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Capítulo Terceiro

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Capítulo Quarto

Capítulo Quarto

Capítulo Terceiro: “Aruanã Etô é lugar das máscaras, Maste Purú é lugar dos homens”

gravação da entrevista com a gerente de fundos de

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Ainvestimentos culturais de Mato Grosso do Sul, Solimar Alves de Almeida, foi marcada por uma série de pequenos incidentes. De início, a gentil senhora enganou-se sobre o horário marcado. Isso prolongou a minha espera no corredor central da UFMS num dia de calor primaveril. Decorreu cerca de meia hora até que finalmente nos encontrássemos no lugar combinado, isto é, próximo às agências bancárias. A seguir, já no estúdio de gravação, foi minha vez de cometer o deslize de me perder no roteiro de perguntas aberto no aparelho smartphone: — Solimar Alves de Almeida, psicóloga e gerente do fundo de cultu... E de investimento. — Passei a língua entre os lábios — Psicóloga e gerente dos fundos de investimento culturais de Mato Grosso do Sul. — Fiz uma pausa, buscando a questão na folha de pauta — No dia 11 de outubro de 1977 concretizou-se o dois mil desme... O desmembramento de Mato Grosso do Sul. Mas somente em 1º de janeiro de 1979 o presidente Ernesto Geisel elevou a categoria de Estado, sendo o primeiro... Governador empossado Harry Amorim. Harry Amorim Costa. — A professora corrigiu-me num tom de sussurro: — Harri. — Harri? —, questionei com um riso nervoso — Harri Amorim Costa. —, repeti ao microfone. — Depois da divisão.... —, busquei retomar e, imprimi novo vigor: — Depois da divisão, como se constituiu a cultura.... — Não, volta desde o início —, interveio Letícia Monteiro, sentada em uma cadeira ao meu lado. — É Geovani. Você está mudando a entonação. Na gravação toda você fez isso. Pode ir. —, juntou a professora Daniela Ota.

— De novo. —, disse eu a Solimar, resignado. — Tranquilo! —, ela assentiu.

— No dia 11 de outubro de 1979, concretizou o desmembramento de Mato Grosso do Sul, mas em 1º de janeiro de 1979 o presi. — Dessa vez o celular onde eu lia a pauta emitiu alarme e desligou por falta de bateria. — Não acredito nisso, gente. Sacanagem! —, sussurrei. — Desculpa. —, disse à Solimar num tom quase inaudível. — Volta tudo. —, respondeu-me a gerente do fundo de cultura, sorrindo, divertida. — Agora vai. —, afirmei. Tinha apanhado um outro aparelho que trazia já com a pauta aberta no aplicativo WhatsApp do grupo de trabalho do Laboratório de Radiojornalismo II. Assim, veladamente, respirei fundo, concentrado, e finalmente retomei: — No dia 11 de outubro de 1977, concretizou-se o desmembramento de Mato Grosso do Sul, mas somente em 1º de janeiro de 1979, o presidente Ernesto Geisel a elevou a categoria de Estado sendo o primeiro governador empossado, Harri Amorim Costa. — Arri Amorim Costa. Isso é outra coisa. Você está falando Rarry! De onde você tirou isso. É nome de brasileiro. Estamos no Brasil. É Harri Amorim Costa. —, corrigiu-me a professora Daniela Ota, numa voz baixa, porém firme. —, enquanto Solimar dissimulava o riso pousando uma mão sobre a boca. — Harri Amorim Costa. —, repeti. — Depois da divisão, como se constituiu a cultura sul-mato-grossense? —, concluí, enfim.

— Bom, na verdade, Mato Grosso do Sul sempre teve as suas diferenças do Norte, né? Então, até por isso o processo divisionista no Estado. O que era mais pertinente a Mato Grosso do Sul, são aquelas influências do Paraguai, de japoneses, italianos, o pessoal árabe. No Norte não tem tanta essa influência como existia e existe até hoje aqui em Mato Grosso do Sul. Para Cuiabá, para a região norte do Estado, as influências eram de outros locais e não dessas mesmas regiões com tanto impacto. Então, já existia essa diferença não era só uma diferença política que levou ao processo de divisão. Existia, também, um processo político e cultural que não aproximavam os dois Estados um do outro. —, disse Solimar em resposta, com sua voz rouca. E enquanto Solimar delineava o passado secular do movimento divisionista — já relato de outra maneira no primeiro capítulo —, eu, claro, me perguntava como essas transformações

políticas e históricas haviam contribuído para a formação das artes sul-mato-grossenses e construído sua identidade.

As Artes Clássicas no Sul de Mato Grosso

Uma das mais ricas e diversificadas produções humanas, a arte registrou desde a pré-história todo o legado dos nossos antepassados durante todas as épocas. Passados milênios após o período da Pedra Lascada, precisamente com a chegada dos colonizadores e as primeiras vilas e cidades no Sul de Mato Grosso — aqui, uso a premissa dos Historiadores, segundo os quais não é adequado referir a Mato Grosso do Sul antes da divisão —, surgiram as primeiras manifestações na região. Em Mato Grosso Do Sul: História, Divisão e Sociedade, pesquisa de mestrado defendida na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, UEMS, da historiadora Andréia De Arruda Machado, são relatados aspectos importantes da História anterior à criação de Mato Grosso Do Sul. Segundo Andréia de Arruda, o antigo Estado de Mato Grosso compreendia uma extensão que corresponde aos atuais Estados de Rondônia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Essa área era subdivida em três regiões com características específicas de formas diferenciadas: norte, centro e sul. Há notícias de que o primeiro português a pisar no que hoje é Mato Grosso do Sul, teria sido Aleixo Garcia, por volta de 1524. Conforme Andréia de Arruda, os primeiros caminhos abertos nas matas, até então, eram as picadas. “Os caminhos eram percorridos nos lombos dos animais, seguindo, a partir de 1900, de algumas estradas boiadeiras e carreteiras. As viagens duravam muitos dias. Para sair da capital do país - Rio de Janeiro - e chegar a Cuiabá, demorava, praticamente, um mês. Assim, até a construção de estradas no início do século XX, as vias fluviais eram os meios principais de locomoção. “Tomava-se um navio que partia do rio da Prata, com escala em Montevidéu e Buenos Aires (Argentina), era necessário subir o rio Paraguai, com escala em Assunção, passar em Corumbá e depois chegar em Cuiabá”, explica a historiadora. Não obstante, essas condições adversas não impediram que os povoados que surgiam, sobretudo as cidades mais desenvolvidas no final do século XIX, tivessem algum conhecimento das manifestações artísticas que se formavam após a fuga

dos monarcas portugueses para o Brasil, como o Romantismo, o Neoclassicismo e o Realismo.

A estética paisagística-romântica

Surgidos no mesmo período, o Romantismo e o Neoclássico são atualmente considerados duas faces de uma mesma moeda, conforme explica no trabalho de pesquisa Identidade Regional e Pintura de Paisagens em Mato Grosso do Sul, a mestra em estudo de linguagens e arte educadora Morgana Duenha Rodrigues, que atua como técnica pedagógica na Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do Sul. “Nesta mesma perspectiva, os estudos de Argan tanto sobre arte neoclássica como sobre arte romântica, mostram que ambas, apesar de parecerem divergentes, pertencem ao mesmo ciclo de pensamento. A diferença está sobretudo no tipo de postura (predominantemente racional ou passional) que o artista assume em relação à história e à realidade natural e social”. Tomando a natureza e a vida humana como espaço de apropriação e campo de investigação científica, a arte romântica encontra na pintura seu objeto de expressão por excelência. “Nas artes plásticas, o que diz respeito à grande realização do romantismo encontra-se no campo da pintura; esta, assim como a arquitetura, começou como forma de crítica/reação à artificialidade barroca. No romantismo pregava-se a presença concomitante da razão e da natureza”, explica Morgana Duenha. Dessa forma, a arte educadora já observa em obras românticas como as de Goya, Delacroix, Daumier a presença de paisagens, embora, estas ocupem o segundo plano. Segundo Morgana Rodrigues, apenas em Bonheur e Corot a paisagem aparece em toda extensão. “Sabe-se que a Pintura de Paisagem está presente nas produções subsequentes ao Romantismo, que permanece reconhecido como o iniciador deste gênero de pintura que, a rigor, melhor traduziu o estado de espírito romântico em suas variadas contingências subjetivas”. Graduado em Ciências Sociais e mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará, UFC, o professor e pesquisador de História e Sociologia da Arte da Universidade Federal de Ouro Preto, Paulo Monteiro Nunes, explica no artigo Academicismo em três tempos: Regulação, Adesão e Controle, publicado em julho 2011, pelos Anais do XXVI Simpósio Nacional de História, ANPUH, de São Paulo, que durante o século XIX, as Academias de

Arte Francesas — modelo tomado pelo Brasil — começaram a impor uma combinação estética que reunia os valores técnicos do Neoclássico com a temática e a dramaticidade romântica. Tomados como únicas expressões artísticas aceitáveis nas Escolas de Belas Artes, tais técnicas resultaram no período denominado Academicismo, que só foi superado a partir das correntes de Vanguarda das quais se destacam o Expressionismo, o Dadaísmo, o Fauvismo, o Futurismo e o Impressionismo. Na análise de Morgana Rodrigues, esta última ainda mantém a relação paisagística herdada no Romantismo. “É inegável que a paisagem romântica propiciou o aparecimento de uma das rupturas mais radicais em relação à linguagem clássica: o Impressionismo”. Segundo a mestra em estudos de linguagens, há na pintura artística de Mato Grosso do Sul uma predominância do estilo paisagístico que remonta ao Romantismo, origem das pinturas de paisagem como gênero artístico. Essa característica de origem europeia foi introduzida no país a partir da transferência da corte de Portugal para a colônia brasileira. Os proprietários de terras com anseio de ascensão criaram uma espécie de nobreza que levou a coroa a “civilizar” a paisagem por meio de obras públicas. Em 1816 chega ao Brasil a Missão Artística Francesa com o objetivo de trazer a monumentalidade do Neoclássico à corte, contudo a realidade brasileira impôs dificuldades que obrigaram a missão a criar mecanismos para suavizar as circunstancias. “No entanto, é importante salientar que nos primeiros estatutos da Imperial Academia e Escola de Belas Artes, redigidos em 1820, a relação entre paisagem e nacionalidade, a ‘brasilidade’, já se fazia presente, considerando-se ‘o quanto as próprias condições físicas do território brasileiro convinham e mesmo exigiam o amplo desenvolvimento da pintura paisagística”, observa Morgana Rodrigues. Essa escola paisagística nacional ganharia mais relevo com a chegada do pintor alemão Georg Grimm que, no início da década de 1870, assumiria o estudo da Pintura de Paisagem no Brasil. Para Morgana Rodrigues, os ensinamentos de Griim tiveram como base a observação direta da natureza. “Esse ‘método’ coincide com o período do movimento romântico, quando a paisagem aparece como um gênero autônomo de pintura, de maneira mais consistente, como já explicamos, pois, a paisagem que se definia anteriormente equilibrava-se entre o natural e o ideal e se configurava sob domínio do pitoresco e do sublime”, observa.

Assim, durante os anos de 1884 e 1886, sob a orientação de Georg Grimm, um grupo de sete jovens artistas passou a encontrar-se regularmente para pintar nas praias e arredores da cidade de Niterói, no Estado do Rio de Janeiro. Formado pelos pintores Antônio Parreiras (1860 - 1937), Garcia y Vasquez (1859 - 1912), França Júnior (1838 - 1890), Francisco Ribeiro (1855 - 1900), Castagneto (1851 - 1900), Caron (1862 - 1892) e o pintor alemão Thomas Driendl (1849 - 1916), que por vezes substitui o mestre, esses artistas se caracterizaram pela pintura ao ar livre que teve origem na própria Academia Imperial de Belas Artes, AIBA, do Rio de Janeiro.

Os Primeiros Artistas Eruditos no Sul de Mato Grosso

Posteriormente ao Grupo Grimm, na segunda metade do século XIX, surgiram novos nomes que criariam uma suposta natureza tipicamente brasileira, como Antonio Parreiras, Giovanni Battista Castagneto e Henrique Bernadelli, que viria a ser o professor da artista mato-grossense-do-sul Lígia Baís. Durante a sua pesquisa História Expressões do Mundo Moderno Na Cidade De Campo Grande No Antigo Estado De Mato Grosso: Arte De Lígia Baís Como Fonte de Pesquisa Histórica, apresentada para o mestrado de História da UFGD, Fernanda Reis, hoje doutora pela mesma universidade, relata o anseio modernista da elite do Sul de Mato Grosso alimentado pela necessidade de superar a pecha de região atrasada. Essa aspiração foi buscar inspiração no eixo Rio-São Paulo, com quem mantinha contato por meio das navegações. Ademais, o surgimento da Companhia Erva Matte Laranjeira a partir do arrendamento de terras por Tomás Laranjeira na localidade onde surgia a povoação de Ponta Porã, explorando imensos ervais nativos — sob o regime de trabalho análogo de escravidão, especialmente entre paraguaios e indígenas —, e, a chegada da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, em 1914, ligando São Paulo a Corumbá, provocaram um crescimento demográfico contribuindo para o desenvolvimento da região. Essa presença de migrantes trazidas pelo avanço da malha ferroviária é registrada pela escritora Maria Manoela Renha de Novis Neves em Elites Políticas: Competição e Dinâmica Partidário-Eleitoral, publicado pela Edições Vértice, em 1988. “A mão de obra contratada de imigrantes para ferrovia trouxe

substancial contingente de agricultores, que se fixaram posteriormente ao longo do eixo da estrada e promoveram a diversificação da agricultura, dando à pecuária histórica e fixacionista, novo suporte que mais acentuou a diferença estrutural entre sul e a região norte”, relata Maria Neves. Uma das mais notáveis artistas deste período foi Lígia Baís que, segundo Fernanda Reis, era a sétima filha de um total de nove herdeiros de Bernardo Franco Baís e de Amélia Alexandrina Baís. Rebelde desde criança, aos 15 anos Lígia começou os estudos em arte, com aulas de piano e outros instrumentos. Chegou a estudar em vários internatos fora do país, como em Assunção, no Paraguai, e na Europa. Nos anos 1920, passou uma temporada no Rio de Janeiro onde teve aulas com o pintor, desenhista e professor da Escola Nacional de Artes, Henrique Bernadelli e com o pintor, crítico, professor e historiador de arte brasileira Osvaldo Teixeira. Ao lado de seu cunhado Vespasiano Martins e de sua irmã Celina, Lígia passou uma temporada na Europa em 1925, visitando vários países que influenciaram profundamente sua perspectiva artística de modo a repercutir em suas obras que ganharam aspectos modernistas e surrealistas. Assim, ao retornar para o Brasil, Lígia promoveu uma exposição de pinturas a óleo no Rio de Janeiro. A escolha do lugar teria sido devido a Campo Grande ainda não possuir nem luz, nem referência sobre arte contemporânea. Conforme Fernanda Reis, Lígia era uma artista versátil e exercia diversos talentos artísticos como a pintura, a literatura, além de tocar instrumentos e compor músicas. Sua vida pessoal, entretanto, foi marcada pela tragédia, incompreensão, profunda religiosidade e isolamento. O pai, Bernardo Franco Baís, foi atropelado pelo trem em frente à casa da família. Sua família, aproveitando-se de um momento de fraqueza, casou-a para transferir a responsabilidade sobre seus atos — casamento este que foi logo desfeito —; por fim, em 1985 Lígia faleceu cercada pelos gatos que alimentava, isolada em sua casa. Sua história, não obstante, tem inspirado diversas narrativas e representações teatrais e de dança. — Lígia Baís é lembrada como proeminente artista do Estado, no entanto, pouco se fala sobre a estética de suas obras e sua relação com os artistas da Semana de Arte Moderna. O que o senhor poderia dizer a respeito? —, perguntei ao professor Bessa-Oliveira. Aludindo à contenda sempre contemporânea do reco-

nhecimento do Estado de Mato Grosso do Sul desmembrado de Mato Grosso em 1977 — esse “Sul” sempre esquecido em outras regiões brasileiras! —, o professor elucidou: — Se após quase 50 anos da divisão dos Estados o nome Mato Grosso do Sul ainda é motivo de controvérsias, imaginemos o que era Mato Grosso uno em 1922 para o Sudeste do Brasil?! Do mesmo modo, se me permite dizer, a “estética” de Lídia Baís de que você fala não dialogava com o proposto pelos Modernistas à época. Não há nas obras executadas por Lígia Baís um “retrato” localista-regionalista de MT (da época, por exemplo) como buscavam fazer, por exemplo, Mário de Andrade com “Macunaíma” ou Tarsila do Amaral com “Abaporu”. Pelo contrário, sua obra (Baís) está muito mais influenciada pela arte europeia inclusive pela temática. O que não quer dizer que os Modernistas brasileiros tenham deixado de lado os mesmos pressupostos europeus como modos de produção. No entanto, esses últimos, os brasileiros, por uma perspectiva mais regionalista fazem ressaltar as mesmas características locais que constavam nas culturas europeias e estadunidenses que os artistas daqueles lugares faziam em suas obras (por exemplo, Picasso com as guerras espanholas em Guernica). Eu tenho escrito 3 ou 4 textos nessa perspectiva de discussão da Arte Moderna brasileira ainda ser ranço da arte europeia pela ótica do “devorar” para produzir. Contudo, se o modernismo não se apresentou por meio das telas simbólicas, impressionistas e surreais de Lígia Baís, na literatura, embora de modo tardio, não se pode dizer o mesmo, conforme explica o ator, diretor, arte-educador, pesquisador e produtor cultural Fernando Cruz durante entrevista para este livro. Graduado em artes visuais pela UFMS e pós-graduado em ciências da linguagem, pela UEMS, Fernando é diretor e ator do grupo Teatro Imaginário Maracangalha. — A obra literária do Lobivar Matos, ela reverberou para o Brasil na época do modernismo tardio, quando ele foi escritor na revista Fon Fon no Rio de Janeiro, apresentou Manuel de Barros como artista para o Brasil na década de 1930 e até hoje não é reconhecido no seu lugar. Morto aos 32 anos, o escritor Lobivar Matos nasceu em 11 de janeiro de 1915, em Corumbá. Em sua tese de doutorado O projeto literário do escritor Lobivar Matos, a pesquisadora Susylene Araújo chama a atenção para o fato de que, ao seguir para o Rio De Janeiro, com a ajuda de sua avó que, inclusive havia lhe alcançado a tutela de Filinto Müller chefe da polícia política do Governo Vargas, sobre quem paira relatos de prisões arbitrárias e até o uso da tortura. “Tal informação exige uma

atenção especial, já que parece ser bastante contraditório que alguém que seja protegido pelo governo getulista da época pudesse dar vozes aos parias desprovidos, como Lobivar o fez. O relato segue para revelar aqueles que seriam os anos mais significativos da vida de Lobivar Matos. Após ingressar na Faculdade Nacional de Direito do então Distrito Federal, o poeta contrai núpcias com Nair Gomes de Araújo, com quem teve dois filhos: Silvio e Suely”, observa Susylene Araújo. Entretanto, para o dramaturgo, Fernando Cruz que realizou pesquisas sobre o autor junto ao grupo Teatro Imaginário Maracangalha, resultando no cortejo Areôtorare, Lobivar Matos é um personagem local que se destaca por trazer a manifestação modernista ao pantanal do Sul de Mato Grosso, abrindo mão do olhar idílico sobre a região para destacar as questões sociais e a realidade daquela época: — E sobre o Areôtorare, no caso a vida que redescobre, encontra, a obra de Lobivar Matos, escrita em plena década de 1930, e no Manifesto A Minha Gente, que é o prefácio que ele escreve, o texto de abertura do Sarobá, onde fala de uma maneira bem direta. Por isso nós tratamos como manifesto modernista aqui da região do Pantanal, do centro do Brasil, do centro da América do Sul, onde ele busca uma arte que não falasse mais das pequenas coisas. De coisas corriqueiras ou de desejos. De vaidades artísticas no período, parnasianas. Uma arte que falasse dos trabalhadores, da vida, das pessoas, dos miseráveis sem pão e sem trabalho, considerando esse o papel dos poetas de sua geração. Poeta, jornalista e crítico literário, Lobivar Matos se autointitulava o Poeta Desconhecido. Segundo Juliano Antunes Cardoso, mestre em Letras pela UFMS, que em seu trabalho de pós-graduação A Poética Metafórica De Lobivar Matos: A Profecia De Um Areôtorare analisa a estrutura poética de Lobivar Matos, o autor corumbaense já manifestava em seu primeiro livro, Areôtorare, sua imersão no espírito modernista, que voltado para o realismo com sua crueza construía e revelava a “comédia dramática da vida”. Prossegue o dramaturgo Fernando Cruz: — Os poemas, são poemas modernistas que trazem personagens reais que são as mulheres negras, as mulheres indígenas, os homens, as crianças do pantanal, os moradores de rua, os bêbados, as prostitutas as trabalhadoras sexuais. Ele traz todo um universo do Pantanal que não nos é mostrado, que não é contado e também desvela a primeira das favelas do centro-oes-

te do Brasil, em pleno pantanal, que era o Sarobá, uma favela composta por pretos que sobreviveram à Guerra do Paraguai. E ali tocavam o seu tambor, faziam o seu terreiro, as suas festas, e onde a burguesia iria se divertir. Outra característica observada nas obras de Lobivar Matos é seu aspecto histórico do período Getulista no Sul de Mato Grosso, atual Mato Grosso Do Sul. A política expansionista, colonizadora e agrária com o objetivo de unificar o mercado interno e garantir a diversificação da produção nacional, sobretudo por meio da campanha Marcha para o Oeste, de 1938, difundida pelo regime getulista, resultou no crescimento demográfico da região, mas também trouxe as mazelas inerentes às relações do capital. Na análise de Fernando Cruz, esse olhar para a realidade da época desvela a sociedade capitalista com suas mazelas: — Então ele faz um retrato de um período histórico que dialoga até hoje com a violência contra a mulher. A exploração da criança, com o descaso. Desumanidade com as pessoas que habitam as ruas, com os pobres desse país. Mostrando um Pantanal além da paisagem, onde há diferenças sociais. As diferenças de classe, de raça, de cor. E de forma muito humana ao mostrar, também, um lado festivo do povo brasileiro, desse povo pantaneiro. Desses trabalhadores daquele período. Fazendo uma grande denúncia contra o desmatamento do Pantanal, o desvio das águas, a invasão das mineradoras com a poluição e com todo o impacto social, além do impacto ambiental. As enchentes que mudavam de cursos e destruíam a vida das pessoas. E faz uma denúncia, também do empobrecimento das pessoas que tinham uma vida cotidiana, ali, muito ligada à terra e, de repente, perdem a sua terra para as mineradoras. E que não consegue emprego na mineradora, torna-se um desempregado ou morador de rua.

“Ah. Cancioneiro das horas. Quebre o molejo, agora. Destrua o Espaço”

Após o período Vargas com sua campanha da Marcha Para o Oeste, a região Sul do Mato Grosso encontrou no período Juscelino Kubitschek um novo fôlego de desenvolvimento. Em Mato Grosso Do Sul E Sua História: Em Perspectiva O Período Divisionista (1977-1998), dissertação apresentada à UEMS durante o mestrado em Ensino da História, Andréia de Arruda Machado relata que a política do “50 anos em 5” do governo Kubitschek

acentuou as políticas de interiorização do Brasil. Essa política trouxe novos elementos como a rodovia asfaltada que ligou Campo Grande a São Paulo dez anos antes de Cuiabá, então capital, evidenciando uma série de divergências entre as duas regiões, norte e sul, do então Mato Grosso uno. “Houve uma evolução desigual entre as duas regiões do Estado, proporcionando uma divisão territorial, muito antes de qualquer manifestação divisionista. A divisão foi uma consequência das diferenciações regionais que se deram desde seu povoamento, intensificadas com o passar dos anos”, explica Andréia de Arruda Machado. Graduada em Artes Visuais com Licenciatura Plena pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, especialista em Didática e Metodologia para o Ensino Superior, Morgana Duenha Rodrigues, aborda em seu projeto de mestrado em estudos de linguagens pela UFMS Identidade Regional E Pintura De Paisagem Em Mato Grosso Do Sul, uma exposição do contexto histórico e social que originou o estilo de pintura do Estado. Segundo Morgana Duenha, o processo divisionista de Mato Grosso em dois Estados diferentes está relacionado a movimentos rebeldes de coronéis sulistas que desde o século XIX se recusavam à submissão a capital Cuiabá. “Nas primeiras décadas do século XX terá continuidade em movimentos diversos e de forma mais expressiva durante a Revolução Constitucionalista de 1932”.

Até a década de 1940, a região Sul de Mato Grosso se via em flagrante diferença com relação às políticas desenvolvidas no então Estado uno, a região Sul permanecia em precariedade quanto a comunicação e o desenvolvimento de estradas. Ademais, mesmo se tornando a região mais populosa, não gozava de representatividade junto ao Estado que, limitava-se a enviar representantes cuiabanos a região sul. Para Morgana Rodrigues, todo esse quadro levou a uma expectativa de adesão por parte da população. “Delineado este quadro, havia a expectativa de que a separação fosse resultado de lutas populares reivindicatórias de uma profunda mudança política, na distribuição da receita pública ou mesmo nas trocas culturais. No entanto, o processo de criação do Estado foi de forma “pacifica”, observa a arte educadora. Conforme a mestra em ensino de história Andréia de Arruda Machado, ao longo dos anos essas divergências que remontam ao período coronelista da República Velha marcado, inclusive, por episódios de confrontos armados e até assassinatos de

lideranças divisionistas do Sul, sempre ressurgia de tempos em tempos. A divisão, tão almejada pela elite do Sul de Mato Grosso, entretanto, só irá chegar no final dos anos 1970. Esse contexto naturalmente repercutiu nas expressões artistas da região.

Bovinocultura: A Arte De Mato Grosso Do Sul

É inegável que o Estado se apresenta como celeiro de grandes artistas, desde sua formação no período do Mato Grosso Uno. Lígia Baís, Wega Nery, Ilton Silva, Jorapimo e Humberto Espíndola são alguns dos artistas plásticos locais premiados reconhecidos até mesmo no cenário internacional. Contudo, foi a partir da criação do Estado de Mato Grosso do Sul que os artistas locais se encontraram comprometidos com a busca de uma expressão que revelasse a identidade do sul-mato-grossense. Essa atitude, portanto, encontra-se estreitamente ligada ao movimento separatista e ao protagonismo assumido pelas classes ruralistas mencionadas nos capítulos anteriores. Dessa combinação de interesses irá emergir uma proposta de arte única do Mato Grosso do Sul que será apresentada no artigo A Produção Artística Contemporânea De Mato Grosso Do Sul: Resgate De “Memórias E Inven-Tações” Artísticas, do professor do curso de Artes Cênicas na UEMS, Marco Antônio Bessa-Oliveira. Nesse tratado, o autor discorre sobre as imposições de uma criação imagética cultural denominada bovinocultura. Segundo Bessa-Oliveira, a bovinocultura aparece no instante em que artistas locais são reconhecidos em eventos nacionais pelas artes caraterizadas pelas imagens de bois. “Ressaltando um certo ‘centro do Brasil’ como exótico na arte nacional. Um localismo, assim como foi o nacionalismo na produção cultural de 1980 para cá”, explica. Para o professor, a bovinocultura caracterizada pela insistência de alguns artistas em manter o boi em suas produções se deve a uma estrutura complexa. “Artistas que continuam insistindo na presença dos bois nas obras porque têm apoios estatais e privados e são apoiados porque representam esses discursos político-partidários com suas obras e também uma continuação desenfreada dos mesmos pressupostos movimentistas da arte europeia também em MS” Entrevistado para esse livro, Marco Antônio Bessa-

Oliveira analisa que essa estrutura já está enraizada na cultura local:

— A bovinocultura está e estará presente nas obras de Mato Grosso do Sul (seja pela presença literal da imagem do boi ou não), porque esta está inscrita na cultura local sul-mato-grossense. Faz parte da cultura bugra, xucra, entre outros termos sem sentidos pejorativos. Mas nesse caso, a inscrição é colocada por meio de “retratos” e “paisagens” biográficas (ou biogeográficas de cada sujeito local. Sem ser partidarista, mas identificação identitário-cultural). —, explica. — É possível dizer que as estruturas econômicas que implementam a bovinocultura no Estado agem como uma versão local da indústria cultural? —, questionei. — Sim, é possível dizer à medida que entendemos essa perspectiva a partir da ideia de manutenção de determinada característica (o boi) para manter outras (agronegócio e seus desdobramentos que mantêm a cultural econômica e agora política em MS). Mas a discussão acerca da indústria cultural, em certa medida, da minha perspectiva, precisa ser bem cuidadosa. Pois, de certo modo, qual cultura não evidencia uma atividade não visando angariar recursos também econômicos? De fato, o agro é (pop, tech é tudo em) MS. A frase “Arte aqui é mato! ”; pode ser literal aqui por motivos já discutidos por mim também. Aliás, qual é a indústria hoje que também não é cultural? A discussão demanda cuidado, inclusive, porque não pode ser ancorada por pressupostos muito retardados à cultura contemporânea. — Existe arte para além da bovinocultura no Estado? —, perguntei a Bessa-Oliveira. — Sim, claro, e muito certamente uma arte que é bovinocultura que é além do estado estatal. Mas essa arte ainda está por ser reconhecida pelas próprias pessoas do Estado. Enquanto tivermos formações profissionais que se atenham mais às artes europeias e estadunidenses como modos de produção, discussão e ensino de artes, menos essa produção que se caracterizaria “para além da bovinocultura” terá lugar na cultura do Estado, mas nem ela também será reconhecida pelas pessoas do Estado. Não estou falando de reconhecimento institucional, por isso critico as formações dadas. Essas fazem “bem” os seus trabalhos: vender imagens a fim de instituir um padrão identitário moderno para MS —, conclui o professor. Assim, segundo Bessa-Oliveira, a hegemonia da bovinocultura objetiva supervalorizar uma classe privilegiada da sociedade local associada à bovinocultura. Essa imposição engessa as

expressões artísticas locais na medida em que os espaços e as políticas de valorização são excludentes em relação à busca de outras estéticas e temáticas, apresentando-se como uma modalidade específica da indústria cultural, a indústria cultural da bovinocultura, contudo. E quanto a arte intuitiva, de cunho indígena da Conceição, os Bugres, tema de pesquisa na disciplina de Entrevista e Pesquisa Jornalística no curso de Jornalismo?; meditei.

Os Bugrinhos da Conceição

As primeiras aulas do professor Edson Silva na disciplina de Entrevista e Pesquisa Jornalística já indiciavam uma nova primeira oportunidade de abordar um assunto relativo ao tema que eu pretendia desenvolver no TCC, portanto, havia um sentimento de identificação. Este sentimento se confirmou na medida em que o professor incumbiu a turma de formar grupos para a realização de um trabalho prático ao longo do semestre: a realização de uma pesquisa jornalística de um dos seis temas proposto por Edson e, democraticamente, escolhido pelos grupos formados. Foi assim que, ao lado de Jenifer Alves, Felipe Dias e João Vitor Barbosa, formamos o grupo que terminou com a temática Mulher. Imediatamente, compreendemos a amplitude de assuntos que poderíamos abordar a esse respeito, sendo o mais comum que tomássemos o viés da violência e da discriminação salarial. Contudo, mais uma vez, tomei meu propósito sobre a cultura artística local como referência, sugerindo uma pesquisa sobre a importância da mulher para a cultura do Estado. Inicialmente, houve uma hesitação e até uma resistência. João Vitor, por exemplo, propôs que abordarmos o preconceito contra mulheres transexuais ou que falássemos sobre o pioneirismo de algumas mulheres em trabalhos vistos como de domínio masculino. Debelamos. Cada um expôs seus argumentos e ponderações. Por fim, acordamos que o gancho seria a importância das Mulheres para a Cultura do Estado. Mais tarde, na seleção de personagens, escolhemos seis, uma das quais, me reporto para este trabalho: Conceição dos Bugres. Destarte, era uma tépida tarde de sexta feira, do dia 18 de maio, às três e meia, quando Joseane Fátima Gaboardi, gestora de eventos da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, dispôs-se a interromper o trabalho, em meio a correria emergencial dos preparativos para o Festival da Cultura do Estado.

— Bom. Eu gostaria que me falasse sobre Conceição dos Bugres, sua obra e importância para a história do Estado. —, comecei após ativar o gravador do celular e deixá-lo sobre a mesa. Passando páginas de arquivos no computador, Joseane respondeu: — Eu fiz um resumo dela. Bem resumido. Tem bastante coisa. E também não tem, porque o cineasta Cândido da Fonseca fez uma matéria com ela em 1979. Segundo Joseane Gaboardi, em 1914 nasceu Conceição Freitas da Silva em Povinho de Santiago, Rio Grande do Sul. Descendente de indígenas, sua família encontrou em Mato Grosso do Sul o asilo para a perseguição que sofria por parte dos bugreiros — carrascos especializados em atacar e exterminar indígenas brasileiros sob paga de mandantes —, descendentes de europeus que cresciam na região. “Aqui residiu nas cidades de Ponta Porã e Campo Grande, onde faleceu em 1983”, relata a professora e escritora Maria da Glória de Sá Rosa no suplemento cultura do Correio do Estado publicado em 04 de outubro de 2014. “Viveu longos anos numa casinha de tábuas do Bairro Universitário, no espaço do desconforto da água do poço, da terra vermelha”, conta Maria da Glória de Sá Rosa. Mais tarde, mulher feita, residente na região do atual bairro Universitário na capital, Conceição de Freitas teve uma experiência mística que a faria autora da obra que levaria o rosto do sul-mato-grossense para outras regiões do Brasil e do mundo: Após uma revelação num sonho, teve uma inspiração numa tarde em que realizava tarefas costumeiras em sua casa, conforme relata Joseane. No primeiro semestre de 2018, época em que entrevistei Joseane para a matéria de Entrevista e Pesquisa Jornalística, soubemos que a Fundação de Cultura do Estado havia iniciado um processo para tornar os bugrinhos de Conceição patrimônio Imaterial de Mato Grosso do Sul. — É do ano passado. É que fizemos um levantamento no ano passado, porque os bugrinhos não são um patrimônio imaterial do Estado. Então fizemos uma abertura de registro para que se torne. — Um patrimônio imaterial? — Isso. Então, ele foi aberto, e eu fiz esse descritivo para o registro como um bem imaterial. —, respondeu.

Ao término da entrevista, Joseane imprimiu e entregou-me uma cópia do documento descritivo para registro de Bem Imaterial. Segundo consta no memorial, “conhecida e reconhecida nacional e internacionalmente como alta expressão de arte popular, pela criação ‘dos bugres’ por si só seria dispensável qualquer defesa dessa notável obra”. O registro seguia relatando que a criação, desenvolvimento e inspiração “dos Bugres”, com quase 40 anos, “merecem registro oficial por parte dos órgãos responsáveis do Poder Público, por perpetuar a história cultural e as raízes das mais variadas manifestações artísticas”. — Diz que estava no quintal da casa dela, e viu uma rama de mandioca, ela chama cepa de mandioca. E ali ela teve, como a gente olha para o céu, vê as nuvens e começa a encontrar características de rostos, de animais de alguma coisa. E penso que foi dessa maneira. Olhou para a cepa de mandioca e disse que parecia que aquela cepa estava olhando para ela. É como se tivesse uma pessoa olhando para ela, então... —, relatou-me Joseane. O fenômeno o qual a jornalista se refere não é muito raro. Conhecido como pareidolia facial, se caracteriza justamente pela capacidade de ver rostos em objetos do cotidiano. No caso de Conceição, esse incidente resultou numa realização criativa: O relato consta no documento logo após as citações de pesquisas realizadas no âmbito acadêmico. Segundo o texto, o momento de criação dos Bugres foi narrado pela própria Conceição no livro Artes Plásticas no Centro Oeste, de Aline Figueiredo, publicado em 1979: “Um dia, me pus sentada embaixo de uma árvore. Perto de mim tinha uma cepa de mandioca. A cepa de mandioca tinha cara de gente. Pensei em fazer uma pessoa e fiz. Aí a mandioca foi secando e foi ficando parecida com uma cara de velha. Gostei muito, depois eu passei para a madeira”, teria dito Conceição. Mestre em Letras pela Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD, Grazielli Alves de Lima, em seu trabalho de pesquisa Mulheres Artistas De Mato Grosso Do Sul: Interrelações E Pertencimento, observa que ao criar a obra que se tornaria ícone do Estado, Conceição partiu de uma experiência completamente alheia ao conhecimento acadêmico de arte. “A escultura de Conceição dos Bugres se torna ápice da cultura de seu Estado por se configurar como uma obra peculiar que sintetiza em figuras semelhantes a riqueza e a diversidade de um povo. A artista,

que nunca partilhou de estudos acadêmicos, imprime em suas obras um caráter cosmopolita. Conceição dos Bugres, que jamais havia saído dos limiares de seu quintal, elabora um contínuo de miniaturas que alcançam além-fronteiras, espalhando sua arte pelo mundo”. — Poderia se dizer que os bugrinhos da Conceição, tomados como ícones do povo sul-mato-grossense, fogem as imposições da bovinocultura? —, questionei o professor e doutor em artes visuais, Marco Antônio Bessa-Oliveira. — De jeito nenhum. Os “bugrinhos da Conceição” tornam-se “ícones do povo sul-mato-grossense” por definições institucionais im-postas. Mas, a partir do lugar que tenho pensado arte, essas esculturas (também característica estético-formal pré-definida pelos sistemas) são o retrato paisagístico (bugre, xucro, entre outros adjetivos) da cultura local sul-mato-grossense: indígena, paraguaia, boliviana, mineira, mato-grossense, paulista, carioca, entre tantos outros povos que circulam nesse local de/em fronteiras que tanto caracteriza a cultura de MS. Digo isso porque preciso te perguntar: qual é a forma dos “bugrinhos da Conceição” que não ilustra qualquer um desses povos diferentes? São as diferenças na própria obra que caracterizam essa diversalidade cultural de MS. Talvez, arrisco a dizer, um japonês não conseguiria evidenciar por meio da cultura japonesa tantas diferenças culturais. Não sei se me entende?! Esta indagação do professor Bessa-Oliveira parece vir de encontro ao que o documento Descritivo Para Registro De Bem Imaterial revela sobre os Bugres de Conceição: “são todos parecidos, mas nenhum idêntico um ao outro. Apesar da mesma posição de sentido, da cabeça reta e a pintura preta imitando os cabelos, os bugrinhos sempre cultivaram diferença”. Pesquisadora e escritora sobre a cultura e arte do Estado, a professora Maria da Gloria de Sá Rosa, descreve, no suplemento cultura do Correio do Estado o processo de feitura dos Bugres:

“Depois de modelados, cobertos com cera de abelha, os totens adquiriam vida própria, ao revelar na mais sensível das linguagens o talento da artista Conceição, que, sem frequentar escolas de arte, sem ter transposto outras fronteiras que as de seu quintal, tornou-se símbolo da cultura sul-mato-grossense, seu ícone mais significativo, marcado pelo gênio criador desenvolvido com humildade”, diz a professora. Segundo o documento, nas décadas de 1970 e 1980 Conceição tinha uma demanda grande de encomenda. Parte da fama

dos Bugres se deve ao artista plástico bastante premiado, Humberto Espíndola e a crítica e produtora de arte Aline Figueiredo, sendo ambos grandes descobridores e propagandistas da obra de Conceição. — E a procura pela artista, pela própria Conceição, aqui, é muita? —, perguntei a Joseane. — Olha. Eles ainda tinham algumas peças dela, em casa, a última peça que foi vendida dela, foi comprada no valor de sete mil reais. —, respondeu-me. Segundo a gestora de eventos da Fundação de Cultura do Estado, um dos filhos de Conceição, Mariano Neto, tem prosseguido com o trabalho legado pela mãe. Conforme o documento Descritivo Para Registro de Bem Imaterial, a obra de Conceição esteve presente em diversas exposições dentro e fora do Estado. Recentemente, o Museu de Arte de São Paulo, MASP, vem divulgando a exposição Conceição dos Bugres: tudo é da natureza do mundo, com os bugres sul-mato-grossenses da artista de origem indígena que deve permanecer até o dia 30 de janeiro de 2022. Mais uma vez, a cultura dos povos originários se sobressai como identidade dos sul-mato-grossenses como não deixou de ser nos. Ah, sim! Nossos festivais cantantes!

Os Festivais de Música

Participantes diretos do festival da Musica Brasileira de Campo Grande, a professora, escritora e pesquisadora da cultura local, Maria da Glória Sá Rosa, em parceria com o cineasta e jornalista, mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa no curso Ciências Políticas de Moscou, Cândido Aberto da Fonseca, que nos anos 80 assumiu o cargo de diretor executivo na Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, e, o cantor, compositor e instrumentista Paulo Simões registraram no livro Festivais de Música em Mato Grosso do Sul, os acontecimentos a cerca desses eventos. Denominada a capital econômica de Mato Grosso nos anos 1960, Campo Grande viveu nesse período a época dos festivais de música. Segundo Maria da Glória Sá Rosa relata, estes festivais foram realizados com o objetivo de aproximar os compositores, fazê-los conhecidos e, também, para saber que tipo de música se fazia na região. Assim, tomados pelo espírito dos festivais que ocorriam no eixo Rio-São Paulo, promovidos pela TV Record, o Clube Surian, que tinha como diretor Nelson Nachif, a

Aliança Francesa, na qual a diretora era a própria professora Maria da Glória Sá Rosa, e o Jornal do Comércio, dirigido pelo Padre Félix Zavattaro, se uniram em benefício desse evento. Segundo a professora Maria da Glória, o festival contribuiu para a fama de nomes até hoje importantes no cenário cultural artístico da região. “Esse festival, o primeiro de uma série, revelou nomes que se destacaram posteriormente no cenário artístico-musical do Estado, como Geraldo Espíndola, Paulo Simões, Rubens de Aquino, José Boaventura, Celito Espíndola, Paulo Simões, Grupo Acaba, Tetê Espíndola, Carlos Colman, Lenilde e Lenice Ramos, entre outros”, informa. Ao longo dos eventos, as manifestações artísticas da música se apresentaram com toda a sua diversidade, com a presença de canções tropicalistas, marcha-rancho, samba, sertanejo entre outras. Segundo Maria da Gloria, alguns artistas levaram ao palco uma síntese rural urbana, além de construções temáticas parnasianas e românticas. Também não faltaram músicas de protestos. O festival da TV Morena promovido logo após a divisão tinha o inconveniente de primar pelo interesse lucrativo, escolhendo como local de acontecimentos o ginásio da UFMS. Ademais, segundo os autores de Festivais de Música em Mato Grosso do Sul, havia também o financiamento do governo que induziu os jurados a valorizar especialmente as manifestações com temáticas regionais. “Kananciuê, do Grupo Acaba, era a música que mais claramente empunhava essa bandeira e, não por acaso, foi premiada com o primeiro lugar. De autoria de Moacir Lacerda e João Luiz Bittencourt, sua letra dicionariza diversos vocábulos tupis-guaranis, tornando-se de difícil compreensão para não-iniciados, o que explica sua pouca penetração popular”, analisam. O livro também traz diversas menções às interferências da censura nas canções dos participantes. “Mas o fato mais significativo, no tocante às letras apresentadas neste festival, foi a canalização da maioria dos autores para os temas românticos, como resultado da atuação da censura no período imediatamente posterior à edição do AI-5. Esse esvaziamento do festival, como um dos raros espaços abertos ao debate de novas ideias, causa naturalmente a extinção deste ciclo, marcado pela participação ativa da comunidade”. As músicas, como linguagem das artes sul-mato-grossenses, não seriam as únicas que passariam por essa experiência. — “Na carência de um pensamento que refletia nossas contradições e conflitos, a música e o teatro foram nossas úni-

cas formas de expressão artística que sintetizaram isso no seu conjunto. ” —, sintetiza a professora Maria da Glória de Sá Rosa durante a entrevista concedida a Cândido da Fonseca para o livro Festivais de Música em Mato Grosso do Sul.

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