram uma obra de arte que expressava nitidamente uma denúncia da violência machista e da pedofilia como apologia à pedofilia! Em vídeo que teve ampla repercussão, o delegado responsável pela apreensão chegou ao descabimento de afirmar que o quadro incentiva o crime de estupro de vulnerável e induz pedófilos à satisfação da lascívia, referindo-se de modo indevido ao museu como local do crime”, critica a associação dos magistrados estaduais. Em novembro de 2019, durante a gravação do radiodocumentário sobre a cultura do Estado no Laboratório de Radiojornalismo II, questionei o produtor da Urgente Cia, Vitor

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS Hugo Samudio, sobre a apreensão da obra no MARCO: — Olha, se a gente for analisar no aspecto das ocupações, da ocupação do IPHAN, da questão da censura da obra da artista, no caso do MARCO, naquela exposição, a gente percebe, assim, que na verdade, ao mesmo tempo em que a gente consegue uma evolução e um desenvolvimento no aspecto, não só dos artistas, mas numa questão mesmo da sociedade, das pessoas enquanto pessoas, que percebem a cultura como algo importante, também, do outro lado, a gente nota um caminho do avesso, o contrário disso, que é questão do conservadorismo, que é a questão de pessoas que não compreendem a liberdade que o artista ou que a arte tem, levarem isso para uma questão de ofensa. Esse episódio da tela que foi retirada do MARCO foi um episódio extremamente arbitrário onde deputados foram lá junto com a polícia e retiraram uma tela sem ao menos tomarem conhecimento do que aquilo comunicava, qual era o sentido daquela obra. A gente percebe que há os extremos. Há os extremos, assim, de um lado e de outro. E muitas vezes isso acaba se chocando. Para o Juristas pela Democracia de Mato Grosso do Sul, a ação do delegado e dos deputados configurou abuso de autoridade e feriu a Constituição Federal e a Declaração Universal Dos Diretos Humanos ao violar a liberdade de expressão artística. Ademais, segundo a associação dos magistrados, não há na obra de Alessandra Cunha qualquer elemento que implique numa tipificação penal de apologia ao crime. “Para coroar o sem número de abusos, violações e absurdos, ainda ameaçam incluir a artista no Cadastro Estadual de Pedófilos, outra excrescência produzida pela maioria do legislativo estadual, bem como instituir censura prévia, ou seja, a obrigatoriedade de que seja fornecida anteriormente lista das exposições previstas por determinado período para que seja possível averiguar o conteúdo de cada uma delas”, denuncia a carta dos juristas estaduais. De acordo com os pesquisadores de Censura, Teatro E Golpe: Um Panorama Das Artes Cênicas No Brasil Pós-2016, as práticas de censura ocorridas com a ascensão de Bolsonaro encontram na Constituição Federal de 1988 e no Supremo Tribunal Federal uma barreira que procuram burlar com uma falsa legalidade. “Como forma de driblar as proteções constitucionais e a fim de reinstaurar a censura como prática, as instituições públicas passam a estabelecer novos métodos, “fantasiados” de legalidade. Para isso reinventam os chamados critérios de curadoria, atacando as obras nas fontes de financiamento e estímulo às produções. Tradicionalmente, no país, grandes empresas — muitas delas estatais federais — configuram-se importantes fontes de financiamento de projetos culturais”, afirmam. Deveras, no artigo 216 da Constituição Federal é Do

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Belo Sul Mato Grosso garantido o direito à cultura pela obrigação do Estado em assegurar o patrimônio histórico, artístico, cultural e ambiental. “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagem”, regulamenta a Lei.

Essencialidade da Cultura Artística na Educação Em Teatro Num Fazer Pedagógico, ao relatar sua pesquisa sobre a ação do teatro nas quatro últimas séries do Ensino Fundamental na Rede Municipal de Educação de Campo Grande, a pedagoga Amirtes Menezes de Carvalho e Silva destaca uma compilação sobre a importância da arte no desenvolvimento de capacidades humanas, como a interação social segundo as professoras da Rede Municipal de ensino, REME. “Na abordagem inatista, a atividade teatral visaria ao desenvolvimento e ao aprimoramento das capacidades intelectuais, tais como espontaneidade, imaginação percepção e o relacionamento social, como também o conhecimento e a qualificação das possibilidades do corpo e da voz, estimulação da percepção plástica dos gestos, dos movimentos e da postura. Esta concepção de teatro está baseada na visão de que a educação consiste em desenvolver as habilidades inatas em todo ser humano, para melhor adaptação do homem ao seu grupo social”, explica. Assim, tomando o teatro como um instrumento social e histórico em sua pesquisa, Amirtes Carvalho observa que as atividades lúdicas de cunho artístico na Rede de Educação Municipal da capital exercem função de instrumento de correção de personalidades socialmente retraídas. “A função do teatro nesta concepção educativa serve para a liberação das idiossincrasias dos aspectos sociais para que a criança, apoiada e protegida, possa assumir seu papel na sociedade e executálo sem dificuldade, ou seja, na escola o teatro vem a ser um recurso para a correção dos comportamentos que interferem negativamente na formação do indivíduo”, afirma. Tal expressão, “correção dos comportamentos que interferem negativamente na formação do indivíduo” é

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS problemática entre outros motivos pelo fato de dar margem a interpretação de práticas de adequação comportamental análogas ao nazi-fascismo — mesmo que não seja esta a intenção —. Ademais, é preciso atentar-se a regulamentações nacionais como as Leis de Diretrizes e Bases, LDB, e os Parametros Curriculares Nacionais, como observa a mestra em educação, licenciada em Artes Cênicas pela Faculdade de Artes do Paraná e em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUC-PR Juliana Cavassin, em seu artigo Perspectivas Para O Teatro Na Educação Como Conhecimento E Prática Pedagógica. De acordo com a arte educadora, a relação pedagógica do teatro com a educação atende a visão humanista de arte como forma de expressão semiótica e cultural. “Muito se sabe a respeito da importância do Teatro na Educação em todos os campos de atuação. Os princípios pedagógicos do Teatro traçam relações claras entre Teatro e educação, considerando essa arte como uma forma humana de expressão, a semiótica e a cultura”. Para a arte educadora Juliana Cavassin, desse pressuposto decorre uma ênfase em estudos e sistematizações na área quanto aos aspectos sígnicos, simbólicos, de linguagem e comunicação, donde podem se destacar algumas ideias e metodologias como a visão de teatro como conhecimento que busca respostas para os questionamentos sobre o que é o mundo, o homem, a relação do homem com o mundo e com outros homens; as abordagens psicopedagógicas de Piaget que apontam para o desenvolvimento de linguagem e representação, o exercício artístico e coletivo; a construção de conteúdos inerentes à personalidade por intermédio da estética e o valor emocional, principalmente se considerar os trabalhos da pesquisadora e professora de teatro em educação Olga Reverbel, onde o teatro é situado como a arte de manipular os problemas humanos, apresentando-os e equacionando-os. Desta forma, para Olga Reverbel, o teatro possui uma função eminentemente educativa, na qual a instrução ocorre através da diversão. Nas palavras de Juliana Cavassin: “A educação está no desenvolvimento emocional, intelectual e moral da criança, correspondente aos desejos, anseios e proporcionar uma marcha gradativa das próprias experiências e descobertas. Isso porque possui uma concepção totalizante que implica e compromete todas as potencialidades do indivíduo e permite o alcance da plenitude da dimensão social com o desenvolvimento da auto-expressão”. Na pedagogia de Olga Reverbel, a diversão é importante porque ao imitar a realidade brincando a criança aprofunda Do

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Belo Sul Mato Grosso a descoberta sendo essa uma das primeiras atividades, rica e necessária, no auxílio do processo de eclosão da personalidade e do imaginário que constitui um meio de expressão privilegiado da criança. Para a pesquisadora, necessidade de brincar e jogar durante a i infância está relacionada ao desenvolvimento de orientação no espaço, de pensar, de comparar, de compreender, de perceber, de sentir para descobrir o mundo, de integrar-se com o meio, de construir o conhecimento e a socialização. Tais desenvolvimentos são necessários para a pessoa humana conforme observa a arte educadora Juliana Cavassin: “Nessa concepção, o teatro aplicado à educação possui o papel de mobilização de todas as capacidades criadoras e o aprimoramento da relação vital do indivíduo com o mundo contingente; as atividades dramáticas liberam a criatividade e humanizam o indivíduo pois o aluno é capaz de aplicar e integrar o conhecimento adquirido nas demais disciplinas da escola e, principalmente, na vida. Isso significa o desenvolvimento gradativo na área cognitiva e também afetiva do ser humano”. De acordo com Juliana Cavassin, pesquisadores como Richard Courtney, enfatiza que o teatro-educação é uma disciplina fundamental de aprendizagem por permitir o confronto dos problemas da existência e das modificações mentais necessárias para resolvê-los. “Courtney tem considerável pesquisa que demonstra a relação direta entre o Jogo Dramático e o processo criativo essencial para o desenvolvimento imaginativo. O autor defende que a imaginação dramática está no centro da criatividade humana, já que desde a infância a criança, ao final do primeiro ano, quando brinca pela primeira vez finge ser outra pessoa e desenvolve o humor, personifica o outro. Essa identificação é princípio básico do processo dramático e segue na juventude quando se imita algo e na fase adulta, quando se coloca no lugar de alguém. Para ele, a educação Dramática deve estar no centro de qualquer forma de educação que vise o desenvolvimento das características essencialmente humanas, pois a imaginação é a característica essencial que diferencia o homem dos primatas superiores, e, essa é essencialmente dramática”. Portanto, fica explicito a partir desses trabalhos sobre o teatro-educação, a importância da arte para o desenvolvimento e bem-estar da pessoa humana defendidos pela UNESCO. Para o jurista José Estênio Raulino Cavalcante, das normas formuladas a partir do artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos resultam uma série de garantias sobre o direito à cultura, à arte e à identidade desde a educação. “Assim, todas as pessoas devem poder se exprimir, criar e difundir seus trabalhos no idioma de

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS sua preferência e, em particular, na língua materna. Todas as pessoas têm o direito a uma educação e a uma formação de qualidade que respeitem plenamente a sua identidade cultural. Todas as pessoas devem poder participar da vida cultural de sua escolha e exercer suas próprias práticas culturais, desfrutar o progresso científico e suas aplicações, beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda a produção científica, literária ou artística de que sejam autoras”, sentencia José Cavalcante. No Brasil, um primeiro esforço de democratização de ensino ocorreu em meados da década de 1920, com a chegada do movimento Escola Nova surgido em fins do século XIX na Europa e nos Estados Unidos. Fundamentados nos avanços científicos da Biologia e da Psicologia, educadores como Célestin Freinet, Jean Piaget desse movimento propunha uma nova compreensão das necessidades da infância e questionava a passividade na qual a criança estava condenada pela escola tradicional, influenciado, inclusive o teatro brasileiro conforme relata em sua tese Militância e linguagem na rota da educação, Experiências de três grupos teatrais: TUOV, Ventoforte (SP) e GUTAC (MS), a doutora em Teatro pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, ECA-SP, Maria Cristina Moreira de Oliveira ao falar sobre o Movimento de Escolinhas de Arte, MEA, que se expandiu em vários pontos do país em fins da década de 1970. “O pensamento do MEA se associa com a Escola Nova, que se introduziu no Brasil principalmente através do americano John Dewey, o qual ganhou Anísio Teixeira como discípulo. Vale dizer que a trajetória deste educador brasileiro reúne em si, ao mesmo tempo, o pensador da educação, o administrador do ensino público, o organizador da pesquisa pedagógica e o defensor do direito de todos os brasileiros a uma educação pública de qualidade”. Outro dispositivo da Constituição Federal que ampara as expressões culturais e artísticas é o artigo 208 que resguarda o “acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um”. Ao abordar o tema da história de educação de artes no Brasil em seu livro Teatro Num Fazer Pedagógico, a pedagoga Amirtes Carvalho relata que, embora tenham ocorrido algumas políticas pontuais na implementação e desenvolvimento do ensino de artes nos períodos anteriores à Constituição de 1988, esses esforços sempre tiveram alguma dificuldade de concretização, sendo o mais recorrente a carência de capacitação dos arte-educadores. “Nos anos 70, o ensino e a aprendizagem de arte estavam baseados na orientação curricular do ideário no início do século XX. Não fazia parte deste ensino conhecer as modalidades artísticas, e as Do

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Belo Sul Mato Grosso relações entre elas e seus contextos, os artistas, as obras de arte e suas histórias. A inclusão da Educação Artística no currículo escolar, como atividade, trouxe um maior entendimento da relação que a arte tem na formação do indivíduo. No entanto tornou clara a situação de que não se tinha no país um número de profissionais em arte que atendesse qualitativa e quantitativamente a demanda criada pela Lei 5692/71, pois o professor deveria ter um domínio teórico e metodológico nas várias linguagens artísticas”, explica. Ao abordar a questão da formação de professores, Juliana Cavassin recorda que a implementação do ensino de artes, pela ditadura militar ignorou a necessidade de formação de profissionais dessa disciplina. “Faz-se fundamental nessa formação que se dê uma atenção para a histórica luta pelo estabelecimento do teatro na escola. É bom sempre lembrar que o ensino da arte só apareceu em plena ditadura militar a partir da lei 5692/71 como obrigatoriedade da educação, então denominado Educação Artística (a LDB de 1961 instituía o ensino de artes, porém não de forma obrigatória). A lei, contraditoriamente, exigiu professores com habilitações específicas obtida em curso de graduação de licenciatura plena, mas ignorou a inexistência de cursos universitários para a formação dos mesmos”. De acordo com Juliana Cavassi, essa postura, foi maquiada após três anos de implementação da disciplina nas escolas com cursos insuficientes para capacitar de forma eficaz os professores de artes: “Depois de três anos é que o governo federal criou cursos para a preparação dos professores de educação artística, contudo, eram cursos de licenciatura curta que em dois anos tentavam capacitar o professor para todas as linguagens e para todas as séries. A consequência prática no ensino das artes levou as escolas buscarem pessoas de áreas do conhecimento afins (comunicação e expressão e educação física) para ajudar a resolver o problema do currículo mínimo exigido pelo MEC”, denuncia. Segundo o livro de Amirtes Carvalho, esse problema da capacitação e da dificuldade de superar a forma tradicional de ensino das artes persistiu nas décadas seguintes mesmo após a Constituição Federal de 1988 com a abertura de debates sobre o assunto. Surgido na década de 1980, o Movimento Pró ArteEducação alcançou por meio de debates sobre inovações e mudanças da Lei de Diretrizes e Bases da Educação que o nome de Educação Artística fosse alterado para Artes e, conforme a Lei 9394 de 1996, que no artigo 26, parágrafo segundo, ocorreu a inclusão desta disciplina ao quadro de componente curricular obrigatório ligado à cultura artística. “O ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório nos diversos níveis 126

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos”. Desta forma, a Lei 9394 de 1996 impôs uma base estrutural de criação, produção artística com o desenvolvimento de percepção e análise de obras de arte e conhecimento da produção estética e artística da humanidade. Não obstante, essa inovação ainda foi insuficiente para que o ensino de artes superasse as práticas da escola tradicional, conforme afirma Amirtes Carvalho em seu livro. “Apesar de a arte ter agora o mesmo status das outras disciplinas consideradas pelos professores como fundamentais e consideradas como um patrimônio cultural da humanidade, isto não eliminou a visão de arte como um conteúdo apenas ligado ao lazer e à livre expressão e sem nenhuma relação com o contexto social”, conclui a pedagoga. Conforme o antropólogo Marcelo Gruman, durante muito tempo as disciplinas relacionadas à cultura e a arte foram reduzidas a um ensino e um conceito puramente utilitarista. “Na escola tradicional, baseada na pedagogia neoclássica, valorizavam-se principalmente as habilidades manuais, os ‘dons artísticos’, os hábitos de organização e precisão, mostrando ao mesmo tempo uma visão utilitarista da arte”, diz Marcelo Gruman em seu artigo Caminhos Da Cidadania Cultural: O Ensino De Artes No Brasil. Ao analisar o impacto da Lei de Diretrizes e Bases do Ensino de 1º e 2º graus, a partir do estabelecimento da Lei 5692 de 1971, que estabeleceu a atividade teatral no ensino de arte e criou o Componente Curricular, Educação Artística, com ensino de música, teatro, dança e artes plásticas, a pedagoga Amirtes Carvalho também observa que, na prática, o rumo tomado pelos professores de artes mantinha o viés assessório da escola tradicional. “Se por um lado a Lei 5692/71 possibilitou outras práticas artísticas com uma maior frequência, por outro lado, devido ao despreparo profissional, as aulas de artes eram confundidas com terapia, descanso das “aulas sérias”, fazer decoração da escola e das festas, a música usada para memorizar conteúdos de ciência, o teatro para os conteúdos de história e o desenho para o aprendizado dos números. O ensino de arte era então identificado pelas visões humanistas e filosóficas das tendências tradicionais escolanovistas, cujas diferenças centram na metodologia e no entendimento das funções do professor e do aluno”, afirma. Componentes das áreas de Ciências Humanas e Sociais, arte educadores e trabalhadores da arte se viram ameaçados de um retrocesso quando o governo Bolsonaro, começou a anunciar uma série ações para área de educação envolvendo cortes e mudanças estruturais no ensino do país.

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Belo Sul Mato Grosso

Iniciativas, Tentativas

Intenções,

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O primeiro ano do governo Bolsonaro foi marcado por uma série de manifestações contra a política aplicada para o setor de ensino. Quatro meses após assumir o cargo, o presidente causou uma grande onda de protestos ao atacar os cursos de ciências humanas com especial direcionamento para as faculdades de Filosofia e Sociologia, por meio de declarações em seu Twitter. “O Ministro da Educação Abraham Weintraub estuda descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas). Alunos já matriculados não serão afetados. O objetivo é focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina”, anunciou Bolsonaro em 26 de abril de 2019. Como reação, diversas entidades ligadas à educação e à pesquisa como Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, SBPC, que no dia seguinte, 27 de abril, publicou em seu site um comunicado afirmando que o conhecimento técnico não é o único fator que podem levar carreiras bemsucedidas nas áreas tecnológicas. “Eles requerem habilidades de liderança, inteligência emocional, compreensão da cultura, um entendimento do contexto econômico e social que as Ciências Humanas e Sociais podem prover”. Ao falar sobre a Ditadura, Cristina Mato Grosso critica avanço do discurso ultraconservador, cujo saudosismo do período ditatorial busca espaço até mesmo nas práticas educacionais. Deveras, componente das áreas de Humanidades, professores e estudantes de artes se manifestaram contra os ataques empreendidos pelo Ministério da Educação do governo Bolsonaro em 2019. Crítica à política defendida por Bolsonaro desde antes da eleição, Cristina Mato Grosso faz uma análise sobre os processos de ensino técnico e desvinculado de qualquer inciativa na formação de um pensamento crítico e autônomo ocorridos a partir do golpe militar e que se tornou projeto de política dos governos que sucederam a ex-presidenta Dilma Rousseff: — A Educação, área com a qual sempre estive ligada, era tecnicista. Aliás, tudo era tecnicista (uma característica de regimes autoritários, à qual se apega Bozo, desde a campanha). Faça uma rápida pesquisa sobre a corrente pedagógica tecnicista. Paulo Freire foi enterrado imediatamente, em 1964. Agora, novamente. O resto você imagina o que foi. Mordaça pura. Algo importante é fazer pessoas que se colocam desta forma a enaltecer o sistema oligárquico que não foi expurgado, entender que apenas avançamos pelas beiradas, a partir da Anistia,

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS depois pelas eleições diretas com o Collor, que saqueou o país economicamente —, afirmou a dramaturga. Área de conhecimento historicamente desvalorizada, artistas e arte educadores se uniram a outras disciplinas das Ciências Humanas nas manifestações que ocorreram pelo país contra a decisão anunciada pelo governo federal. Na tarde ensolarada de uma quinta-feira, dia 30 de maio de 2019, o protesto que começou na Praça Ary Coelho tomou as principais vias e se deslocou até a praça do Rádio, no centro da capital. Na época, o Movimento Estudantil calculou um número aproximado de 1,2 mil estudantes participantes do ato. No artigo Caminhos da cidadania cultural: o ensino de artes no Brasil, o doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Gestão de Políticas Públicas de Cultura pela Universidade de Brasília, Marcelo Gruman explica que cultura e arte são elementos essenciais para a formação dos indivíduos e de uma sociedade, sendo um direito previsto pelo conselho da Unesco em atenção aos Direitos Humanos. “A cultura é vista como direito dos cidadãos, e nessa medida eles têm o direito à informação, ao debate e à reflexão; o direito de produzir cultura; o direito de usufruir os bens da cultura; o direito à invenção de novos significados culturais; o direito à formação cultural e artística; o direito à experimentação e ao trabalho cultural crítico e transformador. Reconhece-se que a cidadania também se constrói a partir do respeito às formas como os indivíduos se veem e, mais ainda, querem ser vistos pelos outros”, afirma. Nome artístico do professor, ator, comediante e drag queen Guilherme Terreri, Rita Von Runt, de Ribeirão Preto, abordou o tema cultural durante entrevista publicada no canal do projeto Escuta, em 3 de novembro de 2021 e no seu próprio canal, o Tempero Drag, em 4 de novembro de 2021. Neste programa, Rita explicou que o artista não surge de uma personalidade extraordinária, mas a partir do acesso, pelo individuo de recursos educativos e estruturais que lhe incutem o prazer e o conhecimento da área: “O artista não é nada mais do que alguém que teve a chance de... Teve acesso a um piano. Teve uma flauta disponível. Tinha tinta para brincar. O artista é alguém que não foi privado de uma infância. Um artista é alguém que foi estimulado numa época. Todos. Somos artistas” refletiu a arte educadora. Contudo, ainda no início da década de 2020, o ensino sobre artes e cultura no Brasil permanece como fonte de debates e críticas no intuito de ser valorizado e de superar a tradição pedagógica dos séculos anteriores. Segundo o artigo do antropólogo Marcelo Gruman, é fundamental que haja um entendimento entre o Ministério da Cultura e o Ministério da Do

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Belo Sul Mato Grosso Educação afim de atender as necessidades básicas de acesso à arte e à cultura. “É imprescindível um diálogo cada vez mais intenso entre o Ministério da Cultura e o Ministério da Educação na consecução deste objetivo, qual seja, garantir o cumprimento do direito humano à educação e à participação na cultura, inscritos na Constituição Brasileira de 1988, e ratificado pela Convenção sobre a Promoção e Proteção da Diversidade das Expressões Culturais da UNESCO, ratificada pelo Brasil no ano de 2006”, diz Gruman na introdução de seu trabalho. Para o diretor do grupo Urgente Cia, Vitor Hugo Samudio, o ensino é fundamental para incutir o gosto pelas artes e o desenvolvimento das qualidades artísticas que podem fortalecer as expressões no Estado: — Se você tem uma criança que pode ter talento para algo, ou que até mesmo dentro de um aspecto da educação, sabe, se é uma criança que a gente percebe que tem a possibilidade de desenvolver, e se isso não for explorado, se a criança não tiver essa ajuda, se não tiver alguém ali para ajudar no sentido que ela possa caminhar, ela não vai para lugar nenhum. Então, assim, isso tem a ver com a cultura, tem a ver com tudo. Se você não ajuda, se você não fomenta, se você não instiga aquilo, se você não dá força para aquilo, entendeu, aquilo não vai crescer, vai ficar só ali. E aí, as possibilidades em que nós teríamos de fortalecer, a gente não consegue caminhar muito. Outra questão importante considerando que Mato Grosso do Sul, como todo o Brasil, é constituído por uma pluralidade cultural, é a questão da abordagem multiculturalista no âmbito pedagógico.

Pluralidades: Culturas e Direitos Iguais Tema complexo originado nos Estados Unidos, a partir dos movimentos de combate à discriminação racial e da luta pelos direitos civis no final do século XIX, sintetizado aqui de forma simplista o Multiculturalismo, ou pluralismo cultural, é um termo que se refere à existência de muitas culturas numa região, cidade ou país, com no mínimo uma predominante. De acordo com o livro O Dilema Multicultural do doutor em antropologia ela Universidade de Colúmbia, EUA, Lorenzo Macagno o multiculturalismo se apresenta como terreno pantanoso da pósmodernidade como elemento de política governamental com representações e distribuições de recursos materiais e simbólicos que influenciam nas relações entre as diversas culturas presentes num único Estado, rompendo com paradigmas históricos de um lado, como a promoção de debates promovidos por grupos

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS historicamente subjugados a uma cultura hegemônica e, de outro, a tensão causada pela interferência destes grupos nas relações tradicionalmente assumidas por um grupo conservador. “Ao celebrar a diversidade e enfatizar os particularismos culturais, o multiculturalismo estaria estimulando a produção de ‘micronarrativas’ sob a forma de reivindicações atreladas a discursos de raça, etnia, religião e gênero. Por vezes, essas reivindicações são suscetíveis de assumirem formas mais radicais, como, por exemplo, a construção de micro-histórias que conjuram contra as epistemologias dos ‘dominantes’ (na sua versão mais maniqueísta, aquelas derivadas do mundo ‘ocidental’, ‘branco’ e ‘masculino’) ”. Tomado como essencial para a pessoa humana, esse novo quadro pretende a validação do par arte-cultura considerando todas as manifestações, inclusive, as historicamente excluídas, o que só recentemente tem sido revisto no país. “Estudiosos de arte-educação afirmam que um dos poucos avanços educacionais no Brasil nos últimos anos foi a introdução da preocupação com multiculturalidade nas escolas, entendida como o reconhecimento de diferentes códigos culturais e de diferentes necessidades culturais, da necessidade de convivência entre culturas e dentro da mesma cultura”, relata o antropólogo. Contudo, esse novo horizonte precisa ser efetivado para além do currículo escolar atentando igualmente para o fato de que as culturas se encontram em oposições umas às outras, o que exige uma dialética de aproximação e respeito. O texto As Orientações Curriculares para o Ensino Médio – Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, publicado em 2006 pelo Ministério da Educação, é um exemplo de como o tema da diversidade cultural entrou na agenda do Estado brasileiro quando o assunto é ensino das artes. “O item 1.6, intitulado “diversidade e pluralidade cultural”, afirma que o ideário sobre o Ensino da Arte contempla as ‘diferenças de raça, etnia, religião, classe social, gênero, opções sexuais e um olhar mais sistemático sobre outras culturas’, denunciando, ainda, a ausência das mulheres na história da arte e nos seus circuitos de difusão, circulação e prestígio. Considera a educação especial, tomando o aluno de necessidades educacionais especiais como detentor de uma cultura de minoria no espaço escolar, pondo em pauta a necessidade de reforçar a herança estética e artística dos alunos de acordo com seu meio ambiente, e exige valores estéticos mais democráticos, chamado de alfabetização cultural: possibilitar que o aluno desenvolva competências em múltiplos sistemas de percepção, avaliação e prática da arte”, observa Gruman. Não obstante, no espaço escolar, as iniciativas em superar o atavismo no ensino de artes, permaneceram insuficientes. Em sua pesquisa Cultura Regional E O Ensino Da Arte: Caminho Para Do

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Belo Sul Mato Grosso Uma Prática Intercultural? Estudo De Caso: E. M. Sulivan Silvestre Oliveira – Tumune Kalivono “Criança Do Futuro”, de 2008, a mestra em educação pela Universidade Católica Dom Bosco, UCDB, Nilva Heimbach, relata que o ensino de arte e cultura é uma preocupação que não se limita à disciplina de Artes. “A preocupação com o ensino da arte e cultura regional indígena, não é específica da disciplina de Artes, recebendo contribuições das disciplinas extracurriculares de Cultura e Língua Terena, solicitação da comunidade local e ministradas por professores indígenas, como marca da diferença e da identidade escolar”. Para o antropólogo Marcelo Gruman, a emersão de uma visão multiculturalista, defendida pela UNESCO desde a conferência de Bogotá, foi um dos fatores da recente derrubada da perspectiva clássica de ensino das artes. “Mais de três décadas se passaram quando, em 1978, na Conferência de Bogotá, o plano elaborado para o período 1977-1982 deixava clara a importância do estudo de culturas regionais, muitas vezes fruto de combinações e ressignificações simbólicas entre o “dentro” e o “fora” trazendo também a questão da diversidade cultural intrassocial subestimada ou negligenciada no período pós-guerra mundial. Novamente vislumbramos a promoção da compreensão mútua como fonte de paz duradoura entre as nações”, analisa. Entretanto, a análise que a mestra em educação Nilva Heimbach faz sobre o ensino das artes a partir do contexto pluricultural da escola municipal é de que existe uma discrepância entre o interesse dado ao tema da identidade étnica e as manifestações artísticas. “A questão indígena, referente à identidade, parece melhor contemplada teoricamente. O mesmo não acontece com as manifestações artísticas dessa etnia no espaço escolar da cidade de Campo Grande, tornando-se instigante a compreensão dos aspectos identitários, nas regiões de fronteiras étnicas. O discurso leva a crer que determinados fatos e acontecimentos são naturais, ocultando as construções sociais permeadas pelas relações de poder”, afirma Nilva Heimbach. Naturalmente, com “relações de poder” a mestra em educação está se referindo à herança colonial europeia que permanece hierarquizando as culturas, relegando aos povos originários um espaço inferior de expressões enquanto padronizam e focam quase que restritamente nas expressões artistas e culturais importadas da Europa como formas elevadas de manifestações. “É necessário o rompimento com a visão monocultural para um posicionamento intercultural, sem discriminação da multiplicidade de linguagens e textos culturais, não ignorando o diferente, o não padronizado. Entender que é no discurso que os sujeitos são referenciados em situação 132

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS desfavorável, menosprezados e deslocada a diferença. Entender a necessidade de considerar a cultura de cada componente escolar, nos elos que ligam e separa, na busca de um terceiro espaço em processo de negociação. Campo fértil para reflexões, com rupturas na criação de estereótipos e mitos que se fazem presentes como estratégia de marginalização. O encontro destas fronteiras depende do olhar construído social e culturalmente”, critica Nilva Heimbach. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, mestra em educação artística pelo Colégio Estadual do Sul de Connecticut, EUA, e doutora em Educação Humanística pela Universidade de Boston, EUA, Ana Mae Tavares Bastos Barbosa, professora titular aposentada da Universidade de São Paulo e professora da Universidade Anhembi Morumbi, explica em seu artigo Notas sobre as histórias da democratização do ensino da Arte, que a história do ensino de arte no Brasil se desenvolve com restrições as classes trabalhadoras desde a colonização. Entretanto, sua importância é fundamental para a vida e compete que esteja presente nas lutas por direitos iguais. “Reclamamos muito que no Brasil as Artes são dominadas pelas elites, mas as Artes não são naturalmente das elites”, afirma. Por meio de seu artigo, Marcelo Gruman observa que a necessidade de produzir e ter acesso à cultura e a arte pelo ser humano se relacionam com a capacidade de construção da própria realidade e das relações sociais. “Somos humanos porque somos seres produtores e produtos de cultura, porque construímos socialmente nossa realidade, porque arbitrariamente damos sentido à nossa existência. Esta existência e seus valores são representados simbolicamente de diversas maneiras, uma delas sendo a atividade artística”, analisa Marcelo Gruman. Não à toa, ao narrar em Teatro Brasileiro Contemporâneo: Linguagem e Militância, a história da origem e dos trabalhos da Escolinha de Arte no Brasil, Cristina Mato Grosso cita como os pacientes da psiquiatra Nise da Silveira tiveram melhoras a partir de seu trabalho no Hospital Psiquiátrico de Engenho de Dentro que substituiu a terapia ocupacional pelo que denominou a arte de lidar. “A Escolinha também teve muita influência do pensamento de Carl Gustav Jung através da convivência com a dra. Nise Da Silveira, psiquiatra que, trabalhando o processo de recuperação da consciência, percebeu a possibilidade de reintegração social do paciente através da expressão artística, chegando mesmo a fundar o Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro, em 1952”. Em Teatro Num Fazer Pedagógico, a pedagoga Amirtes Menezes de Carvalho e Silva, explica que, nas décadas de 1950 e 1960, — sob influência do Movimento Escola Nova — surgiu uma pedagogia centrada nos alunos. “As aulas de arte passaram a Do

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Belo Sul Mato Grosso valorizar a livre-expressão e o progresso de trabalho. A função do professor era a de oferecer ao aluno condições de se expressar de forma espontânea e pessoal, valorizando-lhe a criatividade sem preocupação com o resultado”, descreve. De acordo com Marcelo Gruman, essa superação do ensino tradicional é fundamental para atender ao desenvolvimento humano e social por meio do ensino de arte. “A arte é um meio de representação da realidade, uma construção social, percepção de nós mesmos no mundo possibilitando-nos assumir modelos de identidade e comportamento. Tais representações do mundo podem nos inspirar para a compreensão do presente e criação de alternativas para o futuro. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais de 1997, a arte é definida a partir de expressões como ‘conquista da significação’, ‘experiência de apropriação’, “desenvolvimento da percepção estética”, “consciência do lugar no mundo”, evidenciando o papel ativo do indivíduo no processo de construção de sua(s) identidade(s), posição distinta daquela advogada pelo ensino de arte tradicional que sacralizava a figura do professor, dono do saber”, explica Gruman. Consequentemente, ao se pensar a atividade artística, sim. Se a educação se apresenta como lugar de consolidação do direito a arte, ela não é a única. O caminho de uma cultura artística valorizada passa também pelas ações do poder público junto ao setor artístico cultural e à população.

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Capítulo Sexto:

“As cores das Pedras, Manuel”

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experiência como expectador privilegiado pelo Projeto a Escola Vai Ao Teatro acendeu em mim, um gosto ainda maior pela arte, sobretudo pelas artes dramáticas. Desde então, junto com meus amigos de sala, Elaní Araújo, Hudson Ortega, Ivete Dias e Eliane Acosta, formamos um grupinho de teatro nos trabalhos de sala. Grande incentivador foi o professor José Carlos, que ministrava as aulas de História e permitia que os grupos apresentassem algum trabalho artístico relacionado aos capítulos que deveriam estudar para um seminário que, a rigor, sempre se dava depois de cada representação. Daí para o teatro dos grupos de jovens da igreja católica foi um pulo. Em 2002, quando cursava pedagogia em Ponta Porã, a prefeitura abriu dois cursos de teatro sucessivos. Ali, tive a oportunidade de aprender técnicas específicas e ver como a arte é importante para a vida plena de uma pessoa. Lembro que se formaram três grupos, cada um de acordo com um período do dia. Naturalmente, os mais velhos, pessoas na faixa de 28 a 50 anos de idade, se concentraram no período noturno. Os outros dois grupos eram mistos, com concentração maior de adolescentes e jovens na faixa entre 14 e 27 anos. No dia das apresentações, cada um foi questionado sobre os motivos de se inscrever naquele curso. De fato. Para minha surpresa, nem todos queriam ser atores. Haviam estudantes que desejavam vencer a timidez e se desenvolver nos trabalhos em grupo de suas escolas, haviam vendedores do comércio local que almejavam um melhor desempenho junto aos fregueses em seus trabalhos, tinham outros que buscavam superar suas dificuldades pessoais de relacionamento. Durante os ensaios, cada uma dessas dificuldades pessoais e profissionais vieram à tona. Algumas vezes, o estresse e o medo diante das barreiras internas, como a timidez, levaram certos participantes ao choro. Outras vezes, a tensão mútua chegava a discussões acaloradas. Alguns desistiram no meio do processo. Outros foram até o fim e se declaram transformados para melhor. Não foram poucos os que se viram mais abertos ao Do

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Belo Sul Mato Grosso diálogo, as diferenças, confiantes em suas tarefas diárias, em suas relações. A questão do diálogo e das diferenças, aliás, foi particularmente um ponto bastante enriquecedor considerando que Ponta Porã é uma região que faz fronteira com o Paraguai, onde o trânsito entre os dois países é diário. Lembro de me ver obrigado a redobrar a atenção com companheiros que não pronunciavam bem o português ao passo em que, por outro lado, sempre tinha alguma dúvida sobre o país vizinho prontamente esclarecido por eles. Outra coisa importante é que a prefeitura além de ceder um auditório do próprio passo municipal, investiu em produtos cenográficos. Recordo-me de um dia em que o professor pediu aos grupos para pensar os cenários e figurinos e decidir o que precisaria para confeccioná-los. Uma ou duas semanas depois, estávamos as voltas com rolos de TNT, papel pardo, tesouras e outros pequenos adereços de papelaria e aviamentos que, num trabalho de dois dias inteiros, se transformaram em árvores, casas, cercas e roupas cenográficas, e. Exatamente! No ensaio final. A prefeitura, naturalmente, convocou a imprensa. — Bento que é bento, é o frade! —, eu dizia, encarnado no personagem de sotaque gaúcho, saltando sobre um dos colegas de cena, esparramado ao chão quando... Fato! Neste exato instante, a câmera do jornalismo de TV local jogou uma luz tão forte que fiquei cego. O lado bom é que não pisei no companheiro de cena. O lado ruim é que tive de repetir outras duas vezes, sempre com aquela luz no rosto. Ossos do ofício! Não obstante, é preciso recordar. Adaptabilidade e solução rápida de dificuldades como o famoso branco, fazem parte do mundo teatral. Foi assim que cada participante, e cada grupo superou cada dificuldade. No caso do grupo em que eu estava e que iria representar No País dos Prequetés, da escritora e dramaturga Maria Clara Machado, o elenco era maior que o número de personagens. A solução encontrada foi surpreender o público com duas Nita, uma primeira, antes do País dos Prequetés, e outra que entrava em cena por uma marcação imediatamente oposta à da retirada em cena da primeira. Uma boa maquilagem ajudou a reforçar a semelhança entre as atrizes Katiana Denize e Sheila Vilhalba.

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS Naquele mesmo ano, a prefeitura de Ponta Porã fez das peças um dos atrativos durante a Exporã e, entre o final de novembro e dezembro, o término da 2ª oficina de teatro promoveu o primeiro Festival Estudantil Municipal de Teatro de Ponta Porã, FEMTEPP.

Tradição Teatral: Como nascem as peças de teatro Confluência de todas as outras linguagens artísticas e dos avanços tecnológicos, para o teatro o desenvolvimento se passa mais devagar do que nas outras linguagens, e não foi senão depois das vanguardas se consolidarem na literatura, na escultura e nas artes plásticas que, na Europa do início do século passado, surgiram o teatro do absurdo de Samuel Beckett, ou, o Teatro Épico de Bertold Brecht, que agregam elementos do surrealismo, do dadaísmo, do cubismo, do expressionismo e do impressionismo. Já a História do teatro brasileiro é marcado pela busca de uma identidade própria e da sociedade de cada período histórico do país. Ganhou ares de modernidade a partir de Vestido De Noiva, de Nelson Rodrigues, e abraçou as lutas e as expressões das classes populares nas obras de Augusto Boal e Chico Buarque. Já em Mato Grosso e, após a divisão do Estado, em Mato Grosso Do Sul, essas revoluções temporais ocorreram, notadamente, com o Teatro Universitário de Dourados, TUD, em 1974, e, sobretudo, com as ações do Grupo Teatral Amador Campo-Grandenses, GUTAC (1971) que passou a ser o Instituto de Educação e Cultura Conceição Freitas, INECON, em meados de 2000. Na visão do dramaturgo e cineasta sul-mato-grossense Mhiguel Horta, o GUTAC/ INECON tinha um merecido prestígio: — Na década de 1970, em pleno governo militar, o que a gente tinha de teatro mais representativo era o grupo do Américo Calheiros. Com Cristina Mato Grosso e Américo Calheiros, que eles eram os bam bam bans aqui no teatro. Inclusive, quando eu fui morar em São Paulo acabei me encontrando com eles lá, que estavam viajando pelo projeto Mambembe, estavam com uma peça no Teatro Eugênio Kusnet. Inclusive eu fui assisti-los lá. Então era um povo que trabalhava muito em função do teatro. Tinham uns projetos nacionais e aí eles entraram nesse projeto nacional. Nesse período, surgiram peças que falavam sobre temas universais e sociais a partir da cultura, da fauna, da flora e de personalidades importantes para a formação do Estado, como Do

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Belo Sul Mato Grosso Tia Eva e Foi No Belo Sul De Mato Grosso, de Cristina Mato Grosso, como observa a mestra em Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Bruna Franco Neto, em seu trabalho de dissertação Das Cenas Ao Ato: O Processo Dramatúrgico Em Cristina Mato Grosso:“...enfatizando o microcosmo da dramaturgia, Cristina Mato Grosso, em seu papel como intelectual sul-mato-grossense, propõe um teatro que é marcado tanto pela ruptura quanto pela tradição do teatro popular; buscando a identificação de uma linguagem regional, mas também nacional. Um teatro que mesmo utilizando o cenário de Mato Grosso do Sul como palco de suas histórias, contempla uma crítica de caráter universal”, afirma. Para Mhiguel Horta, as iniciativas do GUTAC lideradas por Cristina Mato Grosso e Américo Calheiros são um marco na história do teatro que precisa ser valorizado no Estado: — A Cristina é a história do teatro brasileiro, sabe, eu vi vários espetáculos dela. É uma figura que teve um teatro profissionalíssimo. O trabalho deles era impecável. Tanto ela quanto o Américo. Tinham ideias inusitadas, maravilhosas. Eu vi um espetáculo do Américo, por exemplo, que tinha uma noiva em cima de uma bicicleta. Era, tipo, um operário casando com uma menina. E, sabe, ela com um véu por cima da bicicleta, passava, assim no palco. Era muito bonito! E vi vários espetáculos dela, inclusive com Jorge de Barros, se eu não me engano A Noiva. Então, não lembro agora, o título do espetáculo, mas era um espetáculo fantástico, sabe. Era, simplesmente, genial. Convidado para o remake da novela Pantanal da TV Globo, o jornalista e ator Expedito Di Montebranco concedeu entrevista para esse trabalho refletindo sobre a questão da identidade do teatro sul-mato-grossense. — Temos nosso modo de fazer, mas que, a meu ver, não se caracteriza como uma identidade. O Estado é novo e estamos formando com ele a identidade que creio será definida daqui uns cem anos. Hoje temos a influência da Bolívia, Paraguai e do próprio Mato Grosso, mas no teatro nossas referências vêm de diferentes caminhos, seja o que vemos e estudamos no eixo Rio/São Paulo/Curitiba/Goiás ou ainda pelo que aprendemos nas Faculdades. Por isso digo que temos nosso jeito de fazer, mas ainda não é uma identidade, porque estamos justamente ainda no processo de descoberta. Considerando o período histórico que antecede a divisão do Estado, o cineasta Mhiguel Horta avalia que a região tem uma tradição maior na produção de cinema, com destaque para o pioneirismo da atriz Conceição Ferreira. Nascida em Portugal, no dia 21 de abril de 1904 e falecida em 29 de maio de 1992, a atriz ganhou destaque por interpretar vários personagens em diversos lugares, de Lisboa a Bela Vista, município do sudoeste de Mato 140

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS Grosso do Sul que faz divisa com o Paraguai. — É óbvio que tem alguns trabalhos acadêmicos que falam de trupes de teatro que passaram por aqui. Tem a história da Conceição Ferreira que era uma atriz portuguesa que acabou morando aqui. Participou do filme A Alma do Brasil. Eu acho, nesse ponto, que o cinema tem mais tradição, porque a Alma do Brasil foi feito na década de 1940, sem recurso algum e tal, e foi uma coisa que foi um acontecimento aqui na cidade. Teve muito prestígio, teve lançamento e tudo mais. Eu acho que o cinema tem uma pegada mais de tradição aqui no Estado por incrível que pareça. —, avalia o cineasta. Expedito di Montebranco também destaca sua experiência com o cinema: — Justamente porque não temos visibilidade. Quando o cinema nacional chega aqui, eles vêm pronto. Cabeça A Prêmio, dirigido por Marco Ricca recebeu incentivo de 1 milhão do Governo do Estado. Quando fui fazer o teste o próprio Ricca me tirou de lá e disse que eu não precisava e arrumou um papel pra mim (papel curto feito sempre), porque só estando aqui é que percebem que temos bons atores sim e bons técnicos mas aí já é tarde. E entendo que eles não podem sair de lá arriscando chegar aqui e não encontrar. Não obstante, de acordo com o ator, a busca por uma identidade na dramaturgia do Estado se perdeu nos dias contemporâneos. — Na década de 80 eu já estava no meio artístico, eu era artista plástico, hoje denominado artista visual e também poeta. Lembro que existia realmente essa busca pela nossa identidade cultural e que hoje me parece acomodada. Creio que isso tem a ver com várias coisas. Naquele momento lutávamos por tudo, pela criação de leis de incentivo, fundos e etc... Conseguimos tudo isso. —, analisa Expedito. Atualmente, as companhias agregam membros formados, estudiosos e amadores, funcionando num sistema de rotatividade de direção. Assim, os trabalhos dramatúrgicos vão muito além da trivial decoração de textos e da representação instintiva. Segundo o diretor e ator Leonardo de Castro, do Circo do Mato, a companhia se utiliza de técnicas de acordo com a necessidade dos efeitos que desejam levar ao público: — Um estudo em cima do que queremos é realizado pensando principalmente qual a necessidade dramatúrgica, lúdica, emotiva e efetiva que esse efeito pode causar. Muitas vezes são coisas simples, como a escolha de gestos específicos, outras mais complicadas, como a concepção dos figurinos, maquiagem, adereços e até das técnicas circenses empregadas nas tramas. Isso, Do

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Belo Sul Mato Grosso naturalmente se estende a todas as áreas da criação: sonoplastia, luz e também da produção: o que o público vivencia antes de entrar em nosso espaço também é pensado em relação à peça”. Pesquisador do método Stanislavski, o ator e diretor Ewerton Goulart, do Teatral Grupo de Risco, explica que há sempre uma presença das técnicas stanislavistas nas representações. — Por exemplo, na montagem atual, cada cena foi aberta para improvisação antes da definição de um desenho final. E elementos da improvisação casam com a análise ativa do Stanislavski. —, afirma. Da Companhia de Teatro Rob Draw, Érico Bispo também destaca o cuidado com uma base teórica nas atividades do grupo que vai além dos clássicos. — Nós nos mantemos atentos e em busca das dramaturgias e linhas dramatúrgicas presentes nas manifestações populares brasileiras, pois mesmo que os mestres e mestras populares não utilizem esse termo “dramaturgia”, tem ela presente de forma natural em seus fazeres e folguedos, na linha do Santiago Garcia. —, afirma. Além das bases teóricas, as companhias também investem em uma série de processos que começam desde a criação até a primeira representação de um espetáculo, como explica Bispo: — Quando atuamos com a linha de trabalho dramatúrgico embasados no Santiago Garcia para a montagem do espetáculo Negreiro, em 2017, procuramos entender de certa forma como se dava as montagens dele, a construção dramatúrgica com os atores para podermos vivenciar isso na nossa sala de ensaio. Mas como o próprio Santiago Garcia diz, todas as técnicas precisam ser adaptadas ao seu tempo e seu contexto, dessa forma, munidos também da pesquisa em cultura popular, seus corpos e suas dramaturgias introduzidas no trabalho da Cia pela Ana Vieira, mesclamos essas experiências para poder obter um resultado mais apropriado para o que queríamos mostrar para o público. Outro membro do Teatral Grupo de Risco, a diretora e atriz Fernanda Kunzler explica que a maioria dos trabalhos levam um grande tempo para serem constituídos e demandam uma preparação que excede o pensamento comum dos críticos locais: — Primeiro se faz a delimitação do tema que queremos falar. Por exemplo: a questão da exploração da erva mate. Iniciamos com trabalho de mesa, pesquisas, leituras.... Esse assunto acabou levando a outros (relação de trabalho, empregado - empregador, exploração da mão de obra, desenvolvimento do Estado, migração etc., etc.). São assuntos que não morrem em si e geram outros”. 142

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS Com diversas ações na promoção de debates de cunho social na capital, como o seminário Arena Aberta, que debate arte, política e cidadania e a Temporada do Chapéu, festival de teatro de rua, circo e performance de grupos de tetro da capital e de outras regiões, o grupo Teatro Imaginário Maracangalha é reconhecido por suas apresentações e intervenções de rua, conforme explica o ator e diretor Fernando Cruz. — Então o próprio espaço já nos define, a rua. E rua para nós significa todo o local apto a receber espetáculos. Pode ser praças, parques, calçadões, assentamentos, comunidades ribeirinhas, aldeias indígenas, ocupações indígenas, retomadas, acampamentos, tanto na cidade como no campo. Então esses espaços ao céu aberto. E esses locais influenciam na estética do grupo, seja na maneira plástica, cenográfica, sonora, compondo a nossa dramaturgia. E essa dramaturgia, esses espetáculos que ocupam a cidade, eles também são integrados a ações de diálogo com a cidade além dos espetáculos, e são as intervenções que nós realizamos ali, como o Sarobá, que é uma intervenção de arte pública com linguagens múltiplas de artes, música, dança, teatro, literatura, cultura popular, cultura da infância, escambo, literatura, festa, cortejo. De acordo com Fernando Cruz, o grupo Teatro Imaginário Maracangalha realiza suas produções de forma colaborativa e divididas em etapas, passando pelo período de criação que prescinde a pesquisa, da construção do texto dramático, dos adereços e figurinos até a montagem final: — Por exemplo, nós estreamos agora um trabalho, Miragens do Asfalto, que é um trabalho oriundo de uma pesquisa que nós chamamos Segredos do Cascudo, a qual nós ficamos desde 2013 até agora investigando a vida dos trabalhadores, trabalhadoras, moradores da região do Cascudo, no Bairro São Francisco compreendendo até a esplanada Ferroviária. E nos detivemos na vida dos trabalhadores, trabalhadoras vinculados à Ferrovia, tanto os trabalhadores formais da Ferrovia, quanto os informais que acabavam sendo a população da região do Cascudo. E para isso nó partimos para o campo, para entrevistas, entrevistas, uma série de entrevistas. Encerrada a fase das entrevistas e pesquisas para o espetáculo que estrearia no dia 13 de novembro de 2021, no Sesc Cultura, na capital, os trabalhos de produção seguiram para a próxima etapa: — Depois a sistematização das entrevistas, escolhendo temas: trabalho, saúde, família, amores, festas, perdas, mortes. Dividimos por temas essas histórias, sistematizando, e, aí tem o processo de produção que é escrever projetos para capitanear recursos para a montagem, montar equipe para criação de figurino, cenografia, as opções. Aí nós temos os trabalhos divididos Do

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Belo Sul Mato Grosso do grupo e depois organizado pelo próprio grupo. Faço tanto a direção e a supervisão desses trabalhos, na verdade. De estética, mesmo, que é a parte de definição do conteúdo e da forma, mas sempre com um olhar do grupo, com a construção do grupo. Então na verdade é um trabalho de coprodução, ele é dividido. E tudo o que a gente ganha a gente divide igual dentro do grupo, todos nós ganhamos o mesmo valor da produção quando se capta algum recurso. Então, na verdade, a produção envolve esses processos de pesquisa, e os processos de viabilização material dessa pesquisa que acaba cuminando num trabalho efetivo que é a forma, o espetáculo, a performance, a intervenção de rua, seja em qual formato ele for. Nosso trabalho é todo feito de forma colaborativa dentro do grupo. —, descreve Fernando Cruz. Se, por um lado, artistas veteranos como Expedito Montebranco e Mhiguel Horta não veem uma tradição nas artes dramáticas sul-mato-grossense, por outro, a referência dos trabalhos do GUTAC/INECON são uma constante quando o assunto é a forma de produção coletiva de espetáculos de cunho social como no caso de Miragens do Asfalto, Areatôrare: O Verbo Negro E Bororo Do Índio Profeta, do Tetro Imaginário Maracangalha. Foi o que ocorreu durante a entrevista com Beth Terras, atriz e diretora da ADOTE, que também opera em produção coletiva: — Aqui até os alunos ajudam nessa construção. — Sabe o que isso me lembra, os trabalhos do Instituto de Educação e Cultura Conceição Freitas, INECON. —, respondi. — Sim. Começados pela Cristina Mato Grosso e Américo Calheiros. São os precursores do teatro local. —, afirmou. De fato, em seu livro Teatro Brasileiro Contemporâneo: Linguagem e Miltância, Cristina Mato Grosso registra momentos de produções do GUTAC/INECON similares aos descritos pelos artistas de diversos grupos da atualidade, como no caso do Teatro Imaginário Maracangalha. “O primeiro espetáculo da trilogia, Anhanduí (1984), mais tarde Anhanduizinho, Meu Amor (1991), foi elaborado com base no material de pesquisa do grupo e dos alunos de uma escola rural. Os atores, numa primeira etapa, trabalharam envolvendo professores e alunos em uma pesquisa que constituiu em coligir depoimentos sobre vivências e lembranças dos moradores da região, levando alguns aspectos da cultura rural. Numa segunda etapa, este material serviu para a criação teatral da trupe e para atividades interdisciplinares escolares”, descreve a dramaturga. Cristina também descreve ações de diálogos e de debates sobre a realidade levada à cena realizadas junto a assentamentos do Movimento Sem Terra, MST, outra pratica que alguns grupos de tetro contemporâneo parecem haver herdado do GUTAC/INECON que se faz observável no relato de Fernando Cruz a 144

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS respeito das ações do Teatro Imaginário Maracangalha no projeto da peça Areatôrare: O Verbo Negro E Bororo Do Índio Profeta: — O espetáculo, além dos festivais cumpriu um papel muito importante ao percorrer assentamentos, aldeias, territórios indígenas, retomadas indígenas em pleno conflito. Florestas, floresta amazônica, pantanal, litoral brasileiro, as grandes metrópoles do país, e está em cartaz há dez anos. Importante, também, do trabalho, é a formação dos atuadores do grupo, a nossa formação quanto a artista, quanto atuador, ator, atrizes, que são as relações de convívio no processo da pesquisa com todos esses segmentos envolvidos, inclusive a voz principal que são os indígenas, os povos indígenas, nos colocando numa relação direta de convívio de dialética, de troca, de construção de conhecimento, nos envolvendo numa diversidade cultural, também, ao circular pelo país e ver que essa história dialoga com o país inteiro. Assim, as companhias de teatro campo-grandenses têm levado às ruas e aos palcos do Estado uma variedade de temas que abordam questões contemporâneas locais e universais, entre obras autorais ou renomadas do país ou do cenário internacional, mas ainda são vistos com desconfiança por parte dos espectadores.

Do Outro Lado da Rua: Procura-se Arte de Qualidade Em 7 de maio de 2007, após mais uma tarde intensa de ensaios do Grupo Teatral Gritac — naturalmente uma homenagem jocosa ao GUTAC — para o espetáculo de Do Outro Lado Da Rua, do escritor, diretor e ator Djandre Rolin com codireção do ator Eduardo Miranda, o Dudu, uma parte do elenco resolveu ficar no Centro Cultural José Otávio Guizzo para assistir ao espetáculo do grupo de atores da Faculdade de Artes do Paraná. Inspirado no poeta sul-mato-grossense Manoel de Barros, a peça Descoisas, Pré-Coisas E, No Máximo, Coisas, atraiu um grande público. Enquanto aguardávamos na fila da bilheteria, Dudu Miranda começou a reparar que o público era muito maior em relação ao do espetáculo de uma companhia local muito conhecida e premiada cujo espetáculo havia assistido naquela mesma semana. Incomodado com a constatação, Dudu começou a questionar algumas pessoas sobre aquela situação. — Por que você veio assistir a um espetáculo de um grupo de fora e quando é uma companhia daqui você não vem, véio? —, questionou indignado a uma conhecida que encontrara na fila. — Porque é de fora. Eu acho que é muito melhor. —, resDo

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Belo Sul Mato Grosso pondeu a moça abordada. — Mas, como você acha que é melhor, se nem conhece os artistas, cara? —, insistiu Dudu. A entrevistada, entretanto, deu-lhe de ombros encerrando a conversa. Para mim, aquela seria a primeira vez em que o problema da valorização artística cultural sul-mato-grossense se apresentaria. Desde então, os produtores de arte do Estado viriam a público em várias outras ocasiões para denunciar ora o salário não pago por serviços prestados a instituições estatais, ora o baixo investimento na área, e, para se posicionar contra uma política que — segundo eles — privilegia a arte de outras localidades em detrimento dos movimentos e expressões regionais que terminam por incidir na população em forma de uma visão que desvaloriza e desconhece a própria identidade cultural e, por conseguinte, artística. De fato, tudo indica que ainda predomina um preconceito de que o trabalho dramatúrgico local está limitado à pura vontade de atuar, sendo mero resultado de decoração de textos e representações sem profundidade, como declarou o aposentado Nestor da Silva, 67, que encara o teatro local como “coisa de brincadeiras, de crianças”. — Ah, é perda de tempo! Teatro bom é o de São Paulo, mas eles já não vêm aqui como antigamente. Os daqui não tem o desenvolvimento dos de lá. —, disse-me o aposentado com quem mantive breve conversação na praça Dr. Ary Coelho, enquanto esperava dar o horário do espetáculo que aconteceria no Sesc Cultura, localizado na avenida Afonso Pena. Com as lembranças desses episódios que testemunhei, levei o questionamento sobre a valorização das artes produzidas no Estado e, em especial na capital, aos entrevistados dos diversos trabalhos jornalísticos produzidos durante o curso de Jornalismo. — Vitor, entre as pessoas da região que formam público, há os que dizem que as produções teatrais e a classe artística do Estado não têm conteúdo, nem identidade própria e no geral se resumem a obras de cunho infanto-juvenil, e por isso não despertam interesse como as produções de fora. Isso procede? — Eu acho o seguinte: temos aí alguns caminhos. Temos, sim, dentro de medidas técnicas aprofundadas num aspecto mais profissional, produções que são um pouco mais frágeis, no sentido da qualidade, do aprofundamento. Temos, assim como em qualquer outro lugar, não é só aqui. Temos, sim. Mas nós temos também pessoas extremamente capazes, obras muito boas, trabalhos muito bons. —, analisou o produtor do grupo Urgente Companhia, Vitor Hugo Samudio, durante a entrevista para o radiodocumentário no Laboratório de Radiojornalismo II.

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS Entrevistado para a matéria da disciplina de Jornalismo Especializado ministrada pela professora Michelle Roxo, no segundo semestre de 2020, o ator, músico e diretor da Cia de Artes Rob Drown, Erico Bispo, opinou que, além das questões de cultura e estruturais, as críticas são fruto de uma influência midiática que privilegia artistas dos grandes centros do país, como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Curitiba, por exemplo. — As pessoas que acreditam que o teatro realizado aqui não tem “qualidade” ou “profundidade”, na verdade estão mais em busca de ações midiáticas do que da dita “profundidade” no trabalho. —, afirma. Para o ator, o teatro sul-mato-grossense tem tradição e é muito respeitado Brasil afora. — E para exemplificar isso cito grupos como o Teatral Grupo de Risco, TGR, que existe há décadas e além de desenvolver sua pesquisa cênica, também dá suporte físico, ou teórico para outros grupos e Cias da cidade. —, conclui Bispo. Conforme Expedito de Montebranco, as mudanças do contexto político e dos valores e lutas do passado herdadas pelos novos artistas, são um dos fatores que contribuíram para o cenário de críticas. — Hoje vejo que muitos jovens foram chegando (e nada contra os jovens) e quando digo jovens não me refiro à idade, mas sim ao tempo na profissão. Eles foram chegando e pegaram tudo pronto e começaram a produzir, na maioria das vezes, espetáculos apenas para os editais. Aquela geração dos anos 80 estava empenhada em construir algo maior e infelizmente ela foi se aposentando, morrendo. E a turma nova já não tem esse desejo da descoberta, de criar algo que nos identifique. O que se busca agora é algo que as pessoas comprem de imediato ou que consumam gratuitamente, mas que gostem. E isso tem a ver com o excesso de informação burra, também. Nós não temos mais reuniões pra debater, dificilmente algum estudante saberá quem foi Conceição dos Bugres. Professora licenciada em Artes Cênicas pela UEMS, para Luciana Zlata, existe alguns problemas, mas a causa é estrutural. — Existe uma falta de investimento e de exigência de uma formação profissional do teatro. —, afirma. De acordo com a arte educadora, desde que se tornou uma atividade tomada como hobby pelas pessoas, a partir do crescimento da indústria cultural no país em meados de 1970, não há culturalmente uma tradição de pagar uma escola especializada em teatro. Do

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Belo Sul Mato Grosso Para Vitor Samudio, a questão da valorização também perpassa o incentivo do poder público. — Então, assim, se a gente não dá condições para que essas potências que nós temos possam, realmente, ultrapassar barreiras e fortalecer o seu trabalho, se não houver essa colaboração, esses talentos e essas potências podem caminhar um pouco, mas há uma série de dificuldades que impedem que o artista extrapole as fronteiras do Estado, de ir para outros lugares, de ser reconhecido em outros lugares. De modo mais objetivo, Expedito de Montebranco reflete que há uma responsabilidade conjunta do poder público e dos artistas no cenário de desvalorização da arte local: — Acredito que as primeiras responsabilidades são dos órgãos de cultura. Governo do Estado e município e depois dos próprios artistas. Nossa produção sempre foi boa e diferenciada, mas, os artistas são esquecidos e quando morrem viram nome de algum prêmio por pouco tempo. Jorapimo morreu no corredor do hospital. Ilton Silva morava de favor no Hotel Gaspar. Zépretim morreu sozinho e o corpo foi descoberto dois dias depois. Já falei disso com gestores da FCMS várias vezes. Eles concordam com tudo, mas não agem. Não existe uma política cultural para MS. A única pessoa que ficou foi a professora Idara Dancam, mas naquele momento a grana era pouca, tanto que foi a gestão dela enquanto secretária de cultura que criamos a Lei de Incentivo à Cultura de MS. Fora isso, os demais gestores tornam as secretarias uma fábrica de eventos. Hoje existe muito dinheiro para a cultura, mas não existe planejamento. É preciso mapear, difundir para o Brasil e para o mundo. Não dá para a uma Fundação ser promotora de eventos. Isso cabe aos produtores locais. Precisamos “ciscar” para dentro. Primeiro olhar para MS, dar condições dignas de trabalho/ circulação para todas as áreas, reconhecer nossos artistas e depois, sim, trazer quem quer que seja. Lembro de um garoto chamado Luan Santana, que o ex-prefeito na época deu oportunidade de ele tocar nos intervalos das escolas porque era amigo de alguém próximo. O garoto foi longe. A oportunidade parou nele. E os demais? Você acha que os professores, alunos e etc. sabem quem são nossos artistas? Não sabem. A novela Pantanal está sendo filmada aqui em Aquidauana, mas passou direto. Não selecionou atores de MS. A culpa não é dela. O governo não foi lá se apresentar, dar as boas-vindas e os artistas não cobraram do governo, da TV Morena, dos deputados e... Curiosamente, pouco dias depois de conceder essa entrevista, Expedito entrou para o elenco da novela. Questionado sobre a valorização por parte do poder público, o ator Vitor Samudio também se mostrou descontente em 2019: 148

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS — Puxa, a gente tem Helena Meireles, Dilma Rocha, a gente tem aí das artes visuais o Ilton Silva que morreu esses tempos atrás, a gente tem até mesmo no teatro, na dança muitas pessoas que a população não conhece. O poder público não faz questão de administrar isso. Porque, assim, acho que fortalecendo os nossos artistas, fortalecendo nossa capacidade de produção artística e cultural, a gente fortalece o nosso lugar, fortalece o nosso Estado. Porque, na verdade, a cultura é identidade. Eu costumo falar que quando vamos fazer o RG, colocamos a nossa impressão digital, passa na impressão que aquilo ali é nossa impressão, é a nossa identidade. Mas na verdade a nossa identidade, a identidade de qualquer povo, é a sua cultura, é o seu lugar. Então, assim, se a gente não valoriza a nossa identidade, o nosso lugar, a nossa cultura, a gente não vai valorizar e, inclusive, economicamente, as coisas não prosperam. Eu acho que a partir do momento em que o poder público valorizar mais a produção artística, a nossa cultura local, com certeza esse Estado vai ser projetado para outras dimensões e todo mundo tem a ganhar com isso, inclusive a população. Assim, a questão do valor artístico regional também está relacionada às políticas públicas para o setor da cultura e da arte.

Políticas Públicas Segundo o artigo Política Cultural E Trabalho Nas Artes: O Percurso E O Lugar Do Estado No Campo Da Cultura, da pós-doutoranda no Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia, UFBA, Amanda Patrycia Coutinho De Cerqueira, foi na era Vargas que, pela primeira vez, a cultura foi pautada pelo governo federal. O fato ocorreu por meio da legislação do Conselho Nacional de Educação do recém-criado Ministério da Educação e Saúde, conduzido pelo ministro Gustavo Capanema na década de 1930. A partir de então, ocorrere uma série de ações que implementaram as políticas públicas para o setor da cultura até mesmo no período ditatorial, malgrado o quadro de censura e perseguição ideológica instalados. Para Amanda Patrycia, que também é doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, na linha de pesquisa Cultura e Política, as criações do Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura, IBECC, em 1946, e o Conselho Nacional de Cultura, CNC, diretamente subordinado à Presidência da República, ocupada Do

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Belo Sul Mato Grosso por Jânio Quadros, em 1961, são referências desse período. Entretanto, foi a partir da abertura política que uma sequência de leis foi promulgada sobre o setor da cultura. “Por meio do Decreto n.91.144/1985 o governo de José Sarney cria o Ministério da Cultura (MinC), assumido no ano seguinte por Celso Furtado. Nessa época também foi aprovada a Lei n.7.505/1986, conhecida como Lei Sarney, que concedia benefícios fiscais na área do imposto de renda para operações de caráter cultural ou artístico”, informa a pesquisadora Amanda Patrycia. Não obstante, a instabilidade que ocorreu no governo Sarney, levou à descontinuidade de projetos e pesquisas da área cultural. Restrições que se agravariam durante o governo Collor, que promoveu um desmonte do setor verificado na promulgação da Lei n.8.028, que transformava o Ministério da Cultura em Secretaria, enquanto a Lei n.8.029 extinguia uma série de entidades da administração pública, atingindo duramente a área da cultura. Por fim, Collor substituiu a Lei Sarney pela Lei Federal n.8.313 de 1991, ainda vigente. “A Lei Rouanet, como ficou conhecida, instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura, Pronac, cuja finalidade é a captação de recursos financeiros para os diversos setores culturais. Finalmente, em 1992, a situação que transformou o MinC em Secretaria da Cultura foi revertida”, relata a doutora em Ciências Sociais. Em seu artigo Lei Rouanet: 23 Anos De Incentivo À Cultura, o especialista em gestão pública Vicente Finageiv Filho aponta falhas de implementação da Lei, uma delas, quanto à distribuição de recursos no âmbito regional, sendo que o sudeste e o sul são os lugares que mais conseguiram recursos nos anos de 2012 e 2013. Para Vicente Filho, a Lei Rouanet produziu um significativo desenvolvimento da cultura no país, mas possui muitos pontos que precisam de melhores elaborações. Entre outras questões, a Lei carece de estabelecer uma distribuição mais democrática dos recursos com resultado para o fortalecimento das expressões culturais em cada região do Brasil e, assim, da própria identidade dos povos que compõe a nacionalidade brasileira. Polemizada no governo Bolsonaro, a Lei Rouanet sempre foi alvo de críticas. Segundo a pesquisadora Amanda Patrycia, uma vez que as ações estatais se encontram penetradas pela lógica de mercado, via incentivos de dedução fiscal, e pelas ideologias partidárias políticas que mantêm uma instabilidade dos recursos e programas, os artistas e o setor cultural encontram-se em desvantagem e prejudicados. Há uma série de deficiências estruturais nos programas e leis que criam uma desigualdade de distribuição de recursos por regiões e por artistas. Consequen150

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS temente, ocorre uma maior difusão dos produtos das indústrias culturais em detrimento da promoção regional com enfoque no fortalecimento identitário e social, como prevê a Lei Rouanet. Assim, segundo os pesquisadores, como a Lei Rouanet se concentra no eixo Rio-São Paulo e Sul do país, resulta que os artistas que se encontrem outras localidades do Brasil, como o Mato Grosso do Sul, acabam prejudicados por falta de projetos que lhes capacitem e ofereçam condições de sucesso em seus empreendimentos artísticos culturais, como observou o produtor do grupo Urgente Cia, Vitor Samudio: — Existem também muitos trabalhos bons e muitas potências, muitas coisas boas que precisam ser exploradas e precisam ser valorizadas. Valorizadas de reconhecimento, valorizadas de condições de trabalho. Então, assim, para que consigamos fortalecer nossa arte, nossa cultura, precisamos de condições para isso, se não houver condições para isso, nada acontece. Como em qualquer outro caminho, tem muita coisa boa, mas que precisa ser valorizada. —, afirma Vitor Samudio. Essas críticas à Lei Rouanet foram a base de um movimento extremista que, aliado à falaciosa ideia de uma guerra cultural e a um saudosismo do regime ditatorial pela extrema direita conservadora, resultando em ações de ataques à cultura e a arte.

Cultura Artística e Políticas Públicas de Mato Grosso do Sul A segunda metade de 2010 foi marcada por manifestações de artistas do teatro e da dança nas redes sociais contra a falta de pagamentos por serviços prestados à Fundação de Cultura e denúncias de que em grandes festivais como o de Inverno, em Bonito, onde os destaques são sempre artistas de fora que, custando mais aos cofres públicos, ganham um maior investimento em propaganda. O assunto foi abordado durante as gravações do radiodocumentário no Laboratório de Radiojornalismo II. — Os artistas da região sempre trazem em voga é que geralmente se beneficia mais aos artistas de fora do que os artistas locais. Isso procede? —, questionei a gerente dos fundos de investimentos culturais da Fundação de Cultura do Estado, Solimar Alves. — Não. Não é bem assim. Porque normalmente quando Do

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Belo Sul Mato Grosso eles colocam assim, que o maior beneficiário é o artista de fora, quando você contrata um artista de renome nacional para fazer uma apresentação em determinados eventos. Contrata-se alguns nomes, essas pessoas são capitaneadores de público, que traz para ajudar, para prestigiar o Festival como um todo. Então, o público que ele atrai é um público bem maior. Então é justo que o seu cachê seja maior. E aqui se trabalha direto. O artista local, de uns oito anos para lá, já teve um cachê bem, como é que eu digo? Eles já tiveram um cachê de valor bem insignificantes e que, nesse transcorrer desse tempo, eles foram sofrendo reajustes e hoje podemos até dizer que pode não ser o ideal, mas está muito mais próximo daquilo que é o merecido, que é o que você esteja valorizando o artista da casa através desses cachês. Em meados de 2014, alguns artistas da capital utilizaram as redes sociais para reclamar do atraso no repasse de verbas e pagamentos por serviços prestados ao município, conforme relata a atriz Fernanda Kunzler: — Em 2014 levamos o calote da Prefeitura, não investiram nos dois fundos que temos para a área (FMIC/Fomteatro). Em 2015 lançam edital que só foi pago em 2016, e assim vem sendo, estamos com dois anos em aberto. Por exemplo, foi repassado em julho de 2020 os recursos que era para ter sido pagos em agosto de 2019, que se tivessem sido feitos, ano passado no início da pandemia e paralisação, estaríamos finalizando os trabalhos. No Estado de Mato Grosso do Sul, a Lei Estadual 2.645/2003 do Fundo de Investimentos Culturais do Estado de Mato Grosso do Sul – FIC-MS, implementada para o setor cultural também é alvo de críticas similares. Em setembro de 2020, a atriz também relata que houve situações de atrasos com relação aos investimentos da Fundação Estadual de Cultura: — No Estado, FCMS, lançaram o FIC Fundo de Investimento Cultural em 2015, terminaram de pagar em 2017, e não lançaram mais nada para o setor cultural, nenhum edital! Os editais públicos são onde se concretiza a política cultural, onde se investe de forma democrática os recursos previstos para o setor.... Lançaram outro FIC em 2019 e estão pagando esse ano.... Para ser reformulado e efetivado. Porém há vários trabalhadores que não acessaram o FIC, nós por exemplo. Em 6 anos de governo Azambuja, lançaram somente dois editais (nossa política pública, previsto na lei do sistema de cultura). Onde estão os outros 4 anos de investimento cultural? Durante a gravação para o radiodocumentário, o produ-

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS tor Vitor Samudio também falou sobre o assunto: — Os pagamentos, o que acontece? A gente percebe sempre, assim, a cultura, nunca é prioridade na gestão. E, assim, não é você falar de gestor, de um outro gestor, de um governo. De uma forma geral a cultura acaba não sendo prioridade em praticamente todos os governos. Então, sempre quando há um problema financeiro, há algumas questões que envolvem o cofre público, eles vão cortando. As primeiras gorduras que eles vão tirando, e que eles chamam de gorduras, são esses setores. É a cultura, é o esporte... E isso acaba afetando diretamente a toda uma cadeia econômica. —, analisou o produtor do Urgente Cia, Vitor Samudio. Na mesma época, Solimar Alves foi questionada sobre o incumprimento constitucional por parte do Estado em destinar 1% dos Orçamentos do Estado à cultura: — Bom, o 1% da cultura, ele tem até 2025, se não me engano, para ser totalmente implantado. Então, quando o Sistema Estadual de Cultura foi aprovado pela Lei 5060, foi dado um prazo para que essas ações fossem executadas. Então, ele vem sendo implementado. Mas, tudo isso também damos de frente com a questão financeira, orçamentária. E dessa crise, que não é só o nosso Estado que está passando, é o país inteiro. Passou por uma crise, todos os Estados tiveram que fazer o contingenciamento. Então a cultura também não ficou. Então se você me pergunta: “o governo colocou o 1%? ” Não! Não por conta de tudo isso, né? Não tinha como, se nem na educação, na saúde, na segurança que são colocadas como áreas prioritárias em todo e qualquer governo não conseguiu atingir aquelas metas, destinar os recursos. Realmente. Então a cultura, também, ficou um pouco a desejar, ficou um pouco esperando que viessem mais recursos. Esperamos que no próximo ano essa economia dê uma virada e que possamos estar aplicando maiores recursos para a área cultural como um todo. —, defendeu a gestora de investimentos culturais. Para o ator e produtor do grupo Urgente Cia, Vitor Samudio o discurso de que a cultura é um setor pouco lucrativo não se sustenta: — Se você investe em cultura, você vai ter menos pessoas na rua, menos pessoas cometendo atos de vandalismo. Porque essas pessoas, esse tempo ocioso que elas têm, e isso que vai se formando dentro do universo que ela tem dentro da cabeça dela, com a cultura, se ela tem um violão, se ela faz aula de violão, se ela faz aula de teatro, se ela faz aula de dança, a cabeça dela vai Do

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Belo Sul Mato Grosso sendo ocupada. A mesma coisa a saúde pública. Várias pessoas aí com problemas de depressão, da ordem psíquica ou psicológica, as artes podem trabalhar muito bem isso. Então, assim, de certa forma há uma inversão de um pensamento e a questão dos atrasos do cachê vem muito por questão desse pensamento de que, “olha, há um problema no financeiro. Da ordem do financeiro, no cofre público, então aonde a gente começa cortando? Ah, vamos começar cortando pela cultura, vamos começar pelo esporte”. E é onde essas pessoas, no caso, nós, né? Porque eu me incluo como artista, acabam sofrendo, porque são serviços que são prestados e que não são pagos de uma forma... de uma forma, certa. O que acontece? O artista, nada mais é do que um trabalhador. Da mesma forma que existe o advogado, que existe a secretária, existem aquelas pessoas que fazem limpeza urbana na cidade, existem várias outras profissões, existe o artista ali também que é um trabalhador. Ele precisa acordar cedo, planejar o trabalho dele, correr atrás das coisas dele, ele tem a família para cuidar, o aluguel para pagar, o filho para dar comida. Então, quando ele vai lá e presta um serviço e faz o seu trabalho, e aí acontece esse descaso no sentido de demorar meses e as vezes até anos para se receber o seu cachê, o seu trabalho. A empresa de energia elétrica, o dono da casa, não vai colabor no sentido de “aí, então eu vou deixar as contas e você”. Elas não param, então, quer dizer, é um processo muito cruel porque são trabalhadores que prestam serviços e não o recebem os seus pagamentos em dia. —, finalizou, batendo com o punho fechado sobre a mesa de modo a repercutir cada palavra. Na avaliação da antropóloga Marlei Sigrist, o Estado ainda precisa promover mais esforços em relação a cultura: — Eu penso que, ultimamente nós temos tido pouco incentivo por parte do poder público quanto a isso. Ele deveria ter mais propostas, mais projetos de preservação e valorização da cultura. Principalmente a cultura regional, a cultura tradicional que é o que nos dá a grande diferença em relação ao restante do Brasil. Então o poder público tem investido, mas em alguns prédios, algumas arquiteturas e etc... Mas, na questão da cultura tradicional, que é uma cultura passada de geração para outra, ela não é palpável, o que nós chamamos de patrimônio imaterial, pouco se tem feito. Eu posso dizer, por exemplo, que há três anos nós já entramos com a solicitação de registro da Festa do Divino lá dos Malaquias, que tem 110, 112 anos. Mas até agora está parado, está engavetado o projeto. Então não é possível que o governo feche os olhos para essas questões que são prioritárias para a preservação do nosso patrimônio cultural e imaterial. Eu tenho esse olhar, hoje, para essa nossa cultura tradicional. 154

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS Durante a produção do Radiodocumentário para o Laboratório de Radiojornalismo II a temática sobre o poder público e as políticas públicas junto ao setor cultural não ficou de fora: — Vitor, na sua opinião, em termos de governo, o Estado valoriza as artes, a sua cultura? —, interrogo no estúdio de rádio. À minha frente, Vitor Samudio meditou um instante antes formular sua resposta: — A minha opinião é que ainda não. Porque, ainda não valoriza da forma que deveria valorizar. Não valoriza no incentivo econômico, financeiro. Não valoriza num aspecto simbólico, não valoriza num aspecto... cidadão, entendeu? Por exemplo, a gente tem muitos artistas daqui, de Mato Grosso do Sul, artistas nossos, que são referências. Vários. Não é um, não são dois, não são três, não são cinco. São vários. A gente estava falando agorinha sobre essa questão das artes lá fora e tal. Mas tem várias referências aqui. E que a gente, assim, sequer, muitas pessoas não sabem, não conhecem, não sabem qual é o trabalho. Questionada sobre as críticas, a gerente de fundos de investimentos da Fundação de Cultura detalhou as ações da instituição: — Como está falando de Estado, vamos falar via Governo do Estado, né? Tem as ações direcionadas nas diversas áreas. Tanto na área que podemos falar da difusão cultural, que é mais para as atividades de apresentações de espetáculos, de propiciar com que os produtores culturais, artistas, no caso de teatro, música, dança, artes visuais, eles possam estar apresentando e difundindo o seu trabalho. Também tem as ações pelo pessoal do artesanato com a participação em feiras, na reciclagem, na capacitação dos próprios artesãos. Na questão do patrimônio rebuscando os bens que relevam, que registram a memória cultural do nosso Estado, na questão de imóveis. E quanto nos bens... imateriais. Tanto os bens materiais quanto os imateriais! E somando-se a essas ações, tem-se o FIC, que é o Fundo de Investimentos Culturais que através de um edital em que o produtor se habilita, recebe o recurso para que possa fazer o seu projeto e colocá-lo na rua e chegar de encontro a comunidade. Na avaliação do produtor e ator Vitor Samudio, os investimentos em cultura precisam ser enxergados como ações do poder público que beneficiam a cadeia econômica da região. — Porque, assim, tem gente que ainda diz que a cultura é gasto. Mas na verdade a cultura não é gasto, muito pelo contráDo

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Belo Sul Mato Grosso rio. A cadeia produtiva e econômica da cultura é muito grande. Quando você investe, por exemplo, na montagem de um espetáculo de teatro, você não está investindo só naquele grupo. Você está investindo naquele grupo, e você está investindo numa série de pessoas, em uma cadeia gigante de pessoas que trabalham em torno daquela ideia. É o pipoqueiro que vende a pipoca em frente ao teatro, é a costureira que faz o figurino. São as pessoas que trabalham na gráfica, são as pessoas que fazem a cenografia, são os atores em si. Então, assim, é uma série de pessoas. A cadeia econômica da cultura, é muito ampla, então o dinheiro quando entra para a cultura, acaba se descentralizando, diferente, por exemplo, das obras. As obras concentram então o empreiteiro, acabam concentrando aquele recurso que vem distribuído muito pouco. A cultura não, ela consegue distribuir de uma forma bem mais ampla. Pegando inclusive até, por exemplo, o turismo, a segurança pública, a educação. Porque, assim, há algumas contas que muitos gestores ainda não fizeram, ou, não procuraram saber. Quando se investe em cultura, você investe menos em segurança pública, você investe menos em saúde pública entendeu? Então, de certa forma, investir na cultura acaba gerando muito mais economia para o próprio cofre público, e outros setores. Na visão da coordenadora do Museu da Imagem e Som do Estado, MIS, Marinete Pinheiro, é preciso valorizar ações da Fundação de Cultura na promoção de diálogos com a sociedade: — A gente acaba tendo essa necessidade da interlocução entre a sociedade civil, principalmente de quem é um conhecedor de causa, de quem é o pesquisador. Na verdade, quem é esse artista que está ali, e a gestão pública. Então, assim, é uma relação que tem de ser muito azeitada para que isso aconteça, e para que daí a sociedade tenha um conhecimento de que esses patrimônios existem. É muito mais fácil você tombar um bem público como, por exemplo, um prédio. Enfim. Um espaço muito mais visível do que você conceituar e colocar essa relação de necessidade de que um saber, de que um modo de fazer ou que uma atividade artística, como por exemplo, a Festa do Divino que é tão importante para aquela região do Estado, que seja reconhecida e seja retomada como um patrimônio que passa a ser uma relação de quem pertence ao Estado, pertence não só para àquela comunidade que está ali. Mas, pertence a todos nós que temos de alguma forma uma relação com esse pensamento, com essa prática produzida. Deveras, na metade da década de 2010, uma importante ação do governo federal permitiu que a sociedade civil pudesse propor ao governo a gestão pública, algumas ações.

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Sociedade Artística Organizada A partir do Marco Regulatório das Organizações Da Sociedade Civil debatido no governo de Luís Inácio, o Lula (PT), e promulgado no Governo de Dilma Rousseff, em 2015, os setores da classe artística local estabeleceram três espaços de representação. O primeiro é o colegiado formado por grupos de linguagens especificas das artes — assim, a rigor, há o colegiado da dança, do teatro, da música, das artes plásticas etc. —, como explica a atriz atuante no conselho de teatro regional, Fernanda Kunzler: — Participam deles artistas ligados àquela área, por exemplo, ligados ao teatro, todos os artistas ou grupos que trabalham com o teatro. De acordo com a atriz, o colegiado é onde as demandas especificas de linguagem da arte são apresentadas e debatidos e encaminhados para o fórum. O segundo espaço é de representação, onde os Fóruns concentram as associações com ou sem fins lucrativos como participantes individuais ou grupos das diversas linguagens artísticas independentemente de este estar inserido em um colegiado. É no Fórum que são eleitos os representantes que irão compor o conselho da classe artística. Já a terceira instância de representatividade é a formação do conselho por meio de eleições. Segundo Fernanda, durante o sufrágio, o fórum dos artistas locais tem a premissa de eleger representantes de cada uma das linguagens artísticas para o conselho e, se não ocorrer uma indicação por parte dos colegiados, o fórum é quem indica alguém. Uma vez estabelecido, o conselho deve agir em favor da sociedade civil junto à gestão pública que, por sua vez, terá seu próprio conselho com número equivalente de membros para que aja o diálogo democrático entre essas duas esferas. Esse conselho deve realizar reuniões periódicas e extraordinárias com o fórum e com as instâncias do poder público, conforme explica Fernanda: — A gente prima por sempre eleger conselheiras e conselheiros abrangendo todas as áreas. Um do teatro, um da dança, um da música. Se não houver indicação, aí o fórum acaba indicando esse conselheiro para participar. As reuniões desse conselho acontecem bimestralmente, depende da urgência, do caráter de urgência. E ali a sociedade civil, que é o nosso conselho, leva a demanda que saiu no fórum, numa assembleia geral, extraordinária ou ordinária, junto com o diálogo com o poder público. Do

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Belo Sul Mato Grosso Todas essas esferas de representatividade devem agir segundo Leis e Marcos Regulatórios da Representatividade, de incentivos à cultura nas esferas do poder público federal, estadual e municipal. São exemplos dessas regulamentações o Plano Nacional De Cultura, o Sistema Nacional de Cultura, o Plano Estadual de Cultura, todos regulamentados. — Nós temos a Lei do Sistema Estadual de Cultura, nós temos o plano municipal de cultura e a Lei de Sistema Municipal de Cultura. Cada uma com regulamentações cronológicas, orçamentária efetivadas em áreas especificas segundo as descrições das ações e esferas de atuações definidas. O que que a gente cobra: o que está escrito nos nossos marcos regulatórios. É a Lei do sistema, a Lei de Cultura do 11/2% e de 1% para a cultura no município e no Estado. 11/2% no Estado e 1% no município —, explica Fernanda Kunzler. De acordo com a atriz, apesar de o diálogo regular com o poder público, há uma resistência por parte deste em ouvir as reivindicações da classe cultural: — E os diálogos, eles sempre foram muito procurados por nossa parte. Até há uma dificuldade de a gestão pública entender a nossa participação em reuniões e outras questões, porque há, às vezes, um entendimento de que a gestão pública é quem manda nas coisas, é quem vai encaminhar tudo. De fato, é quem vai encaminhar, mas é em diálogo com a sociedade civil. Já tivemos que fazer muitos enfrentamentos para a gente ser ouvido. Ainda hoje há uma distorção na escuta nesse dialogo porque as vezes a gente vai propor, faz um monte de reunião, conversa com a Fundação de cultura, conversa com a secretaria, e às vezes, elas encaminham as coisas sem ter sido o que a gente acordou antes. —, relatou a atriz e... Certamente! Durante o período de restrições que se sucedeu desde março de 2020, os diálogos seriam ainda mais fundamentais para a sobrevivência dos trabalhadores da cultura artística.

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“Se Violão, Bebida e Serenata; e Belo Luar de Prata, São Companhias Para Reprovar” Capítulo Sétimo:

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aquela tépida tarde de sexta feira, do dia 18 de maio, em que, junto aos colegas acadêmicos João Vitor, Jenifer Alves e Felipe Dias estive na Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, visitamos o Museu da Imagem e Som, MIS, antes de realizar a entrevista com a jornalista Joseane Fátima Gaboardi, gestora de eventos da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul. Na recepção, identificamo-nos. Expliquei o motivo de nossa visita e questionei se havia alguém disponível para conceder uma entrevista. — Então. É que nesses casos, era bom se tivessem marcado. —, explicou a recepcionista, muito atenciosa. — Pois é. Deveríamos. É que lembrei das vezes que vim aqui com o pessoal da UEMS e imaginei que iria ter alguém. — Ah, você conhece a Marinete? — Não. Quem é? — Ela é a coordenadora. —, explicou-me. Perguntei se seria possível falar com ela. Entrementes, descobrimos que Marinete Pinheiro e a maioria das possíveis fontes estavam em viagem para Festival da Cultura do Estado, em Corumbá. Agradeci a moça. Enquanto pensávamos em como iríamos encontrar uma nova fonte, adentramos no salão onde encontramos a Exposição Permanente Mulheres Protagonistas da Nossa História, com fotografias de 32 personalidades femininas do Estado. Assim, ficamos a contemplar as mulheres de nossa pesquisa de entremeio a tantas outras que foram importantes para Mato Grosso do Sul. De roldão, eu deixava-me quedar em intermitentes memórias de quando o curso de Artes Cênicas, Teatro e Dança da UEMS tomava aquele espaço na recepção dos calouros, durante as noites de eventos acadêmicos, todos entremeados Do

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Belo Sul Mato Grosso de arte, de poesia, de pequenos dramas e danças apresentadas pelos veteranos. Em especial, fui arrebatado pela reminiscência de uma das noites em que participei junto ao Erico Bispo, e a Luciana Slata, numa performance à guisa das danças macabras do período medieval onde. Sim. Ali. Naquela sala fechada pela porta alada. Ali onde a penumbra inequívoca de horrores transudava em todo o ambiente. Onde as sombras de nossos vultos projetados nas paredes sob a vergasta da luz de velas a pilha esperavam a mole que formava uma compacta plateia em roda da dança letal, ensandecida e torturante de Lady Macbeth. — “Aqui. Ainda há uma mancha de sangue!... Saí, mancha, maldita! Saí. Estou mandando! ” —, recitava sob a máscara negra que cobria totalmente o meu rosto. Postado na extremidade lateral oposta à minha a minha, também com o rosto coberto pela máscara negra, Erico tocava um berimbau, executando uma percussão de cortejo fúnebre causando alguns suspiros de tensão dos espectadores parados em roda de nós. — “Oh! Essas mãozinhas nunca ficarão limpas? —, eu prosseguia com o texto, enquanto. Verdade. No centro da roda formada pelo público, Luciana, de vestido vermelho dançava dramaticamente as angustia da Lady assassina. Produzindo, sob a luz tíbia das velas que bruxuleavam no chão, outros espectros contorcidos, como agonizantes figuras incógnitas, outras personagens que executavam a dança da morte. A morte. Sim. A morte terrível que se abalara sobre todo o reino tiranizado por Macbeth e sua esposa, personagens imortalizadas por Shakespeare que. Isso! Só podem receber o castigo de seus crimes genocidas pela ação dos mortos. Almas de suas vítimas que cobram a vida perdida. Tantas vidas! Mais do que as que se perderam nas mãos daqueles que poderiam evitar o massacre da pandemia do novo coronavírus? Não sei. Mas de todas as experiências artísticas, foi nessa memória que encontrei simbiose com as questões emergidas na CPI da pandemia tão noticiada neste instante em que reporto, neste capitulo, as consequências da pandemia durante cerca de um ano e cinco meses de restrições, dificuldades e lutas dos trabalhadores da cultua artística de Campo Grande, Mato Grosso do Sul.

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Os impactos da pandemia no setor cultural de Mato Grosso do Sul Com o surgimento da pandemia no Brasil e a necessidade de medidas urgentes para impedir o aceleramento do contágio da população, o setor cultural artístico foi duramente atingido. Em 20 de março de 2020, Marcos Marcello Trad, prefeito de Campo Grande, lançou o Decreto Nº 14.209 suspendendo todos os serviços não essenciais públicos e privados na cidade por 15 dias. Era o primeiro de uma série de outros decretos com medidas restritivas que durariam mais de um ano. Categorizados como serviços não essenciais, o atendimento presencial ao público em estabelecimentos comerciais, o funcionamento de casas noturnas e demais localidades voltadas à realização de festas, eventos e recepções foram abaladas desde o primeiro decreto. Em decorrência, nas artes, os trabalhadores de áreas que, pela natureza, se manifestam em contato direto com o público, como a dança, a música e o teatro, foram alguns dos mais afetados. A ameaça de extinção dos trabalhos, dos grupos e casas de espetáculo por falta de renda, desencadeou uma comoção deste setor à espera de ações do poder público para a retomada das atividades. Assim, estabeleceu-se uma história de luta, solidariedade e diálogo dos artistas sul-mato-grossenses no enfrentamento à pandemia. História que pude acompanhar durante o Estágio Obrigatório junto a Assessoria de Imprensa da Fundação Estadual de Cultura, na disciplina de Ciberjornalismo II, e na elaboração deste livro, produto da disciplina de Projeto Experimental II, todos parte do Curso de Jornalismo da UFMS.

Música Animadores de bailes, festas e bares, os músicos locais foram duramente atingidos pelas consequências das restrições. Para estes artistas, os decretos que alteravam a cada momento o fechamento e as reduções no funcionamento comercial das casas noturnas foram o pior momento da crise trazida pelo novo coronavírus. Em entrevista para esse livro, o acadêmico do penúltimo semestre do Curso de Música pela Rede de Educação da Congregação dos Missionários Claretianos, Willian Costa, que há 15 anos atua no cenário musical, relata algumas dessas dificuldades:

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Belo Sul Mato Grosso — Seguinte, esse fechamento foi terrível para todos aqueles que vivem da cultura, da música, etc. Conheci músicos que só não passaram fome porque tiveram apoio da família, mas a situação ficou extremamente ruim, pois o músico que vive de tocar na noite, em bares, eventos, etc., ficou sem ter de onde tirar o seu sustento. O que notamos agora é a categoria correndo atrás do prejuízo, tentando fechar o máximo de eventos possíveis para tentar reequilibrar as finanças —, conta o músico. Guitarrista e violonista, Willian Costa, que toca em algumas bandas e acompanha alguns artistas, ainda explica que a mobilização dos artistas musicais foi fundamental no enfretamento da crise: — Existe a união dos músicos, através do sr. Béko Santanegra, que é o presidente do SIMATEC/MS (Sindicato dos Músicos, Autores e Técnicos de Mato Grosso do Sul) e houve, durante todo o período da pandemia um auxílio por parte do SIMATEC aos artistas cadastrados na campanha. Houveram doações de cestas básicas; e, conforme relatado pelo próprio presidente Béko, até ajudar com valores para custos e despesas com energia, água, medicamentos e locomoção dos artistas cadastrados na campanha. —, informa Willian Costa. Durante o Laboratório de Ciberjornalismo II, ao lado dos companheiros acadêmicos Letícia Monteiro e Gustavo Bonotto, entrevistamos profissionais da área do teatro, dança e música, entre eles o músico aquidauanense Cris Sanfona, presidente da União dos Músicos de Mato Grosso do Sul, que também relatou o drama dos artistas locais: — Pela falta de trabalho, muitos colegas de profissão tiveram depressão, porque ficaram sabendo de notícia ruim, de gente próxima morrendo e não podendo trabalhar. O presente tá de um jeito e a gente não consegue ver o amanhã —, afirma Cris Sanfona. Cantora, bailarina e coreógrafa, Regina Bombom passou a usar o carro que transportava sua equipe para trabalhar desde o lockdown como motorista de Uber Pet. Para conseguir sobreviver financeiramente, a dançarina também começou a vender bombons. Para a artista, a crise dos profissionais da música está diretamente relacionada ao fechamento dos estabelecimentos de entretenimento ao vivo: — Eu fui atingida diretamente porque as casas que trabalho foram afetadas diretamente pela pandemia —, afirma.

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS Segundo a artista, mesmo para aqueles que ainda arranjam algum trabalho, há dificuldades econômicas devido às restrições, como a “prostituição” do setor musical, em razão da limitação do horário para o funcionamento do comércio. — O horário reduzido para as casas noturnas piorou o cachê dos artistas, então, tem que aceitar tocar por menos por causa da casa, uma situação muito crítica —, avalia a artista. Sem trabalho, os músicos — como outros setores da arte — precisaram recorrer ao poder público, momento em que os companheiros e a União dos Músicos conseguiram viabilizar alguns projetos de ajuda. No início, a entidade só pôde receber cestas básicas, mas, conforme relatou o presidente da associação, Cris Sanfona em entrevista realizada em meados de julho de 2021, no decorrer do processo foi aprovada a captação de recursos financeiros por meio de doações. — Aqui em Campo Grande temos aproximadamente 600 artistas cadastrados e no Estado 3000. Das ações realizadas conseguimos 6000 cestas básicas que puderam atender várias cidades, inclusive do interior —, declarou o músico. Cris Sanfona ainda esclareceu que as doações recebidas pela associação vieram principalmente dos artistas de renome, como Michel Teló. Medidas que não solucionavam de forma definitiva os problemas trazidos pelo isolamento contra o novo coronavírus, mas que amenizavam o sofrimento enquanto o poder público estruturava suas ações de emergência para o setor.

Dança Para a dança, as consequências do isolamento também chegaram de surpresa, conforme relatou em entrevista para este livro o pesquisador, intérprete e criador, Marcos Flávio de Mattos da Cia Dançurbana: — Num dia antes a Dançurbana tinha realizado uma temporada com um público presencial. No dia seguinte, na segunda-feira, a gente já estava em lockdown. A partir daí a gente só foi se encontrar presencialmente este ano. Em agosto de dois mil e vinte e um, julho-agosto, se eu não estou enganado. Segundo o artista, o momento pediu adaptação, estudos e a necessidade de recorrer as tecnologias de comunicação: — Para nós, eu acho que foi um momento de aprendiDo

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Belo Sul Mato Grosso zado para todo mundo. Para o Dançurbana, foi esse momento de pesquisar, de se aprofundar mais, de se reinventar e foi isso o que a gente fez durante esse período. Primeiro para pensar o coletivo, a força do coletivo. Porque acho que é uma característica do próprio Dançurbana. E depois, também, para a gente ter de força, para poder continuar. A gente se ajudar enquanto grupo que trabalha junto há muito tempo. Então acho que uma coisa potencializou a outra. Foi dessa maneira que o coletivo do qual eu faço parte se reinventou e buscou outras maneiras de continuar produzindo, mesmo nesse período tão turbulento que foi a pandemia. Que está sendo, ela só está mais amena. Mas acho que a dificuldade foi a falta de trabalho, o recurso para a sobrevivência. Então cada um tentou sobreviver da maneira que pôde, do jeito que pode, com ajudas. E acho que essa foi a maior dificuldade.

Teatro: O Espetáculo Pelas Redes Sociais Outra atividade artística essencialmente presencial, os grupos de teatro tiveram de lidar com um cenário de caos e indecisão diante do isolamento imposto contra o avanço do novo coronavírus. — Houve suspensão de atividades, pois tudo parou e conosco não foi diferente —, afirma o ator e diretor do Teatral Grupo de Risco, Yago Garcia. À frente da Companhia de Artes Rob Drown, Erico Bispo conta que todas as atividades presenciais foram imediatamente suspensas, com os membros adotando as medidas de isolamento. Para o ator, o momento exigiu adaptação. — Nesse período mantivemos nossas ações online apenas, tanto ensaios e pesquisas, quanto oficinas abertas ao público e apresentações via videoconferência no YouTube ou Instagram. Ainda sob o impacto inicial das restrições, as companhias encontraram nas mídias sociais um escape para manter alguns trabalhos. Segundo Erico, houve um maior entendimento das plataformas de videoconferência por parte de coletivos artísticos que podem ser utilizados em futuros projetos. Nesse ponto, o teatro e a dança parecem dividir a mesma opinião. — Por conta do isolamento social, do não contato físico.

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS Da não relação presencial. Trabalhamos muito no modo online, ao vivo. Então, durante quase praticamente um ano e sete meses, a gente realizou esse trabalho. Durante a pandemia, nos primeiros meses, por exemplo, logo quando a gente entrou em lockdown —, relata o dançarino e coreografo do Dançurbana, Marcos Mattos. Professora da Licenciatura em Teatro no Departamento de Educação da Universidade do Estado da Bahia, UNEB, Senhor do Bonfim, Karina de Faria faz alguns apontamentos sobre as artes no período de pandemia em seu artigo Arte Pós-Pandemia: Novas Configurações na Relação Entre Público e Artistas. De acordo com a professora, a pandemia resultou em maior destaque para as artes que buscaram continuidade de seus trabalhos nas mídias digitais. “Não à toa, no Brasil, o consumo de conteúdos artísticos, via plataformas digitais, cresceu significativamente já no primeiro mês de distanciamento social”. Para o dançarino Marcos Mattos, a continuidade das atividades da Cia Dançurbana, só pôde ser realizada por meio da comunicação digital: — Em todos esses meses trabalhamos no modo online, ao vivo, por videochamadas, realizando os projetos. Nossos espetáculos foram, também, readaptados para o modo online, ao vivo. Porque a gente não queria que eles fossem capturados, ou fosse um registro do espetáculo, mas que houvesse um diálogo maior entre a dança e o audiovisual. Segundo a professora Karina de Faria, os grupos encontraram nessas ferramentas, novas formas de trabalho como no caso de estudos teóricos e práticos de maneira online. “É de se destacar, neste contexto, o fenômeno das lives, que tomaram de assalto o cotidiano das redes sociais e vem marcando o consumo de conteúdos artísticos, bem como o acesso a importantes discussões filosóficas e políticas”. Foi precisamente o caminho que seguiu a Companhia de Artes Rob Drown em 2020: — Mantivemos uma sequência de lives no perfil da companhia no Instagram, o Bate papo sobre cultura popular brasileira, onde conversamos com Mestres, Mestras, Brincantes e grupos que trabalham e vivem a cultura popular. Participamos de alguns festivais online tanto com lives, como enviando vídeos pré-gravados, além de manter nossos estudos internos com oficinas, e estudos teóricos em forma de vídeoconferência —, explica Erico Bispo. Outra avaliação da doutora em Artes Cênicas, Karina de Do

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Belo Sul Mato Grosso Faria, é que as mídias sociais no contexto da pandemia, abriram caminho para os artistas menos conhecidos ampliar seu alcance de público. “Artistas de menor visibilidade que passam a encontrar instrumentos que lhes possibilitam uma maior projeção, capaz de, em certa medida, reconfigurar e ampliar o mapa das atrações e nomes que se apresentam nos cenários locais e nacional”. Mas, se por um lado as redes sociais são vistas por alguns como fontes alternativas para manter a agenda de espetáculos artísticos, por outro, essa ferramenta é um tabu quando se trata de atividade home office: — Em se tratando de teatro, somos um grupo bem tradicional, a maioria dos nossos espetáculos sugere rua, ou espaços alternativos, não pensávamos em ocupar por agora as mídias sociais ou algo assim, nem equipados estávamos pra isso, além do querer do grupo que realmente se interessa pelo teatro mesmo, esse que é olho no olho, esse que dá a cara a tapa, que vai até as comunidades e sente o calor, os odores, e a pele do junto com a batida do coração e a retina que hora diminui e hora se expande pra enxergar o espetáculo —, relata Yago Garcia. Na opinião de Erico Bispo, entretanto, o momento era de inovar: — Com o impedimento por força maior, cabe talvez a revisão de alguns conceitos pré-estabelecidos, uma descoberta de como as redes sociais, as transmissões de espetáculos e oficina nesse lugar não físico habitado por artistas e público pode vir a ser um propagador e um catalisador dessa energia que mantém a cena viva —, defende. Para Yago Garcia, é preciso não perder de vista as características do espetáculo teatral, segundo as quais, a peça desenrola-se sempre no presente. O ator ainda revela que tem necessidade de vivenciar esse fazer artístico que se desenrola diante e com participação do público: — Por mim, voltaria ao teatro corpo a corpo. Não sou de televisão ou mídias sociais. Cada vez eu quero mais fazer o teatro tradicional, sabe? E quando eu falo tradicional, é nos moldes, assim. Eu faço, e o público está ali presente, me vendo. Eu acho que cada arte tem a sua linguagem. E o teatro é essa coisa sanguínea. É corpo a corpo —, justifica. Embora de olho em novos horizontes, Erico Bispo não discorda:

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS — Claro que nas artes cênicas nada substitui o contato, o dividir o mesmo espaço, a troca física. Mas são possibilidades que se abrem.

Dificuldades Utilizadas, inicialmente, com o objetivo de divulgar e registrar seus trabalhos, as mídias sociais das companhias e dos artistas sul-mato-grossenses têm sido uma ferramenta de sobrevivência e solidariedade nesse período. Por falta de recursos para o aluguel, água e luz, houveram grupos que perderam o seu espaço. Segundo a artista Fernanda Kunzler, que também integra o Teatral Grupo de Risco, o teatro foi ainda mais afetado: — Todos os outros setores de alguma forma deram continuidade ao trabalho, nós, mais especificamente do teatro, precisamos parar definitivamente, pois temos contato direto com o público —, justifica. A situação mobilizou membros da classe artística. Uma rede de solidariedade se estabeleceu com companhias teatrais cedendo espaço para o armazenamento de materiais além da arrecadação de cestas básicas para aqueles que tiravam sua renda exclusivamente da arte. — Estamos utilizando (as redes sociais) com ações emergenciais como campanha de vaquinha e bazar em prol do espaço —, afirma o artista cênico Leonardo de Castro, do grupo Circo do Mato, que em 2020 lançou, em sua página, a ação Precisamos do Nosso Respeitável Público. Outra companhia que usou as redes, foi o tradicional Teatral Grupo de Risco, que em 2021 completa 33 anos. — As ações que criamos foi para manutenção do espaço, como rifas e vaquinhas virtuais. O TGR, como em outros momentos, não fugiu à luta! Cooperamos como podemos, emprestamos nosso espaço para armazenamento e distribuição de cestas para artistas, ou levamos cestas doadas para artistas que não podiam sair de casa... —, conta o ator Yago Garcia, revelando o viés solidário entre as companhias. Em setembro de 2020, enquanto as ações solidárias eram realizadas, Fernanda Kunzler esperava uma queda de infectados pelo novo coronavírus que permitisse a retomada de ações de incentivo à cultura: Do

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Belo Sul Mato Grosso — Acreditamos que a gestão pública retome os investimentos na política pública para cultura e que se efetive a legislação em vigor de nossos marcos regulatórios (planos de cultura municipal, estadual e nacional). Com isso, poderemos pensar em projetos mais amplos para a sociedade — declarou a atriz.

Poder Público Entre os meses de maio e junho de 2020, o Conselho dos Artistas se inteirou de que muitos iriam ficar sem trabalho devido ao fechamento imposto para deter o contágio do coronavírus. Sem previsão dos repasses públicos municipais e estaduais dos projetos aprovados, os representantes recorreram à Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, Sectur, de Campo Grande, para obter cestas básicas. — Nossa ação durante a pandemia foi essa. Quando chegou em meados de maio e junho que vimos que iriam ficar muitos sem trabalho e as coisas começaram todas a fechar. Tínhamos a previsão dos repasses dos recursos no município e não tinha ainda a divulgação do Estado dos projetos aprovados. Nós solicitamos, via Sectur, um auxílio de cestas básicas, pelo menos. E aí a começamos a fazer, cestas básicas para o teatro. Os seus colegiados ou os fóruns, começaram a articular isso também com as suas instituições representantes, a música fez isso, vimos uma movimentação. Mas, as áreas começaram a movimentar, no teatro conseguimos um auxílio de cesta básica com a Sectur. —, relata Fernanda Kunzler. Segundo o diretor-presidente da Fundação de Cultura do Estado, Gustavo Castello Cegonha, num primeiro momento a instituição também se viu impedida de agir devido às imposições de medidas de isolamento: — A Fundação de Cultura do Estado de Mato Grosso do Sul é uma pasta que lida com o trabalhador da cultura que foi a classe mais afetada durante a pandemia. São quase 16 meses que os trabalhadores ficaram sem poder trabalhar. Então, nós aqui da Fundação, ao mesmo tempo que tínhamos de fazer alguma coisa pela classe artística, também ficamos de mãos atadas. Porque nós não podíamos fazer eventos, causar aglomerações. Os Festivais de Inverno de Bonito, os Festivais América do Sul de Corumbá, foram todos prejudicados em função da pandemia —, justifica Cegonha.

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS Passado o primeiro susto, a Fundação de Cultura do Estado organizou debates com os segmentos artísticos, técnicos da instituição junto aos colegiados e setoriais artísticos, os chamados Grupos de Trabalhos, em busca de medidas que atenuassem os efeitos do isolamento social. — Na pandemia, a Fundação de Cultura estabeleceu uma linha de diálogo muito ampla com os colegiados, com o Fórum Estadual de Cultura e também com o Conselho Estadual de Cultura ao qual nós temos reuniões periódicas mensais —, afirma Gustavo Cegonha. Com integrantes indicados pelo Fórum Estadual de Cultura, os Grupos de Trabalhos se organizaram no início do avanço da covid-19 com a tarefa de pensar medidas emergenciais para o enfrentamento à crise decorrente da pandemia junto à Fundação de Cultura do Estado. Participante dos conselhos de teatro local, Fernanda Kunzler explica que os Grupos de Teatro formados dentro do Conselho dos Artistas locais iniciaram um diálogo junto ao Governo do Estado por meio da Fundação de Cultura em busca de medidas que antecedem as demandas do setor no período de pandemia. Durante a entrevista para a disciplina de Laboratório de Ciberjornalismo II em meados de julho de 2021, a atriz recordou o período de conversa com o setor público. — Sociedade civil e gestão pública, assim se deu os diálogos, nessas demandas, na cobrança, na construção, vendo como outros Estados estavam se pautando e se reconstruindo e formulando as leis, e reformulando e vendo possibilidades de dar assistência a esses trabalhadores das várias áreas das artes. Então isso ocupou todo o ano passado, de maio até o final do ano, as comissões todas, os fóruns, os conselhos, todos ficaram assim. Chegamos a fazer manifestação em frente à Fundação de Cultura, porque tinha que ter sido pago também um edital, chegamos a fazer manifestação também na Sectur. — A partir das propostas apresentadas, serão alinhadas de acordo com o valor previsto. É certo que nem tudo o que foi proposto pelos segmentos será atendido porque não há recurso suficiente para tudo. No momento estamos verificando o que poderá ser executado para elaborar os editais que passarão para a procuradoria jurídica da Fundação de Cultura e Conselho de Cultura —, explicou a gerente de difusão cultural da Fundação de Cultura do Estado, Soraia Ferreira.

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Lei Aldir Blanc Havia uma preocupação em torno da ausência de uma Consolidação das Leis do Trabalho, CLT, específica para os trabalhadores do setor cultural artístico que garantisse recursos para a classe durante a pandemia. Conjunto das leis do trabalho que regulamentam as relações entre os trabalhadores e as empresas, seja no meio rural ou urbano, é a CLT que, entre outras coisas, determina resoluções como jornada de trabalho, horas extras, férias, FGTS etc... Portanto, nesse período começou uma mobilização nacional por uma medida que atendesse aos trabalhadores da cultura, conforme recorda Fernanda Kunzler: — Nesse mesmo processo, começou uma conversa. Aconteceu o falecimento do Aldir Blanc, e começou, no Congresso Nacional, uma conversa de se ver uma forma emergencial para dar assistência aos trabalhadores dessa área, porque era a única área informal que não tem CLT, por exemplo. Então não estamos assegurados por nenhuma Lei que pudesse fazer um salário emergencial como aconteceram com vários outros trabalhadores de outras áreas, setores que precisaram parar nesse período também. E aí iniciamos essas reuniões especificas, montamos comissões para tratar especificamente da Lei Aldir Blanc. Ver como ela poderia ser realizada na forma mais emergencial possível (que acabou saindo só no final de 2020, e esse ano de 2021), e também para debater a questão da manutenção dos espaços para não se perder —, relata a atriz. Aguardado desde o início da pandemia, o auxilio emergencial estipulado pela Lei 14.017 visava atender a trabalhadores da área de cultura afetados pela crise decorrente do novo coronavírus. Aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República, em 29 de junho de 2020, esta lei foi batizada de Aldir Blanc, como homenagem ao compositor da Música Popular Brasileira, falecido em consequência da Covid-19 em 4 de maio de 2020 aos 73 anos. Segundo o diretor-presidente da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, Gustavo Cegonha, o Estado foi o primeiro contemplado com os recursos dessa Lei: — Nós tivemos também os recursos da Lei Aldir Blanc, que foram destinados 3 bilhões para o Brasil, aonde Mato Grosso do Sul, a Fundação de Cultura, recebeu 20 milhões e 500 mil reais e, mais 20 milhões e 500 mil reais para ser distribuídos para os municípios de forma proporcional. Não obstante, para alguns artistas do Estado, a demora na tomada das ações colaborou para o encerramento das ativi172

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS dades. — Embora as saídas emergenciais para cultura não se deram de forma tão “emergencial” diante da necessidade, temos sim a expectativa que a Lei Aldir Blanc seja aplicada democraticamente aos trabalhadores e às trabalhadoras da cultura e aos espaços culturais —, declarou a atriz Fernanda Kunzler em setembro de 2020. Nos meses seguintes, a Fundação de Cultura do Estado começou a divulgar pelos canais e mídias sociais da instituição, a Lei Aldir Blanc estabelecida com alguns requisitos. Para receber o benefício, os trabalhadores deveriam estar inscritos em algum cadastro de cultura municipal, estadual ou federal, ter atuação profissional na área artística ou cultural nos últimos 24 meses e obedecer a outros critérios referentes ao auxílio emergencial de R$ 600,00, como ter renda familiar de até 3 salários mínimos ou R$ 522,50 por pessoa. A notícia foi bem recebida por companhias como o Teatral Grupo de Risco: — Estamos nos articulando para ter acesso aos direitos da nova Lei Aldir Blanc —, relatou Leonardo de Castro, também, em setembro de 2020. Entrevistado em julho de 2021, Erico Bispo revelou que optou por captar recursos com um projeto de música. Para ele, a ação amenizou as dificuldades dos trabalhadores menos conhecidos da arte. — Acho que abriu possibilidades e deu visibilidade para muitos artistas que até então não tinham espaço em editais maiores e festivais. Além, claro, de cumprir a função de auxílio no momento da pandemia. De acordo com a Lei Aldir Blanc, espaços vinculados a fundações, institutos ou instituições de empresas, incluindo casas ou espetáculos de teatro com financiamento exclusivo de grupos empresariais, assim como aqueles geridos pelo sistema “S” — SENAI, SESC e SEBRAE —, também não teriam direito ao auxílio. Além disso, o profissional da cultura e da arte, não poderia ter recebido o auxílio emergencial, nem ter emprego formal, nem receber benefício previdenciário ou assistencial, exceto o bolsa família, e ainda não ter nome restrito. Com 25 anos de carreira, a cantora, bailarina e coreógrafa Regina Bombom diz que nunca tinha passado por um momento tão delicado por não atender ao critério da Lei Aldir Blanc, ao dever o IPVA de seu veículo e ter o nome restrito. Do

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Belo Sul Mato Grosso — Um valor irrisório de R$500,00 ou R$600,00 e muita burocracia para receber esse dinheiro, que nem paga o IPVA do meu carro que é R$1200,00. Se eu fizer um levantamento, de 50 artistas, dois conseguiram pegar o dinheiro para ajudar. Em dezembro de 2020, o setor cultural e artístico do Estado ainda teve de enfrentar um novo problema com os recursos da Lei Aldir Blanc. Findava o prazo de distribuição dos recursos, a Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul deveria devolver ao governo federal os valores não movimentados. — Nós conseguimos executar apenas 20% do recurso da Lei em 2020, porque foi uma Lei que foi construída de uma forma muito apertada, com pouco prazo para ser executada. Nós tivemos que seguir os prazos da Lei 8666, que é a Lei de licitações e contratos públicos —, lembra Gustavo Cegonha. Para a diretora e atriz do Teatral Grupo de Risco, Fernanda Kunzler, os atrasos na liberação dos editais e na implementação dos recursos da Aldir Blanc, foram a gota d’água para os trabalhadores da área: — Então, assim, aconteceu durante esse tempo de pandemia a gente ainda teve que fazer manifestação. Com todos os cuidados, mas tivemos que fazer porque senão as coisas não andam, não caminham, tivemos que fazer um enfrentamento muito grande na questão da devolução do recurso porque a própria gestão pública não sabia como lidar com o recurso aqui. Não sabia ir em qual fonte, as coisas mais burocráticas de repasse dos recursos, eles não sabiam fazer. Então eles queriam devolver muito dinheiro do tesouro e tivemos de buscar advogados aliados, estudar a Lei para poder avisar a gestão pública que ela não precisava devolver, entendeu? Então foi bastante trabalhoso esse processo, foi assim que se deu durante a pandemia de forma bem resumida —, descreve a atriz. Segundo o diretor-presidente da Fundação de Cultura do Estado, a situação foi contornada por meio de diálogo entre a instituição, que pediu extensão do prazo para a aplicação dos recursos junto ao governo federal: — O governo federal abril possibilidade de executar os outros restantes do recurso em 2021 e nós conseguimos, ainda contemplando aqueles mesmos trabalhadores de 2020 para entregar o seu produto de forma virtual e serem pagos a cada trabalhador R$16.860,00. O auxílio emergencial da Lei Aldir Blanc, entretanto, não

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS foi o único que esteve disponível. Houveram também outras iniciativas pelo governo do Estado e da capital. De acordo com a atriz Fernanda Kunzler, durante os debates e capitalização dos recursos destinados à cultura pelo poder público, os Grupos de Trabalho tiveram o cuidado de setorizar cada ação: — Então foram feitas por meio do conselho do fórum de cultura e dos colegiados, comissões pertinentes a cada demanda. Se era da Lei Aldir Blanc, era uma demanda, se era os recursos emergenciais, outra.

Além da Aldir Blanc. Outros Recursos. Num domingo, dia 6 de setembro de 2020, a Secretaria de Saúde do Estado, publicou os últimos números do contágio pelo novo coronavírus em Mato Grosso do Sul. De acordo com o Boletim, naquela época, o total de casos confirmados era de 53.491 infectados. Nas últimas 24 horas haviam sido registrados 161 novos casos de Covid-19 e a taxa de casos positivos testados foi de 23%. Treze pessoas haviam perdido a vida em decorrência do contágio. E, finalmente, embora em ascensão, as infecções pelo novo coronavírus haviam apresentado uma leve queda. Assim, era justificável que, naquele mesmo mês, a atriz e diretora do Teatral Grupo de Risco, Fernanda Kunzler, revelasse sua esperança de que junto à liberação dos auxílios pelo poder público, as tomadas de medidas de biossegurança permitissem a gradativa abertura para a retomada dos espetáculos, de modo que o Teatral Grupo de Risco se encontrava em ritmo de ensaio para atender ao Programa de Fomento ao Teatro, Fomteatro, lançado em outubro de 2019, pela Secretaria de Cultura e Turismo de Campo Grande, SecTur. — Nós, estamos neste momento na pré-produção de um projeto teatral intitulado Para Além do Centro: 31 anos de Risco —, relatou. Aprovada no edital Fonteatro, em 2019, o projeto do Teatral Grupo de Risco previa apresentações de teatro gratuitas em nove bairros periféricos de Campo Grande. Junto as apresentações, o grupo também daria uma oficina aberta e realizaria a remontagem de um espetáculo. Os recursos, não obstante, só foram disponibilizados em 2020. — Acreditávamos que, com os passos cumulativos de 2019, pudéssemos organizar estruturalmente nossa produção e Do

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Belo Sul Mato Grosso manutenção durante até seis meses, que é o tempo mínimo da execução de um projeto —, contou Fernanda Kunzler. Segundo a secretária adjunta da Sectur, Clarice Benites, a pasta foi impedida de contratar artistas em virtude do Decreto nº14231, de 3 de abril de 2020, publicado e sancionada pelo prefeito Marcos Trad. As ações realizadas durante o período de março até dezembro de 2020 aconteceram em virtude das parcerias entre o setor público e privado. — Tivemos as lives em que o artista era remunerado com R$1000,00. A Lei Aldir Blanc, em que o município foi contemplado com um montante, inclusive, retiramos as declarações para que todos pudessem se inscrever, mesmo negativo. Muitos se inscreveram e receberam os valores que puderam dar uma amenizada nesta situação terrível —, declarou Clarice. Entrevistada no segundo semestre de 2019 durante a produção do radiodocumentário no Laboratório de Radiojornalismo II, a gerente dos Fundos de Investimento da Fundação Estadual de Cultura Solimar Alves falou sobre a implementação da Lei 5060: — Hoje eu estou como gerente do FIC, que é o Fundo de Investimentos Culturais do Estado. Estamos finalizando a regulamentação do capítulo da Lei 5060 que regulamenta essa parte do FIC, para que possamos liberar o edital ainda esse ano. E que possa esse edital vir a contribuir para que a comunidade do nosso Estado possa estar ampliando o seu fazer cultural e também colocando, divulgando, indo para fora, apresentando todas as manifestações que nós temos aqui. Entretanto, de acordo com a atriz Fernanda Kunzler, um atraso semelhante ocorre no âmbito estadual. — O Governo do Estado lançou o Fundo de Incentivo à Cultura em 2019 e só estão pagando este ano —, reclama. Questionado sobre as reclamações de repasses atrasados, o subsecretário da Fundação de Cultura, Eduardo Romero afirma que, não há, qualquer atraso no FIC e nos programas similares: — Quanto ao FIC e aos programas similares, não tem nenhum pagamento pendente que não esteja dentro do prazo e da programação. Resumo: não tem nenhum pagamento atrasado. Não tem ninguém que tenha feito ou participado de um edital, tenha sido contemplado e não tenha recebido. Todos os atrasos que houveram foram em função da pandemia, e todos foram sa176

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS nados e resolvidos porque foi só ajustes de planos de trabalhos. Mas não tem nada atrasado. Está todo mundo em dia, está todo mundo recebendo conforme os cronogramas de cada edital e de cada programa especifico. Também pela Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, o diretor-presidente Gustavo Cegonha afirma que o Estado trabalhou nesse período de pandemia com editais. — Nós não podemos causar aglomeração, então, desde quando começou a pandemia, nós praticamente trabalhamos com o auxílio emergencial estadual através dos editais MS Cultura Presente I e II, onde foram contemplados uma média de 850, 860 artistas. Na sequência, nós conseguimos entregar o edital do Som Na Concha para os músicos que foram selecionados através do edital, de forma virtual. No ano passado nós conseguimos executar. Nós fomos o primeiro Estado do Brasil que executou e entregou um auxílio emergencial estadual para o trabalhador da cultura através dos editais —, destaca. Com outros números de beneficiados, a gerente de difusão cultural da Fundação de Cultura do Estado, Soraia Ferreira, também destacou a rapidez do órgão em agir diante da ameaça da pandemia: — Fomos um dos primeiros Estados a publicar dois editais de emergência para auxiliar artistas e trabalhadores e trabalhadoras da área cultural. Esses editais foram com recursos do Governo do Estado. Foram atendidas mais de 700 pessoas —, recorda. Na análise do produtor, diretor e ator do grupo Urgente Cia, Vitor Samudio, o Governo do Estado tomou medidas importantes para o setor cultural desde o início da pandemia, como um auxílio emergencial no início do isolamento, em 2020. — São medidas importantes nesse momento em que as coisas se fragilizam e temos uma dimensão do papel do poder público e da importância das artes e da cultura para as pessoas, para os indivíduos, o coletivo. Outra medida adotada pela Fundação de Cultura do Mato Grosso do Sul foi a adoção de tecnologias que auxiliassem na implementação das medidas, conforme relata Gustavo Cegonha: — Em 2020 a Fundação de Cultura adquiriu uma plataforma chamada Mapas Culturais termos um mapeamento da quantidade de artistas que nós temos no Estado. Essa plataforma, ela serviu para cumprirmos o inciso 1 da Lei Aldir Blanc, que foi Do

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Belo Sul Mato Grosso o auxílio emergencial federal para os trabalhadores da cultura. Agora, nós estaremos usando a mesma plataforma para beneficiar a nível estadual o trabalhador da cultura. Em julho de 2020, o Mapa Cultural de Mato Grosso do Sul, apresou uma previsão de utilização de até R$3.230.000,00 no setor cultural, de R$1.800,00 em parcelas mensais no valor de R$ 600,00, possibilitando que 1800 trabalhadores da cultura tenham acesso ao apoio financeiro emergencial. De acordo com o mesmo Mapa, o Estado conta com 2731 artistas cadastrados no Sistema da Fundação de Cultura,107 espaços, 81 projetos e 54 oportunidades. Entrevistado em 20 de outubro de 2021, o músico Willian Costa considera que o auxílio ajuda, embora tenha demorado: — Tivemos a liberação de um fundo para a Cultura que está auxiliando músicos com o valor de R$600,00 divididos em 3 parcelas. Essa ajuda emergencial passou a ser disponibilizada no mês passado. Digamos que veio um pouco tarde, porém, de qualquer forma, é um auxílio —, relata. Com o avanço do número de vacinados e queda dos casos de internação por covid-19, o prefeito Marcos Trad estendeu o horário de circulação e funcionamento dos estabelecimentos para até às 23 horas no final de agosto de 2021. Para o músico Crys Sanfona, o novo cenário com a ampliação do horário para as 23 horas e a abertura dos setores de evento representa uma melhora para os artistas. — Saiu um anúncio que foram liberados os eventos fechados, shows, exposições e casamentos com público de 50% até 70%. Agora conseguimos ver, ali na frente, já está clareando, dando tudo certo, agora o poder público está lançando uma série de coisas boas. De fato, em 28 de junho de 2021, o governo do Estado anunciou a destinação de 763 milhões para os setores mais atingidos pela pandemia. Noticiado como megapocote pelos sites oficiais do governo estadual, o projeto incluía a retomada do setor cultural para o segundo semestre de 2021, com a reabertura de editais e a realização dos festivais parados devido ao avanço do novo coronavírus. — A partir de agora vão ser abertos os editais contemplando todas as áreas e deveremos deve disponibilizar o site do Mapa Cultural para o cadastro das pessoas que cumprem as regras e podem receber o auxílio emergencial —, informou Gustavo Cegonha.

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS Conforme o site Mapa Cultural, do Governo do Estado: “O Programa MS Cultura Cidadã, instituído pela Lei nº 5.688, de 7 de julho de 2021 e regulamentado pelo Decreto nº 15.728, de 14 de julho de 2021, integra o pacote de apoio do governo estadual Retomada MS, e prevê o uso de até R$ 3.230.000,00 (três milhões, duzentos e trinta mil reais), para concessão de apoio financeiro emergencial aos trabalhadores da cultura atingidos por restrições econômicas durante a pandemia da Covid-19”. — Foi aprovado um pacote do governo estadual de 78 milhões para 2021 e 2022. Esse pacote inclui a abertura de novos editais, a garantia do FIC 2021 e 2022. Um outro auxílio emergencial estadual, pagando R$1800,00 para cada trabalhador da cultura, dividido em 3 parcelas de R$600,00. E, também, a reforma de equipamentos culturais do Estado, como o Castelinho de Ponta Porã, a Casa do Artesão, o Centro Cultural José Octávio Guizzo, a Igreja Tia Eva, o MARCO, a Concha Acústica e etc. —, explicou o diretor-presidente da Fundação Estadual de Cultura. — O que nós entendemos como setor cultural, são todas as áreas que abrangem a cultura, como teatro, música, dança, circo, literatura, gastronomia, capoeira, moda e designer, patrimônio cultural, artesanato, entre outros —, completa, Gustavo Cegonha. Para o presidente da União dos Músicos, Crys Sanfona essas medidas revelam um momento mais favorável em virtude do empenho de todos os envolvidos pela causa. — O poder público, nessa reta final, começou a juntar mais, a viabilizar editais e auxílio pelo Estado, federal e também a prefeitura. Nessa retomada que todo mundo está falando, está crescendo essa ajuda para que retornemos mais firme, apesar de todo o prejuízo que tomamos nesse um ano e quatro meses. Sempre crítica, a atriz e diretora do Teatral do Grupo de Risco considera que as medidas são importantes, embora, ao contrário de outros setores trabalhistas beneficiados, para a cultura funcione mais como um contrato trabalhista: — Tivemos que trabalhar para receber. Nunca foi um auxílio. Sempre foi um contrato de trabalho, tanto no Estado, quanto no município. Porque não fomos lá e fizemos um cadastro, entendeu, para receber como aconteceu nas outras áreas. Nós tivemos que passar por uma seleção, um edital, mandar um produto para poder receber. Teve uma vez de RS600,00 na secretaria de cultura do município e teve também no Estado, acho que era de RS 800,00 ou RS600,00 em duas vezes, alguma coisa Do

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Belo Sul Mato Grosso assim. RS600,00 em três vezes, né. Três de RS600,00. Então todo esse processo durante a pandemia, nós tivemos que atuar nele. Ou para montar o edital, ou para montar um chamamento público, junto com as esferas competentes, com a gestão pública —, critica Fernanda Kunzler.

Pedregulho, Meu Amor Ao termo do segundo semestre de 2021, o retorno gradativo das atividades presenciais regulares, a partir do alto número de imunizados contra o novo coronavírus aquecem o setor artístico cultural. Sem dispensar os protocolos de segurança contra a transmissão do novo coronavírus, o grupo de Erico Bispo tem planos de retomada. — Só agora no segundo semestre vamos retomar os ensaios/pesquisas presenciais, pois quase todos estão vacinados. Vimos o quanto estamos vulneráveis quando dependemos apenas de ações presenciais, de bilheteria ou de projetos que tenham isso como premissa para sobreviver. É importante abrir perspectivas e diversificar os formatos entregues ao público para que, independentemente da situação sanitária possa dar continuidade ao trabalho e sofrer o mínimo possível financeiramente. Para Fernanda Kunzler, o setor artístico é a classe que não teve descanso durante o isolamento social. — Atuamos durante toda a pandemia, para montar editais, ou um chamamento público junto às esferas competentes com a gestão pública. Para o Presidente do Sindicato dos Músicos, Autores e Técnicos de Mato Grosso do Sul, Beko Santanegra, ainda vai levar um tempo para mudar o quadro de estragos: — Estamos recomeçando abaixo do zero. Muitos estão endividados, e para se manter, venderam seus instrumentos e equipamentos. A flexibilização é um alívio. Mas, vai demorar para voltar ao normal. Tomara que tenhamos um natal tranquilo e cheio de paz. Se o natal é tempo é tempo de renovar as esperanças, o término das entrevistas é o momento onde os entrevistados

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS puderam declarar aquilo que julgaram importante ser dito sobre a cultura e a arte no Estado de Mato Grosso do Sul: — Qual seria a relevância da arte local para a cultura sul-mato-grossense? —, pergunto ao pesquisador e teatrólogo Fabrício Moser. — O teatro, como as outras artes, por sua história, ainda em revisão e expansão, compõe a identidade da cultura sul-mato-grossense, e suas principais marcas, sem dúvida, são a resistência de suas instituições, agentes, artistas e coletivos independentes, e o desejo, que surge através deles, através do teatro se conectar aos seres humanos que dividem esse mesmo território, ensinar sobre a vida e o mundo que nos cerca e sobre a busca de um futuro mais humano e socialmente menos desigual para o nosso Estado. Considerando o contexto da busca por uma identidade cultural dentro do regime militar questionei a historiadora e pesquisadora Susana Arakaki: — O que é fundamental que o sul-mato-grossense saiba sobre a presença e as ações do regime militar na região Estado? — Conhecer a fundo o que foi a ditadura militar no país e no estado. Do macro ao micro. O longo período de ditadura, 21 anos, marcou profundamente as gerações, de forma positiva e negativa. Estamos lidando constantemente com os dois, é um processo. O conhecimento vai ajudar no amadurecimento. Do ponto de vista do pesquisador e artista visual Marco Antônio Bessa, a questão da identidade está atrelada a auto identificação do mato-grossense-do-sul com as expressões do Estado: — A arte será sul-mato-grossense na medida em que o sul-mato-grossense se ver nela: à medida que a arte for biogeográfica. Ao passo que as pessoas saibam perceber que a arte deixou de reproduzir outros lugares em detrimento dos locais da cultura sul-mato-grossense: múltiplos, pluricultural; plurilinguístico; pluridentitário; pluri em muitas coisas. Ao seu turno, o dançarino e coreógrafo Marcos Mattos considera a importância das artes para a existência humana evidenciada durante a pandemia:

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Belo Sul Mato Grosso — As artes, elas são libertadoras, elas são plurais, elas são subjetivas, mas elas. Ajudam a pessoa a se ver, a se encontrar enquanto ser humano. E eu fico pensando que, depois de uma pandemia como essa, de um vírus como esse que veio acabando com o ser humano, que foi o único ser vivo a qual ele conseguiu atingir, matar, machucar. Nós temos de ter aprendido alguma coisa. O que é que nós aprendemos? E como é que as artes podem nos ajudar nesse processo de aprendizagem, de sensibilização, de olhar para o outro, de observar que as necessidades são diferentes. Que nós vivemos num país muito desigual. Que devemos nos ajudar, que a gente tem que mudar os nossos hábitos para o meio ambiente poder sobreviver. Para que consigamos viver nele. Porque ele vai continuar e, enfim. E nós temos toda a tendência a sermos extintos. Então eu acho que a arte, ela vem nesse lugar, a dança, as artes visuais, a literatura, a música, o teatro. Acho que as artes estão nesse lugar, o lugar da sensibilização, da autocriação. Da reinvenção, do protesto, da crítica. Da gente olhar para o mundo em que vivemos. Uma arte que não. Que não diz sobre o seu momento atual, que não reflete o seu momento atual, talvez precise ser repensada. Então hoje, é isso o que eu entendo sobre a importância das artes, da dança. É isso. Erico avalia que a pandemia refletiu a importância e alcance da arte sul-mato-grossense: — O teatro sul-mato-grossense sobretudo nos últimos anos tem se fortalecido através dos espaços dos grupos e companhias, tanto na capital quanto em algumas cidades do interior, isso claro como uma ação de resistência, tendo em vista que os espaços públicos voltados para as artes cênicas diminuem ano a ano, e dessa forma mesmo sem o auxílio ou com pouquíssimo recursos e políticas públicas voltadas para as artes, é a força e união de coletivos e artistas que tem possibilitado ao público o acesso a arte e cultura. Durante a pandemia, sem a possibilidade das apresentações presenciais os artistas de MS têm mostrado através das redes sociais que tem alcance e reconhecimento nacional e internacional seja através de lives independentes ou de participações em festivais online. Deixando claro a importância de se ter investimentos e políticas públicas mais contundentes na área, dando aos grupos e artistas muito mais força para pautar ações dos órgãos responsáveis pela cultura no Estado.

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS De acordo com o jornalista e ator Expedito Di Montebranco, a questão das políticas públicas e da politicagem permanece como um dos maiores problemas históricos do trabalho artístico regional evidenciado pela demandada de artistas de fama nacional: — Falta política de governo meu amigo para mostrar nossa cara. Eu entrei no serviço público aos 11 anos, fui o primeiro Mirim de Campo Grande a ser empregado na época do ex prefeito Lúdio Coelho e fiquei no serviço público por 17 ou 18 anos saindo para viver de arte. Desde aquela época vejo o descaso e repito: As Secretarias e Fundações são empresas de eventos e só. Os artistas não são ouvidos e assim agem. Show dá público que gera voto. Teatro não dá tanto público justamente porque o próprio governo não quer, tanto é que o Teatro Aracy Balabanian foi fechado. Trabalhei com o Arquiteto Avedis Balabanian, irmão da atriz Aracy Balabanian e eu nunca vi a Aracy por aqui ou falar que era de MS. Ney Latorraca, Ney Matogrosso e tantos outros. Eles não falam justamente porque o sucesso foi por talento e por terem que abandonar esta terra e terem tido sucesso. Repito: Faltam duas coisas: Politica Cultural e união entre os artistas, aquela união que já tivemos quando éramos ruins de tudo. Hoje já estamos semiprontos e parece que ninguém ajuda o outro com medo de que ele vá. Com isso continuamos no anonimato, fazendo nossos trabalhos para os amigos verem. Marcos Mattos lista uma série de ações necessárias perante o problema: — Os recursos públicos destinados para a cultura ainda são insuficientes. É preciso ampliar isso, enquanto uma política pública de governo. De Estado, aliás, e não de governo. As ações deveriam, também, saírem do centro e irem para os bairros. A quantidade de editais e de recursos destinados para que os artistas consigam produzir precisa ser maior. E ao mesmo tempo, fomentar ou criar um mercado cultural paralelo a isso, que independa de editais que ao meu ver está ainda muito distante para a gente. Então eu acho que isso (a pandemia) pode ser. Pode ser não. Foi um processo de aprendizado para a gente, mas também tem que ser um processo de aprendizado para quem está no poder público, para quem está pensando em política pública. Para quem, está pensando em disseminação, circulação, difusão das artes. Dos bens artísticos. Então eu acho que é um alerta para Do

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Belo Sul Mato Grosso podermos pensar isso e. E como é que nós conseguimos, também, trabalhar de maneira que diminua a desigualdade social desse país, não só entre os artistas, mas todo mundo. Porque também foi isso o que a pandemia trouxe, destacou isso e levantou isso na nossa cara. Na perspectiva do músico Willian Costa a deficiência das políticas públicas também afetam o setor da música: — Nossa música é riquíssima, com influências da música fronteiriça, em especial a Polca, o chamamé, a guarânia, entre outros costumes e tradições advindos da imigração de outros povos, e temos muita coisa já produzida em nosso Estado de referência Nacional e que tem essa mescla de influências, mas que também apresenta uma identidade regional. Temos diversos compositores, interpretes, instrumentistas, produtores, professores de música, dos mais variados gêneros musicais e de muito talento e competência. O que precisamos é de Políticas Públicas que valorizem, que evidenciem e que contemple a toda classe musical de nosso Estado, mas também que além de trazer essa classe para a frente de trabalho, subsidiem espaços e condições para que estes possam viver de forma digna, e não esquecidos e largados a própria sorte. Temos aqui em nossa cidade o Sr. Carlos Luz, responsável por um grande acervo fonográfico o qual já tirou muito dinheiro de seu bolso com intuito de registrar, catalogar e arquivar tudo aquilo que é produzido por artistas de nossa terra, isso em relação a música, o que quero dizer com isso? Precisamos de investimento na área, para que o artista seja reconhecido, lembrado e respeitado por sua contribuição ao nosso Estado. Isto é o que precisa ser dito. Para a antropóloga e pesquisadora Marlei Sigrist a solução também passa pela união: — Eu não perco nunca a esperança. Por pior que esteja a situação eu acho que a esperança é sempre a última que morre. A gente tem que se dar as mãos, nos apoiar enquanto produtores culturais, artistas. Tentarmos através dessa união, dar a conhecer a nossa arte, o que nós fazemos aqui dentro do Estado. Tentar ganhar terrenos em outros espaços, apesar de, apesar do poder público, apesar de qualquer outra situação e irmos enfrentar com galhardia esse novo espaço cultural chamado Brasil que tem muito ainda a nos conhecer. Vamos botar mais força, mais lenha

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS na fogueira e não vamos ficar dependente aí do poder público. Acho que seria o grande lance agora nesse momento. A jornalista e coordenadora do MIS, Marinete Pinheiro considera a importância do apoio e da união por parte da população com relação aos artistas estaduais: — Minhas considerações também são no sentido de incentivar ainda mais os artistas, estamos vivendo tempos difíceis não somente na cultura, mas em vários aspectos da sociedade brasileira. Nos últimos anos tem sido muito difícil. Isso dá até um desanimo muitas vezes, mas eu acho que temos alternativas de continuar e de construir, num incentivo de pagar um ingresso num espetáculo local, de ir assistir um filme de um diretor local, compartilhar e frequentar, mesmo. Porque é comum você pagar um valor alto para ir num espetáculo que é de fora, do artista que é de fora e é uma contribuição importante do próprio público. Eles já receberam o incentivo para aquele espetáculo, mas o espetáculo precisa de público. As pessoas precisam ir até esses eventos, prestigiar, é uma contribuição muito grande para o trabalho do artista. Tem que haver essa colaboração e o entendimento de que a arte é nossa, a arte é produzida para nós e que por parte do artista, além desse esforço que é técnico, que é colaborativo existe um empenho muito pessoal dele ali e nós não sabemos dessas dores que eles sofrem, de falar assim: “puxa, acho eu vou desistir; acho que não vou dar conta”. Porque o artista é isso. Eles são uma superação constante. É a superação por falta de dinheiro, por falta de público, ou por falta de espaço para se apresentar e a falta, às vezes, de animo dele. Então, assim, ter um público, ter alguém que compartilha, ter alguém que convida, que paga um cachê, enfim. Isso é fundamental para mantermos a arte e a cultura do Mato Grosso do Sul que é muito rica. Que ainda tem muito para contribuir na formação desse Estado. Para o produtor e ator da companhia de teatro Vitor Hugo Samudio, a falta de valorização das artes reflete no desconhecimento das potencias culturais de Mato Grosso do Sul: — Nós vivemos num estado muito rico. A diversidade cultural aqui é muito grande. Das linguagens, essa miscigenação, esse atravessamento das culturas, esse atravessamento das ideias, das possibilidades que é muito grande, é muito forte. Nós

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Belo Sul Mato Grosso temos um aspecto da cultura de raiz muito forte. Eu acho que vivemos num Estado, assim, muito bom, muito produtivo, pujante, de muita potência, mas que ainda precisa trabalhar algumas questões e aí quando vamos para o aspecto da cultura percebemos, além de tudo isso que eu disse, que tem o outro lado, que é o lado, assim, da não valorização. Ou de se condenar quem faz, da forma que faz, então, enquanto não conseguirmos harmonizar e não achar esse canal em que as coisas possam se encontrar e se entrelaçar não conseguiremos fortalecer a nossa cultura que é muito forte. É muito bonita, é muito pujante. Mas que, da mesma forma que ela se fortalece cada vez mais, ela também tem um espaço muito grande para ser fortalecida. Eu acho que Mato Grosso do Sul é o centro da América do Sul. Então isso era uma coisa que a poderia ser pensada por todos nós artistas, cidadãos, indivíduos, poder público. Quer dizer, estamos em um lugar estratégico: o centro, que é pujante. E, talvez poderíamos voltar o olhar mais para isso, porque se trabalharmos juntos com certeza, todo mundo vai ganhar junto, também. O cineasta Mhiguel Horta ressalta a resistência e a importância da história teatral do Estado: — Acho que o que eu poderia acentuar do teatro é que não temos uma grande tradição, mas ele nunca morreu. É um. Sempre tem uma resistência, sempre tem alguma turma fazendo, lembro de nomes importantes aqui, como a Conceição Leite, o Américo Calheiros que foi da Fundação de Cultura, Cristina Mato Grosso. E essa é a galera da minha escola, um povo que, sabe, que me trabalhava, um povo que acreditava em mim, também. Sabe, a minha descendência, a minha raiz está neles, foi com eles que aprendi muita coisa, eles me acolheram. Acho que a gente, tem um teatro voltado para nós mesmos, que não é muito universal, é muito regional. É isso o que eu penso tanto da arte quanto do cinema aqui. O meu quintal é universal como disse o dramaturgo, quando você fala da sua aldeia você fala do mundo também. E, as vezes quando fica muito bairrista, só aquela linguagem para aquele povo, a gente também não cresce, não abre as fronteiras. Assim, como na história dramática em que Cristina Mato Grosso e Cida Vilhalva interpretaram os córregos poluídos Prosa e Segredo, no Teatro Gil Vicente anexo do INECON, o que se percebe a partir destas derradeiras declarações é um desejo comum 186

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS por parte dos entrevistados de a cultura artística de Mato Grosso do Sul seja valorizada pelas instituições, pelo poder público e pela população que nessas expressões, encontra refletida a história, as características e os valores que constituem sua própria identidade.

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS

Epílogo:

“Eu tive uma conversa com o ‘seu artista’. Um tolo!”

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lguns dias depois, MAuro foi lá em casa. Disse que o professor de teatro pediu para a gente apresentar a performance na reunião que iria ter com o prefeito e deu até uma ficha de ônibus, só que o Giovanni não tinha chegado em casa, mas mesmo assim nós fomos. Chegando lá, não demorou muito, apareceram a Cibele e Giovanni. Nós seguimos para o piso superior da prefeitura para nos arrumar. Quando começamos a nos vestir, começou a confusão: o Mauro colocou a almofada que servia de volumoso traseiro de sua personagem (aliás, uma visão terrível!) Ele estava num canto direito da sala repleta de quadro dos antigos prefeitos ponta poranenses, Cibele no centro da sala, perto de um sofá e, eu, atrás no canto esquerdo. Lembro que Cibele estava quase completa e Mauro pediu para ela o ajudar a colocar a bata. Ela pediu ao Giovanni que abotoasse sua blusa, mas, eu corri no lugar dele e pedi para que Giovanni abotoasse meus seios cênicos (na verdade era um sutiã vermelho com enchimento) e depois arranjasse o lenço sobre minha cabeça. Quando eu já tinha feito a maquiagem e estávamos quase prontos, veio alguém avisando que nós não iríamos mais apresentar. Eu saí correndo para o banheiro pedindo ao Giovanni que desabotoasse os seios e Jacinto correu para o banheiro. Tirei o lenço e o vestido e já vesti a calça por cima da meia-calça e depois a camiseta. Mauro apareceu e começamos a tentar tirar a maquiagem que estava difícil de ser removida. Corremos pela sala catando as peças dos figurinos e enfiando-as em sacolas e por fim, corremos para o piso térreo da prefeitura”, recordou numa carta destinada a mim em 2005, meu irmão mais novo, Gelson Dorival. O relato é sobre um fato ocorrido durante a segunda oficina de teatro ofertada pela prefeitura municipal de Ponta Porã no segundo semestre de 2002. Possivelmente uma das experiências mais marcantes de nossas carreiras de dramaturgos amadores, não apenas pela participação no do 1º Festival Estudantil Municipal de Teatro de Ponta Porã, o FEMTEPP, promovido pela Fundação de Cultura, Desporto e Lazer de Ponta Porã, Fuculdespp, mas pela valorização e superação de adversidades desse trabalho que foi a peça A Negra Casa do Olimpo, de minha autoria. Deveras, poderia se dizer que ao aproveitar as três irmãs da terceira idade, personagens construídas em parceria com Mauro Rocha Matias, Gelson Dorival e Elena Cibele, durante a oficina de teatro que resultou tanto em popularidade de nosso grupo como Do

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Belo Sul Mato Grosso em enfretamento de preconceitos, como a homofobia e o machismo, nos situamos no exato ponto em que as artes manifestam sua importância para o desenvolvimento da pessoa humana abordadas no capítulo cinco deste livro. Isto porque, as brincadeiras maliciosas de certos rapazes (adolescentes como nós que tinhámos entre 14 e 18 anos de idade), alunos da oficina sobre o fato de termos em nosso grupo atores que desempenhavam papéis femininos quase levaram a desistência do Gelson, se não fosse a possibilidade de superação pela própria arte, como ele mesmo relata na carta: “... Fomos apresentar com uma arma fatal contra aqueles que zombavam de nós, rapazes, por interpretarmos papéis femininos. Nessa época, eu já havia até pensado em desistir do teatro de tantos comentários machistas e homofóbicos. Foi quando o Giovanni me sugeriu que pensasse numa forma de trazer os nomes dos nossos detratores dentro da cena. Então, tive a ideia da lista de homens que elas (as personagens femininas) iriam beijar. Me disseram que eles saíram correndo quando começamos a dizer em alto e bom som, nomes muito semelhantes ao deles como Rogério Benisses ao invés de Roberto Benites, por exemplo. Ou seja, o recado foi bem elaborado, entregue e recebido”. A lembrança dessa experiência, particularmente me foi bastante util para compreender a questão do Teatro de Resistência trazida muitas vezes nos relatos de Cristina Mato Grosso e de Amirtes Carvalho no contesto da ditadura do antigo Mato Grosso uno, mas não apenas isto, ela se soma a outras tantas experiências vividas desde a escola e que se projetaram como artífices para os questionamentos que deram origem a este livro. Descrevi, anteriormente, como esse projeto tomou forma a partir de um diálogo com Erico Bispo num coletivo após uma aula do curso de Jornalismo. As questões que me moveram a implementar esse trabalho durante a graduação, entretanto, remontam a vivências há muito ocorridas, como o caso da indignação do ator e diretor Eduardo Mirando relatado no sexto capítulo deste livro. Essas indagações ganharam maior relevância nas aulas ministradas pela professora Cristina Moreira no Curso de Artes Cênicas, Teatro e Dança da UEMS. Por exemplo, eu sempre me indagava sobre a formação e a identidade da arte e da cultura do Estado quando estudávamos a História do Teatro brasileiro e sua brasilidade nos livros de Anatol Roosenfeld, Mário Cacciaglia, Edélcio Mostaço, Renata Pallottine, entre outros pesquisadores e críticos da dramaturgia brasileira. Portanto, atribuo a esse período os primeiros questionamentos que me impeliram a esse trabalho. Sua importância, para mim, está no fato de que, os trabalhos desses pesquisadores me imprimiram uma percepção de que a relação com a cultura e com as expressões artísticas foram um dos fatores que fize-

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS ram do eixo Rio-São Paulo, polos culturais e artísticos conhecidos para além das fronteiras estaduais, situação que também é percebida no Estado de Santa Catarina, embora com menor ênfase. Embora o primeiro trabalho acadêmico dentro do curso de Jornalismo que teve relação com o tema o qual eu me propunha desenvolver no Trabalho de Conclusão de Curso tenha sido a pesquisa sobre mulheres que contribuíram para a formação cultural do Estado na disciplina de Entrevista e Pesquisa Jornalística ministrada pelo professor Edson Silva, acredito que foi nas pesquisas e nas entrevistas gravadas para o radiodocumentário do Laboratório de Radiojornalismo II, ministrado pela professora Daniela Ota, que a formação, as características e os elementos que constituem a identidade do sul-mato-grossense foram revelados. Esse debate trazido pelas diversas personagens entrevistadas do setor cultural local é importante na medida em que apresentam fatos e características da cultura estadual que passam desapercebidos e, algumas vezes, são até ignorados pelo mato-grossense-do-sul em face a carência de ações públicas e institucionais (escolas, imprensa, etc.) que tornem acessíveis, que promovam debates sobre o tema, que suscitem uma consciência sobre a necessidade de ter acesso, usufruir, conhecer e difundir a cultura e arte sul-mato-grossense. Essas expressões, embora remontem a períodos históricos longínquos, parecem ter sido cristalizadas sobretudo no seio da resistência, da luta por direitos fundamentais de livre expressão, de militância perante um regime autoritário que, ironicamente, neste período contemporâneo volta a assombrar o país. A censura e as restrições que no período da ditadura brasileira, cerceou companhias de espetáculos de dança e de teatro, levando os artistas e grupos históricos como o GUTAC/INECON a se inspirar no Teatro de Resistência, no Teatro Popular, no Teatro do Oprimido, no Teatro Escola, no Teatro Brechtiniano, parece ter impulsionado uma sucessão de gerações de grupos contemporâneos que, embora tragam especificidades próprias do tempo e de sua identidade como companhia única, não abrem mão desse lado questionador, promovedor de debates sobre os diversos temas que entremeiam a vida dos diversos setores culturais, étnicos, econômicos e políticos do sul-mato-grossense. Felizmente! Curiosamente, descobri nesse percurso sobre o Belo Sul Mato Grosso, que a arte não é uma expressão de um ou de alguns indivíduos, uma classe. Absolutamente! A arte é essencial ao desenvolvimento humano, um direito universal previsto pela UNESCO e pela própria Constituição vigente do Brasil. É uma pena que impere sobre ela um utilitarismo ideológico por parte dos governantes (especialmente os autoritários como foi denunciado por diversos entrevistados em relação ao governo Bolsonaro) que viabiliza um preconceito estrutural resultando, por um lado em rebaixamento a simples entretenimento e, por outro, incute nas Do

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Belo Sul Mato Grosso classes mais pobres uma falsa ideia de que se trate de uma atividade restrita aos mais abastados. Fato esse que perpassa pelo sistema de educação. De fato, os relatos trazidos no capítulo quinto revelaram uma deficiência histórica no ensino de artes que corrobora para a problemática do acesso e da fruição da cultura e das artes por parte das classes menos abastadas financeiramente da população. Essa alienação de direitos é certamente um dos fatores que corroboram os preconceitos e até mesmo um certo desprezo para com elementos constituintes da cultura regional que, aliado a cultura de massa difundido pelas mídias, incute uma maior identificação com o modo de ser e expressões artísticas culturais estrangeiras (isto é, de outras regiões do país e do mundo). Perante esse estado de coisas indiciados no capítulo cinco e seis, penso que as Leis, quando plenamente implementadas junto às políticas públicas, abordas nos capítulos seis e sete, são fundamentais para que haja a democratização necessária das produções e do acesso e fruição da cultura e das artes. Ademais, só por meio da ampliação de acesso e fruição dessas práticas humanas é que se constitui uma identidade, um sentido pleno de pertencimento a um lugar, a um povo, essenciais ao ser humano que, de um ponto de vista populacional, solidificam a identidade de um Estado. Essas ações acima indicadas, entretanto, não podem ser tomadas de uma perspectiva castradora e alienadora como, por exemplo, uma pedagogia que se apropria de elementos da arte para “corrigir personalidades desviantes”, “adequar comportamentos considerados inadequados”, conceito esse muito próprio do nazi-fascismo e sempre rebuscado por governos e agentes autoritários. Herança do Movimento Escola Nova e da Escola Progressista (da qual o grande expoente brasileiro é o patrono da educação do país Paulo Freire), é preciso ter sempre em mente os quatro Pilares da Educação, o que me lembra a. Isso mesmo. Um dos ensinamentos inesquecíveis aprendido durante a minha rápida passagem pela faculdade de Pedagogia, no ano de 2002, em Ponta Porã, é sobre uma explicação que a professora Terezinha Pereira Da Silva nos dera sobre os Quatro Pilares da Educação elaborados pela Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI e definidos pela Unesco no relatório: “Educação: um tesouro a descobrir”, publicado em 1999: — É preciso aprender a conhecer, porque o conhecimento só é construído em terreno solidificado para recebe-lo e o desenvolver. É preciso saber fazer, porque fazendo descobrimos os caminhos que dão asas ao conhecimento e transformam a vida das pessoas com as tecnologias, as vacinas, os instrumentos de trabalho. É preciso aprender a viver, a conviver, porque a vida 192

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS é um mistério que exige preparo para as experiências que ela oferece ao longo da jornada ao lado das outras pessoas nas diversas situações. E, por último, é preciso aprender a ser. É preciso aprender a ser, e isso só acontece quando o conhecimento faz morada e cria raízes dentro da gente. —, dizia ela com seu humor sempre dócil. Poetisa, a professora Teresinha Pereira ocupava a Cadeira 12, cujo patrono é José de Alencar, da Academia Pontaporanense de Letras que ajudou a fundar, e foi. É. Foi muito triste tomar conhecimento de seu falecimento no dia 07 de março de 2020: — Eu sempre costumo dizer: ser, é essencial. Ter é acidental. Ter aquilo que é merecido pelo esforço, pela nossa capacidade de aprender, de fazer, e de conhecer. A gente só consegue aprender a ter depois que apreende os Quatro Pilares da Educação e se torna, e passa a ser. —, repetia ela, durante as aulas. Vejo como ilustração da importancia dos Quatro Pilares da Educação no ensino de artes as experiências que tive no ano de 2000, ao retornar para Ivinhema, terra onde nasci, e onde deparei-me com um segundo ano do Ensino Médio marcado pela pedagogia tradicional, cujas disciplinas, a rigor, eram dadas por textos e exposições dos professores ou pela transcrição dos textos que estes escreviam no quadro negro (prática pertinente a Escola Tradicional). Vindo de uma modalidade de ensino relativamente diferente, com participação ativa dos alunos na escola Estadual José Barbosa Rodrigues de Campo Grande, passei a questionar os colegas de sala e alguns professores. Interessada nas experiências que eu descrevera da escola anterior, a professora da disciplina de Sociologia, foi a maior incentivadora de mudanças pedagógicas, acordando com a turma em atividades lúdicas como o jogral, o teatro ou até jogos que ajudassem a despertar o interesse dos alunos pelos temas trazidos em cada disciplina. Nessa toada, tive duas oportunidades de continuar usando o teatro como recurso de trabalho escolar (e vice-versa). Uma primeira circunstância oportuna, foi a representação dramática sobre uma matéria jornalística a respeito do suicídio por meio de overdose de um jovem de família abastada, tema que abriu o seminário do texto a respeito da estrutura familiar e das influências sócio econômicas nos valores dessa instituição. A segunda. Ah, sim! Bastante curioso pelo caráter premonitório! penso. Isso porque, na segunda oportunidade, representei um jornalista que entrava ao vivo para dar informações sobre um conflito de terras entre ruralistas e indígenas do Estado — esse enredo tão presente na história de Mato Grosso do Sul! —. Ao longo do segundo e terceiro anos do Ensino Médio, ocorreram também estímulos por parte de outros professores de outras Do

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Belo Sul Mato Grosso disciplinas, como o das Artes, da Língua Portuguesa e Literatura, da História e da Sociologia que estimulavam a apresentação de trabalhos referentes aos conteúdos das disciplinas por meio das linguagens artísticas. Particularmente, recordo que, se por um lado, uma parcela dos alunos acostumadas a copiar o conteúdo do quadro negro e decorar as respostas dos exercícios de perguntas e respostas ou da cartilha das disciplinas reclamavam das inovações, por outro, paulatinamente houve um engajamento por parte desses mesmos alunos que vendo a oportunidade de mostrar seus talentos na música, poesia ou outra linguagem artística, tornaram-se mais propensos e críticos aos debates propostos pelos professores. Com passagem marcada para Ponta Porã onde iria cursar Pedagogia, tive ainda uma última experiência em relação as artes quando a professora de Língua Portuguesa e Literatura Elenir Barcelos escolheu realizar a produção de livros como trabalho final da turma. Neste período eu já havia adquirido um gosto pela produção de poemas e obtive estímulos por parte das professoras de Língua Portuguesa e Literatura para continuar a escrevê-los. Por fim, encerro este livro com um sentimento de realização que não se encerra em seu termo. Isto porque vejo que neste trabalho existe o germe para diversas outras empreitadas com relação a constituição e ao valor da cultura artística de Mato Grosso do Sul. Contudo, é inegável que, graças a benevolência e a orientação dos diversos professores citados durante este trabalho e outros que, pela incompletude da própria constituição narrativa deste projeto permanecem anônimos, foi possível que eu levasse a cabo uma investigação que atendesse questões que, sendo originalmente minhas, se revelaram igualmente importantes para a sociedade que, por esse percurso do Belo Sul Mato Grosso encontra importantes fatos e debates para se pensar na identidade cultural e no valor das manifestações artísticas do Estado de Mato Grosso do Sul. Caminho este que — descobri durante o trajeto —, comecei a trilhar muito, muito antes do que imaginava. Deveras. No limiar do atraso para entregar o final deste trabalho, recordo do começo. Mas não o começo do projeto ou do curso de Jornalismo. Recordo de certa vez, quando fui surpreendido entre os alunos da Escola Estadual José Barbosa Rodrigues com uma apresentação de um espetáculo em 1996. Naquela ocasião, eu ficara numa posição muito distante do palco improvisado no meio do corredor da escola com alguns tecidos pretos e algumas falas de personagens que se perderam primeiro pela distância em que me encontrava do espaço de representação cênica, segundo, na poeira do tempo. Contudo, esse pequeno dessabor não me impediu de apreciar as movimentações dos bonecos, dos atores, de ficar curioso com o resultado daquele enredo onde uma dona de casa por meio de um peixe especial buscava realizar suas 194

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS ambições. Num primeiro momento, pensei que essa personagem se chamava Inês, porque ao indagar os colegas sobre a trama, me disseram que se chamava Inês Com, o que me causou bastante estranhamento: Inês Com? Mas como assim? Inês Com quêm? Inês Com o quê? E, sem me segurar, perguntei a outro aluno: — Não. Inês Com é o nome do grupo que está apresentando. Falaram antes de começar a apresentação —, respondeu-me. Inês Com. Mas que nome! Pensei. E, como essa questão não se resolvia, o jeito foi buscar entender a peça. Mas aí, quando tudo estava muito interessante, comecei a pensar em. Ué. Por quê não? Talvez eu pudesse, sim. Trabalhar como o povo da Inês Com. Assim, entreguei-me à contemplação do espetáculo. Nos anos seguintes, vieram as oportunidades de ir ao teatro por meio do projeto A Escola Vai ao Teatro e, com ele, os trabalhos das disciplinas de Artes e História onde, enfim, comecei a representar. Outra coisa que recordo, ainda, é das vezes que fiquei sem dormir, sem alimentação adequada, apenas porque estava envolvido numa produção dramática. Das vezes em que seguia para o local da apresentação carregado de adereços numa sacola quase do meu tamanho, das oportunidades que tive e que á outros foram negadas, das artes e seu valor sempre questionado. Dos artistas do Estado e do quanto suas histórias, suas trajetórias poderiam ter contribuido para a cultura local. Queria saber. Saber mais. Assim nasceu este projeto, dentro de um transporte coletivo onde uma conversa sobre a valorização das artes locais, com o ator Erico Bispo, provocou-me reflexões, inquietações sobre o tema, sobre sua importância. Poderia desenvolver esse plano ao longo do curso, usando os instrumentos das disciplas, as bases do jornalismo? Sim. Pude. A cada semestre, a cada trabalho sobre cultura regional, uma banda da cortina fechada sobre o palco sul-mato-grossense, era desvelado. E eu espiava. Descobria como se a vida toda fosse estrangeiro, que as heranças culturais dos povos primitivos eram mais presentes do que pensava enquanto tomava tereré. Que há milhares de anos, tivemos aqui artistas equivalentes aqueles das pinturas rupestres de Chauvet, Lascaux e Pech Merle. Que das artes indígenas surgiu a obra que respresenta a identidade do sul-mato-grossense alhures. Descobri que não preciso valorizar as artes de resistência apenas em outras regiões, porque no Estado de Mato Grosso do Sul, minha terra natal, também houveram artistas intelectuais que enfrentaram a censura. Que a cultura mato-grossense-do–sul Do

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Belo Sul Mato Grosso ainda está sendo construida embora já se apresente de modo plural, inquisitiva, conservadora de um lado, e revolucionária de outro. Aprendi mais sobre as artes, sobre direitos, sobre cultura e. Como não poderia deixar de ser, sobre o jornalismo.

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS De Lígia Baís Como Fonte de Pesquisa Histórica. Revista Cordis: Revista Eletrônica de História Social da Cidade, 2013. Disponível em: Expressões do moderno na cidade de Campo Grande no antigo Estado de Mato Grosso: a arte de Lídia Baís como fonte de pesquisa histórica (redib.org) Acesso em: 23. Set. 2021. RODRIGUES; Morgana Duenha. Identidade Regional e Pintura de Paisagens em Mato Grosso do Sul. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos de Linguagens do Centro de ciências Humanase Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. 2012. Disponível em: RESUMO: (ufms.br) Acesso em: 25. Out. 2021 ROSA; Maria da Glória Sá. Conceição Dos Bugres. Suplemento Cultural do Correio do Estado publicado em 04 de outubro de 2014. Disponível em: Conceição dos Bugres (Crônica da Tarde) | Liberdade! Liberdade! (wordpress.com) Acesso em: 30. Out. 2021. ROSA; Maria da Glória Sá. FONSECA; Cândido Aberto da. SIMÕES; Paulo. Festivais de Música em Mato Grosso do Sul. Ed. UFMS, 2ª ed. 2012. ROSENFELD; Anatol. O Teatro Épico. Ed. Perspectiva, 2013. RUIZ, João Álvaro. Metodologia Científica: guia para eficiência nos estudos. 4. ed. SP: Atlas, 1996. SENA; Albervan Reginaldo. AGUIAR; Elaine Pereira. KIJAK; Igor Augustho Mattos. BORGES; Tamara Batista. Censura, Teatro E Golpe: Um Panorama Das Artes Cênicas No Brasil Pós-2016. In Revista Do Centro De Pesquisa E Formação, Nº 12, julho 2021 SIGRIST, Marlei. Mestres do Sagrado. Festa do Divino em Santa Tereza. Campo Grande, Ed. Fundação de Cultura, MS. 2014 SILVA; Amirtes Menezes de Carvalho e. Teatro Num Fazer Pedagógico, editora Alvorada, Campo Grande. MS. 2006. SILVA; Fernando Lopes da, e COSTA; Daniel Padilha Pacheco da. O CONCEITO DE “LIVRO-REPORTAGEM”: Subsistema jornalístico e suporte editorial. Ed. Universidade Federal de Uberlândia (UFU). 2017 STROBEL, Karen. As Imagens Do Outro Sobre A Cultura Surda. Edt. UFSC, 2015.

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Um Percurso sobre arte e cultura em MS

Agradecimentos

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dona eopoldina, minha mãe que me ensinou o alfabeto e sempre me incentivou. minha família o meu irmão elson que viveu ao meu lado diversas experiências importantes no teatro o orientador, professor arcos Paulo Da Silva todos os professores que me guiram no caminho do conhecimento, em especial a ristina Mato Grosso e aniela Ota que fizeram importantes considerações na banca do Trabalho de Conclusão de Curso. os amigos que ombrearam os caminhos das artes e da cultura sul-mato-grossense comigo, em especial: ane Motta; etícia Monteiro; etícia Schiavon lena Cibele ustavo Bonotto; ayara Nascimento; auro Rocha Matias

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e, ao

mor.

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Belo Sul Mato Grosso $FHVVRHPVHW7$81$ Trabalho desenvolvido sobre a orientação do professor

Marcos Paulo da Silva, como pré-requisito de aprovação na disciplina de Projeto Experimental II, este livro-reportagem resgata e contextualiza os aspectos da formação cultural artística de Mato Grosso do Sul, desde os períodos mais remotos aos contemporâneos.

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