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Capítulo Sexto

Capítulo Sexto

Capítulo Primeiro: “Os celeiros de farturas, sob um céu de puro azul, reforjaram em Mato Grosso do Sul uma gente audaz. ”

aquela noite. Sob o comando da professora da dis-

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Nciplina História da Dança no curso de Artes Cênicas Teatro e Dança, da UEMS, em meados do primeiro semestre de 2012, a turma numerosa — porque mesmo os acadêmicos dos semestres mais avançados abriram mão de suas aulas para reviver aquele instante didático —, tomados pelo transe dos sons das batidas ritmadas dos nossos pés descalços sob o solo, acompanhados de um pandeiro, de palmas intermitentes, sumamente entregues ao transe, realizávamos nossa própria dança primitiva. Uma aula prática sobre a dança na Pré-História. Eu, então, ignorava completamente a presença de vestígios dos povos primitivos nesta região do atual Mato Grosso do Sul. Decerto porque os conteúdos da disciplina de Artes nas escolas em que estudei sempre se concentraram alhures, nas plagas do Brasil litorâneo do Sudeste ou nas terras ultramar de Grécia, Roma, Itália, França e Inglaterra. E, no entanto, a exploração das paisagens sul-mato-grossenses remonta a períodos que antecedem até mesmo aos primeiros povos indígenas. Aos grupos que as teorias mais avançadas consideram ter vindo da África pela Beríngia — também chamada Ponte Terrestre de Bering —. Teoria, esta, reforçada com a descoberta de sítios arqueológicos, como Cactus Hill, nos Estados Unidos, datados do período entre 12.000 e 25.000 anos antes do presente. Daí surgiram os povos que registraram em abrigos locais as primeiras manifestações artísticas da região, como a dança. Tomando como documentos as figuras encontradas em diversos sítios arqueológicos da Europa e da África do Sul, os pesquisadores da Antropologia e das Artes estimam que a dança tenha surgido na época Paleolítica, período histórico anterior ao cultivo da terra, quando o homem ainda migrava em busca de caça, coleta e pesca, conforme a arte-educadora e artista visual pela Universidade Federal de Sergipe, UFS, Laura Aidar em seu artigo O que é dança? “A dança foi uma das primeiras demonstrações expressivas do ser humano. Surgiu ainda na pré-história,

como consequência de experimentações corpóreas que homens e mulheres realizavam, como bater os pés no chão e bater palmas”.

Especialista em Dança Terapia pela Faculdade Unyleya, a bailarina e coreógrafa, Maria Cecília Bazzotti, descreve em seu artigo A Dança da Pré-História e Contexto Histórico, os motivos de um desses desenhos do Paleolítico, a figura de trois-Frères, em Montesquiou-Avantès. “Nelas, a cabeça está voltada para frente, o tronco apresenta-se num falso perfil, os dois braços em semi-extensão, com o direito um pouco mais alto que o esquerdo. O corpo está inclinado em relação às pernas, que estão levemente flexionadas. A perna esquerda está à frente da direita, com o pé no chão, e o pé direito está em relevé. O conjunto do desenho aparenta um giro com as pernas flexionadas, e a figura está vestida com uma pele de bisão e máscara de rena ou cervo”. Segundo a dançarina, embora encontrados em lugares muitos distantes, esses desenhos representam alguns movimentos similares, o que leva a dedução de que a humanidade possuí um fundo cultural em comum. De acordo com a arte educadora Laura Aidar, a dança e a música surgiram juntas como forma de culto ao sagrado. “Portanto, é muito provável que a dança tenha surgido juntamente com a música, também como uma forma de comunicação. Além disso, estava bastante relacionada a cerimônias ritualísticas e espirituais”. De acordo Maria Cecília Bazzotti, na medida em que o homem pré-histórico mudou seus hábitos no período Neolítico, passando a cultura e ao surgimento das civilizações antigas, as expressões como a dança, e a música ganharam sofisticação. O estabelecimento de uma classe religiosa que irá supervisionar os ritos de dança confere um caráter de representação dos mitos e deram origem ao primeiro ator de teatro. Conhecidas como danças milenares, essas expressões eram realizadas com utilização de máscaras, e foram as primeiras danças em grupo de roda e em filas onde, na maioria das vezes, os participantes são representados de mãos dadas, caso das celebrações das mudanças de estações e da colheita dos antigos celtas, romanos e egípcios. Com o avanço do Cristianismo e sua política de sincretização, essas expressões foram ressignificadas em festejos de caráter popular e religioso, caso das Festas de São João, do Divino Espirito Santo e Do Dia De Reis que agregam elementos das antigas celebrações pagãs e que, no Brasil, também ganharam características regionais, caso do Banho de São João de Corumbá.

Da Pré-História Ao Banho De São João de Corumbá

Experiências extremamente produtivas para o projeto que eu me propunha realizar no trabalho de conclusão de curso, funcionando como experiência no âmbito do jornalismo de rádio, os dois laboratórios de Radiojornalismo, junto às demais disciplinas práticas, serviram de instrumento para o levantamento de informações deste livro junto aos entrevistados. Assim, nos trabalhos sobre a formação eas características do Estado de Mato Grosso do Sul, encontrei algumas curiosidades sobre as heranças dessa evolução artistítica e cultural em solo sul-mato-grossense. Destarte, durante o primeiro semestre de 2019, ao lado do primeiro grupo de equipe de trabalho do Laboratório I, formado junto aos meus colegas acadêmicos Cauê Reis, Letícia Monteiro, Letícia Schiavon e Gustavo Bonotto, descobri, por exemplo, que a procissão que acompanha os andadores até o rio Paraguai com dança caipira no percurso são um exemplo dos resquícios das antigas tradições de danças milenares, como esclareceram aos colegas Letícia Schiavon e Cauê Reis, o antropólogo, professor e pesquisador Álvaro Banducci e a mestranda de Letras, licenciada em arte educação pela UEMS, Jane Motta, durante a gravação do podcast sobre as festas juninas: — O primeiro questionamento que trazemos é: por que, na sua visão, Álvaro, as festas juninas são tão populares? —, indagou Letícia Schiavon. — Bom. Na verdade, a princípio é uma festa pagã, mas que celebrava o solstício de verão, na Europa. Em várias regiões, vários países da Europa. E ela é uma festa que a igreja católica acaba por trazê-la para si, e aí celebra como as festas juninas e em específico, São João. E essas festas foram trazidas para cá desde o período da colonização. Os jesuítas faziam essa festa com os índios e a fogueira, a cantoria, e isso fascinava bastante as comunidades indígenas. Então desde o início da colonização já é uma festa que percorre o território brasileiro pelas mãos dos jesuítas. E vai ficando uma festa de caráter tradicional nos rincões brasileiros. Uma festa que consegue se estruturar por todo o território nos rincões e depois ela vai chegando para a cidade. Assim, é uma festa de muito tempo, diante dessa tradição religiosa num país católico. Fortemente católico como no Brasil. —, respondeu o professor. — E para você, Jane? Por que as festas juninas são tão populares? —, questionou Cauê. — Bom. Partindo do princípio, como o professor disse, da origem pagã das festas. De colheita. Da celebração de colheita.

Nos primórdios, a função era evitar que tivesse perda de colheitas, estiagem. Os bichinhos dos cereais e tal. Com a chegada dos jesuítas ao Brasil, exatamente, como ele disse —, explica com um gesto vago de mãos para Álvaro —. A primeira festa joanina, foi comemorada pelos jesuítas com o uso da fogueira. Nós temos o início do inverno no dia 20 de junho, e a Festa de São João no dia 24. E, realmente, a catequese usou isso. Usou. Os Jesuítas para catequizar os indígenas usaram a adoração deles aos deuses através das danças e fogueiras. Letícia Schiavon emendou outra questão: — Mas em suas origens as festas herdaram as tradições pagãs e ao longo do tempo no Brasil foram incorporados elementos de religiões de matriz africana, você pode falar um pouquinho para gente sobre essa perspectiva? — Religiosamente falando, a cultura africana, a cultura aos orixás, não traz referência religiosa nenhuma com a festa junina. —, respondeu Jane, com veemência. — Corumbá traz. E isso é tão bonito lá! —, sussurrou Álvaro a Cauê. Contudo, é preciso esclarecer: só temos, hoje, alguma ideia dessas manifestações artísticas da era primitiva, por meio de representações em cavernas. De outra forma, o que na contemporaneidade conhecemos sobre a dança primitiva só chegou aos nossos tempos por meio de amalgamas originando as danças espontâneas e emocionais encontradas em alguns rituais contemporâneos que. Sim. Após milênios, ainda se fará presente no Banho de São João. Letícia Schiavon prosseguiu: — Álvaro. Voltando para as festas de Corumbá, elas têm momentos de religião de matriz africana também? O professor respondeu com evidente entusiasmo: — Excelente essa pergunta, porque ela vai remeter a outro aspecto que singulariza a festa de Corumbá. E, você sabe que o São João Batista, nas religiões afro-brasileiras, é considerado o orixá Xangô. No dia de São João-Xangô. Tem os dias de São João nos terreiros de Corumbá e Corumbá tem aproximadamente quatrocentos terreiros. Muito provavelmente muito mais do que isso. Os terreiros promovem a festa para Xangô e levam Xangô para ser batizado no rio Paraguai. E isso é de uma beleza indescritível porque você tem toda uma mistura. Você tem os terreiros de Umbanda em que de manhã cedo, no dia da festa de São João, os andores são levados para a igreja católica e lá eles são benzidos pelo padre, com água benta; à noite, esses mesmo andores, são reverenciados e são recebidos pelos filhos

de santo. Então, o Preto Velho vem, reverencia o andor onde está São João-Xangô e aí eles são levados para o porto. Às vezes como São João, as vezes como Xangô, mas sempre como os dois. Dependendo do terreiro, eles podem chegar e fazer um ritual, muito mais próximo do ritual afro-brasileiro do católico, inclusive, há pessoas que dizem que a festa do banho de são João na cidade de Corumbá só permaneceu vivo por causa dos terreiros que levavam Xangô para tomar banho no rio. Naquela tarde, logo após a gravação do podcast, enquanto transitávamos pelos corredores da UFMS e mantínhamos uma conversa informal sobre o assunto, Jane explicou-me sua posição com base no pensamento decolonial. Segundo a mestranda, trata-se de um movimento latino-americano emergente que objetiva libertar a produção de conhecimento de sua origem eurocêntrica com críticas à suposta universalidade do conhecimento e ao predomínio da cultura ocidental, de modo que ela se sentiu completamente incômoda com a associação entre Xangô e São João no banho: — Veja bem. Minha crítica se fixa, única e exclusivamente no contexto do sincretismo. Como praticante e pesquisadora de uma religião de matriz africana, simplesmente, não entra em minha cabeça que se pegue um orixá do fogo, e se dê banho. Não faz sentido. Daí você me diz, “mas tem o sincretismo”. Realmente, tem. Mas ele pertence a um tempo que já não existe, Giovanni. Porque, veja bem, estamos libertos disso desde a abolição. Um outro golpe sofrido pelo povo negro, ok? Então, é uma associação enganosa, depreciativa, desvalorizadora de um povo específico. Que foi historicamente construído a partir do período colonial. Então, você pensa: para dominar um povo, ou uma pessoa, neste caso os negros traficados do continente africano, foram tiradas deles a língua materna, suas crenças religiosas de maneira que a única forma de conservar suas tradições foi por meio de associações com as crenças impostas pelo seu colonizador explorador. Não obstante, no dia 19 de maio de 2021, após dez anos de processo aberto pela Prefeitura Municipal de Corumbá, por meio da então Fundação de Cultura e Turismo do Pantanal, em parceria com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, o Conselho Municipal de Políticas Culturais, entre outros, a Festa do Banho de São João de Corumbá foi declarada Patrimônio Imaterial do Brasil — notícia recebida com emoção na cidade e por mim, que soube por meio de um telejornal —. Segundo o site municipal Corumbá MS, o Banho de São João teve origem na Europa com o costume português do banho de rio obrigatório no dia do santo a partir do século 14. Conforme relatos de historiadores, em Corumbá, a despeito da evidente

presença da cultura africana, a tradição surgiu com a chegada dos árabes por volta de 1882. Para o professor Álvaro Banducci, que desenvolve trabalho na região, essas manifestações religiosas no Banho de São João costumam agregar mais seguidores durante o percurso até o Rio Paraguai: — Não raro, quando chega no rio Paraguai, depois do batismo ritualizado ao santo, o pai de santo ou a mãe de santo continuam batizando as pessoas que que estão ali. Então é uma mistura, porque às vezes eu tenho um santo católico mas vou lá receber a benção de pai de santo ou de uma mãe de santo, e a população encara isso com muita naturalidade. Isso faz parte da beleza da festa que é a festa do banho de São João de Corumbá. Há um diálogo religioso intenso, fortíssimo e extremamente poderoso. Essa é a característica do São João de Corumbá que você não irá encontrar em nenhum outro do país. —, arrematou o antropólogo. Considerando o passado pré-histórico e milenar da dança, a procissão que acompanha os andadores até o rio Paraguai com dança caipira no percurso é um exemplo dos resquícios das antigas danças pagãs que, provalvemente, foram praticadas pelos homens primitivos que habitaram a região. Danças acompanhadas de sacrifícios e oferendas organizados em forma de ritual. Ritual que antecedia a dança com procissão preliminar — como a que fizéramos ao sair da sala de aula no primeiro piso da Escola Estadual Hércules Maymone em direção a quadra de esportes —. Ah, sim. Ritual. Ritual que tinha seu ápice com uma dança circular em torno do altar. Tais as explicações que acompanharam a aula prática de História da Dança sintetizadas no trabalho História Da Dança – Linha Do Tempo, da doutora em comunicação e semiótica e pesquisadora do Centro de Estudos em Dança da Pontíficia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP, Rosana van Langendonck. “Os rituais e oferendas em forma de dança têm o sentido de festejar a terra e o preparo para o plantio, de celebrar a colheita e a fertilidade dos rebanhos. A identificação, pela dança, com os movimentos e as forças naturais representa uma forma de o homem se sintonizar com o ritmo da natureza, auxiliando-o na programação de suas ações.” Assim, vemos pela História da Dança e pela entrevista com o antropólogo Alvaro Banducci com a arte educadora Jane Motta que a arte e a cultura estão interligadas. Com o objetivo de avançar em minha investigação sobre elas no contexto do Estado, iria aproveitar uma nova oportunidade no semestre seguinte. Precisamente, no início de uma tarde quente de primavera, quatro de novembro de 2019, uma segunda-feira. Após a aula de Assessoria de Imprensa, ficara um bom tempo vagando pelos corredores e bancos da UFMS enquanto aguardava o horário da aula de Laboratório de Radiojornalismo II. Nesse ínterim, revisava a pauta da entrevista que gravaria no estúdio de Radiojornalismo

do curso de Jornalismo, considerando que, dos trabalhos programados para esse segundo Laboratório, finalmente, sobrava o derradeiro. Um radiodocumentário. O fim de um processo excitante de aprendizados e experiências no âmbito do jornalismo de rádio. Momentos de tensão, dúvidas, tomadas de decisão e descontração que seguiam para o ato final da equipe formada por Cauê Reis, Angel Angelis, Mayara Nascimento, Letícia Monteiro e eu. Uma vez que a equipe se encontrava — como sempre ocorre no final de um semestre pleno de atividades —, deveras exausta, houve um acordo de que o tema do trabalho final deveria abordar um assunto tão importante quanto acessível. A primeira ação foi deliberar sobre o tema considerando o acordo do grupo. Sugeri algo sobre a cultura local. Letícia propôs um tema sobre esportes. E mais outros três assuntos foram sugeridos. Ao final, cada um defendeu as vantagens de suas matérias propostas, sendo que a cultura terminou por conquistar a maioria. Um êxito, afinal. Intimamente, considerava os conhecimentos que essa atividade traria para mim e como poderia agregar ao projeto de livro-reportagem que iria realizar na fase do TCC. Com esse pensamento, caminhei com a equipe para o passo seguinte: definir a angulação e elaborar a pauta com as questões. Desta forma, avaliei que a primeira coisa, antes mesmo das questões das problemáticas no campo cultural artístico debatidos com Erico Bispo naquela tarde em que nos encontramos no coletivo, seria... Óbvio! A constituição do Estado, suas características culturais. Ah, que coisas as fontes convidadas poderão contar sobre esta terra onde nascemos, todos nós, sul-mato-grossenses, e da qual tão pouco — sim, pouco! Muito pouco — sabemos? Nessa elucubração, rebuscava na memória as velhas aulas e livros didáticos trabalhados nos tempos de escola. Figuras sobre a Casa Pimentel, sobre os Bugres da Conceição, sobre José Antônio Pereira, enaltecido como explorador e fundador da capital nos livros didáticos e. Sim. Principalmente. Não apenas isto: quase que exclusivamente. A Fauna e a Flora do Pantanal, Bonito e os demais pontos turísticos. Quanta coisa não terá permanecido de fora?, cogitava. Para construir a pauta, contudo, era preciso buscar referências nos outros trabalhos realizados nas outras disciplinas em semestres anteriores. Um dos primeiros, tratava sobre a diversidade cultural da região, realizado para a conclusão da disciplina de Antropologia da Cultura Brasileira, no terceiro semestre. Embora não se constituisse um trabalho jornalístico, havia uma base para tanto: a pesquisa. Foi ali, naquele início de junho de 2018, que tive de compilar as primeiras noções sobre cultura para uma atividade avaliativa sobre um tema pertinente ao meu projeto de livro-reportagem: a cultura mato-grossense-do-sul.

Estado Uno E Cultura Sul-Mato-Grossense

Logo no primeiro momento, compreendi que a definição de cultura é ampla, polissêmica. Tanto que, durante cada semestre, reencontrei esse tema em diversas disciplinas. Em meados de outubro de 2019, no sexto semestre, quando me preparava para realizar um seminário sobre o assunto na disciplina optativa de Estudos de Libras, deparei-me com o livro Cultura Surda, da pedagoga Karin Strobel. Segundo Karin, cultura é uma palavra com mais de 250 conceitos. Para o pensador britânico-jamaicano Stuart Hall, um dos fundadores da escola de pensamento conhecida como Estudos Culturais Britânicos ou a escola Birmingham dos Estudos Culturais — temática a mim introduzida em Sociologia no Ensino Médio e melhor explorada na disciplina de Cultura de Massa —, “a cultura se relaciona a sentimentos, a emoções, a um senso de pertencimento, bem como a conceitos e ideias.” Em um entendimento sintético, podemos dizer que a cultura se refere a um conjunto de aparatos de convivência, participação no meio e expressões artísticas que moldam o caráter e a individualidade de um sujeito. É um conjunto de crenças, hábitos, formas de vestir, pensar, agir e falar. É tudo o que é passado, vivido, adquirido, compartilhado entre as pessoas. São costumes que se intersecionam e que, teoricamente, seriam de outras culturas. No mundo contemporâneo e mundializado, os processos de trocas culturais ocorrem de formas cada vez mais rápidos. As culturas são fluídas, mutáveis, modificam-se continuamente sem perder sua essência, pois não existe pureza cultural. A humanidade é o reflexo de um extenso processo de acumulação cultural e é a manipulação desse processo acumulativo que permite inovações, melhorias e avanços tecnológicos. Além disso, cultura é um campo da existência humana entremeado de várias práticas cultivadas. O conceito de cultura é diferenciado de prática cultural ou costume. De outra forma, podemos dizer que a cultura é um sistema amplo de conhecimentos teóricos que encontram na prática, nos costumes, uma parcela de suas manifestações materiais. Uma dança específica como o vanerão, a katchaka ou a guarânia por exemplo, constitui uma prática cultural, embora não venha a ser a cultura como um todo. Isso porque essas três modalidades de música e dança estão restritas a um espaço geográfico (Argentina, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande Do Sul), constituindo a expressão dos povos que habitam essas regiões e três dos vários estilos da dança e da música, que são duas das várias linguagens

artísticas culturais conhecidas. Assim, pode-se dizer que ter cultura, também se refere a pertencer a um povo e ser ao mesmo tempo, único e igual. A cultura é o que fortalece a união de um povo por meio de tradições transmitidas e reforçadas pelas mais diversas expressões artísticas, pedagógicas, esportivas, via de regra, em razão do funcionamento das instituições reguladoras, bem como igrejas, órgãos públicos, núcleo familiar, escolas e a imprensa. A partir desse prévio conhecimento, pude conjeturar sobre a cultura sul-mato-grossense e pensar nas perguntas que poderiam contribuir para elucidar minha investigação sobre as origens, as caraterísticas e, principalmente, o valor das manifestações artísticas locais — especialmente o teatro —. Sim, porque a relação do mato-grossense-do-sul com sua arte, diz muito sobre sua percepção de si, sua identidade. Afinal, estaria a cultura sul-mato-grossense restrita à forma estereotipada do “homem do campo”, do sertanejo que aloja em si valores de outras regiões? — meditava enquanto revia o trabalho de Antropologia da Cultura Brasileira para criar o roteiro de perguntas do radiodocumentário. Com essa pesquisa, em pouco tempo elaborei o primeiro rascunho da pauta dividindo o programa em três partes sobre a cultura e a arte do Estado: a primeira, relacionada às origens e formação da cultura regional; a segunda, sobre as características e a identidade; e a terceira, sobre a valorização do setor pelas instituições públicas e privadas. Restava o elenco de fontes. Realizamos uma nova deliberação via grupo remoto no aplicativo WhatsApp. Estabelecemos, assim, potenciais entrevistados: a jornalista Marinete da Costa Gomez Pinheiro, formada em direção de documentário na Escola Internacional de Cinema e Televisão de Santo Antônio Dos Banhos em Cuba, autora de pesquisa sobre os cinemas de Mato Grosso do Sul, e, coordenadora do Museu da Imagem e Som do Estado, o MIS; a gerente dos Fundos de Investimentos Culturais de Mato Grosso do Sul, Solimar Alves de Almeida; a mestra em educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, pesquisadora e ativista cultural referente ao Patrimônio Imaterial e ao Folclore Brasileiro, com experiência na área de Antropologia com ênfase em etnologia, Marlei Sigrist; e, finalmente, o ator, produtor e diretor teatral da Urgente Cia, licenciado pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Vitor Hugo Samudio. Segundo o rodízio estabelecido de tarefas, Mayara, Angel e Kauê ficariam com as edições das sonoras e da finalização do programa. Letícia Monteiro e eu nos responsabilizamos pelo contato com as fontes e pelas entrevistas, sendo que as gra-

vações com os entrevistados estariam, a priori, a meu cargo. E era por este motivo que naquele início de uma tarde quente de primavera, quatro de novembro de 2019, uma segunda-feira, as 14 horas, me encontrava no Laboratório de Radiojornalismo onde Letícia Monteiro apresentou as convidadas Marlei Sigrist e Marinete Pinheiro para a turma do curso e, em especial, para a professora Daniela Ota e a mim. Dos quatro convidados, apenas Marlei e Marinete foram entrevistadas juntas. Na sequência, rumamos para o estúdio de Radiojornalismo anexo, tomamos lugares junto à bancada com os microfones. Finalmente, principiamos a entrevista. — No dia 11 de outubro de 1977, concretizou-se o desmembramento de Mato Grosso do Sul, mas somente em 1º de janeiro de 1979 o presidente Ernesto Geisel a elevou a categoria de Estado sendo o primeiro governador empossado, Harri Amorim Costa. Depois da divisão, como se constituiu a cultura sul-mato-grossense? —, perguntei. Marlei e Marinete tiveram um momento de hesitação sobre qual delas responderia primeiro. Por fim, Marlei assumiu a premissa: — Não é por uma simples divisão política do Estado que a gente tem o início de uma nova cultura. —, declarou a professora-antropóloga. Segundo Marlei, a cultura do Mato Grosso do Sul é um amalgama de culturas que remontam a mais de 500 anos da colonização portuguesa e da chegada dos bandeirantes na região do antigo Mato Grosso uno. Trata-se de um processo social-histórico que açambarca a vinda de povos diferentes, como espanhóis, portugueses e gente de outras nacionalidades e regiões do país que chegam no período mais recente de dois séculos. — ... E essa cultura foi se formando a partir do encontro dessas formas de ser, de viver e de pertencer a um lugar nem sempre de formas pacíficas, algumas vezes até conflitantes. —, explicou. Para Marlei, o que se denomina cultura-sul-mato-grossense refere-se à formação de uma cultura que é resultante da miscigenação ou da sobreposição de outras formas culturais trazidas pelos imigrantes. Esse arcabouço cultural resultante influencia diretamente na identidade dos mato-grossenses-do-sul na medida em que os revela imbuídos de valores, práticas e expressões culturais únicas. Isto é, os estrangeirismos competiram para a formação da cultura estadual.

— Por que as pessoas têm medo de dizer que é nossa alguma coisa que tenha vindo de fora? Mas, se for pensar, todos os países tiveram suas formações culturais dessa maneira. Outros povos que foram para lá e essas culturas se misturando e acabou sendo daquele país. —, concluiu a pesquisadora. Passei a palavra a Marinete: — Antes da divisão, temos que ver ainda algumas cidades que eram pequenas. Por exemplo, Corumbá que foi uma metrópole antes da divisão, uma cidade muito importante com a abertura do Rio Paraguai para a navegação. Ela tem uma série de outras influências trazidas pelos navios, pela importação que adentra o Brasil através do Rio Paraguai. Então é muito difícil você traçar que houve uma diferença cultural do Mato Grosso uno com o Mato Grosso do Sul, com esse aspecto da divisão. —, opinou.

Na perspectiva de Marinete, não é possível tratar da cultura de Mato Grosso do Sul sem atentar para o fato de que este é um acontecimento histórico que não dispensa a história pregressa do Estado uno. Contudo, o Estado uno não era tão unido desde muito antes da divisão.

A História da Divisão E A Construção Da Identidade Regional

Em sua entrevista para o radiodocumentário, a gerente dos Fundos de Investimentos Culturais de Mato Grosso do Sul, Solimar Alves de Almeida, avaliou que as diferenças entre o Mato Grosso e o Mato Grosso do Sul remontam às divergências do período anterior à divisão: — Bom, na verdade, Mato Grosso do Sul sempre teve as suas diferenças do norte, né? —, destacou, com sua voz rouca, — Então, até por isso o processo divisionista no Estado. Na análise de Solimar, um dos diferenciais entre os dois Estados, é a presença de influência paraguaia, japonesa, italiana e árabe que se contrapõe ao norte — atual Mato Grosso — onde não há uma presença igualmente significativa desses povos. Assim, as diferenças entre os dois Estados não se restringem à política que levou ao processo de divisão, mas, perpassa pela divergência cultural entre as duas regiões. — Para Cuiabá, para a região norte do Estado, as influên-

cias eram de outros locais e não dessas mesmas regiões com tanto impacto. Então, já existia essa diferença, não era só uma diferença política que levou ao processo de divisão. Existia, também, um processo político e cultural que não aproximava os dois (Estados). —, explicou-me, Solimar. Contudo, houve uma intensa movimentação política de teor divisionista. Em sua dissertação apresentada para obtenção do título de mestre em comunicação no Programa de Pós-graduação em comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul intitulada A Diversidade Cultural Nas Matérias Dos Cadernos De Cultura De Campo Grande, a assessora de comunicação na Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, Gisele Guedes Colombo, revela o cenário divergente entre os ruralistas do sul e os habitantes do norte do antigo Mato Grosso uno. Segundo Gisele Colombo, a secção entre as regiões norte e sul do antigo Mato Grosso uno era um anseio dos coronéis formados por imigrantes gaúchos que vieram durante a guerra farroupilha, desde meados do século XIX. Esses personagens realizaram diversas manifestações e articulações políticas a respeito da divisão passando esse legado para seus filhos que mesmo radicados no Rio de Janeiro, criaram, no final de 1932, a Liga Sul-mato-grossense promulgando três manifestos de cunho divisionista entre 1933 e 1934. — Quais as características da cultura sul-mato-grossense e no que ela difere da cultura de outros Estados ou do Estado uno depois da divisão? —, inquiri, dando sequência à entrevista no estúdio de rádio. Desta feita, foi Marinete quem assumiu a argumentação: — É muito difícil você traçar que houve uma diferença cultural do Mato Grosso uno com o Mato Grosso do Sul, com esse aspecto da divisão. E o pensar o Estado, quando a gente vê a necessidade de ter uma bandeira, ter um hino, ter esses símbolos que marcam o Estado, aí eu acho que é quando começa uma reflexão sobre “qual é a cultura do Mato Grosso do Sul? ”. —, avaliou a jornalista. Marinete aludiu sobre a emergência de se criar uma cultura diversa daquela que competia ao antigo Mato Grosso uno com a elaboração de símbolos que expressassem a identidade do povo insurgente com o novo Estado, como o hino e a bandeira. Para a coordenadora do MIS, é nesse momento histórico que ocorre uma reflexão sobre a cultura de Mato Grosso do Sul. Além disso, toda a política e manifestação separatista do Mato Grosso uno bem como a própria ideologia que permeia a

construção da identidade regional foi, segundo Gisele Colombo, assumida pelos fazendeiros da região que constituíam a elite sulista. Norteado por uma hegemonia coronelista, a construção da identidade cultural do novo Estado teve a pretensão de imbuir uma imagem de sertanejo ruralista protetor do meio ambiente. Assim, a primeira tentativa de formular uma identidade regional também pendeu para os elementos do campo, do homem pantaneiro marcado por um discurso ecológico que, agregado ao fazendeiro, imprime neste um caráter inequívoco de protetor do meio ambiente. Porém, trata-se de um discurso excludente que, desde o período dos movimentos separatistas, põe de lado uma parcela étnica — em especial os povos originários, os negros e estrangeiros —, e, de outro, nega o protagonismo às parcelas menos abastadas da sociedade estratificada do Estado. Essa imagem construída, não obstante, encontrou flagrante contradição desde os incêndios que atingiram a região do Pantanal em fins de agosto de 2020. Na segunda semana de setembro daquele mesmo ano, investigações da Polícia Federal indicaram que parte dos incêndios havia sido causado por pelo menos quatro fazendeiros da região de Corumbá que pretendiam limpar a área ambiental para aumentar seus pastos. Segundo as estimativas da polícia, o fogo proposital pode ter queimado cerca de 25 mil hectares do Pantanal. De acordo com a organização não governamental Ecologia e Ação, Ecoa, a ação desses criminosos repercutiu no cenário internacional pondo em cheque a imagem construída do pantaneiro integrado a natureza e protetor da fauna e da flora do sul-mato-grossense até então predominante no exterior desde há muito tempo.

Diferenças com outras regiões

— Vitor, existe, hoje, diferenças culturais entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul? —, indaguei em mais uma gravação no estúdio de radiojornalismo. Como se estivesse buscado antever a questão, Vitor Samudio, diretor e ator do grupo Urgente Cia, não tardou em responder, embora reflexivo: — Olha, apesar de serem Estados irmãos, né? Uno. E tudo vir de uma cultura só, percebemos que com certeza há distinção cultural nos dois Estados. Inclusive geograficamente porque é uma região muito grande, então, assim, do norte para o sul, a percebemos já diferenças muito contrastantes em relação ao aspecto cultural, ao aspecto artístico. Então, com certeza con-

seguimos de uma forma muito nítida perceber aí as diferenças entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Ao seu turno, Marlei considerou a influência dos povos da fronteira com Estados e países, destacando a presença da cultura paraguaia como um fator de diferenciação de Mato Grosso do Sul em relação a outras regiões: — O Estado de Mato Grosso do Sul tem algumas características diferenciadas do restante do Brasil. Principalmente por essa fronteira com o Paraguai e com a Bolívia. Mas, principalmente eu diria, com o Paraguai. Essa paraguaidade está em todos nós aqui, em Mato Grosso do Sul, principalmente do centro de Mato Grosso até a região sul. Mesmo porque todo esse território, antigamente era um território paraguaio, né? Ele acabou sendo brasileiro por conta da chegada dos bandeirantes. Segundo a professora e antropóloga, essa herança cultural se faz presente por meio das músicas entrecortadas pelo sapucai — que nada mais são senão gritos eufóricos —, da dança e da língua nheengatu da família indígena tupi-guarani: — Essa paraguaidade está em nós, na musicalidade, que é muito forte. Você não pode ouvir qualquer nota musical relativa à polca ou à guarânia que sai todo mundo dando os seus gritos e já querendo dançar. Está também nessa fala, essa fala que eu tenho chamado fala nheengatu ou seria uma fala translinguageira. Ou seja, não tem em outro lugar do Brasil que exista esse entrosamento, essa forma de se falar no coloquial, né, e que depois desse coloquial a gente ainda vê uma extensão disso até na literatura ou algumas músicas. Esse é um grande diferencial que nós temos em Mato Grosso do Sul. Isso só para citar a questão paraguaia. — Hoje, 40 anos depois da divisão, existe alguma diferença entre a cultura do Mato Grosso do Sul e do Mato Grosso? —, questionei. Marlei tomou a frente: — Existem algumas similaridades e algumas diferenças... Como eu disse anteriormente, da cultura paraguaia dificilmente você vai ver isso lá em Mato Grosso, então é uma identidade muito nossa daqui do sul, do antigo Mato Grosso uno. Mas, existem outras que estão extremamente ligadas a Cuiabá, Poconé e Chapada, e também formas de falar. Se você for pensar no cururu, na viola de cocho que vieram ali, dessa região pantaneira de Mato Grosso e se estabeleceram também em Mato Grosso do Sul na região, principalmente de Corumbá. Corumbá e Ladário. Então, assim. Existem alguns pontos, sim, que não se repetem em Mato Grosso e muito dos outros pontos se repetem nos dois Estados. —, concluiu, voltando-se para Marinete Pinheiro.

Atendendo ao gesto da colega, Marinete assumiu a fala: — Por conta dessa questão geográfica mesmo. Também é o pantanal que se divide. Então, nessa região pantaneira você vê muitas similaridades entre o que eles consomem, o que eles escutam. Tem uma relação cultural muito grande que também é uma definição geográfica. A demarcação do que é o pantanal faz com que esse Mato Grosso e esse Mato Grosso do Sul tenham uma ligação cultural muito forte. Marlei retomou a palavra: — Há também essa parte da cultura japonesa, principalmente da alimentação que nós já absorvemos no nosso dia-a-dia. Nós vamos à feira, queremos comer sobá toda a semana, toda hora. E já é uma culinária modificada, porque foi adaptada ao gosto aqui da região. Então, em nenhum outro lugar do mundo, nem mesmo no Japão você irá encontrar esse, dito, sobá campo-grandense. — Por que a identidade sul-mato-grossense estaria ligada mais a cultura culinária do que a outros movimentos culturais? —, questionei. Reflexiva, Marinete respondeu: — Às vezes porque é um elemento de necessidade. E é interessante, porque as vezes quando você recebe alguém na cidade, você pensa “vamos na feira comer sobá”, é meio automático. Então acaba sendo um elemento que de certa forma é da necessidade. Quando temos uma quantidade de turistas que visita o pantanal por exemplo. Quando você está no Pantanal, de certa forma você toma ali um contato com a cultura pantaneira através dos peões, através dessa relação que você tem ali daquele ambiente que é muito específico dele. A culinária entra como uma necessidade vital do ser humano que precisa comer e acaba trazendo esse elemento para o entorno. — Olha. Eu penso que a culinária, tem mais destaque. Acho que é isso que você quis dizer. Ela só tem um destaque maior por conta do turismo. Então você tem aí, embrincando dentro dessa cultura, dentro dos hábitos alimentares, a questão do turismo que investe bastante nesse setor. Tem como atrativo a culinária da região porque as pessoas se deslocam para outros locais para conhecer e saber do prato típico de lá e experimentá-lo. —, disse Marlei. De fato, a mesa do sul-mato-grossense agrega uma mixórdia de alimentos típicos. Segundo o portal Cultura de MS do governo estadual, da região norte, nordeste, sudeste, sul e centro oeste do país, como o porco no rolete, a linguiça e o churrasco, com algumas predominâncias regionais há uma vasta seleção culinária no cardápio do mato-grossense-do-sul. É o caso do

peixe à pantaneira assado na telha do lado oeste e do arroz com guariroba e frango ao molho pardo com quiabo e pimenta malagueta no norte, além do arroz com pequi herdados dos vizinhos goianos e mineiros, muito apreciados na região leste. Não raro, o tradicional quebra-torto — um verdadeiro almoço, onde se inclui de tudo, da linguiça ao ovo frito, com sopa paraguaia, chipa, lambreado (bife com ovo e farinha de mandioca) e ensopado de batata e carne — é servido logo no café da manhã. O mesmo site Cultura do MS indica a presença de paraguaios, com cerca de 300 mil habitantes, dos quais 80 mil se concentram em Campo Grande, evidenciando a influência da cultura do país vizinho com hábitos culinários difundidos em todo o Estado. Assim, o churrasco com mandioca, a chipa (espécie de pão de queijo frito ou assado) e a “sopa” paraguaia, tipo de bolo de queijo, milho e cebola, são exemplos de iguarias muito presentes na mesa dos mato-grossenses-do-sul. — Está bom, é ótimo, acho que tem que investir mesmo na culinária, mas está faltando investir também em outras questões culturais. Eu me lembro. Teve uma época que fizemos aquele livro de culinária Pantanal Sinfonia de Sabores e Cores para o SENAC nacional, —, disse Marlei Sigrist, rememorando uma vivencia junto ao Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial —. O Senac nacional ele tem uma série de publicações e essa sobre a culinária das regiões brasileiras. Então eles já haviam feito a culinária do Nordeste, do Amazonas, os doces de Santa Catarina, o mineiro. O nosso foi o 11º livro. Por quê? Porque é um livro bilíngue e que eles promovem workshop em todos os países e principalmente na Europa, para divulgar as regiões brasileiras através da sua culinária, porque é uma coisa que eles vão lá. Colocam os livros, os vídeos e as pessoas folheiam e falam: “puxa, eu vou lá experimentar”. Embora o nosso atrativo principal seja o meio ambiente, mas eles também querem provar esse prato. Então é uma forma de divulgar. Uma forma mais barata? Eu não sei se isso seria mais barato, mas talvez mais rápido, atrativo principal. Deve ser por aí. —, finalizou a antropóloga. Comércio que remonta aos áureos tempos da ferrovia, disputada pelos passageiros em cada estação, as chipas que hoje são vendidas nas feiras, mercados, pontos de ônibus, repartições públicas, via de regra acondicionadas em caixas de isopor, lembram-me dos tempos que morei em Ponta Porã, onde as chiperas — como são conhecidas as vendedoras dessa iguaria —, desfilavam pelas calçadas de Pedro Juan Caballero com cestos de chipas trazidos sobre as cabeças envolvidas em panos brancos que lembravam os turbantes das vestes tradicionais das baianas em Salvador. Isso, claro, sem olvidar aquela que é marca registrada dos sul-mato-grossenses. Costume amplamente difundido na re-

gião e que também é popular no Paraguai. Habito que se apresenta na vida do sul-mato-grossense como forma de socialização, uma vez que, via de regra, é servido em roda de confrades, constituindo uma verdadeira inserção em grupos de debates diversos, camaradagens, elos de amizade que... Sim. Herança de nossos ancestrais indígenas.

As Heranças Culturais das Nações Originárias

— Quando aconteceu essa divisão estávamos num contexto de ditadura e aí há uma divisão territorial. Só que essa divisão territorial, não faz com que os laços culturais se percam. Isso podemos ver, por exemplo, até na própria divisão da América. Quando temos aqui as comunidades indígenas guarani e kaiowá falando o mesmo guarani que a população paraguaia fala e estudos mostram que são os mesmos povos que estavam aqui... Enquanto Marinete Pinheiro prossegue com seu raciocínio, eu, embora atento a suas falas, rememorava a pesquisa que dera início àquele trabalho de Radiojornalismo. Deveras, a influência dos povos originários é um fator essencial da cultura sul-mato-grossense. Sobretudo, no que ela tem de semelhante e diversa em relação às regiões fronteiriças. Isso ficara comprovado numa entrevista anterior com o professor de Antropologia da Cultura Brasileira, Victor Ferri Mauro, para o primeiro Laboratório de Radiojornalismo, em meados do quinto semestre do curso de Jornalismo no primeiro semstre de 2019. Naquela ocasião, eu produzia uma reportagem sobre a instituição da Lei municipal 6.172 que estabelece a Semana da Consciência Cultural Indígena na capital do Estado. Assim, no dia 8 de março, às 14 horas e 43 minutos eu encontrava o professor na sede do curso de Ciências Sociais da UFMS. — Boa tarde, jornalista. Então você quer fazer uma matéria sobre a Lei Municipal da Consciência Cultural Indígena? —, disse-me o professor ao aproximar-se de bermuda e camiseta casual.

— Oi, Victor, é isso mesmo. Daí lembrei que o senhor é pesquisador do assunto. —, respondi. Imediato, Victor — que seria minha fonte para essa temática em outras ocasiões — convidou-me a acompanha-lo até o complexo multiuso à frente do Parque Aquático da UFMS onde conseguiu uma sala para a realização da entrevista. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista, UNESP, especialista em Antropologia com enfoque nas culturas e história dos povos indígenas pela UFMS; mestre e

doutor pela Universidade Federal da Grande Dourados, Victor contou-me que já atuou no quadro permanente da Fundação Nacional do Índio, FUNAI, entre 2004 e 2009, sendo também orientador de pesquisas sobre a população indígena brasileira, além de coordenador do projeto de extensão intitulado Formação de Professores em História e Cultura Indígena. — Mato Grosso do Sul é o Estado com a segunda maior população indígena do Brasil. O censo do IBGE de 2010 registra uma população de mais de 70 mil indígenas aqui no Estado de nove etnias diferentes. —, explicou o professor. De todas as nações indígenas a Guarani é uma das que mais se destacam por sua presença representativa com ampla região de ocupação de territórios tradicionais na América do Sul. Segundo o site Cultura De MS do governo estadual, a Nação Guarani constitui-se de “remanescentes dos ervais da fronteira com o Paraguai e com uma área superior a dois milhões de hectares, a nação Guarani, do tronco Tupi, tem sua população dividida em 22 pequenas áreas em 16 municípios no sul do Estado”. O site ainda elenca seis nações presentes no Estado, como a dos Guató, identificados como o povo do Pantanal por excelência, conhecidos canoeiros da região de Bela Vista; os Kadiwéus, cavaleiros que dominaram uma região entre o Paraguai e São Lourenço; os Kaiowás, subgrupo contemporâneo dos povos guaranis habitantes da região sul do Estado; os Ofayé Xavante que outrora dominavam a extensão entre Ivinhema e Vacarias, atuais habitantes em uma reserva em Brasilândia com cerca de 50 pessoas; e, a Nação Terena que, com 18 mil índios, é a maior em Mato Grosso do Sul, embora sua ocupação esteja fragmentada em diversas regiões... Segundo o professor Victor Mauro, o estabelecimento do indígena precede a presença do colonizador no Estado, sendo de inestimável importância na formação cultural sul-mato-grossense.

— Grande parte daquilo que valorizamos como cultura no nosso Estado, inclusive o habito de tomar tereré, que se tornou um símbolo cultural de Mato Grosso do Sul, é um habito de origem indígena que pouca gente sabe disso, então tem que ser mais bem trabalhado. — disse-me o professor. Assim, o costume que se tornou marca registrada dos sul-mato-grossenses. Hábito amplamente difundido no Estado e que igualmente é popular no Paraguai. Prática que se apresenta, na vida do sul-mato-grossense como forma de socialização, uma vez que, comumente, é servido em círculos de amizades, o tereré que consiste em uma autêntica inserção em grupos de conversas diversos, camaradagens, elos de amizade, tem suas raízes nas tradições indígenas que antecederam aos colonizadores.

Sempre atencioso e disposto a colaborar, Victor, explicou-me ainda que o tereré é uma das características diversas de consumo da erva-mate, que vai da bebida quente nos Estados do Sul do Brasil à forma gelada no Mato Grosso do Sul, embora ambas se tratem da erva de mesma espécie e o consumo também ocorra igualmente servido numa guampa. De qualquer modo, sempre se trata de uma herança dos povos originários, quase sempre recriminados. Em outro trabalho da disciplina Laboratório de Radiojornalismo, um podcast sobre a violência contra povos indígenas que contou com a participação do filóeu mesmosofo e, doutor em Antropologia pela Universidade de Salamanca, na Espanha, o professor Antônio Hilário Aguilera Urquiza, tive oportunidade de saber um pouco mais: — Professor Hilário, como a pluralidade cultural dos povos originários contribuiu para a construção da cultura regional? Com experiência na área de Etnologia, assim como nas áreas de Educação Indígena e Direitos Humanos, Hilário respondeu prestativamente: — A formação da cultura regional deve muito aos povos tradicionais, aos povos nativos dessa região que até cento e poucos anos atrás era uma mistura da fronteira Brasil, Paraguai e, inclusive, com a Bolívia. Tem influência na área da linguística, nos nomes dos municípios. Por exemplo, 27 municípios do Estado têm nomes de origem indígena. Quase todos da etnia Guarani. Na culinária, nem se fala. Enfim, são muitas influências que temos no cotidiano das culturas e dos povos que vivem nessa região do Brasil. Letícia Monteiro propôs outra questão: — Pode-se dizer que essa cultura, a cultura indígena, é marginalizada na nossa sociedade ou até mesmo desvalorizada? — Olha. Totalmente! —, afirmou o professor com veemência. E prosseguiu: — Se olharmos para trás, por exemplo, quando nós estudamos na educação básica, no fundamental, no médio, muito pouco se dizia das culturas indígenas. E quando se falava do indígena é aquele indígena pretérito do período colonial. Muito pouco se dizia ou se dizia de uma forma muito negativa dos indígenas contemporâneos. E na atualidade, esse cenário não mudou muito. Percebemos o aumento do preconceito. Preconceito por falta de conhecimento, preconceito por falta de entendimento da importância deles e de como eles vivem, de como eles exercitam suas práticas culturais, sua cosmovisão, o cotidiano deles nas suas aldeias. Sejam aldeias no contexto rural ou aldeias no contexto urbano. Essa resposta do professor Hilário Urquiza faz coro com o

pensamento de seu colega, Victor Mauro, expresso na entrevista sobre a Semana da Cultura indígena: — Na sua experiência, como a cultura indígena tem sido tratada nas escolas? —, indaguei-lhe. — Eu mesmo, pela UFMS, já desenvolvi projeto de extensão que consistia numa formação continuada para professores das escolas. Para trabalhar a temática de história e cultura indígena em sala de aula e para levar subsídios a esses alunos, para que conhecessem melhor a realidade que vivem a população indígena. E percebi uma grande defasagem aqui do Estado até mesmo por parte dos educadores. Pode-se tirar um exemplo prático dessas exposições dos professores antropólogos na resposta de outro convidado para o podcast sobre a Violência Contra Indígenas, o cacique Josué Martins, da etnia Terena, que reside na aldeia urbana Estrela do Amanhã, nas imediações do Jardim Noroeste, na capital. Entre outras coisas, Josué relatou um preconceito sofrido num coletivo.

— Meu amigo estava dentro de um ônibus, e eu estava pertinho dele. Aí, uma mulher entrou. Não indígena. E inclusive, esse meu amigo, ele estava de colar. Um colar mais ou menos assim, ó. —, disse, tímido, mostrando-me o colar artesanal que trazia no pescoço. — É um colar muito bonito. —, respondi, inclinando-me sobre a mesa dos microfones e, a seguir, retomando a postura, esperei-o. Josué compreendeu o gesto e prosseguiu: — Aí essa mulher olhou. Dos pés até a cabeça. E. Eu pensei que ela estava gostando. Mas, não. Daí ela falou assim: “Vixe! Que nojo! ” Falou desse jeito. — Falou assim? —, inquiri. — Sim. Aí eu falei para o meu colega: “ Não deixa assim, não. Sem ligar. Procura algum direito”. Porque isso, é uma discriminação. — Sim. — Ele falou: “Não. Eu não vou fazer isso, porque eu tenho que ir para o trabalho, porque eu vou perder tempo com isso”. E aí são as coisas que a gente encontra assim. Nas escolas também. — Nas escolas? — Sim! Mas nem todos, como falei. Alguns. —, ponderou o cacique, sempre tímido. E, com este acanhamento, disparou: — Porque. A minha neta também sofreu.

— Na escola? —, indaguei, redobrando a minha atenção sobre ele. — Sim! Eu nem vou citar aqui o nome, né? Aí a minha neta chegou chorando. — Mas qual foi a situação que ela passou? — Foi. Mais ou menos assim: diz que a professora falou: “É! Porque que não estuda lá na aldeia, não volta lá para a aldeia? ” Mais ou menos um tom assim de preconceito. O lugar do indígena tem que ser na aldeia, o que ela queria dizer, né. — E isso a própria professora? — Sim. Sim! Aí eu fui na escola. Eu queria dar parte e tudo. E aí a diretora falou: “não. Eu vou resolver essa situação”. Aí, parou. Eu acredito que. — Resolveu? — Resolveu. Assim, percebe-se que os conflitos com os povos indíginas não não se restringem aos confrontos e persecuções diversas pelas demarcações de terras com os fazendeiros, mas se apresentam em preconceitos antigos. Preconceito que atinge cada etnia, até mesmo nos seus valores estéticos. Publicado na Revista Eletrônica Díke, em 2011, a pesquisa Direitos Culturais E Direitos Humanos: Uma Leitura À Luz Dos Tratados Internacionais E Da Constituição Federal, do advogado especialista em Direito Processual Civil, José Estênio Raulino Cavalcante traz uma série de tratados históricos ocorridos a partir do término da Segunda Guerra Mundial, com o surgimento de organizações como a ONU, a UNESCO e o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional além da própria Constituição Federal do Brasil. Ao abordar os debates desses órgãos e as normas deles surgidas com relação ao campo das culturas das minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, o jurista encontra no artigo 27 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos as garantias para os membros desses grupos, embora estranhe a ausência desse princípio como objeto de tratamento no âmbito dos direitos culturais. “Esse lapso foi parcialmente corrigido pela ONU que aprovou, em 1992, a Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes às Minorias Nacionais, Étnicas, Religiosas e Linguísticas, na qual se formula a obrigação dos Estados de proteger a existência e a identidade das minorias no interior dos seus respectivos territórios. No quadro atual, marcado pela fragmentação das identidades coletivas e pelo enfraquecimento dos Estados nacionais, esse princípio adquiriu uma importância capital. A chamada identidade nacional, em nome da qual foram praticados verdadeiros atos de genocí-

dio, não é — e nunca poderia ter sido vista como tal — um bloco monolítico. Não é um conjunto maior do que suas partes. Cada subcultura constitui, por si mesma, um todo independente. Por mais complexo que isso possa parecer — e de fato o é — a identidade nacional deve ser encarada como um todo composto de todos”, afirma José Cavalcante. — Como o senhor vê a valorização da cultura indígena aqui no Estado? —, torno a questionar o antropólogo Victor Mauro na sala de aula vazia que ele escolhera. Lançando um novo olhar para o celular que gravava sobre a mesa, o professor respondeu com tranquilidade: — Ainda há pouco destaque sendo dado à participação dessa população na formação da cultura aqui do Estado e da discussão de uma série de problemáticas, de reinvidicações do movimento indígena contemporâneo que tem pouca visibilidade. E, geralmente, quando alcança alguma visibilidade nos meios de divulgação, costuma ter uma ênfase muito negativa. —, denunciou Victor Mauro. Claro está. — Com a criação do Estado eles se dividiram em países diferentes, mas mantiveram o mesmo guarani. E aí vemos também na construção de Mato Grosso do Sul uma série de aspectos porque a cultura tem essa dinâmica de transformação que é o que temos, por exemplo, anterior a chegada dos japoneses, aqui. Que eles acabam trazendo elementos que o sul-mato-grossense identifica como da sua cultura, que é uma adaptação de um país bem longe. — Marinete concluía sua resposta no estúdio do Laboratório de Radiojornalismo. Voltando-me para a pauta aberta no celular, busquei a próxima questão enquanto meditava sobre até que ponto as manifestações artísticas locais poderiam expressar todo esse arcabouço cultural do Estado, espelhando a identidade do sul-mato-grossense. Contudo. Naquela noite de verão, eu ainda não sabia, mas estava posto o problema que, passados nove anos — esse número cabalístico de fins de jornadas — seria a essência do tema que encerraria toda a minha caminhada no curso de Jornalismo. A arte... Mas. “O que é a Arte?”

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