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Capítulo Segundo

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Capítulo Terceiro

Capítulo Terceiro

Capítulo Segundo: “Trago comigo todas as lendas boróras A grandeza de minha raça Fala nos meus cinco sentidos”

ecordo que, durante o período escolar, em meados

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Rdos anos 1990, a temática da arte pré-histórica referia-se, via de regra, aos vestígios de utensílios daquele período em solo europeu; ao Bisão da gruta de Altamira, na Espanha, e a pinturas rupestres na Caverna de Chauvet, de Vallon-Pont-d’Arc na França, com cerca de 32 mil anos. As referências às pinturas rupestres brasileiras só surgiram nos livros didáticos de minha irmã caçula por volta do final dos anos 1990 e início dos anos 2000, com referências desse tipo de arte em regiões do Estado do Piauí. Assim, a arte rupestre e os vestígios do homem pré-histórico local ficavam apagados, embora haja no Estado uma série de tratados sobre o assunto.

Pré-História

Integrante do livro Ensaios Farpados: Arte E Cultura No Pantanal E No Cerrado, organizado por Ivan Russef, Marcelo Marinho e Paulo Sérgio Nolasco dos Santos e publicada em 2004 pela editora UCDB, o artigo Arqueologia do Brasil Pré-Colonial: O Povoamento No Pantanal E No Cerrado, da doutora em arqueologia pela Universidade de São Paulo, USP, Emília Mariko Kashimoto, explica que as artes rupestres encontradas em diversos sítios arqueológicos do Estado — lugares que se estendem até mais de um quilômetro e onde foram encontrados vestígios de atividade humana antiga indicam a presença de povos pré-históricos na região há cerca de 10.000 anos. Segundo Rodrigo Aguiar e Keny Lima, pesquisadores da UFGD, datações por carbono 14 revelaram períodos distintos de ocupação humana dentro do atual Mato Grosso do Sul. Os grupos mais antigos correspondem a caçadores nômades mais adaptados ao ambiente de savana que, no Estado, podem chegar a até 11

mil anos. Para Emília Kashimoto, não obstante a economia relativa e simples das populações pré-históricas, os sofisticados e abstratos painéis de arte registrados em abrigos e cavernas nos municípios de Aquidauana, Coxim, Costa Rica, Maracaju, Rio Negro e Alcinópolis revelam complexas representações da realidade. No artigo Continuidades e transformações nas manifestações rupestres da tradição planalto em Mato Grosso do Sul, Brasil. O caso das pinturas rupestres do município de Rio Negro, os professores da UFGD Rodrigo Luiz Simas de Aguiar e Keny Marques Lima, em parceria com Laio Guimarães Freitas, graduado em Ciências Sociais, remetem às importantes pesquisas na região, feitas pelo antropólogo Pedro Ignácio Schmitz que classificou este período de ocupação como Tradição Itaparica da Fase Paranaíba. Já as pesquisas desenvolvidas ao longo do curso da região de Mato Grosso do Sul, na bacia do Rio Paraná, pelos arqueólogos Emília Kashimoto e Gilson Rodolfo Martins, apontaram o estabelecimento a partir de 6 mil anos antes do período presente como o mais antigo da ocupação às margens desse grande rio denominada Tradição Serranópolis. Segundo Aguiar e Keny Lima, há povos que remontam a um período que antecede a cerâmica e outros que datam da presença de artefatos ceramistas. Muitas vezes, esses produtos são encontrados numa mesma gruta dentro de um sítio arqueológico com diferentes profundidades de localização. Isto revela que essas cavernas foram ocupadas em diferentes períodos por diversos povos, grupos humanos da era primitiva. Cada região do Estado possui artefatos que demonstram características de grupos distintos segundo o bioma do local. Na Tradição Planalto tratada pelos pesquisadores Rodrigo Aguiar e Keny Lima, há características que se relacionam a outras artes rupestres encontradas em outras regiões do centro do país, embora com características próprias no Estado de Mato Grosso do Sul. Dentro dos primeiros grupos de ceramistas, os pesquisadores encontraram sítios arqueológicos que não se enquadram em nenhuma outra tradição identificada e que necessitam de mais pesquisas para sua correta classificação. Além dessas, há a presença de três tradições no Estado: a Una, a Aratu-Sapucaí e a Tupi-guarani, cada uma com caraterísticas específicas. Identificada por recipientes de pequena dimensão e ausência de decoração, os ceramistas da Tradição Una são datados na região do Estado no período de 4 mil anos e, embora haja sítios de céu aberto dessas ocupações, os pesquisadores afirmam que, por vezes, ocupam as mesmas grutas — como na região do Rio Negro — anteriormente utilizadas por outros grupos como a

dos não-ceramistas caçadores-coletadores. “Com efeito, durante os trabalhos de campo em Rio Negro foi constatada presença desta modalidade de cerâmica junto a um abrigo com arte rupestre”, afirmam os pesquisadores. Descritos pelos antropólogos como os ceramistas das grandes aldeias anelares, os grupos da Tradição Aratu-Sapucaí ocuparam áreas abertas próximas às margens de rios. A cerâmica desse grupo continha preparo com antiplástico como o cariapé, nas paredes de vasilhames que atingiam até 30 centímetros de espessura. Essa cerâmica “possui forma e dimensão variadas, predominando as vasilhas piriformes, esféricas ou elipsoides grandes, que podem chegar a comportar centenas de litros”, descrevem Rodrigo Aguiar e Keny Lima. Finalmente, há os Tupi-guarani que, segundo Kashimoto e Martins, tiveram grande dispersão pelo território de Mato Grosso do Sul por volta de 1300 antes do presente — medida de tempo associada a certas datações em campos científicos como a arqueologia e a geologia, a fim de situar um acontecimento do passado —. Sua tradição arqueológica se caracteriza pela produção de recipientes de grande dimensão decoradas com motivo que vão de pintura à plástica. Para Emília Kashimoto, as características dessas expressões encontradas nesses sítios na região do Estado sofrem variações conforme a paisagem onde estão inseridos, “as características da cultura material de ocupantes de sítios localizados no Pantanal, por exemplo, diferem daquelas dos extintos habitantes da região nordeste do Estado — no Cerrado —, ou ainda da serra de Maracaju”, explica em seu texto. Keny Lima e Rodrigo Aguiar esclarecem que na faixa transitória entre as terras altas do complexo serrano mato-grossense-do-sul e a planície pantaneira ocorrem motivos rupestres de estilo atribuído à Tradição Planalto. Essa arte é encontrada no município de Rio Negro, 150 quilômetros da capital Campo Grande com presença de sítios arqueológicos de pinturas rupestres com grafismos típicos da Tradição Planalto, embora tragam temas particulares da região. “Desta forma, entende-se que a área em questão apresenta continuidades que garantem o vínculo à tradição mencionada, mas também transformações regionais em relação à macro tradição”, explicam os pesquisadores que estudaram as características próprias dessa arte em relação ao território do atual Mato Grosso do Sul. Segundo os resultados obtidos pela equipe do Grupo Ibero-americano para Pesquisa e Difusão da Antropologia Sociocultural, Gipedas/UFGD, as ocorrências de grafismos rupestres no município de Rio Negro, embora haja muitas artes rupestres da

Tradição Planalto, com a presença de motivos animalistas produzidos, em maioria com pigmentação vermelha junto ao amarelo, branco e preto, ocorrem também representações monocromáticas com motivos peculiares à região. Para Keny Lima e Rodrigo Aguiar, há uma continuidade transformada em relação à estilística da Tradição Planalto encontradas nos Estados do Paraná, Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais, principalmente pela ocorrência de representações de quadrúpedes, em especial, os cervídeos — animais da família dos veados. Isso porque, os motivos da região sul-mato-grossense possuem representações de aves, cervídeos, quelônios — repteis da ordem das tartarugas, cágados ou jabutis —, tatus, capivaras e outras figuras animalistas que permite identificar uma subtradição no Mato Grosso do Sul. “Há diferentes estilos representados neste sítio: além daqueles peculiares à Tradição Planalto há outros de estilo geométrico, com representações de linhas paralelas, figuras astronômicas e séries de pontos. Associadas a essas ocorrências geométricas há uma figura emblemática, que se repete sempre em pares, composta de um campo delimitado – retangular ou oval – preenchido com pontos e com linhas paralelas que partem das extremidades superior e inferior”, explicam Keny Lima e Rodrigo Aguiar. Em seu artigo A Arte Rupestre, a pedagoga, licenciada em Artes Visuais pela UFMS, Carina Domingues Marques afirma que, considerada o meio de comunicação dos povos da pré-história, a arte rupestre é de suma importância na expressão cultural de cada canto do mundo. “A arte rupestre atualmente nos mostra que de alguma maneira os povos na antiguidade tentaram representar suas festividades e até mesmo o dia a dia de suas vidas efetuando registros de suas experiências, desde as mais corriqueiras às ocasiões mais especiais, sendo declarada esta como arte rupestre”, conclui.

O que é Arte?

Note o leitor que a análise da arte pré-histórica se baseia nos artefatos encontrados dos períodos correspondentes aos vestígios deixados pelos grupos humanos primitivos. De fato. Em 2012, enquanto a sede da universidade ainda não saia do papel, a UEMS mantinha parte de seu curso na Escola Estadual de Educação Profissional Hércules Maymone. Era uma noite de verão, início do primeiro semestre do Curso de Artes Cênicas Teatro e

Dança quando. Isso. Eu não poderia imaginar que a proposição do professor de História da Arte, Júlio Galharte, pós-graduado em Teoria e História Literária pela Universidade de Campinas, UNICAMP, mestre e doutor em Letras pela USP iria ecoar nove anos depois na construção de meu TCC de Jornalismo: — O que é arte? —, indagara Júlio, atingindo a turma de

roldão.

Em poucos instantes, a sala estava tomada pelo debate acalorado. De acordo com a própria experiência como artista, como professor, como dançarino, como cinéfilo, cada acadêmico defendia sua concepção de arte que, inevitavelmente era dissonante da concepção de algum outro colega. Compreensível, se levar em consideração de que se trata de uma questão difícil de resposta objetiva. Não obstante, o conceito definitivo sobre Arte parece muito longe de ser encerrado. Deveras, muitos estudiosos do assunto têm reconhecido a dificuldade de enquadrar o termo e suas expressões numa afirmação definitiva. É o caso do historiador de arte estadunidense Horst Waldemar Janson, que em seu livro História Da Arte, publicado pela primeira vez em 1962, antecede a questão lançada pelo professor Júlio Galharte: “ Por que isto é arte? O que é arte? Poucas perguntas provocarão polêmica mais acesa e tão poucas respostas satisfatórias”, afirma o historiador. Tomando as civilizações antigas, podemos pensar que certos objetos encontrados em escavações arqueológicas possuíam alguma forma simbólica que traduzimos como arte. Exemplo desses vestígios são as artes da pré-história encontrados na região de Rio Negro e outras localidades do Estado. Embora a tomemos como utensílios e objetos artísticos nos dias contemporâneos, é difícil compreender o significado que aqueles povos atribuíam a esses pertences. Fica claro, assim, a dificuldade revelada por Horst Janson ao se conceituar arte. Contudo, essas dificuldades não devem deter a investigação sobre o assunto: “Embora não conhecemos a nenhuma conclusão definitiva, podemos ainda assim lançar alguma luz sobre estas questões. Para nós, arte é, antes de mais nada, uma palavra, uma palavra que reconhece quer o conceito de arte, quer o fato de sua existência. Sem a palavra, poderíamos até duvidar da própria existência da arte, e é um fato que o termo não existe na língua de todas as sociedades. No entanto, faz-se arte em toda a parte. A arte é, portanto, também um objeto, mas não é um objeto ”, reflete Janson. Doutor em Literatura Italiana pela USP onde era profes-

sor titular aposentado do curso de Literatura Brasileira, ensaísta e integrante da Comissão de Lexicografia e da Comissão de Publicações da Academia Brasileira de Letras, Alfredo Bosi, morto pela covid 19 em 2021 aos 84 anos, é considerado um dos maiores críticos literários do país. Segundo Bosi, a arte se apresenta sob dois importantes aspectos: “A objectualidade: um quadro, por exemplo, é um ser material. E o Efeito psicológico: uma obra é percebida, sentida e apreciada pelo receptor, seja ele visitante de um museu ou espectador de um filme”. Presente em todas as sociedades, a arte e a estética são um campo de interesse que caracteriza a espécie humana. Assim, a arte está relacionada ao modo individual de ler o mundo, ao contexto, ao tempo. Ademais, o conceito de arte, tal qual o conhecemos, é muito recente e remonta ao período Renascentista. A palavra, entretanto, é originada do vocábulo latino ars, arte, significando técnica ou habilidade. “A palavra latina ars, matriz do português arte, está na raiz do verbo articular, que denota a ação de fazer junturas entre as partes de um todo. Porque eram operações estruturantes, podiam receber o mesmo nome de arte não só as atividades que visavam a comover a alma (a música, a poesia, o teatro), quanto os ofícios de artesanato, a cerâmica, a tecelagem e a ourivesaria, que aliavam o útil ao belo”, explica Alfredo Bosi. Em Reflexões Sobre a Arte, o professor aborda a arte sob a perspectiva do filósofo Luigi Pareyson, que viveu no início do século XX. “Um dos maiores penetrantes pensadores italianos do nosso tempo, Luigi Pareyson, ao retomar a discussão dos temas centrais da Estética, considera como decisivos do processo artístico três momentos que podem dar-se simultaneamente: o fazer, o conhecer e o exprimir”, explica Alfredo Bosi. Assim, Bosi apresenta a arte como uma atividade na qual o homem transforma a matéria que lhe é dada pela natureza e pela cultura na qual está inserido. A busca de um ideal estético por meio do labor intelectual e manual definem a produção que junto ao poder criativo do autor se relaciona com a regra estabelecida de produção e a liberdade de construção. “A arte é uma produção; logo, supõe trabalho. Movimento que arranca o ser do não ser, a forma do amorfo, o ato da potência, o cosmos do caos. Techné: chamavam-na os gregos: modo exato de perfazer uma tarefa, antecedente de todas as técnicas de nossos dias”, filosofa Alfredo Bosi. Ao longo da História, a Arte se apresentou como um labor criativo e técnico que foi superado a cada período. Assim, não vemos as mesmas técnicas entre uma obra da antiguidade e ou-

tra do Renascimento, mesmo esta segunda utilizando a primeira como fonte de inspiração. Aqui, o artista criterioso se encontra no campo do conhecimento onde abre mão dos estudos e pesquisas para dar vazão a sua inspiração. Poderia exemplificar com... Sim. Isso mesmo. Imagine o leitor que estas frases interrompidas não tenham surgido por puro capricho do acadêmico de jornalismo que, por meio destas páginas vem tratando de cultura e arte em Mato Grosso do Sul. Não. De maneira nenhuma! Para chegar a esse tipo de conversa com leitor, tive de recorrer as aulas da disciplina de Literatura Dramática Brasileira ministrada pela professora Cristina Moreira nos anos do curso de Artes Cênicas. Mais precisamente, a construção do dramaturgo que levou o teatro brasileiro ao modernismo das artes, o também jornalista. Claro. “É batata. Batata, entende? ” Nelson Falcão Rodrigues. Portanto, trata-se de uma obra jornalística que, junta a forma de construção textual própria desta área, a forma de diálogo dramático que Nelson empreendeu a partir do conhecimento sobre a estética da vanguarda europeia. O resultado da utilização dessa técnica previamente conhecida, é a expressão de pensamentos interrompidos e a sensação de diálogo com você que me lê acerca dessa grande reportagem sobre a cultura artística sul-mato-grossense.

Identidade

Outra questão é que a arte penetra e se relaciona estreitamente com a cultura na qual está localizada. Manifestações de interesse individual e coletivo é quase impossível separar a arte e a estética de seu contexto social, cultural e histórico. Há muitos casos onde a manifestação artística ocorre de modo intencionalmente coletivo, refletindo a identidade e os valores sociais de uma sociedade. Decorre, então, que a arte se projeta como campo de interesse de diversas áreas do conhecimento como a filosofia, a antropologia, a história, a sociologia, e etc... Contudo, é impossível que alguma delas consiga analisar a arte de modo independente. Isso porque a complexidade que envolve as manifestações humanas impele a interação entre essas áreas numa interdisciplinaridade constante. Afim de conhecer sobre essa relação entre identidade e as artes no contexto de Mato Grosso do Sul, entrevistei o artista visual, doutor em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade de Campinas, Unicamp, mestre em Estudos de Linguagens e graduado em Artes Visuais pela UFMS, professor do curso de

Artes Cênicas na UEMS, Marco Antônio Bessa-Oliveira. — O senhor poderia falar sobre a relação da arte com a identidade de um povo no contexto de Mato Grosso do Sul? —, inquiri.

— A discussão sobre identidade é problemática no contexto brasileiro e, em especial, no acadêmico. Vários estabelecem a discussão acerca das perspectivas de identidades modernas que estabeleceram para nós. Poucos estão dispostos a reconhecer nossa característica identitária a partir da situação e condição de ex-colonizados e colonizados ainda hoje pelos sistemas que têm origem no processo de colonização mais antigo: cultural do século XVI e econômico do século XIX. Nesse sentido, de qual identidade nós estaríamos falando para falar de uma “arte com a identidade de um povo no contexto de Mato Grosso do Sul”? No meu caso teórico-epistêmico e crítico, mas também artístico e docente de discussões, preciso te dizer que estamos longe de entender essas questões todas. Até porque a arte ainda é mais arma de identidade de fazer política do que arma de identidade como política contra políticas ineficientes de identidades. —, respondeu, denunciando sua personalidade crítica. Conforme verificamos no capítulo anterior, Mato Grosso do Sul é um Estado formado por uma mistura de culturas trazidas por imigrantes de outras regiões do país e do exterior, com destaque para as fronteiras internacionais com o Paraguai e Bolívia e as nacionais com Mato Grosso, Minas Gerais, Goiás, São Paulo e Paraná de onde vieram os primeiros colonizadores. Com esses dados em mente, lancei um novo questionamento ao professor: — A arte sul-mato-grossense possui características próprias? Quais? — A situação de ser uma arte “em”, “de”, e, “a partir de” fronteiras múltiplas deveria ser a característica mais própria e importante da arte local. Mas é claro que não estou falando de fronteira geográfica pura e simplesmente. Mas, a priori, poderia dizer que trato como fronteira tudo que implementa qualquer tipo de delimitação à produção artístico-cultural e de conhecimento que emerge daqui e de lugares não hegemônicos. —, disse-me Bessa-Oliveira. Com isso, naturalmente, o professor alude a visão generalizada do país onde o circuito artístico está restrito à região sudeste tendo o sul e o nordeste algum destaque neste setor enquanto no restante do país as manifestações artísticas e culturais são tratadas como expressões regionais criando uma hierarquia que beneficia as primeiras em detrimento das demais. Outros-

sim, o professor se mostra crítico em relação à presença de um referencial europeu e estadunidense que na estética local impede o reconhecimento da influência de fronteiras geográficas e delimitantes da produção artística sul-mato-grossense que mais ganharia em se reconhecer como portadora de uma “estética bugresca”: — A impossibilidade de circulação de qualquer tipo de arte. Do mesmo jeito, essa arte “em”, “de”, e, “a partir de” fronteiras tem uma especificidade que ainda não faz muito sentido para a maioria dos discursos sobre arte no Estado: ser uma arte literal de fronteira (agora também falo de fronteira da ótica geográfica, mas ainda assim não é somente) é o ponto crucial da nossa arte. E digo isso, com toda certeza, para o bem. A arte local sul-mato-grossense é multíplice, sem ser híbrida tá? Esse conceito não nos representa, e isso é o que deve caracterizar nossa produção emergente daqui: urgentemente. O dia em que reconhecermos na arte local uma “estética bugresca” (como tenho defendido), estaremos falando de uma arte que tem muito mais relações biogeográficas nela, com ela e a partir dela com as pessoas que estão nesse lugar. Portanto, a identidade artística do Estado assume características bastante complexas. Assim, não é surpreendente que a imposição da arte e da cultura de origem europeia se faça presente nas manifestações locais. Não obstante, é observável a sobrevivência de outras culturas ancestrais, como a africana e a indígena, que seguem enraizadas na formação cultural dos sul-mato-grossenses, muito embora, via de regra passem desapercebidas e estereotipadas. Portanto, é preciso considerar que desde as pinturas rupestres ao cinema contemporâneo, a arte manifesta-se de forma onisciente por meio de suas linguagens de forma a causar reflexão, questionamentos e validações de aspectos culturais. No Mato Grosso do Sul, esta relação é bem evidente entre as nações indígenas.

Arte indígena de Mato Grosso do Sul

Em meio às vicissitudes trazidas pelas relações com os não-indígenas, as nações dos povos originários de Mato Grosso do Sul também precisam vencer os preconceitos estéticos em relação a suas produções artísticas. Um primeiro preconceito é tomar as expressões artísticas dos povos indígenas como manifestações primitivas equivalentes as do homem pré-histórico. De fato, os já citados pesquisadores antropólogos Emília Kashimoto e Gilson Martins dividem a História da Civilização an-

terior à colonização na região de Mato Grosso do Sul em dois períodos: o pré-histórico e o indígena. Esta classificação evidencia o equívoco em relação às artes dos indígenas, conforme esclareceu-me o professor e antropólogo Victor Mauro Ferri durante a aula de Aspectos da Cultura em Mato Grosso do Sul no segundo semestre de 2021: — Porque até mesmo para você fazer uma inferência quando se encontram vestígios arqueológicos, vamos supor, os professores Emília Kashimoto e o Gilson Rodolfo Martins: nas escavações que eles fizeram na bacia do Rio Paraná, aqui em Mato Grosso do Sul, encontraram vários fragmentos de cerâmica que devem datar de mais ou menos 800 anos atrás. Então é difícil você estabelecer com segurança se esses fragmentos, aquela população que produziu esses artefatos, corresponde a ancestrais de grupos que hoje são localizados. Segundo o professor e antropólogo Victor Mauro, é preciso considerar a descontinuidade dessas sociedades distintas que, no surgimento dos primeiros tratados antropológicos em meados do século XIX, não eram considerados. Tomadas dessa forma, essas teses assumiam um caráter bastante enganoso onde eram negligenciadas a ruptura de sociedades inteiras extintas, as necessidades de adaptação ao meio ambiente, as interações e as transformações sociais e econômicas ao longo da História. Ademais, Victor Mauro denuncia uma tendência de generalização ao equiparar sociedades distintas sem nenhum contato temporal ou qualquer paralelo. — Isso seria impróprio, seria antiético até. No máximo, quando se compara sociedades diferentes, que isso seja feito entre grupos que, comprovadamente, tiveram contato ou convívio entre si e se influenciaram mutuamente num sentido plural. Até impróprio querer fazer comparações da cultura material de uma sociedade indígena das américas com uma sociedade africana ou com uma sociedade que vive na Oceania, separadas a milhares de quilômetros umas das outras, não tendo uma possibilidade lógica de comprovar interação entre elas. E isso é pior ainda quando tentam comparar sociedades em tempos separadas. Teólogos, no século XIX, que são chamados evolucionistas culturais faziam muito isso de maneira descuidada, por isso eles foram severamente criticados pelas gerações que os sucederam. Hoje em dia, essa antropologia do passado não é nem considerada mais uma ciência criteriosa, mas uma pseudociência baseada em inferências muito pouco rigorosas e preconceituosas. —, explicou-me. Entretanto, advém ainda dessa Antropologia um outro equívoco: o de colocar as expressões indígenas abaixo das mani-

festações artísticas ocidental, conforme apontam em Arte Indígena em Mato Grosso do Sul, Brasil, o pesquisador e professore da UFGD Rodrigo Luís Simas de Aguiar — desta vez — em parceria com o pós-doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, USP, o professor e pesquisador da UFGD Levi Marques Pereira. “Ao despir-se do conceito ocidental de arte, a antropologia passou a perceber com maior clareza a relação entre arte e vida social. Isso abriu o caminho para se estudar as manifestações artísticas de sociedades tradicionais”. Embora essa nova postura antropológica não seja um consenso, Rodrigo Aguiar e Levi Pereira acreditam que seja uma perspectiva mais equitativa quando se trata de estudos de manifestações não ligadas à concepção tradicional: “A antiga divisão que via a arte como algo unicamente atrelado à autoria, classificando as manifestações artísticas étnicas como artesanato, caiu por terra”, sentenciaram. Assim, criar uma barreira entre a arte ocidental e a arte tradicional, arrogando a superioridade da primeira é inadequado. “.... Vemos a arte como condutora de ideias e ideologias. Os produtos artísticos expressam forte conteúdo ideológico, verdadeiros discursos simbólicos materializados”, refletem. Para Rodrigo Aguiar e Levi Pereira, é perfeitamente possível analisar a arte indígena com seus símbolos, marcações étnicas com sentido de identificação, pertença a um grupo. “Diademas, cocares, maracás, colares, enfim, toda uma sorte de objetos será apropriada ou reapropriada como expressão de uma etnicidade idealizada. Segundo os pesquisadores, o comércio com não-indígenas provoca trocas e ressignificações dos objetos produzidos nas aldeias. “Elementos que talvez antes não integrassem a cultura de certas etnias são incorporados e ressignificados, pois a própria representação do indígena ideal mantida pela sociedade nacional também influenciará o imaginário indígena”. Desta forma, ocorre uma recriação de paramentas tradicionais pertencentes a classes específicas como a dos rezadores e das lideranças políticas. “O importante é dotar de sentido à vida dos atores sociais, criando dispositivos eficazes para isso. E a arte é um elemento indispensável para dotar a vivência social de significação e expressar simbolismos”, escrevem Levi Pereira e Rodrigo Aguiar. Ainda segundo os antropólogos, a arte indígena engloba objetos que têm ou tiveram alguma função utilitária. É no ato de adornar que o artista indígena atinge a qualidade artística.

Esta, entretanto, consiste em atribuir qualidade estética a um objeto. “Mas adornar é também vestir um objeto de etnicidade”, escrevem. Contudo, uma vez que a etnicidade se refere a cada povo em específico, é de se esperar que, no território de Mato Grosso do Sul, haja uma considerável diversidade étnica e artística dos povos indígenas. Historicamente negligenciadas pelo Estado, as etnias indígenas têm alcançado algum destaque na área cultural e artística regional nos últimos anos. Parte dessa visibilidade decorre das ações de pesquisadores e de lideranças indígenas que tem se esforçado no resgate e na preservação dos costumes, da tradição e das expressões desses povos. Exemplo desses avanços é a Lei Municipal da Consciência da Cultura Indígena, na capital, que prevê uma série de eventos nos sete dias que antecedem o dia 19 de abril. — Qual a avaliação do senhor sobre a instituição da Semana da Cultura Indígena na capital? —, questionei o professor Victor Mauro. — Os indígenas aqui de Mato Grosso Do Sul já têm o costume. No dia 19 de abril, todo ano fazem ações comemorativas nas aldeias, festejos, exibições artísticas de canto, de dança. Muitas vezes eles se apresentam nas escolas estaduais e municipais. Então vejo, assim, uma grande importância no fato de o poder público municipal querer dar relevância à temática indígena. Sobretudo, no mês de abril, na semana que antecede o dia do índio. —, concluiu. Em sua dissertação de mestrado, Cerâmica Kadiwéu - Processos, transformações, traduções: uma leitura do percurso da cerâmica Kadiwéu do século XIX ao XXI, a mestre em artes plásticas pela USP, Vânia Perrotti Pires Graziato, explica que qualquer produção indígena é permeada de sentidos que transcendem o utilitarismo dos objetos. “Os motivos e significados semânticos impressos em um pote de cerâmica, um cesto, um utensílio de madeira ou em um instrumento musical, conferem a estes a identidade visual que os diferencia dos demais grupos”. Segundo Vânia Graziato, as sociedades indígenas brasileiras fizeram uso da abundante variedade de vegetais da flora nacional, como madeiras, cipós, fibras, palhas, resinas, sementes, nozes além de pedras, ossos, dentes de animais, conchas penas e argilas tomadas como matéria-prima para a construção de canoas, casas e artefatos revelando um apuro na técnica de manipulação desses materiais.

Já em A Arte Indígena em Mato Grosso do Sul, Brasil, os pesquisadores e antropólogos Rodrigo Luís Simas de Aguiar Levi Marques Pereira analisam aspectos artísticos entre os Kadiwéus, Kinikinaus e Terenas de Mato Grosso do Sul. Segundo os antropólogos, embora não se conheça a origem do desdobramento, há nos Kadiwéus e nos Guaranis traços de continuidade e de ruptura que fazem deles povos diversos. Originários de uma mesma raiz como remanescentes dos Guaicurus chaquenhos, agregam o espírito guerreiro que a História lhes atribui. Para Rodrigo Aguiar e Levi Pereira, há uma combinação de elementos estéticos guarani e kaiowá que constituem formas hibridas de artesanato nessa nação.

Segundo os antropólogos, as etnias apresentam concepções cosmológicas diversas entre si, sendo que os kadiwéus, terenas e kinikinaus denunciam a produção da cerâmica como fator de continuidade da etnia e reforço de identidade, embora com a permeabilidade de elementos estrangeiros vindos das trocas comerciais com os não-indígenas. Entre os guaranis e os kaiowá ocorre uma maior transmissão dessas concepções para as peças artísticas embora, paralelamente, estas duas etnias foram as que mais incorporaram as produções materiais. “... os Kaiowá e Guarani foram bastante receptivos a adoção de elementos da cultura material, como a cerâmica e outros instrumentos tecnológicos associados à produção, mas mantiveram forte apego à produção e uso de objetos rituais”, explicam. Na cultura dos Kadiwéus há objetos que são considerados seres, com atributos mágicos e temperamento humanos, de modo que os membros da comunidade que atém relações com eles se consideram seus tutores e não donos. Segundo Rodrigo Aguiar e Levi Pereira, esses objetos exigem cuidados específicos e são transmitidos para alguém da confiança do xamã quando este se sente velho e cansado. Mas, também essa transferência assume um caráter de tutoria do objeto. “Alguns objetos, enquanto formas espirituais materializadas, são dotados de especial valor simbólico e só podem ser manuseadas pelo xamã que detém sua curadoria”, observaram os pesquisadores. Conforme Rodrigo Aguiar e Levi Pereira, a cerâmica não pertencia ao repertório dos guaicurus, ancestrais dos kadiwéus: “eram seminômades e, portanto, a cerâmica originalmente não faria parte de sua cultura material. A incorporação da cerâmica certamente se deu mediante contato com outros grupos e com o tempo passou a ser uma das marcas distintivas dos kadiwéu”. A mestre em artes plásticas pela USP, Vânia Graziato avalia que os Guaicurus teriam assimilado a técnica de modelagem da ar-

gila dos ancestrais dos atuais Terenas, os Guanás. Considerado o fundador da antropologia estruturalista, em meados da década de 1950, e um dos grandes intelectuais do século XX, o professor e filósofo francês Claude Lévi-Strauss esteve em contato com os Kadiwéu na década de 1930, descrevendo com detalhes o processo de produção da cerâmica. Segundo Lévi-Strauss, para a composição da argila agregava-se o antiplástico, material responsável por distribuir o calor e impedir que a peça se parta durante a queima. Entre os Kadiwéu o antiplástico é obtido de fragmentos de outras peças de cerâmica, que após a quebra são triturados e misturados à massa. A construção dos recipientes se dá pelo acordelamento que é a sobreposição de roletes de argila. Concluída a forma, cordões eram empregados nas paredes dos recipientes para imprimir formas geométricas. Antes da queima, os recipientes ainda eram pintados, normalmente com óxido de ferro. Terminado o processo de queima, a cerâmica recebia, por fim, uma camada de resina que lhe conferia brilho. Conforme os antropólogos Levi Pereira e Rodrigo Aguiar, embora atualmente sejam raros os homens artesãos, originalmente a arte kadiwéu era dividida em naturalista e geométrica. Caberia aos homens a primeira forma estética, isto é, a parte naturalista representada pelas elaborações de esculturas quase sempre zoomorfas, representações de elementos cósmicos e personagens místicos. Quanto às mulheres, estas tinham o importante atributo das pinturas que, ainda hoje, são utilizadas em ocasiões especiais, conforme explicam os dois professores. “Historicamente, os Kadiwéu mantinham diferentes classes sociais, muito bem marcadas nesta sociedade. Para comunicar essa diferenciação hierárquica à coletividade faziam uso de pinturas corporais, destacando-se aí o importante papel da mulher como a detentora das técnicas de pintura dos intrincados motivos geométricos. Além de diferenciar as castas, a pintura corporal simbolizava uma fronteira antropogênica, separando homens de animais. ” Em tempos passados, entretanto, somente um grupo seleto de mulheres poderia se dedicar a essa arte: “Na antiga sociedade kadiwéu, somente as senhoras de casta se dedicavam à arte pictórica, ao passo que em atividades do cotidiano, como coleta de material ou preparo da comida, eram de responsabilidade das cativas. ”, explicam os antropólogos. Paralelo à disciplina de Projeto Experimental II, cujo resultado é este livro, cursei a disciplina de Aspectos Culturais de

Mato Grosso do Sul já citada e que também é lecionada pelo professor Victor Ferri Mauro. Na aula do dia 31 de agosto de 2021, tomando como referência o trabalho do antropólogo e pensador Darcy Ribeiro sobre a década de 1940, Victor apontou 4 aspectos que influenciaram sobre a produção do artesanato de cerâmica indígena. Segundo a explicação do professor, a maior frequência de turistas nas regiões pantaneiras e o confronto com uma cultura europeia que se arrogava superior, imprimiu no indígena um sentimento de inadequação e inferioridade. Ademais, estes fatores resultaram em uma penetração de produtos industrializados nessas comunidades. Para o professor e antropólogo Victor Mauro, o aumento do contato com a população não-indígena crescente na região, vindos de outras localidades do país com seu olhar europeu, produziu uma emergência de produção de artefatos nas comunidades indígenas ao nível da produção capitalista — isto é, organizado em um formato único, com o objeto de lucrar. — Essa, imposição e mais o aumento de ofertas de produtos industrializados causaram uma diminuição no esmero das confecções ceramistas. Acresce a esse quadro a carência de elementos primários dessas confecções nos ambientes cada vez mais restritos de ocupação dos povos indígenas, ilhados e fixados em suas comunidades. Segundo Levi Pereira e Rodrigo Aguiar a divisão em camadas da sociedade antiga em senhores e servos contribuiu para o apuro dos kadiwéus nas artes, decorrendo em pouco esmero a partir da extinção dessa estrutura, pois implica em aumento de tarefas para a mulher que, além das artes, tem de realizar as tarefas domésticas. De acordo com os pesquisadores, apesar de a arte kadiwéu ter sofrido adaptações decorrentes das relações de comércio com a sociedade circundante, consegue manter seus valores étnicos de modo a preservar sua identidade. Conforme os pesquisadores Rodrigo Aguiar e Levi Pereira, a produção da cerâmica é uma atividade exclusivamente feminina apresentando formas modeladas que vão de animais a grandes jarros que atualmente constitui uma importante fonte de recursos financeiros na sociedade kadiwéu, sendo comercializada como artesanato especialmente nas cidades de Bonito e Bodoquena. Quase extintos a partir da Guerra do Paraguai, os Kinikinaus estão, atualmente, assentados na Aldeia São João, região da Serra da Bodoquena que hoje integra a Terra Indígena Kadiwéus. Segundo Rodrigo Aguiar e Levi Pereira, os kinikinaus mantém estreitas ligações com as outras etnias: “compartilham uma ancestralidade com os Terena, tendo por raiz os grupos Chamé-Guaná.

Aspectos da tecnologia oleira teriam sido compartilhados com os Kadiwéu, haja vista que seus ancestrais, os Guaicurus, provavelmente incorporaram dos antigos Guaná o hábito de produzir peças de cerâmica. ” Outro traço marcante apontado pelos pesquisadores nos kinikinau é o fato de que, apesar de quase extintos e habitantes de terras estrangeiras, eles permanecem com firme propósito na ressalva de sua identidade. “... estes indígenas continuam evocando uma etnicidade e uma ancestralidade compartilhadas como forma de se apresentar ao outro como Kinikinau”, informam Levi Pereira e Rodrigo Aguiar. Segundo os antropólogos, embora o Estado somente há bem pouco tempo tenha atentado para as nações indígenas que entremeiam as cidades e propriedades rurais, os kinikinaus têm empreendidos esforços para se fazer reconhecidos desde antes da sociedade circundante — os não indígenas —, com sua estrutura política e econômica importadas. “Para grupos étnicos que enfrentam o problema de negociar seu reconhecimento pelo Estado nacional, a produção da arte com feições étnicas pode ser um importante instrumento de luta política”. Essa luta por reconhecimento e manutenção da identidade étnica parece redobrada na arte dos quase extintos kinikinaus: “é possível perceber a persistência da técnica indígena tradicional de sobreposição de roletes na produção dos vasos, que na sequência são moldados e por fim encaminhados para a queima”, analisam os antropólogos. Apesar desse esforço, Rodrigo Aguiar e Levi Pereira apontam certas semelhanças na forma de produção dos kinikinaus e dos kadiwéus: “O processo de queima é similar ao adotado pelos Kadiwéu, com o amontoamento das peças sobre galhos secos que em seguida são incinerados. A queima aeróbica dá à cerâmica sua cor parda característica. Embora não se possa sustentar a existência de compartilhamentos culturais nas regras de composição artística, percebe-se alguma semelhança nos grafismos da pintura kinikinau com aqueles dos Kadiwéu” Segundo o site Cultura de MS, do governo estadual, além de habilidade na agricultura, os terenas são bons artesãos. As aldeias mais próximas dos centros urbanos abastecem as feiras com arroz, feijão de corda, maxixe, mandioca e milho, produtos que formam a base de sua própria alimentação. Em Campo Grande eles expõem seus produtos ao lado do Mercadão Municipal. Atividades que representam um nítido resgate de sua arte ancestral indígena, o atual artesanato Terena é um meio de sub-

sistência que se dá, principalmente, através do barro, da palha, e da tecelagem. Para os pesquisadores Rodrigo Aguiar e Levi Pereira, a arte Terena sofreu um processo de perda da identidade que tem sido retomada nos últimos anos. Os terenas têm sido conhecidos pelas produções de peças naturalistas. “No artesanato, predominam esculturas em madeiras que reproduzem animais da natureza em estilo marcadamente naturalista. Observamos a incorporação de elementos do artesanato caboclo na produção artística terena, especialmente nas aldeias situadas na região pantaneira”, observam. A cerâmica e a tecelagem são apontadas, historicamente como as produções em que essa etnia se destacava, embora atualmente não se encontrem com facilidade seus tecidos. “... como a demanda de mercado recai mais sobre as esculturas e sobre as peças de cerâmica, há dificuldade em encontrar elementos de tecelagem”. Segundo o professor e antropólogo Victor Mauro, essa confecção obedece a regras e crenças tradicionais: — As mulheres indígenas, na confecção de cerâmica, precisam seguir algumas regras de cunho religioso e tradicional. Por exemplo, não pode ir para a cozinha em dia que se vai fazer cerâmica, pois acredita-se que o sal é inimigo do barro. Outra coisa. Elas também não podem trabalhar no barro quando estão menstruadas. Na maioria das nações indígenas, cabem aos homens, por tradição, somente o trabalho de extrair o barro e processar a queima, tarefas que exigem maior vigor físico —, explicou Victor durante a aula de Aspectos Culturais da Cultura de Mato Grosso do Sul. O site Cultura de MS, do governo estadual, detalha o processo de produção terena. De acordo com a página, as peças são modeladas manualmente com a técnica de roletes — espécie de “cobrinhas” —, e, dependendo da região, as mulheres terena usam em seus trabalhos, argilas de diversas cores: preta, branca, vermelha e amarela. Visando a obtenção de cores contrastantes e realces pictográficos, fazem engobes com algumas delas para serem usados na decoração das peças. Segundo o site do governo, os Terenas produzem peças utilitárias e decorativas: vasos, bilhas, potes, jarros, animais da região pantaneira — cobras, sapos, jacarés que são chamados de “bichinhos do Pantanal” —, além de cachimbos, instrumentos musicais e variados adornos. Os padrões dos grafismos são basicamente o estilo floral, pontilhados, tracejados, espiralados

e ondulados. O acabamento das peças é feito com ferramentas rudimentares: seixos rolados, espátulas e ossos. O barro ou massa é preparado misturando aditivos — que eles chamam de temperos —, para regular a plasticidade: pó de cerâmica amassado e peneirado, conchas trituradas e cinzas de vegetais. Numa fase anterior são retirados da argila resíduos como restos de vegetais e pedras. As queimas são feitas em fogueiras a céu aberto ou em fornos rudimentares, usando lenha como combustão. Os indígenas verificam o estado do ciclo da queima tilintando com um pedaço de taquara nas peças. Através do som obtido constatam o estágio da cozedura. Para os pesquisadores Rodrigo Aguiar e Levi Pereira, é sobretudo no município de Miranda, onde possuem um Centro Referencial da Cultura Terena que grande variedade de produtos artísticos vindo das aldeias pantaneiras terenas são encontrados. Segundo o site Cultura de MS, do governo estadual, além de Miranda, as peças produzidas pelos Terena podem ser encontradas em Aquidauana, na Casa do Artesão e no Memorial Indígena na Aldeia Urbana Marçal de Souza, ambos em Campo Grande. A herança e a influência dessas nações no segundo Estado com a maior população indígena do país não poderiam deixar de influenciar na identidade artística cultural dos sul-mato-grossense e. Naturalmente! Nos bugrinhos, nossa identidade bovinoculturista.

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