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Capítulo Quinto
Capítulo Quinto:
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ra uma manhã comum de aula em 1999. A professora
ELourdes aplicava sua matéria de Literatura para a sala. Os grupos formados por colegas a um canto da porta ouviam a professora compartilhando assuntos comezinhos entre si, dissimuladamente. Os assentados na frente a ouviam com atenção, os do meio quase não escutavam, conversando entre si em um muxoxo constante que a obrigava a chamarlhes atenção intermitentemente. Os do fundo seguiam o mesmo caminho, embora mais contidos. O meu grupo, assentado em seis carteiras juntadas de dois em dois a partir da mesa da professora, permanecia concentrado na explicação quando alguém bateu à porta:
— Professora... A prefeitura mandou um ônibus. Você poderia escolher dois dos alunos mais comportados e desenvolvidos na disciplina para ir até o teatro? —, explicou, sucinta, a coordenadora pedagógica Veronice Rossato. Lourdes voltou-se para a sala, correndo os olhos na
turma:
— Geovani e Elaní. Vocês podem ir. —, disse a professora, voltando-se para o meu grupo. Assim, um tanto acanhado, levantei-me com Elaní e retiramo-nos, com nossos pertences. Na entrada da escola, encontramos um ônibus da aviação Andorinha estacionado onde outros alunos de outras salas, selecionados em duplas entravam em busca de acento. Era a segunda vez que eu recebia essa oportunidade. Na primeira vez havia assistido a um show de Geraldo Espíndola, com seu repertório de polca rock. O que seria agora? Indagava-me, ao lado de Elaní. O fim do mistério chegou meia hora após, quando, depois de um engano, o motorista que havia se dirigido ao palácio da Cultura no Parque dos Poderes, mudou de rota e estacionou em frente ao Centro Cultural José Otávio Guizo onde, junto aos outros alunos, Elaní e eu fomos encaminhados ao Teatro Aracy
Balabanian — que, obviamente, homenageia sua atriz homônima nascida na capital sul-mato-grossense — para assistir Um Fantasma Para Duas Mulheres. A essa experiência somou-se o esforço da professora Adriana que, sem obter transporte e autorização para levar a sala para acompanhar os bastidores de uma produção teatral in loco, conseguiu vídeos de atores locais nos momentos de ensaio e decoração de texto, os quais apresentou à turma numa manhã de aulas na sala de vídeos. Um terceiro elemento eram as atividades das aulas de História, onde, pela primeira vez, me encontrei num grupo de teatro. Como o professor José Carlos propunha atividades práticas em grupos, podendo ir de jogral, apresentações de músicas ou teatros relativos aos temas da disciplina, o envolvimento artístico fazia parte do aprendizado. Naquele tempo, por não poder participar das aulas de Educação Física devido à minha cardiopatia congênita, aproveitava esse período para pesquisar os assuntos da matéria afim de construir o texto dramático e orientar o grupo quanto ao figurino e cenário. Assim, desde o início, ficara claro que o teatro não se restringia à mera feitura de texto tirado exclusivamente da imaginação com o trabalho de decoração. Até o momento de apresentação, a produção de uma peça exige muito trabalho, conforme verifica-se nos relatos dos artistas locais.
Um Direito Humano
No capítulo A Comissão de Direito das Artes do ensaio O Direito das Artes, Uma Visão Jurídica Da Cultura, produzido pela Comissão do Direito das Artes da Ordem dos Advogados de São Paulo, OAB/SP, a jurista Cindia Regina Moraca explica a relação das artes com as modalidades do Direito. Essas relações passam pelos filtros civilizatórios ou desenvolvimentos sociais que estabelecem as interações humanas. De acordo com Cindia Regina Moraca, desse processo social resultam as relações de usos, hábitos, conquistas e direitos que também afetam o progresso da cultura e das artes, influenciando o pensamento, as legislações e as práticas legais sobre esse setor. “São esses processos, sua origem histórica e seus impactos no cotidiano da sociedade que se tornaram objeto de estudo do Direito às Artes e do Direito da Arte, que, de forma complexa, encampam diversas modalidades das ciências jurídicas, em especial os Direitos Humanos, incluindo, mas não se limitando a essas disciplinas, o Direito Civil e o Direito Criminal, os Direitos Autorais e Patrimoniais, a Propriedade Industrial e
Intelectual, o Direito de Família e das Sucessões, entre tantos outros nichos, específicos e derivados, que compõem o espectro estudado e discutido pelo Direito”, explica. No período colonial, o Brasil manteve certa legislação a respeito das manifestações públicas. A partir da chegada da corte em 1808 as leis que tratavam de arte e cultura ganharam uma atenção maior. Ao longo dos períodos históricos do país, as Leis se sucederam umas às outras, desde o período Republicano à abertura democrática com o estabelecimento da Constituição Federal de 1988. Não obstante, é especificamente no artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que o direito às artes ganha sua defesa como atividade fundamental para o ser humano. Segundo o artigo, deve ser garantido a toda pessoa o acesso à expressão artística e cultural: “1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios”, e, “2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja autor”. Com uma longa história de engajamento nos movimentos sociais e fóruns de representatividade artística no Estado, o ator, produtor e diretor do grupo de teatro Urgente Cia, Vitor Hugo Samudio, mencionou a complexidade do tema em sua entrevista para o radiodocumentário sobre cultura no Laboratório de Radiojornalismo II: — Olha. É um debate bem complexo, né, porque a gente entende, assim, primeiro que a cultura é um direito do cidadão. Dentro dos direitos universais, a cultura é um dos pontos que são essenciais para o indivíduo, para o seu desenvolvimento. Porque quando se fala em cultura, a gente não fala só de arte. Acho que é importante sempre frisar muito isso que é algo muito maior. A arte, na verdade, as linguagens artísticas são apenas uma fatia da cultura. A cultura, na verdade, é como a gente se veste, o que a gente come, o nosso sotaque, toda a nossa convivência em sociedade. Então tudo isso entra em um aspecto cultural. Na pesquisa Direitos Culturais E Direitos Humanos: Uma Leitura À Luz Dos Tratados Internacionais E Da Constituição Federal, do advogado especialista em Direito Processual Civil, José Estênio Raulino Cavalcante — já apresentados no primeiro capítulo —, o jurista informa que o artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos é reforçado nos artigos 13 e 15 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966. Em atenção a essas normas, as nações comprometidas com tratado dos Direitos Humanos — entre elas, o Brasil — devem ater-se ao fato de que o direito da arte diz respeito à uma regulamentação jurídica da atividade artística.
Desde meados da década de 1970, a UNESCO vem promovendo instrumentos relevantes para pensar os direitos dos artistas como a Recomendação sobre o Estatuto do Artista em 1980, e a Convenção da UNESCO sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, de 2005. “A Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas, proclamada num encontro realizado em 1886, foi o primeiro documento a consagrar universalmente os direitos dos autores sobre as suas obras”, relata o advogado José Cavalcante em seu trabalho de pesquisa. Segundo o Relatório sobre os Direitos Fundamentais 2017: Pareceres da Agência Europeia Para Direitos Fundamentais, em 2016 a União Europeia e os Estados-Membros trabalharam no sentido de reforçar a proteção dos direitos fundamentais, apesar de haver tomado algumas medidas que ameaçaram comprometer essa proteção. “O artigo 21.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia proíbe a discriminação em razão da religião ou convicções. O artigo 22.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia prevê ainda que a União respeite a diversidade cultural, religiosa e linguística”, reitera a Agência Europeia. O Relatório também lembra que o tema da cultura e das artes está presente no Direito Penal Internacional, adotado em 17 de julho de 1998, em Roma, na Itália e que... Isso. Embora tenha ocorrido uma série de dificuldades com longos embates políticos com relação ao documento, o tratado terminou validado pelo Brasil. Deveras, por meio do Decreto Nº 4.388, de 25 de setembro de 2002, o então presidente Fernando Henrique Cardoso promulgou o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional aprovado pelo Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo no 112, de 6 de junho de 2002. De acordo com o Direito Penal Internacional, e as leis do conflito armado, em algumas circunstancias, ataques a locais de importância cultural ou itens culturais, são reconhecidos como crimes de guerra. Esse Estatuto do Tribunal Penal Internacional traz no inciso IX de seu artigo 8º a definição do que é considerado crime de guerra: “Dirigir intencionalmente ataques a edifícios consagrados ao culto religioso, à educação, às artes, às ciências ou à beneficência, monumentos históricos, hospitais e lugares onde se agrupem doentes e feridos, sempre que não se trate de objetivos militares”, afirma o texto. Outra garantia jurídica brasileira às artes, está presente na Constituição Federal de 1988, que confere o direito à liberdade de expressão no artigo 5º. “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Decorre desta legislação que as ameaças à liberdade artística por meio de leis de censura, difamação, segurança nacional, blasfêmia,
manutenção da “moral e dos bons costumes” estão sujeitas a inconstitucionalidade por entrar em flagrante contradição com a Constituição Federal. Especialistas em gestão cultural pelo Centro de Pesquisa e Formação do Sesc-SP, o advogado Albervan Reginaldo Sena; a gestora cultural, assessora de desenvolvimento social, Elaine Pereira Aguiar, o ator, coordenador de produções, Igor Augustho Mattos Kijak, e a atriz, professora e produtora, integrante do Grupo de Risco, Tamara Batista Borges, realizaram a pesquisa Censura, Teatro E Golpe: Um Panorama Das Artes Cênicas No Brasil Pós-2016. Publicado na Revista Do Centro De Pesquisa E Formação, edição de julho 2021, esse trabalho dos especialistas em gestão cultural revela que, desde o período colonial, os poderes estabelecidos se mostraram mais interessados em controlar o discurso artístico por uma via moralizante que, de fato, estimulá-los, com ressalvas pontuais ao longo da História do Brasil. “Como se vê, a prática censória por parte do Estado brasileiro é, historicamente, maior do que a prática democrática. Durante a maior parte da história nacional, não foi a liberdade de expressão a máxima, ao contrário disto, a produção criativa nacional esteve quase sempre sob contexto censor, estando este, na maior parte das vezes, regido por dinâmicas morais, religiosas e culturais”, concluem os especialistas. Embora esse tema da censura prévia e das restrições impostas às artes sejam comumente relacionada a períodos históricos como o da Ditadura Militar, há nos dias contemporâneos uma série de fatos que suscitam debates sobre uma perseguição ideológica e política das artes.
Salvem o Amanhã do Anteontem!
Ao longo da década de 2010, os produtores de arte de Mato Grosso do Sul vieram a público em várias ocasiões reivindicando direitos ou manifestando descontentamento com as políticas sobre a arte e a cultura. Após a queda do governo Dilma Rousseff do PT, em 31 de agosto de 2016, uma série de eventos, com destaque na imprensa, apontava para uma crise da arte no país com repercussão em Mato Grosso Do Sul. De fato, um ano antes do impeachment da presidenta Dilma Roussef, falavase em uma reforma ministerial que poderia impactar o Ministério da Cultura, MinC, entre outras coisas, pela diminuição da verba destinada a esse setor. No dia 18 de maio de 2016, o presidente interino extinguiu o Ministério da Cultura, MinC e o incorporou ao Ministério da Educação com status de Secretaria a cargo do ministro Mendonça Filho, (DEM-PE), ligado à agroindústria e a iniciativas empresariais e sem nenhuma atuação com a cultura.
Esta atitude causou uma onda de protestos dos trabalhadores da cultura em todo o país. Em Campo Grande, os artistas tomaram o prédio do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, conforme recorda o ator e diretor do Urgente Cia, Vitor Samudio: — A questão da ocupação do IPHAN foi por conta disso, na verdade. Foi quando a comunidade artística, não só daqui, não só do local, mas do Brasil inteiro se rebelou contra o ato, na ocasião, do presidente em extinguir o Ministério da Cultura e nós, artistas e fazedores de cultura, compreendendo a cultura como algo essencial em que aquilo não poderia acontecer. Porque embora o Ministério não vá garantir avanços para a cultura, mas na dimensão simbólica, ele é importante porque você mantém a cultura no primeiro escalão. Com a repercussão negativa da extinção do MinC, Michel Temer (então PMDB, hoje MDB), voltou atrás três dias depois anunciando, ainda no sábado, dia 21 daquele mesmo mês, a volta da pasta. Na segunda-feira, 23 de maio de 2016, o governo Temer recriou o MinC sob o comando do diplomata Marcelo Calero, que havia ocupado a secretaria da cidade do Rio de Janeiro desde o início de 2015. O setor cultural pôde respirar com alívio, embora por pouco tempo. Isso porque, uma vez eleito em 2018, o governo de Jair Messias Bolsonaro (então PSL, atualmente sem partido) extinguiu o MinC em 2019, criando a Secretaria da Cultura, pertencente hoje ao Ministério do Turismo. Sucedeu-se então uma série de escândalos ligados a uma verdadeira dança de cadeiras, começando pelo primeiro secretário da pasta o dramaturgo Roberto Rêgo Pinheiro, conhecido pelo nome artístico Roberto Alvim. Elogiado por Bolsonaro, Alvin publicou na noite do dia 16 de janeiro de 2020 um vídeo onde faz um discurso diretamente baseado em Paul Joseph Goebbels, um político alemão e Ministro da Propaganda na Alemanha Nazista entre 1933 e 1945. Tal discurso, manifestava o desejo de cercear a produção artística e cultural brasileira sobre os moldes ideológicos da direita. Após a repercussão negativa internacional, Alvin foi substituído pela atriz direitista Regina Duarte, que escreveu que que já em 2017 havia sido favorável à extinção do Ministério da Cultura. Após uma série de polêmicas por falas de Regina que negavam os crimes do regime militar e diminuíam a importância do número de mortos pela covid-19, Bolsonaro a removeu e, no dia 19 de junho de 2020, nomeou o ator Mário Frias como novo secretário especial de Cultura. Embora seja o terceiro ocupante do cargo em menos de um ano, Mario Frias, assim como seus antecessores, segue fiel à pauta negacionista e de viés ultraconservador do governo. — O Ministério da Cultura foi resumido a uma secretaria
especial de cultura. O que para a gente é lamentável, mas a gente tem também essa política em que o atual governo hoje, não dá a mínima prioridade para a cultura de uma forma em geral. Pelo contrário. A gente faz a leitura de que ele percebe a cultura de uma certa forma como uma inimiga. O que é lamentável, porque a cultura não tem que ser lida dessa forma, não tem que ser trabalhada dessa forma, já que garantir o acesso e a produção cultural às vezes quer dizer uma libertinagem ou. Enfim. Os setores mais conservadores eles conseguem fazer essa leitura de que é algo que pode ser ruim. Mas, na verdade, a essência da arte é essa. É a liberdade. Então, assim, se a gente não conseguir garantir a liberdade de expressão artística em um país, realmente acabamos fadados a algumas questões muito retrogradas, a questões muito complicadas em vários aspectos, e não só o aspecto artístico, não, são vários outros. —, declarou o ator, produtor e diretor da Urgente Cia, Vitor Samudio, durante a entrevista para o radiodocumentário. A tentativa e a posterior extinção do MinC com as sucessivas polêmicas causadas pelo discurso ideológico ultraconservador contra as artes, entretanto, atingiria outras instituições pelo país afora, incluindo Mato Grosso Do Sul. Segundo os especialistas em gestão cultural pelo Centro de Pesquisa e Formação do SescSP, o impeachment que derrubou Dilma Rousseff da presidência marcou o início de um novo processo de censura e perseguição ideológica e política às artes no país. “Golpe de 2016 — que culminou na queda da presidenta Dilma Rousseff (PT) — marcou a retomada da censura pública à produção artística nacional. Paralelamente a ele — e a seu favor — foram cada vez mais comuns as manifestações populares e políticas em favor de supostos bons costumes, valores tradicionalistas e conservadorismo. Essas pautas, em ascensão após 2016 e bastante similares às manifestações pró-golpe de 1964, encontraram força política no então candidato à presidência Jair Bolsonaro, enquanto Michel Temer ocupava o cargo de presidente interino, com poucas realizações significativas, ofuscadas pelo processo eleitoral já anunciado”. Esse quadro de retrocesso também é apontado no capítulo Os Direitos Culturais nas Constituições Brasileiras do ensaio O Direito das Artes, Uma Visão Jurídica Da Cultura, produzido pela Comissão do Direito das Artes da Ordem dos Advogados de São Paulo, OAB/SP. No texto, o advogado especialista em Direitos Culturais, mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP, Rodrigo Guimarães Buchiniani observa que, atualmente, o Brasil vive um paralelo com o período do regime ditatorial com ataques às manifestações artísticas até mesmo no âmbito das entidades cuja missão e valores deve ser a luta pelos direitos culturais. “Certo é que, nos últimos anos, temos visto como esses direitos são frágeis e
como a população em geral, os artistas e os coletivos vêm sendo silenciados em suas manifestações culturais. O preconceito, o conservadorismo e o desconhecimento da importância da cultura e da arte como agentes de educação são os principais motivos que vêm dizimando a história cultural brasileira e principalmente, o acesso às políticas públicas de fomento e incentivo à cultura e às artes”, afirma o jurista que integra o Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, IBDC, e é membro efetivo da Comissão de Direito das Artes da OAB/SP. De fato, é possível observar, a partir da segunda metade da década de 2010, um debate constante e polarizado sobre a veracidade dos crimes cometidos pelo regime ditatorial e de suas formas de política adotadas nas áreas de segurança, saúde e educação. Até mesmo os direitos humanos entraram na berlinda. Pouco a pouco, o saudosismo da era militar tomou rumos mais concretos no cenário político, causando apreensão sobre o futuro. Segundo os pesquisadores de Censura, Teatro E Golpe: Um Panorama Das Artes Cênicas No Brasil Pós-2016, o quadro de ataques à arte pelo Brasil encontrou em Bolsonaro seu maior expoente com a extinção do Ministério da Cultura, a reformulação da Lei Rouanet e instabilidade da pasta, além da revisão e cancelamento de patrocínios e estímulos concedidos às produções artísticas por entidades estatais. “Eleito em 2018 e empossado em 2019, Bolsonaro deu sequência ao seu discurso eleitoral, atendendo às demandas do conservadorismo políticosocial que o elegeu. O presidente colocou em prática uma série de ataques à classe artística e às políticas públicas de incentivo à cultura”. No segundo semestre de 2018 — período das eleições presidenciais — os artistas da capital sul-mato-grossense entrevistados para a matéria Censura Nas Artes, da 1ª edição da Revista Laboratório da disciplina Jornalismo de Revista ministrada pelo professor Felipe Quintino, revelaram grande apreensão com o futuro do setor cultural artístico a partir da ascensão de Bolsonaro e dos ataques às expressões artísticas por ele encampados, além de sua reiterada negação dos crimes cometidos pelo regime ditatorial: — Atualmente há um grupo de pessoas dizendo que os órgãos públicos, como as escolas, o sistema de saúde, e os programas sociais, além da segurança, funcionavam no militarismo. E que também havia respeito com os índios, negros, as mulheres, enfim, a atual minoria. Você concorda, Cristina? A sua vivência faz coro a essas afirmações? —, pergunto à dramaturga Cristina Mato Grosso. — Não. Para começar, não havia liberdade para questionamento ou construção de projetos, em quaisquer áreas. —, respondeu-me de pronto.
— As pessoas que demonstram saudosismo, dizem que era uma época mais tranquila, de segurança em relação à criminalidade. Você concorda? —, interrogo o cineasta Mhiguel Horta.
— Exatamente como está acontecendo hoje. Tem uma classe que é conservadora. Essa classe conservadora, classe média, como dizem alguns, sociólogos aí, bem batem nessa tecla, é exatamente isso mesmo. A classe média, por exemplo, você é filho de um militar, meu pai, ele ganhava bem, em casa tinha empregada, estudava em colégio particular. Eu vou reclamar do que? Só que eu tinha horário para dormir, horário para acordar, horário para estudar, eu não podia receber gente em casa, entende. Não adianta nada você ter tudo. Por exemplo, as famílias militares compravam fusca, tinham seu carro, na época que apareceu o fusca ou outro carro mais elegante, mais chique. Na verdade, eles imitavam aquele consumo norte americano, a pessoa com a casa, com o carro, a mulher cheia de eletrodomésticos. Tem muitos filmes e comédias que satirizam isso. A família militar era enorme e tinha muita gente conservadora que frequentava a igreja, o povo que só pensava em prosperidade, ele não queria saber de comunista, — relata o cineasta. Segundo Mhiguel Horta, assim como nos dias contemporâneos, já naquele período havia um sistema de difusão de falsas verdades no sentido de impor terror por uma corrente ideológica de esquerda ou, até mesmo, aos movimentos progressistas e sociais: — Outra coisa que havia na época, que era muito, igual como fazem hoje pelo WhatsApp, “é o seguinte, comunista come criancinhas”, “comunista não acredita em Deus”. Foram coisas que eu aprendi com 16 anos de idade. Não acredita em Deus. Aí você chega para um conservador e fala, nós não acreditamos em Deus e o cara tem um choque, ele cai, ele tem uma síncope, ele tem um enfarto e era isso. Você não podia falar que não acreditava em Jesus, que não acreditava em Cristo, porque senão você era comunista. Perante às disseminações de fake news por parte dos ultraconservadores, a dramaturga Cristina Mato Grosso previu a onda de decretos de sigilos sobre as ações do novo governo Bolsonaro ao recordar que o regime ditatorial investiu em propagandas que mascararam a realidade econômica e social com altos índices de inflação e aumento da pobreza durante o período, enquanto se criavam formulas para incutir um patriotismo alienador: — O caldeirão fervente da comoção social não pode se resolver... A Ditadura mascarava tudo. Até mesmo fomos obrigados a estudar o livro Desafio Brasileiro, o qual citava o
Brasil como país abençoado, nivelado, sócio economicamente, culturalmente cordial e bondoso, riquíssimo por todos os ângulos. Quiseram na época, imitar o livro Desafio Japonês. Esporte era zero. Só o futebol vingou porque dava amparo à cegueira do povo em relação ao que acontecia. Devo dizer que ela veio, agora, mais forte.... Não seria a hora de uma autoinvestigação na leitura de Ensaio sobre a Cegueira? Ironicamente, o exemplar que tenho em mãos, comprado na Fundação Saramago de Lisboa, vem com a caligrafia de Chico Buarque. —, reflete Cristina. O cineasta Mhiguel Horta observa que os discursos dos ultraconservadores contemporâneos indicam o interesse de recuperar a estrutura social normalizada da época ditatorial que permitia uma hierarquia social onde os mais abastados assumiam uma liberdade maior na exploração dos menos favorecidos sem questionamentos aos abusos que praticavam: — Então para essa grande massa conservadora que vai à missa, que vai aos cultos, que a filha está na faculdade, que o filho está estudando no melhor colégio, que o papai trabalha no governo do Estado. Analise o número de pessoas que trabalham no governo do Estado que derivam no governo federal. Por exemplo, antigamente era chique o cara trabalhar no Banco do Brasil, o banco do Brasil é uma coisa federal. Então, quer dizer, você tinha uma interdependência dessas pessoas por causa do dinheiro, por causa do salário, porque eram pessoas ligadas à classe conservadora, e os menos favorecidos dependiam deles. Por exemplo: toda família conservadora e classe média tinha uma empregada, e o pessoal pobre trabalhava. Em casa tinha empregada. Ou seja, tinha uma pessoa para lavar a louça, fazer a comida, está entendendo? Você podia agredir a empregada, xingar. Tudo isso rolava no tipo de comportamento do meio autoritário que os pais passavam para os filhos. Era ordem e progresso ao pé da letra. Para a historiadora Suzana Arakaki, parte da responsabilidade sobre a onda conservadora recaí na ausência de um ensino que negligencia as ações do regime militar: — Muitas pessoas, por desconhecimento das ações de repressão ocorridas na ditadura militar apoiam o regime. E nisso a educação tem responsabilidade ao não conseguir furar a barreira do silêncio e da sensibilidade que o tema impôs. Essas pessoas que apoiam o governo, veem a ditadura como vitória sobre o comunismo, mesmo sem saber do que se trata. Com um presidente que tem como herói um militar torturador, essas pessoas se veem representadas. —, explicou-me a historiadora Susana Arakaki. De acordo com os pesquisadores de Censura, Teatro E Golpe: Um Panorama Das Artes Cênicas No Brasil Pós-2016, existem semelhanças entre o contexto dos ataques à arte pós
impeachment de Dilma Rousseff e o estabelecimento do regime militar. “Em ambos, a base fundamental do movimento são pensamentos e valores religiosos, certa aversão ao comunismo e o não reconhecimento”, observam. Para Mhiguel Horta, em seu devaneio de alcançar o status quo das elites milionárias, a classe média foi o artífice dos eventos que culminaram na queda do governo Dilma Rousseff e na polarização política do Brasil, com o saudosismo da exploração de classes sem as restrições dos direitos alcançados por trabalhadores e minorias historicamente marginalizadas: — É uma classe enorme. É um povo enorme. O que derrubou a esquerda no Brasil foi a classe média, entende? Foi isso, sem a menor dúvida. Eles não têm sonhos, eles não têm nada não, eles querem imitar os ricos e ponto final, não querem que nada incomode. —, afirma o cineasta. De acordo com os pesquisadores de Censura, Teatro E Golpe: Um Panorama Das Artes Cênicas No Brasil Pós-2016, depois do impeachment e com a popularidade e a ascensão da extrema direita representada por Bolsonaro, tornaram-se recorrentes na imprensa manchetes que reportavam um possível retorno da censura por parte do Estado. “Elas noticiavam, de modos distintos, diversos casos de cancelamento de espetáculos teatrais em todo o território nacional, principalmente por empresas estatais federais patrocinadoras ou apoiadoras das produções. São marcantes, nos cerceamentos noticiados, as similaridades estéticas, temáticas e dramatúrgicas entre as criações que coincidem com temas sensíveis aos discursos sociais defendidos pela autointitulada maioria conservadora e defensora dos costumes tradicionais e, consequentemente, pelo então recém-empossado presidente da República”, descrevem. Inaugurada em meados de agosto e prevista para ficar em cartaz até 8 de outubro do mesmo ano, o fechamento da mostra Queermuseu em Porto Alegre no dia 09 de setembro de 2017 estimulado pelo Movimento Brasil Livre, MBL, é um dos exemplos desses ataques ultraconservadores. Nas redes sociais, o MBL alardeava que uma exposição de arte contemporânea em Porto Alegre fazia apologia à pedofilia, zoofilia e promovia a blasfêmia contra símbolos católicos causando uma onda de protestos contra a exibição do Queermuseu. Contando com mais de 270 obras sobre a temática LGBTQIA+, o evento foi cancelado pelo Santander Cultural. Em setembro de 2019 a produtora O2 Filmes noticiou o adiamento da estreia do longa Marighella, dirigido por Wagner Moura, previsto para o dia 20 de novembro do mesmo ano em comemoração ao mês da consciência negra. Segundo a produtora, a Agência Nacional de Cinema, Ancine, barrou o pré-lançamento com a justificativa de que o filme “não cumpriu os trâmites
exigidos”. A esse episódio somou-se, também, a tentativa de cancelamento de A Vida Invisível, dos livros LGBTQIa+ na Bienal do Rio, sob acusação — infundada — de que livros impróprios para menores de idade estariam à venda. Tal acusação partiu da prefeitura da capital carioca cujo prefeito à época era o aliado de Bolsonaro, Marcelo Crivella, que ameaçou censurar os exemplares do gibi Vingadores - A Cruzada das Crianças, por conter imagens de um beijo gay. Na capital de Mato Grosso do Sul, essa onda de ataques veio por meio dos deputados estaduais Coronel David (sem partido), Paulo Siufi (MDB) e Herculano Borges (Solidariedade), que se dirigiram até a Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente, DEPCA, na manhã do dia 14 de setembro de 2017, após receber a imagem da tela Pedofilia, da artista Alessandra Cunha. Integrante da exposição Cadafalso, a obra onde uma criança aparece entre dois homens nus, pretendia denunciar e provocar reflexões sobre os abusos sexuais praticados contra crianças e adolescentes, mas foi acusada pelos três deputados de incitar a pedofilia e de ferir “os bons costumes”. Naquele mesmo dia, acompanhado dos três parlamentares, o delegado da DEPCA, Paulo Sérgio Lauretto, foi ao museu com policiais que lacraram e retiraram a tela do museu. No dia seguinte, a obra foi devolvida e recolocada em uma das paredes do Museu de Arte Contemporânea, MARCO após a celebração de um acordo com o secretário de Cultura e Cidadania de Mato Grosso do Sul à época, Athayde Nery, que se comprometeu a reclassificar a faixa etária da exposição para 18 anos.
Apesar das justificativas dos deputados de que haviam “zelado pelos bons costumes”, a ação teve repercussões negativas e acusação de censura por parte de entidades ligadas à cultura e arte, de partidos políticos e até mesmo das instituições do Direito. Assim, no dia 16 de setembro de 2017, a associação de magistrados Juristas pela Democracia de Mato Grosso do Sul publicou uma carta aberta de repúdio à apreensão da obra Pedofilia. “Os parlamentares estaduais e o delegado da DEPCA viram uma obra de arte que expressava nitidamente uma denúncia da violência machista e da pedofilia como apologia à pedofilia! Em vídeo que teve ampla repercussão, o delegado responsável pela apreensão chegou ao descabimento de afirmar que o quadro incentiva o crime de estupro de vulnerável e induz pedófilos à satisfação da lascívia, referindo-se de modo indevido ao museu como local do crime”, critica a associação dos magistrados estaduais. Em novembro de 2019, durante a gravação do radiodocumentário sobre a cultura do Estado no Laboratório de Radiojornalismo II, questionei o produtor da Urgente Cia, Vitor
Hugo Samudio, sobre a apreensão da obra no MARCO: — Olha, se a gente for analisar no aspecto das ocupações, da ocupação do IPHAN, da questão da censura da obra da artista, no caso do MARCO, naquela exposição, a gente percebe, assim, que na verdade, ao mesmo tempo em que a gente consegue uma evolução e um desenvolvimento no aspecto, não só dos artistas, mas numa questão mesmo da sociedade, das pessoas enquanto pessoas, que percebem a cultura como algo importante, também, do outro lado, a gente nota um caminho do avesso, o contrário disso, que é questão do conservadorismo, que é a questão de pessoas que não compreendem a liberdade que o artista ou que a arte tem, levarem isso para uma questão de ofensa. Esse episódio da tela que foi retirada do MARCO foi um episódio extremamente arbitrário onde deputados foram lá junto com a polícia e retiraram uma tela sem ao menos tomarem conhecimento do que aquilo comunicava, qual era o sentido daquela obra. A gente percebe que há os extremos. Há os extremos, assim, de um lado e de outro. E muitas vezes isso acaba se chocando. Para o Juristas pela Democracia de Mato Grosso do Sul, a ação do delegado e dos deputados configurou abuso de autoridade e feriu a Constituição Federal e a Declaração Universal Dos Diretos Humanos ao violar a liberdade de expressão artística. Ademais, segundo a associação dos magistrados, não há na obra de Alessandra Cunha qualquer elemento que implique numa tipificação penal de apologia ao crime. “Para coroar o sem número de abusos, violações e absurdos, ainda ameaçam incluir a artista no Cadastro Estadual de Pedófilos, outra excrescência produzida pela maioria do legislativo estadual, bem como instituir censura prévia, ou seja, a obrigatoriedade de que seja fornecida anteriormente lista das exposições previstas por determinado período para que seja possível averiguar o conteúdo de cada uma delas”, denuncia a carta dos juristas estaduais. De acordo com os pesquisadores de Censura, Teatro E Golpe: Um Panorama Das Artes Cênicas No Brasil Pós-2016, as práticas de censura ocorridas com a ascensão de Bolsonaro encontram na Constituição Federal de 1988 e no Supremo Tribunal Federal uma barreira que procuram burlar com uma falsa legalidade. “Como forma de driblar as proteções constitucionais e a fim de reinstaurar a censura como prática, as instituições públicas passam a estabelecer novos métodos, “fantasiados” de legalidade. Para isso reinventam os chamados critérios de curadoria, atacando as obras nas fontes de financiamento e estímulo às produções. Tradicionalmente, no país, grandes empresas — muitas delas estatais federais — configuram-se importantes fontes de financiamento de projetos culturais”, afirmam. Deveras, no artigo 216 da Constituição Federal é
garantido o direito à cultura pela obrigação do Estado em assegurar o patrimônio histórico, artístico, cultural e ambiental. “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagem”, regulamenta a Lei.
Essencialidade da Cultura Artística na Educação
Em Teatro Num Fazer Pedagógico, ao relatar sua pesquisa sobre a ação do teatro nas quatro últimas séries do Ensino Fundamental na Rede Municipal de Educação de Campo Grande, a pedagoga Amirtes Menezes de Carvalho e Silva destaca uma compilação sobre a importância da arte no desenvolvimento de capacidades humanas, como a interação social segundo as professoras da Rede Municipal de ensino, REME. “Na abordagem inatista, a atividade teatral visaria ao desenvolvimento e ao aprimoramento das capacidades intelectuais, tais como espontaneidade, imaginação percepção e o relacionamento social, como também o conhecimento e a qualificação das possibilidades do corpo e da voz, estimulação da percepção plástica dos gestos, dos movimentos e da postura. Esta concepção de teatro está baseada na visão de que a educação consiste em desenvolver as habilidades inatas em todo ser humano, para melhor adaptação do homem ao seu grupo social”, explica. Assim, tomando o teatro como um instrumento social e histórico em sua pesquisa, Amirtes Carvalho observa que as atividades lúdicas de cunho artístico na Rede de Educação Municipal da capital exercem função de instrumento de correção de personalidades socialmente retraídas. “A função do teatro nesta concepção educativa serve para a liberação das idiossincrasias dos aspectos sociais para que a criança, apoiada e protegida, possa assumir seu papel na sociedade e executálo sem dificuldade, ou seja, na escola o teatro vem a ser um recurso para a correção dos comportamentos que interferem negativamente na formação do indivíduo”, afirma. Tal expressão, “correção dos comportamentos que interferem negativamente na formação do indivíduo” é
problemática entre outros motivos pelo fato de dar margem a interpretação de práticas de adequação comportamental análogas ao nazi-fascismo — mesmo que não seja esta a intenção —. Ademais, é preciso atentar-se a regulamentações nacionais como as Leis de Diretrizes e Bases, LDB, e os Parametros Curriculares Nacionais, como observa a mestra em educação, licenciada em Artes Cênicas pela Faculdade de Artes do Paraná e em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUC-PR Juliana Cavassin, em seu artigo Perspectivas Para O Teatro Na Educação Como Conhecimento E Prática Pedagógica. De acordo com a arte educadora, a relação pedagógica do teatro com a educação atende a visão humanista de arte como forma de expressão semiótica e cultural. “Muito se sabe a respeito da importância do Teatro na Educação em todos os campos de atuação. Os princípios pedagógicos do Teatro traçam relações claras entre Teatro e educação, considerando essa arte como uma forma humana de expressão, a semiótica e a cultura”. Para a arte educadora Juliana Cavassin, desse pressuposto decorre uma ênfase em estudos e sistematizações na área quanto aos aspectos sígnicos, simbólicos, de linguagem e comunicação, donde podem se destacar algumas ideias e metodologias como a visão de teatro como conhecimento que busca respostas para os questionamentos sobre o que é o mundo, o homem, a relação do homem com o mundo e com outros homens; as abordagens psicopedagógicas de Piaget que apontam para o desenvolvimento de linguagem e representação, o exercício artístico e coletivo; a construção de conteúdos inerentes à personalidade por intermédio da estética e o valor emocional, principalmente se considerar os trabalhos da pesquisadora e professora de teatro em educação Olga Reverbel, onde o teatro é situado como a arte de manipular os problemas humanos, apresentando-os e equacionando-os. Desta forma, para Olga Reverbel, o teatro possui uma função eminentemente educativa, na qual a instrução ocorre através da diversão. Nas palavras de Juliana Cavassin: “A educação está no desenvolvimento emocional, intelectual e moral da criança, correspondente aos desejos, anseios e proporcionar uma marcha gradativa das próprias experiências e descobertas. Isso porque possui uma concepção totalizante que implica e compromete todas as potencialidades do indivíduo e permite o alcance da plenitude da dimensão social com o desenvolvimento da auto-expressão”. Na pedagogia de Olga Reverbel, a diversão é importante porque ao imitar a realidade brincando a criança aprofunda
a descoberta sendo essa uma das primeiras atividades, rica e necessária, no auxílio do processo de eclosão da personalidade e do imaginário que constitui um meio de expressão privilegiado da criança. Para a pesquisadora, necessidade de brincar e jogar durante a i infância está relacionada ao desenvolvimento de orientação no espaço, de pensar, de comparar, de compreender, de perceber, de sentir para descobrir o mundo, de integrar-se com o meio, de construir o conhecimento e a socialização. Tais desenvolvimentos são necessários para a pessoa humana conforme observa a arte educadora Juliana Cavassin: “Nessa concepção, o teatro aplicado à educação possui o papel de mobilização de todas as capacidades criadoras e o aprimoramento da relação vital do indivíduo com o mundo contingente; as atividades dramáticas liberam a criatividade e humanizam o indivíduo pois o aluno é capaz de aplicar e integrar o conhecimento adquirido nas demais disciplinas da escola e, principalmente, na vida. Isso significa o desenvolvimento gradativo na área cognitiva e também afetiva do ser humano”. De acordo com Juliana Cavassin, pesquisadores como Richard Courtney, enfatiza que o teatro-educação é uma disciplina fundamental de aprendizagem por permitir o confronto dos problemas da existência e das modificações mentais necessárias para resolvê-los. “Courtney tem considerável pesquisa que demonstra a relação direta entre o Jogo Dramático e o processo criativo essencial para o desenvolvimento imaginativo. O autor defende que a imaginação dramática está no centro da criatividade humana, já que desde a infância a criança, ao final do primeiro ano, quando brinca pela primeira vez finge ser outra pessoa e desenvolve o humor, personifica o outro. Essa identificação é princípio básico do processo dramático e segue na juventude quando se imita algo e na fase adulta, quando se coloca no lugar de alguém. Para ele, a educação Dramática deve estar no centro de qualquer forma de educação que vise o desenvolvimento das características essencialmente humanas, pois a imaginação é a característica essencial que diferencia o homem dos primatas superiores, e, essa é essencialmente dramática”. Portanto, fica explicito a partir desses trabalhos sobre o teatro-educação, a importância da arte para o desenvolvimento e bem-estar da pessoa humana defendidos pela UNESCO. Para o jurista José Estênio Raulino Cavalcante, das normas formuladas a partir do artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos resultam uma série de garantias sobre o direito à cultura, à arte e à identidade desde a educação. “Assim, todas as pessoas devem poder se exprimir, criar e difundir seus trabalhos no idioma de
sua preferência e, em particular, na língua materna. Todas as pessoas têm o direito a uma educação e a uma formação de qualidade que respeitem plenamente a sua identidade cultural. Todas as pessoas devem poder participar da vida cultural de sua escolha e exercer suas próprias práticas culturais, desfrutar o progresso científico e suas aplicações, beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda a produção científica, literária ou artística de que sejam autoras”, sentencia José Cavalcante. No Brasil, um primeiro esforço de democratização de ensino ocorreu em meados da década de 1920, com a chegada do movimento Escola Nova surgido em fins do século XIX na Europa e nos Estados Unidos. Fundamentados nos avanços científicos da Biologia e da Psicologia, educadores como Célestin Freinet, Jean Piaget desse movimento propunha uma nova compreensão das necessidades da infância e questionava a passividade na qual a criança estava condenada pela escola tradicional, influenciado, inclusive o teatro brasileiro conforme relata em sua tese Militância e linguagem na rota da educação, Experiências de três grupos teatrais: TUOV, Ventoforte (SP) e GUTAC (MS), a doutora em Teatro pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, ECA-SP, Maria Cristina Moreira de Oliveira ao falar sobre o Movimento de Escolinhas de Arte, MEA, que se expandiu em vários pontos do país em fins da década de 1970. “O pensamento do MEA se associa com a Escola Nova, que se introduziu no Brasil principalmente através do americano John Dewey, o qual ganhou Anísio Teixeira como discípulo. Vale dizer que a trajetória deste educador brasileiro reúne em si, ao mesmo tempo, o pensador da educação, o administrador do ensino público, o organizador da pesquisa pedagógica e o defensor do direito de todos os brasileiros a uma educação pública de qualidade”. Outro dispositivo da Constituição Federal que ampara as expressões culturais e artísticas é o artigo 208 que resguarda o “acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um”. Ao abordar o tema da história de educação de artes no Brasil em seu livro Teatro Num Fazer Pedagógico, a pedagoga Amirtes Carvalho relata que, embora tenham ocorrido algumas políticas pontuais na implementação e desenvolvimento do ensino de artes nos períodos anteriores à Constituição de 1988, esses esforços sempre tiveram alguma dificuldade de concretização, sendo o mais recorrente a carência de capacitação dos arte-educadores. “Nos anos 70, o ensino e a aprendizagem de arte estavam baseados na orientação curricular do ideário no início do século XX. Não fazia parte deste ensino conhecer as modalidades artísticas, e as
relações entre elas e seus contextos, os artistas, as obras de arte e suas histórias. A inclusão da Educação Artística no currículo escolar, como atividade, trouxe um maior entendimento da relação que a arte tem na formação do indivíduo. No entanto tornou clara a situação de que não se tinha no país um número de profissionais em arte que atendesse qualitativa e quantitativamente a demanda criada pela Lei 5692/71, pois o professor deveria ter um domínio teórico e metodológico nas várias linguagens artísticas”, explica. Ao abordar a questão da formação de professores, Juliana Cavassin recorda que a implementação do ensino de artes, pela ditadura militar ignorou a necessidade de formação de profissionais dessa disciplina. “Faz-se fundamental nessa formação que se dê uma atenção para a histórica luta pelo estabelecimento do teatro na escola. É bom sempre lembrar que o ensino da arte só apareceu em plena ditadura militar a partir da lei 5692/71 como obrigatoriedade da educação, então denominado Educação Artística (a LDB de 1961 instituía o ensino de artes, porém não de forma obrigatória). A lei, contraditoriamente, exigiu professores com habilitações específicas obtida em curso de graduação de licenciatura plena, mas ignorou a inexistência de cursos universitários para a formação dos mesmos”. De acordo com Juliana Cavassi, essa postura, foi maquiada após três anos de implementação da disciplina nas escolas com cursos insuficientes para capacitar de forma eficaz os professores de artes: “Depois de três anos é que o governo federal criou cursos para a preparação dos professores de educação artística, contudo, eram cursos de licenciatura curta que em dois anos tentavam capacitar o professor para todas as linguagens e para todas as séries. A consequência prática no ensino das artes levou as escolas buscarem pessoas de áreas do conhecimento afins (comunicação e expressão e educação física) para ajudar a resolver o problema do currículo mínimo exigido pelo MEC”, denuncia. Segundo o livro de Amirtes Carvalho, esse problema da capacitação e da dificuldade de superar a forma tradicional de ensino das artes persistiu nas décadas seguintes mesmo após a Constituição Federal de 1988 com a abertura de debates sobre o assunto. Surgido na década de 1980, o Movimento Pró ArteEducação alcançou por meio de debates sobre inovações e mudanças da Lei de Diretrizes e Bases da Educação que o nome de Educação Artística fosse alterado para Artes e, conforme a Lei 9394 de 1996, que no artigo 26, parágrafo segundo, ocorreu a inclusão desta disciplina ao quadro de componente curricular obrigatório ligado à cultura artística. “O ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório nos diversos níveis
da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos”. Desta forma, a Lei 9394 de 1996 impôs uma base estrutural de criação, produção artística com o desenvolvimento de percepção e análise de obras de arte e conhecimento da produção estética e artística da humanidade. Não obstante, essa inovação ainda foi insuficiente para que o ensino de artes superasse as práticas da escola tradicional, conforme afirma Amirtes Carvalho em seu livro. “Apesar de a arte ter agora o mesmo status das outras disciplinas consideradas pelos professores como fundamentais e consideradas como um patrimônio cultural da humanidade, isto não eliminou a visão de arte como um conteúdo apenas ligado ao lazer e à livre expressão e sem nenhuma relação com o contexto social”, conclui a pedagoga. Conforme o antropólogo Marcelo Gruman, durante muito tempo as disciplinas relacionadas à cultura e a arte foram reduzidas a um ensino e um conceito puramente utilitarista. “Na escola tradicional, baseada na pedagogia neoclássica, valorizavam-se principalmente as habilidades manuais, os ‘dons artísticos’, os hábitos de organização e precisão, mostrando ao mesmo tempo uma visão utilitarista da arte”, diz Marcelo Gruman em seu artigo Caminhos Da Cidadania Cultural: O Ensino De Artes No Brasil. Ao analisar o impacto da Lei de Diretrizes e Bases do Ensino de 1º e 2º graus, a partir do estabelecimento da Lei 5692 de 1971, que estabeleceu a atividade teatral no ensino de arte e criou o Componente Curricular, Educação Artística, com ensino de música, teatro, dança e artes plásticas, a pedagoga Amirtes Carvalho também observa que, na prática, o rumo tomado pelos professores de artes mantinha o viés assessório da escola tradicional. “Se por um lado a Lei 5692/71 possibilitou outras práticas artísticas com uma maior frequência, por outro lado, devido ao despreparo profissional, as aulas de artes eram confundidas com terapia, descanso das “aulas sérias”, fazer decoração da escola e das festas, a música usada para memorizar conteúdos de ciência, o teatro para os conteúdos de história e o desenho para o aprendizado dos números. O ensino de arte era então identificado pelas visões humanistas e filosóficas das tendências tradicionais escolanovistas, cujas diferenças centram na metodologia e no entendimento das funções do professor e do aluno”, afirma. Componentes das áreas de Ciências Humanas e Sociais, arte educadores e trabalhadores da arte se viram ameaçados de um retrocesso quando o governo Bolsonaro, começou a anunciar uma série ações para área de educação envolvendo cortes e mudanças estruturais no ensino do país.
Iniciativas, Intenções, No Máximo, Tentativas
O primeiro ano do governo Bolsonaro foi marcado por uma série de manifestações contra a política aplicada para o setor de ensino. Quatro meses após assumir o cargo, o presidente causou uma grande onda de protestos ao atacar os cursos de ciências humanas com especial direcionamento para as faculdades de Filosofia e Sociologia, por meio de declarações em seu Twitter. “O Ministro da Educação Abraham Weintraub estuda descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas). Alunos já matriculados não serão afetados. O objetivo é focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina”, anunciou Bolsonaro em 26 de abril de 2019. Como reação, diversas entidades ligadas à educação e à pesquisa como Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, SBPC, que no dia seguinte, 27 de abril, publicou em seu site um comunicado afirmando que o conhecimento técnico não é o único fator que podem levar carreiras bemsucedidas nas áreas tecnológicas. “Eles requerem habilidades de liderança, inteligência emocional, compreensão da cultura, um entendimento do contexto econômico e social que as Ciências Humanas e Sociais podem prover”. Ao falar sobre a Ditadura, Cristina Mato Grosso critica avanço do discurso ultraconservador, cujo saudosismo do período ditatorial busca espaço até mesmo nas práticas educacionais. Deveras, componente das áreas de Humanidades, professores e estudantes de artes se manifestaram contra os ataques empreendidos pelo Ministério da Educação do governo Bolsonaro em 2019. Crítica à política defendida por Bolsonaro desde antes da eleição, Cristina Mato Grosso faz uma análise sobre os processos de ensino técnico e desvinculado de qualquer inciativa na formação de um pensamento crítico e autônomo ocorridos a partir do golpe militar e que se tornou projeto de política dos governos que sucederam a ex-presidenta Dilma Rousseff: — A Educação, área com a qual sempre estive ligada, era tecnicista. Aliás, tudo era tecnicista (uma característica de regimes autoritários, à qual se apega Bozo, desde a campanha). Faça uma rápida pesquisa sobre a corrente pedagógica tecnicista. Paulo Freire foi enterrado imediatamente, em 1964. Agora, novamente. O resto você imagina o que foi. Mordaça pura. Algo importante é fazer pessoas que se colocam desta forma a enaltecer o sistema oligárquico que não foi expurgado, entender que apenas avançamos pelas beiradas, a partir da Anistia,
depois pelas eleições diretas com o Collor, que saqueou o país economicamente —, afirmou a dramaturga. Área de conhecimento historicamente desvalorizada, artistas e arte educadores se uniram a outras disciplinas das Ciências Humanas nas manifestações que ocorreram pelo país contra a decisão anunciada pelo governo federal. Na tarde ensolarada de uma quinta-feira, dia 30 de maio de 2019, o protesto que começou na Praça Ary Coelho tomou as principais vias e se deslocou até a praça do Rádio, no centro da capital. Na época, o Movimento Estudantil calculou um número aproximado de 1,2 mil estudantes participantes do ato. No artigo Caminhos da cidadania cultural: o ensino de artes no Brasil, o doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Gestão de Políticas Públicas de Cultura pela Universidade de Brasília, Marcelo Gruman explica que cultura e arte são elementos essenciais para a formação dos indivíduos e de uma sociedade, sendo um direito previsto pelo conselho da Unesco em atenção aos Direitos Humanos. “A cultura é vista como direito dos cidadãos, e nessa medida eles têm o direito à informação, ao debate e à reflexão; o direito de produzir cultura; o direito de usufruir os bens da cultura; o direito à invenção de novos significados culturais; o direito à formação cultural e artística; o direito à experimentação e ao trabalho cultural crítico e transformador. Reconhece-se que a cidadania também se constrói a partir do respeito às formas como os indivíduos se veem e, mais ainda, querem ser vistos pelos outros”, afirma. Nome artístico do professor, ator, comediante e drag queen Guilherme Terreri, Rita Von Runt, de Ribeirão Preto, abordou o tema cultural durante entrevista publicada no canal do projeto Escuta, em 3 de novembro de 2021 e no seu próprio canal, o Tempero Drag, em 4 de novembro de 2021. Neste programa, Rita explicou que o artista não surge de uma personalidade extraordinária, mas a partir do acesso, pelo individuo de recursos educativos e estruturais que lhe incutem o prazer e o conhecimento da área: “O artista não é nada mais do que alguém que teve a chance de... Teve acesso a um piano. Teve uma flauta disponível. Tinha tinta para brincar. O artista é alguém que não foi privado de uma infância. Um artista é alguém que foi estimulado numa época. Todos. Somos artistas” refletiu a arte educadora. Contudo, ainda no início da década de 2020, o ensino sobre artes e cultura no Brasil permanece como fonte de debates e críticas no intuito de ser valorizado e de superar a tradição pedagógica dos séculos anteriores. Segundo o artigo do antropólogo Marcelo Gruman, é fundamental que haja um entendimento entre o Ministério da Cultura e o Ministério da
Educação afim de atender as necessidades básicas de acesso à arte e à cultura. “É imprescindível um diálogo cada vez mais intenso entre o Ministério da Cultura e o Ministério da Educação na consecução deste objetivo, qual seja, garantir o cumprimento do direito humano à educação e à participação na cultura, inscritos na Constituição Brasileira de 1988, e ratificado pela Convenção sobre a Promoção e Proteção da Diversidade das Expressões Culturais da UNESCO, ratificada pelo Brasil no ano de 2006”, diz Gruman na introdução de seu trabalho. Para o diretor do grupo Urgente Cia, Vitor Hugo Samudio, o ensino é fundamental para incutir o gosto pelas artes e o desenvolvimento das qualidades artísticas que podem fortalecer as expressões no Estado: — Se você tem uma criança que pode ter talento para algo, ou que até mesmo dentro de um aspecto da educação, sabe, se é uma criança que a gente percebe que tem a possibilidade de desenvolver, e se isso não for explorado, se a criança não tiver essa ajuda, se não tiver alguém ali para ajudar no sentido que ela possa caminhar, ela não vai para lugar nenhum. Então, assim, isso tem a ver com a cultura, tem a ver com tudo. Se você não ajuda, se você não fomenta, se você não instiga aquilo, se você não dá força para aquilo, entendeu, aquilo não vai crescer, vai ficar só ali. E aí, as possibilidades em que nós teríamos de fortalecer, a gente não consegue caminhar muito. Outra questão importante considerando que Mato Grosso do Sul, como todo o Brasil, é constituído por uma pluralidade cultural, é a questão da abordagem multiculturalista no âmbito pedagógico.
Pluralidades: Culturas e Direitos Iguais
Tema complexo originado nos Estados Unidos, a partir dos movimentos de combate à discriminação racial e da luta pelos direitos civis no final do século XIX, sintetizado aqui de forma simplista o Multiculturalismo, ou pluralismo cultural, é um termo que se refere à existência de muitas culturas numa região, cidade ou país, com no mínimo uma predominante. De acordo com o livro O Dilema Multicultural do doutor em antropologia ela Universidade de Colúmbia, EUA, Lorenzo Macagno o multiculturalismo se apresenta como terreno pantanoso da pósmodernidade como elemento de política governamental com representações e distribuições de recursos materiais e simbólicos que influenciam nas relações entre as diversas culturas presentes num único Estado, rompendo com paradigmas históricos de um lado, como a promoção de debates promovidos por grupos
historicamente subjugados a uma cultura hegemônica e, de outro, a tensão causada pela interferência destes grupos nas relações tradicionalmente assumidas por um grupo conservador. “Ao celebrar a diversidade e enfatizar os particularismos culturais, o multiculturalismo estaria estimulando a produção de ‘micronarrativas’ sob a forma de reivindicações atreladas a discursos de raça, etnia, religião e gênero. Por vezes, essas reivindicações são suscetíveis de assumirem formas mais radicais, como, por exemplo, a construção de micro-histórias que conjuram contra as epistemologias dos ‘dominantes’ (na sua versão mais maniqueísta, aquelas derivadas do mundo ‘ocidental’, ‘branco’ e ‘masculino’) ”. Tomado como essencial para a pessoa humana, esse novo quadro pretende a validação do par arte-cultura considerando todas as manifestações, inclusive, as historicamente excluídas, o que só recentemente tem sido revisto no país. “Estudiosos de arte-educação afirmam que um dos poucos avanços educacionais no Brasil nos últimos anos foi a introdução da preocupação com multiculturalidade nas escolas, entendida como o reconhecimento de diferentes códigos culturais e de diferentes necessidades culturais, da necessidade de convivência entre culturas e dentro da mesma cultura”, relata o antropólogo. Contudo, esse novo horizonte precisa ser efetivado para além do currículo escolar atentando igualmente para o fato de que as culturas se encontram em oposições umas às outras, o que exige uma dialética de aproximação e respeito. O texto As Orientações Curriculares para o Ensino Médio – Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, publicado em 2006 pelo Ministério da Educação, é um exemplo de como o tema da diversidade cultural entrou na agenda do Estado brasileiro quando o assunto é ensino das artes. “O item 1.6, intitulado “diversidade e pluralidade cultural”, afirma que o ideário sobre o Ensino da Arte contempla as ‘diferenças de raça, etnia, religião, classe social, gênero, opções sexuais e um olhar mais sistemático sobre outras culturas’, denunciando, ainda, a ausência das mulheres na história da arte e nos seus circuitos de difusão, circulação e prestígio. Considera a educação especial, tomando o aluno de necessidades educacionais especiais como detentor de uma cultura de minoria no espaço escolar, pondo em pauta a necessidade de reforçar a herança estética e artística dos alunos de acordo com seu meio ambiente, e exige valores estéticos mais democráticos, chamado de alfabetização cultural: possibilitar que o aluno desenvolva competências em múltiplos sistemas de percepção, avaliação e prática da arte”, observa Gruman. Não obstante, no espaço escolar, as iniciativas em superar o atavismo no ensino de artes, permaneceram insuficientes. Em sua pesquisa Cultura Regional E O Ensino Da Arte: Caminho Para
Uma Prática Intercultural? Estudo De Caso: E. M. Sulivan Silvestre Oliveira – Tumune Kalivono “Criança Do Futuro”, de 2008, a mestra em educação pela Universidade Católica Dom Bosco, UCDB, Nilva Heimbach, relata que o ensino de arte e cultura é uma preocupação que não se limita à disciplina de Artes. “A preocupação com o ensino da arte e cultura regional indígena, não é específica da disciplina de Artes, recebendo contribuições das disciplinas extracurriculares de Cultura e Língua Terena, solicitação da comunidade local e ministradas por professores indígenas, como marca da diferença e da identidade escolar”. Para o antropólogo Marcelo Gruman, a emersão de uma visão multiculturalista, defendida pela UNESCO desde a conferência de Bogotá, foi um dos fatores da recente derrubada da perspectiva clássica de ensino das artes. “Mais de três décadas se passaram quando, em 1978, na Conferência de Bogotá, o plano elaborado para o período 1977-1982 deixava clara a importância do estudo de culturas regionais, muitas vezes fruto de combinações e ressignificações simbólicas entre o “dentro” e o “fora” trazendo também a questão da diversidade cultural intrassocial subestimada ou negligenciada no período pós-guerra mundial. Novamente vislumbramos a promoção da compreensão mútua como fonte de paz duradoura entre as nações”, analisa. Entretanto, a análise que a mestra em educação Nilva Heimbach faz sobre o ensino das artes a partir do contexto pluricultural da escola municipal é de que existe uma discrepância entre o interesse dado ao tema da identidade étnica e as manifestações artísticas. “A questão indígena, referente à identidade, parece melhor contemplada teoricamente. O mesmo não acontece com as manifestações artísticas dessa etnia no espaço escolar da cidade de Campo Grande, tornando-se instigante a compreensão dos aspectos identitários, nas regiões de fronteiras étnicas. O discurso leva a crer que determinados fatos e acontecimentos são naturais, ocultando as construções sociais permeadas pelas relações de poder”, afirma Nilva Heimbach. Naturalmente, com “relações de poder” a mestra em educação está se referindo à herança colonial europeia que permanece hierarquizando as culturas, relegando aos povos originários um espaço inferior de expressões enquanto padronizam e focam quase que restritamente nas expressões artistas e culturais importadas da Europa como formas elevadas de manifestações. “É necessário o rompimento com a visão monocultural para um posicionamento intercultural, sem discriminação da multiplicidade de linguagens e textos culturais, não ignorando o diferente, o não padronizado. Entender que é no discurso que os sujeitos são referenciados em situação
desfavorável, menosprezados e deslocada a diferença. Entender a necessidade de considerar a cultura de cada componente escolar, nos elos que ligam e separa, na busca de um terceiro espaço em processo de negociação. Campo fértil para reflexões, com rupturas na criação de estereótipos e mitos que se fazem presentes como estratégia de marginalização. O encontro destas fronteiras depende do olhar construído social e culturalmente”, critica Nilva Heimbach. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, mestra em educação artística pelo Colégio Estadual do Sul de Connecticut, EUA, e doutora em Educação Humanística pela Universidade de Boston, EUA, Ana Mae Tavares Bastos Barbosa, professora titular aposentada da Universidade de São Paulo e professora da Universidade Anhembi Morumbi, explica em seu artigo Notas sobre as histórias da democratização do ensino da Arte, que a história do ensino de arte no Brasil se desenvolve com restrições as classes trabalhadoras desde a colonização. Entretanto, sua importância é fundamental para a vida e compete que esteja presente nas lutas por direitos iguais. “Reclamamos muito que no Brasil as Artes são dominadas pelas elites, mas as Artes não são naturalmente das elites”, afirma. Por meio de seu artigo, Marcelo Gruman observa que a necessidade de produzir e ter acesso à cultura e a arte pelo ser humano se relacionam com a capacidade de construção da própria realidade e das relações sociais. “Somos humanos porque somos seres produtores e produtos de cultura, porque construímos socialmente nossa realidade, porque arbitrariamente damos sentido à nossa existência. Esta existência e seus valores são representados simbolicamente de diversas maneiras, uma delas sendo a atividade artística”, analisa Marcelo Gruman. Não à toa, ao narrar em Teatro Brasileiro Contemporâneo: Linguagem e Militância, a história da origem e dos trabalhos da Escolinha de Arte no Brasil, Cristina Mato Grosso cita como os pacientes da psiquiatra Nise da Silveira tiveram melhoras a partir de seu trabalho no Hospital Psiquiátrico de Engenho de Dentro que substituiu a terapia ocupacional pelo que denominou a arte de lidar. “A Escolinha também teve muita influência do pensamento de Carl Gustav Jung através da convivência com a dra. Nise Da Silveira, psiquiatra que, trabalhando o processo de recuperação da consciência, percebeu a possibilidade de reintegração social do paciente através da expressão artística, chegando mesmo a fundar o Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro, em 1952”. Em Teatro Num Fazer Pedagógico, a pedagoga Amirtes Menezes de Carvalho e Silva, explica que, nas décadas de 1950 e 1960, — sob influência do Movimento Escola Nova — surgiu uma pedagogia centrada nos alunos. “As aulas de arte passaram a
valorizar a livre-expressão e o progresso de trabalho. A função do professor era a de oferecer ao aluno condições de se expressar de forma espontânea e pessoal, valorizando-lhe a criatividade sem preocupação com o resultado”, descreve. De acordo com Marcelo Gruman, essa superação do ensino tradicional é fundamental para atender ao desenvolvimento humano e social por meio do ensino de arte. “A arte é um meio de representação da realidade, uma construção social, percepção de nós mesmos no mundo possibilitando-nos assumir modelos de identidade e comportamento. Tais representações do mundo podem nos inspirar para a compreensão do presente e criação de alternativas para o futuro. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais de 1997, a arte é definida a partir de expressões como ‘conquista da significação’, ‘experiência de apropriação’, “desenvolvimento da percepção estética”, “consciência do lugar no mundo”, evidenciando o papel ativo do indivíduo no processo de construção de sua(s) identidade(s), posição distinta daquela advogada pelo ensino de arte tradicional que sacralizava a figura do professor, dono do saber”, explica Gruman. Consequentemente, ao se pensar a atividade artística, sim. Se a educação se apresenta como lugar de consolidação do direito a arte, ela não é a única. O caminho de uma cultura artística valorizada passa também pelas ações do poder público junto ao setor artístico cultural e à população.
Capítulo Sexto:
experiência como expectador privilegiado pelo Pro-
Ajeto a Escola Vai Ao Teatro acendeu em mim, um gosto ainda maior pela arte, sobretudo pelas artes dramáticas. Desde então, junto com meus amigos de sala, Elaní Araújo, Hudson Ortega, Ivete Dias e Eliane Acosta, formamos um grupinho de teatro nos trabalhos de sala. Grande incentivador foi o professor José Carlos, que ministrava as aulas de História e permitia que os grupos apresentassem algum trabalho artístico relacionado aos capítulos que deveriam estudar para um seminário que, a rigor, sempre se dava depois de cada representação. Daí para o teatro dos grupos de jovens da igreja católica foi um pulo.
Em 2002, quando cursava pedagogia em Ponta Porã, a prefeitura abriu dois cursos de teatro sucessivos. Ali, tive a oportunidade de aprender técnicas específicas e ver como a arte é importante para a vida plena de uma pessoa. Lembro que se formaram três grupos, cada um de acordo com um período do dia. Naturalmente, os mais velhos, pessoas na faixa de 28 a 50 anos de idade, se concentraram no período noturno. Os outros dois grupos eram mistos, com concentração maior de adolescentes e jovens na faixa entre 14 e 27 anos. No dia das apresentações, cada um foi questionado sobre os motivos de se inscrever naquele curso. De fato. Para minha surpresa, nem todos queriam ser atores. Haviam estudantes que desejavam vencer a timidez e se desenvolver nos trabalhos em grupo de suas escolas, haviam vendedores do comércio local que almejavam um melhor desempenho junto aos fregueses em seus trabalhos, tinham outros que buscavam superar suas dificuldades pessoais de relacionamento. Durante os ensaios, cada uma dessas dificuldades pessoais e profissionais vieram à tona. Algumas vezes, o estresse e o medo diante das barreiras internas, como a timidez, levaram certos participantes ao choro. Outras vezes, a tensão mútua chegava a discussões acaloradas. Alguns desistiram no meio do processo. Outros foram até o fim e se declaram transformados para melhor. Não foram poucos os que se viram mais abertos ao
diálogo, as diferenças, confiantes em suas tarefas diárias, em suas relações. A questão do diálogo e das diferenças, aliás, foi particularmente um ponto bastante enriquecedor considerando que Ponta Porã é uma região que faz fronteira com o Paraguai, onde o trânsito entre os dois países é diário. Lembro de me ver obrigado a redobrar a atenção com companheiros que não pronunciavam bem o português ao passo em que, por outro lado, sempre tinha alguma dúvida sobre o país vizinho prontamente esclarecido por eles. Outra coisa importante é que a prefeitura além de ceder um auditório do próprio passo municipal, investiu em produtos cenográficos. Recordo-me de um dia em que o professor pediu aos grupos para pensar os cenários e figurinos e decidir o que precisaria para confeccioná-los. Uma ou duas semanas depois, estávamos as voltas com rolos de TNT, papel pardo, tesouras e outros pequenos adereços de papelaria e aviamentos que, num trabalho de dois dias inteiros, se transformaram em árvores, casas, cercas e roupas cenográficas, e. Exatamente! No ensaio final. A prefeitura, naturalmente, convocou a imprensa. — Bento que é bento, é o frade! —, eu dizia, encarnado no personagem de sotaque gaúcho, saltando sobre um dos colegas de cena, esparramado ao chão quando... Fato! Neste exato instante, a câmera do jornalismo de TV local jogou uma luz tão forte que fiquei cego. O lado bom é que não pisei no companheiro de cena. O lado ruim é que tive de repetir outras duas vezes, sempre com aquela luz no rosto. Ossos do ofício! Não obstante, é preciso recordar. Adaptabilidade e solução rápida de dificuldades como o famoso branco, fazem parte do mundo teatral. Foi assim que cada participante, e cada grupo superou cada dificuldade. No caso do grupo em que eu estava e que iria representar No País dos Prequetés, da escritora e dramaturga Maria Clara Machado, o elenco era maior que o número de personagens. A solução encontrada foi surpreender o público com duas Nita, uma primeira, antes do País dos Prequetés, e outra que entrava em cena por uma marcação imediatamente oposta à da retirada em cena da primeira. Uma boa maquilagem ajudou a reforçar a semelhança entre as atrizes Katiana Denize e Sheila Vilhalba.
Naquele mesmo ano, a prefeitura de Ponta Porã fez das peças um dos atrativos durante a Exporã e, entre o final de novembro e dezembro, o término da 2ª oficina de teatro promoveu o primeiro Festival Estudantil Municipal de Teatro de Ponta Porã, FEMTEPP.
Tradição Teatral: Como nascem as peças de teatro
Confluência de todas as outras linguagens artísticas e dos avanços tecnológicos, para o teatro o desenvolvimento se passa mais devagar do que nas outras linguagens, e não foi senão depois das vanguardas se consolidarem na literatura, na escultura e nas artes plásticas que, na Europa do início do século passado, surgiram o teatro do absurdo de Samuel Beckett, ou, o Teatro Épico de Bertold Brecht, que agregam elementos do surrealismo, do dadaísmo, do cubismo, do expressionismo e do impressionismo.
Já a História do teatro brasileiro é marcado pela busca de uma identidade própria e da sociedade de cada período histórico do país. Ganhou ares de modernidade a partir de Vestido De Noiva, de Nelson Rodrigues, e abraçou as lutas e as expressões das classes populares nas obras de Augusto Boal e Chico Buarque. Já em Mato Grosso e, após a divisão do Estado, em Mato Grosso Do Sul, essas revoluções temporais ocorreram, notadamente, com o Teatro Universitário de Dourados, TUD, em 1974, e, sobretudo, com as ações do Grupo Teatral Amador Campo-Grandenses, GUTAC (1971) que passou a ser o Instituto de Educação e Cultura Conceição Freitas, INECON, em meados de 2000. Na visão do dramaturgo e cineasta sul-mato-grossense Mhiguel Horta, o GUTAC/ INECON tinha um merecido prestígio: — Na década de 1970, em pleno governo militar, o que a gente tinha de teatro mais representativo era o grupo do Américo Calheiros. Com Cristina Mato Grosso e Américo Calheiros, que eles eram os bam bam bans aqui no teatro. Inclusive, quando eu fui morar em São Paulo acabei me encontrando com eles lá, que estavam viajando pelo projeto Mambembe, estavam com uma peça no Teatro Eugênio Kusnet. Inclusive eu fui assisti-los lá. Então era um povo que trabalhava muito em função do teatro. Tinham uns projetos nacionais e aí eles entraram nesse projeto nacional. Nesse período, surgiram peças que falavam sobre temas universais e sociais a partir da cultura, da fauna, da flora e de personalidades importantes para a formação do Estado, como
Tia Eva e Foi No Belo Sul De Mato Grosso, de Cristina Mato Grosso, como observa a mestra em Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Bruna Franco Neto, em seu trabalho de dissertação Das Cenas Ao Ato: O Processo Dramatúrgico Em Cristina Mato Grosso:“...enfatizando o microcosmo da dramaturgia, Cristina Mato Grosso, em seu papel como intelectual sul-mato-grossense, propõe um teatro que é marcado tanto pela ruptura quanto pela tradição do teatro popular; buscando a identificação de uma linguagem regional, mas também nacional. Um teatro que mesmo utilizando o cenário de Mato Grosso do Sul como palco de suas histórias, contempla uma crítica de caráter universal”, afirma. Para Mhiguel Horta, as iniciativas do GUTAC lideradas por Cristina Mato Grosso e Américo Calheiros são um marco na história do teatro que precisa ser valorizado no Estado: — A Cristina é a história do teatro brasileiro, sabe, eu vi vários espetáculos dela. É uma figura que teve um teatro profissionalíssimo. O trabalho deles era impecável. Tanto ela quanto o Américo. Tinham ideias inusitadas, maravilhosas. Eu vi um espetáculo do Américo, por exemplo, que tinha uma noiva em cima de uma bicicleta. Era, tipo, um operário casando com uma menina. E, sabe, ela com um véu por cima da bicicleta, passava, assim no palco. Era muito bonito! E vi vários espetáculos dela, inclusive com Jorge de Barros, se eu não me engano A Noiva. Então, não lembro agora, o título do espetáculo, mas era um espetáculo fantástico, sabe. Era, simplesmente, genial. Convidado para o remake da novela Pantanal da TV Globo, o jornalista e ator Expedito Di Montebranco concedeu entrevista para esse trabalho refletindo sobre a questão da identidade do teatro sul-mato-grossense. — Temos nosso modo de fazer, mas que, a meu ver, não se caracteriza como uma identidade. O Estado é novo e estamos formando com ele a identidade que creio será definida daqui uns cem anos. Hoje temos a influência da Bolívia, Paraguai e do próprio Mato Grosso, mas no teatro nossas referências vêm de diferentes caminhos, seja o que vemos e estudamos no eixo Rio/São Paulo/Curitiba/Goiás ou ainda pelo que aprendemos nas Faculdades. Por isso digo que temos nosso jeito de fazer, mas ainda não é uma identidade, porque estamos justamente ainda no processo de descoberta. Considerando o período histórico que antecede a divisão do Estado, o cineasta Mhiguel Horta avalia que a região tem uma tradição maior na produção de cinema, com destaque para o pioneirismo da atriz Conceição Ferreira. Nascida em Portugal, no dia 21 de abril de 1904 e falecida em 29 de maio de 1992, a atriz ganhou destaque por interpretar vários personagens em diversos lugares, de Lisboa a Bela Vista, município do sudoeste de Mato
Grosso do Sul que faz divisa com o Paraguai. — É óbvio que tem alguns trabalhos acadêmicos que falam de trupes de teatro que passaram por aqui. Tem a história da Conceição Ferreira que era uma atriz portuguesa que acabou morando aqui. Participou do filme A Alma do Brasil. Eu acho, nesse ponto, que o cinema tem mais tradição, porque a Alma do Brasil foi feito na década de 1940, sem recurso algum e tal, e foi uma coisa que foi um acontecimento aqui na cidade. Teve muito prestígio, teve lançamento e tudo mais. Eu acho que o cinema tem uma pegada mais de tradição aqui no Estado por incrível que pareça. —, avalia o cineasta. Expedito di Montebranco também destaca sua experiência com o cinema: — Justamente porque não temos visibilidade. Quando o cinema nacional chega aqui, eles vêm pronto. Cabeça A Prêmio, dirigido por Marco Ricca recebeu incentivo de 1 milhão do Governo do Estado. Quando fui fazer o teste o próprio Ricca me tirou de lá e disse que eu não precisava e arrumou um papel pra mim (papel curto feito sempre), porque só estando aqui é que percebem que temos bons atores sim e bons técnicos mas aí já é tarde. E entendo que eles não podem sair de lá arriscando chegar aqui e não encontrar. Não obstante, de acordo com o ator, a busca por uma identidade na dramaturgia do Estado se perdeu nos dias contemporâneos. — Na década de 80 eu já estava no meio artístico, eu era artista plástico, hoje denominado artista visual e também poeta. Lembro que existia realmente essa busca pela nossa identidade cultural e que hoje me parece acomodada. Creio que isso tem a ver com várias coisas. Naquele momento lutávamos por tudo, pela criação de leis de incentivo, fundos e etc... Conseguimos tudo isso. —, analisa Expedito. Atualmente, as companhias agregam membros formados, estudiosos e amadores, funcionando num sistema de rotatividade de direção. Assim, os trabalhos dramatúrgicos vão muito além da trivial decoração de textos e da representação instintiva. Segundo o diretor e ator Leonardo de Castro, do Circo do Mato, a companhia se utiliza de técnicas de acordo com a necessidade dos efeitos que desejam levar ao público: — Um estudo em cima do que queremos é realizado pensando principalmente qual a necessidade dramatúrgica, lúdica, emotiva e efetiva que esse efeito pode causar. Muitas vezes são coisas simples, como a escolha de gestos específicos, outras mais complicadas, como a concepção dos figurinos, maquiagem, adereços e até das técnicas circenses empregadas nas tramas. Isso,
naturalmente se estende a todas as áreas da criação: sonoplastia, luz e também da produção: o que o público vivencia antes de entrar em nosso espaço também é pensado em relação à peça”. Pesquisador do método Stanislavski, o ator e diretor Ewerton Goulart, do Teatral Grupo de Risco, explica que há sempre uma presença das técnicas stanislavistas nas representações. — Por exemplo, na montagem atual, cada cena foi aberta para improvisação antes da definição de um desenho final. E elementos da improvisação casam com a análise ativa do Stanislavski. —, afirma. Da Companhia de Teatro Rob Draw, Érico Bispo também destaca o cuidado com uma base teórica nas atividades do grupo que vai além dos clássicos. — Nós nos mantemos atentos e em busca das dramaturgias e linhas dramatúrgicas presentes nas manifestações populares brasileiras, pois mesmo que os mestres e mestras populares não utilizem esse termo “dramaturgia”, tem ela presente de forma natural em seus fazeres e folguedos, na linha do Santiago Garcia. —, afirma. Além das bases teóricas, as companhias também investem em uma série de processos que começam desde a criação até a primeira representação de um espetáculo, como explica Bispo:
— Quando atuamos com a linha de trabalho dramatúrgico embasados no Santiago Garcia para a montagem do espetáculo Negreiro, em 2017, procuramos entender de certa forma como se dava as montagens dele, a construção dramatúrgica com os atores para podermos vivenciar isso na nossa sala de ensaio. Mas como o próprio Santiago Garcia diz, todas as técnicas precisam ser adaptadas ao seu tempo e seu contexto, dessa forma, munidos também da pesquisa em cultura popular, seus corpos e suas dramaturgias introduzidas no trabalho da Cia pela Ana Vieira, mesclamos essas experiências para poder obter um resultado mais apropriado para o que queríamos mostrar para o público. Outro membro do Teatral Grupo de Risco, a diretora e atriz Fernanda Kunzler explica que a maioria dos trabalhos levam um grande tempo para serem constituídos e demandam uma preparação que excede o pensamento comum dos críticos locais: — Primeiro se faz a delimitação do tema que queremos falar. Por exemplo: a questão da exploração da erva mate. Iniciamos com trabalho de mesa, pesquisas, leituras.... Esse assunto acabou levando a outros (relação de trabalho, empregado - empregador, exploração da mão de obra, desenvolvimento do Estado, migração etc., etc.). São assuntos que não morrem em si e geram outros”.
Com diversas ações na promoção de debates de cunho social na capital, como o seminário Arena Aberta, que debate arte, política e cidadania e a Temporada do Chapéu, festival de teatro de rua, circo e performance de grupos de tetro da capital e de outras regiões, o grupo Teatro Imaginário Maracangalha é reconhecido por suas apresentações e intervenções de rua, conforme explica o ator e diretor Fernando Cruz. — Então o próprio espaço já nos define, a rua. E rua para nós significa todo o local apto a receber espetáculos. Pode ser praças, parques, calçadões, assentamentos, comunidades ribeirinhas, aldeias indígenas, ocupações indígenas, retomadas, acampamentos, tanto na cidade como no campo. Então esses espaços ao céu aberto. E esses locais influenciam na estética do grupo, seja na maneira plástica, cenográfica, sonora, compondo a nossa dramaturgia. E essa dramaturgia, esses espetáculos que ocupam a cidade, eles também são integrados a ações de diálogo com a cidade além dos espetáculos, e são as intervenções que nós realizamos ali, como o Sarobá, que é uma intervenção de arte pública com linguagens múltiplas de artes, música, dança, teatro, literatura, cultura popular, cultura da infância, escambo, literatura, festa, cortejo. De acordo com Fernando Cruz, o grupo Teatro Imaginário Maracangalha realiza suas produções de forma colaborativa e divididas em etapas, passando pelo período de criação que prescinde a pesquisa, da construção do texto dramático, dos adereços e figurinos até a montagem final: — Por exemplo, nós estreamos agora um trabalho, Miragens do Asfalto, que é um trabalho oriundo de uma pesquisa que nós chamamos Segredos do Cascudo, a qual nós ficamos desde 2013 até agora investigando a vida dos trabalhadores, trabalhadoras, moradores da região do Cascudo, no Bairro São Francisco compreendendo até a esplanada Ferroviária. E nos detivemos na vida dos trabalhadores, trabalhadoras vinculados à Ferrovia, tanto os trabalhadores formais da Ferrovia, quanto os informais que acabavam sendo a população da região do Cascudo. E para isso nó partimos para o campo, para entrevistas, entrevistas, uma série de entrevistas. Encerrada a fase das entrevistas e pesquisas para o espetáculo que estrearia no dia 13 de novembro de 2021, no Sesc Cultura, na capital, os trabalhos de produção seguiram para a próxima etapa: — Depois a sistematização das entrevistas, escolhendo temas: trabalho, saúde, família, amores, festas, perdas, mortes. Dividimos por temas essas histórias, sistematizando, e, aí tem o processo de produção que é escrever projetos para capitanear recursos para a montagem, montar equipe para criação de figurino, cenografia, as opções. Aí nós temos os trabalhos divididos
do grupo e depois organizado pelo próprio grupo. Faço tanto a direção e a supervisão desses trabalhos, na verdade. De estética, mesmo, que é a parte de definição do conteúdo e da forma, mas sempre com um olhar do grupo, com a construção do grupo. Então na verdade é um trabalho de coprodução, ele é dividido. E tudo o que a gente ganha a gente divide igual dentro do grupo, todos nós ganhamos o mesmo valor da produção quando se capta algum recurso. Então, na verdade, a produção envolve esses processos de pesquisa, e os processos de viabilização material dessa pesquisa que acaba cuminando num trabalho efetivo que é a forma, o espetáculo, a performance, a intervenção de rua, seja em qual formato ele for. Nosso trabalho é todo feito de forma colaborativa dentro do grupo. —, descreve Fernando Cruz. Se, por um lado, artistas veteranos como Expedito Montebranco e Mhiguel Horta não veem uma tradição nas artes dramáticas sul-mato-grossense, por outro, a referência dos trabalhos do GUTAC/INECON são uma constante quando o assunto é a forma de produção coletiva de espetáculos de cunho social como no caso de Miragens do Asfalto, Areatôrare: O Verbo Negro E Bororo Do Índio Profeta, do Tetro Imaginário Maracangalha. Foi o que ocorreu durante a entrevista com Beth Terras, atriz e diretora da ADOTE, que também opera em produção coletiva: — Aqui até os alunos ajudam nessa construção. — Sabe o que isso me lembra, os trabalhos do Instituto de Educação e Cultura Conceição Freitas, INECON. —, respondi. — Sim. Começados pela Cristina Mato Grosso e Américo Calheiros. São os precursores do teatro local. —, afirmou. De fato, em seu livro Teatro Brasileiro Contemporâneo: Linguagem e Miltância, Cristina Mato Grosso registra momentos de produções do GUTAC/INECON similares aos descritos pelos artistas de diversos grupos da atualidade, como no caso do Teatro Imaginário Maracangalha. “O primeiro espetáculo da trilogia, Anhanduí (1984), mais tarde Anhanduizinho, Meu Amor (1991), foi elaborado com base no material de pesquisa do grupo e dos alunos de uma escola rural. Os atores, numa primeira etapa, trabalharam envolvendo professores e alunos em uma pesquisa que constituiu em coligir depoimentos sobre vivências e lembranças dos moradores da região, levando alguns aspectos da cultura rural. Numa segunda etapa, este material serviu para a criação teatral da trupe e para atividades interdisciplinares escolares”, descreve a dramaturga. Cristina também descreve ações de diálogos e de debates sobre a realidade levada à cena realizadas junto a assentamentos do Movimento Sem Terra, MST, outra pratica que alguns grupos de tetro contemporâneo parecem haver herdado do GUTAC/INECON que se faz observável no relato de Fernando Cruz a
respeito das ações do Teatro Imaginário Maracangalha no projeto da peça Areatôrare: O Verbo Negro E Bororo Do Índio Profeta: — O espetáculo, além dos festivais cumpriu um papel muito importante ao percorrer assentamentos, aldeias, territórios indígenas, retomadas indígenas em pleno conflito. Florestas, floresta amazônica, pantanal, litoral brasileiro, as grandes metrópoles do país, e está em cartaz há dez anos. Importante, também, do trabalho, é a formação dos atuadores do grupo, a nossa formação quanto a artista, quanto atuador, ator, atrizes, que são as relações de convívio no processo da pesquisa com todos esses segmentos envolvidos, inclusive a voz principal que são os indígenas, os povos indígenas, nos colocando numa relação direta de convívio de dialética, de troca, de construção de conhecimento, nos envolvendo numa diversidade cultural, também, ao circular pelo país e ver que essa história dialoga com o país inteiro. Assim, as companhias de teatro campo-grandenses têm levado às ruas e aos palcos do Estado uma variedade de temas que abordam questões contemporâneas locais e universais, entre obras autorais ou renomadas do país ou do cenário internacional, mas ainda são vistos com desconfiança por parte dos espectadores.
Do Outro Lado da Rua: Procura-se Arte de Qualidade
Em 7 de maio de 2007, após mais uma tarde intensa de ensaios do Grupo Teatral Gritac — naturalmente uma homenagem jocosa ao GUTAC — para o espetáculo de Do Outro Lado Da Rua, do escritor, diretor e ator Djandre Rolin com codireção do ator Eduardo Miranda, o Dudu, uma parte do elenco resolveu ficar no Centro Cultural José Otávio Guizzo para assistir ao espetáculo do grupo de atores da Faculdade de Artes do Paraná. Inspirado no poeta sul-mato-grossense Manoel de Barros, a peça Descoisas, Pré-Coisas E, No Máximo, Coisas, atraiu um grande público. Enquanto aguardávamos na fila da bilheteria, Dudu Miranda começou a reparar que o público era muito maior em relação ao do espetáculo de uma companhia local muito conhecida e premiada cujo espetáculo havia assistido naquela mesma semana. Incomodado com a constatação, Dudu começou a questionar algumas pessoas sobre aquela situação. — Por que você veio assistir a um espetáculo de um grupo de fora e quando é uma companhia daqui você não vem, véio? —, questionou indignado a uma conhecida que encontrara na fila. — Porque é de fora. Eu acho que é muito melhor. —, res-
pondeu a moça abordada. — Mas, como você acha que é melhor, se nem conhece os artistas, cara? —, insistiu Dudu. A entrevistada, entretanto, deu-lhe de ombros encerrando a conversa. Para mim, aquela seria a primeira vez em que o problema da valorização artística cultural sul-mato-grossense se apresentaria. Desde então, os produtores de arte do Estado viriam a público em várias outras ocasiões para denunciar ora o salário não pago por serviços prestados a instituições estatais, ora o baixo investimento na área, e, para se posicionar contra uma política que — segundo eles — privilegia a arte de outras localidades em detrimento dos movimentos e expressões regionais que terminam por incidir na população em forma de uma visão que desvaloriza e desconhece a própria identidade cultural e, por conseguinte, artística. De fato, tudo indica que ainda predomina um preconceito de que o trabalho dramatúrgico local está limitado à pura vontade de atuar, sendo mero resultado de decoração de textos e representações sem profundidade, como declarou o aposentado Nestor da Silva, 67, que encara o teatro local como “coisa de brincadeiras, de crianças”. — Ah, é perda de tempo! Teatro bom é o de São Paulo, mas eles já não vêm aqui como antigamente. Os daqui não tem o desenvolvimento dos de lá. —, disse-me o aposentado com quem mantive breve conversação na praça Dr. Ary Coelho, enquanto esperava dar o horário do espetáculo que aconteceria no Sesc Cultura, localizado na avenida Afonso Pena. Com as lembranças desses episódios que testemunhei, levei o questionamento sobre a valorização das artes produzidas no Estado e, em especial na capital, aos entrevistados dos diversos trabalhos jornalísticos produzidos durante o curso de Jornalismo. — Vitor, entre as pessoas da região que formam público, há os que dizem que as produções teatrais e a classe artística do Estado não têm conteúdo, nem identidade própria e no geral se resumem a obras de cunho infanto-juvenil, e por isso não despertam interesse como as produções de fora. Isso procede? — Eu acho o seguinte: temos aí alguns caminhos. Temos, sim, dentro de medidas técnicas aprofundadas num aspecto mais profissional, produções que são um pouco mais frágeis, no sentido da qualidade, do aprofundamento. Temos, assim como em qualquer outro lugar, não é só aqui. Temos, sim. Mas nós temos também pessoas extremamente capazes, obras muito boas, trabalhos muito bons. —, analisou o produtor do grupo Urgente Companhia, Vitor Hugo Samudio, durante a entrevista para o radiodocumentário no Laboratório de Radiojornalismo II.
Entrevistado para a matéria da disciplina de Jornalismo Especializado ministrada pela professora Michelle Roxo, no segundo semestre de 2020, o ator, músico e diretor da Cia de Artes Rob Drown, Erico Bispo, opinou que, além das questões de cultura e estruturais, as críticas são fruto de uma influência midiática que privilegia artistas dos grandes centros do país, como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Curitiba, por exemplo. — As pessoas que acreditam que o teatro realizado aqui não tem “qualidade” ou “profundidade”, na verdade estão mais em busca de ações midiáticas do que da dita “profundidade” no trabalho. —, afirma. Para o ator, o teatro sul-mato-grossense tem tradição e é muito respeitado Brasil afora. — E para exemplificar isso cito grupos como o Teatral Grupo de Risco, TGR, que existe há décadas e além de desenvolver sua pesquisa cênica, também dá suporte físico, ou teórico para outros grupos e Cias da cidade. —, conclui Bispo. Conforme Expedito de Montebranco, as mudanças do contexto político e dos valores e lutas do passado herdadas pelos novos artistas, são um dos fatores que contribuíram para o cenário de críticas. — Hoje vejo que muitos jovens foram chegando (e nada contra os jovens) e quando digo jovens não me refiro à idade, mas sim ao tempo na profissão. Eles foram chegando e pegaram tudo pronto e começaram a produzir, na maioria das vezes, espetáculos apenas para os editais. Aquela geração dos anos 80 estava empenhada em construir algo maior e infelizmente ela foi se aposentando, morrendo. E a turma nova já não tem esse desejo da descoberta, de criar algo que nos identifique. O que se busca agora é algo que as pessoas comprem de imediato ou que consumam gratuitamente, mas que gostem. E isso tem a ver com o excesso de informação burra, também. Nós não temos mais reuniões pra debater, dificilmente algum estudante saberá quem foi Conceição dos Bugres. Professora licenciada em Artes Cênicas pela UEMS, para Luciana Zlata, existe alguns problemas, mas a causa é estrutural. — Existe uma falta de investimento e de exigência de uma formação profissional do teatro. —, afirma. De acordo com a arte educadora, desde que se tornou uma atividade tomada como hobby pelas pessoas, a partir do crescimento da indústria cultural no país em meados de 1970, não há culturalmente uma tradição de pagar uma escola especializada em teatro.
Para Vitor Samudio, a questão da valorização também perpassa o incentivo do poder público. — Então, assim, se a gente não dá condições para que essas potências que nós temos possam, realmente, ultrapassar barreiras e fortalecer o seu trabalho, se não houver essa colaboração, esses talentos e essas potências podem caminhar um pouco, mas há uma série de dificuldades que impedem que o artista extrapole as fronteiras do Estado, de ir para outros lugares, de ser reconhecido em outros lugares. De modo mais objetivo, Expedito de Montebranco reflete que há uma responsabilidade conjunta do poder público e dos artistas no cenário de desvalorização da arte local: — Acredito que as primeiras responsabilidades são dos órgãos de cultura. Governo do Estado e município e depois dos próprios artistas. Nossa produção sempre foi boa e diferenciada, mas, os artistas são esquecidos e quando morrem viram nome de algum prêmio por pouco tempo. Jorapimo morreu no corredor do hospital. Ilton Silva morava de favor no Hotel Gaspar. Zépretim morreu sozinho e o corpo foi descoberto dois dias depois. Já falei disso com gestores da FCMS várias vezes. Eles concordam com tudo, mas não agem. Não existe uma política cultural para MS. A única pessoa que ficou foi a professora Idara Dancam, mas naquele momento a grana era pouca, tanto que foi a gestão dela enquanto secretária de cultura que criamos a Lei de Incentivo à Cultura de MS. Fora isso, os demais gestores tornam as secretarias uma fábrica de eventos. Hoje existe muito dinheiro para a cultura, mas não existe planejamento. É preciso mapear, difundir para o Brasil e para o mundo. Não dá para a uma Fundação ser promotora de eventos. Isso cabe aos produtores locais. Precisamos “ciscar” para dentro. Primeiro olhar para MS, dar condições dignas de trabalho/ circulação para todas as áreas, reconhecer nossos artistas e depois, sim, trazer quem quer que seja. Lembro de um garoto chamado Luan Santana, que o ex-prefeito na época deu oportunidade de ele tocar nos intervalos das escolas porque era amigo de alguém próximo. O garoto foi longe. A oportunidade parou nele. E os demais? Você acha que os professores, alunos e etc. sabem quem são nossos artistas? Não sabem. A novela Pantanal está sendo filmada aqui em Aquidauana, mas passou direto. Não selecionou atores de MS. A culpa não é dela. O governo não foi lá se apresentar, dar as boas-vindas e os artistas não cobraram do governo, da TV Morena, dos deputados e... Curiosamente, pouco dias depois de conceder essa entrevista, Expedito entrou para o elenco da novela. Questionado sobre a valorização por parte do poder público, o ator Vitor Samudio também se mostrou descontente em 2019:
— Puxa, a gente tem Helena Meireles, Dilma Rocha, a gente tem aí das artes visuais o Ilton Silva que morreu esses tempos atrás, a gente tem até mesmo no teatro, na dança muitas pessoas que a população não conhece. O poder público não faz questão de administrar isso. Porque, assim, acho que fortalecendo os nossos artistas, fortalecendo nossa capacidade de produção artística e cultural, a gente fortalece o nosso lugar, fortalece o nosso Estado. Porque, na verdade, a cultura é identidade. Eu costumo falar que quando vamos fazer o RG, colocamos a nossa impressão digital, passa na impressão que aquilo ali é nossa impressão, é a nossa identidade. Mas na verdade a nossa identidade, a identidade de qualquer povo, é a sua cultura, é o seu lugar. Então, assim, se a gente não valoriza a nossa identidade, o nosso lugar, a nossa cultura, a gente não vai valorizar e, inclusive, economicamente, as coisas não prosperam. Eu acho que a partir do momento em que o poder público valorizar mais a produção artística, a nossa cultura local, com certeza esse Estado vai ser projetado para outras dimensões e todo mundo tem a ganhar com isso, inclusive a população. Assim, a questão do valor artístico regional também está relacionada às políticas públicas para o setor da cultura e da arte.
Políticas Públicas
Segundo o artigo Política Cultural E Trabalho Nas Artes: O Percurso E O Lugar Do Estado No Campo Da Cultura, da pós-doutoranda no Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia, UFBA, Amanda Patrycia Coutinho De Cerqueira, foi na era Vargas que, pela primeira vez, a cultura foi pautada pelo governo federal. O fato ocorreu por meio da legislação do Conselho Nacional de Educação do recém-criado Ministério da Educação e Saúde, conduzido pelo ministro Gustavo Capanema na década de 1930. A partir de então, ocorrere uma série de ações que implementaram as políticas públicas para o setor da cultura até mesmo no período ditatorial, malgrado o quadro de censura e perseguição ideológica instalados. Para Amanda Patrycia, que também é doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, na linha de pesquisa Cultura e Política, as criações do Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura, IBECC, em 1946, e o Conselho Nacional de Cultura, CNC, diretamente subordinado à Presidência da República, ocupada
por Jânio Quadros, em 1961, são referências desse período. Entretanto, foi a partir da abertura política que uma sequência de leis foi promulgada sobre o setor da cultura. “Por meio do Decreto n.91.144/1985 o governo de José Sarney cria o Ministério da Cultura (MinC), assumido no ano seguinte por Celso Furtado. Nessa época também foi aprovada a Lei n.7.505/1986, conhecida como Lei Sarney, que concedia benefícios fiscais na área do imposto de renda para operações de caráter cultural ou artístico”, informa a pesquisadora Amanda Patrycia. Não obstante, a instabilidade que ocorreu no governo Sarney, levou à descontinuidade de projetos e pesquisas da área cultural. Restrições que se agravariam durante o governo Collor, que promoveu um desmonte do setor verificado na promulgação da Lei n.8.028, que transformava o Ministério da Cultura em Secretaria, enquanto a Lei n.8.029 extinguia uma série de entidades da administração pública, atingindo duramente a área da cultura. Por fim, Collor substituiu a Lei Sarney pela Lei Federal n.8.313 de 1991, ainda vigente. “A Lei Rouanet, como ficou conhecida, instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura, Pronac, cuja finalidade é a captação de recursos financeiros para os diversos setores culturais. Finalmente, em 1992, a situação que transformou o MinC em Secretaria da Cultura foi revertida”, relata a doutora em Ciências Sociais. Em seu artigo Lei Rouanet: 23 Anos De Incentivo À Cultura, o especialista em gestão pública Vicente Finageiv Filho aponta falhas de implementação da Lei, uma delas, quanto à distribuição de recursos no âmbito regional, sendo que o sudeste e o sul são os lugares que mais conseguiram recursos nos anos de 2012 e 2013. Para Vicente Filho, a Lei Rouanet produziu um significativo desenvolvimento da cultura no país, mas possui muitos pontos que precisam de melhores elaborações. Entre outras questões, a Lei carece de estabelecer uma distribuição mais democrática dos recursos com resultado para o fortalecimento das expressões culturais em cada região do Brasil e, assim, da própria identidade dos povos que compõe a nacionalidade brasileira. Polemizada no governo Bolsonaro, a Lei Rouanet sempre foi alvo de críticas. Segundo a pesquisadora Amanda Patrycia, uma vez que as ações estatais se encontram penetradas pela lógica de mercado, via incentivos de dedução fiscal, e pelas ideologias partidárias políticas que mantêm uma instabilidade dos recursos e programas, os artistas e o setor cultural encontram-se em desvantagem e prejudicados. Há uma série de deficiências estruturais nos programas e leis que criam uma desigualdade de distribuição de recursos por regiões e por artistas. Consequen-
temente, ocorre uma maior difusão dos produtos das indústrias culturais em detrimento da promoção regional com enfoque no fortalecimento identitário e social, como prevê a Lei Rouanet. Assim, segundo os pesquisadores, como a Lei Rouanet se concentra no eixo Rio-São Paulo e Sul do país, resulta que os artistas que se encontrem outras localidades do Brasil, como o Mato Grosso do Sul, acabam prejudicados por falta de projetos que lhes capacitem e ofereçam condições de sucesso em seus empreendimentos artísticos culturais, como observou o produtor do grupo Urgente Cia, Vitor Samudio: — Existem também muitos trabalhos bons e muitas potências, muitas coisas boas que precisam ser exploradas e precisam ser valorizadas. Valorizadas de reconhecimento, valorizadas de condições de trabalho. Então, assim, para que consigamos fortalecer nossa arte, nossa cultura, precisamos de condições para isso, se não houver condições para isso, nada acontece. Como em qualquer outro caminho, tem muita coisa boa, mas que precisa ser valorizada. —, afirma Vitor Samudio. Essas críticas à Lei Rouanet foram a base de um movimento extremista que, aliado à falaciosa ideia de uma guerra cultural e a um saudosismo do regime ditatorial pela extrema direita conservadora, resultando em ações de ataques à cultura e a arte.
Cultura Artística e Políticas Públicas de Mato Grosso do Sul
A segunda metade de 2010 foi marcada por manifestações de artistas do teatro e da dança nas redes sociais contra a falta de pagamentos por serviços prestados à Fundação de Cultura e denúncias de que em grandes festivais como o de Inverno, em Bonito, onde os destaques são sempre artistas de fora que, custando mais aos cofres públicos, ganham um maior investimento em propaganda. O assunto foi abordado durante as gravações do radiodocumentário no Laboratório de Radiojornalismo II. — Os artistas da região sempre trazem em voga é que geralmente se beneficia mais aos artistas de fora do que os artistas locais. Isso procede? —, questionei a gerente dos fundos de investimentos culturais da Fundação de Cultura do Estado, Solimar Alves. — Não. Não é bem assim. Porque normalmente quando
eles colocam assim, que o maior beneficiário é o artista de fora, quando você contrata um artista de renome nacional para fazer uma apresentação em determinados eventos. Contrata-se alguns nomes, essas pessoas são capitaneadores de público, que traz para ajudar, para prestigiar o Festival como um todo. Então, o público que ele atrai é um público bem maior. Então é justo que o seu cachê seja maior. E aqui se trabalha direto. O artista local, de uns oito anos para lá, já teve um cachê bem, como é que eu digo? Eles já tiveram um cachê de valor bem insignificantes e que, nesse transcorrer desse tempo, eles foram sofrendo reajustes e hoje podemos até dizer que pode não ser o ideal, mas está muito mais próximo daquilo que é o merecido, que é o que você esteja valorizando o artista da casa através desses cachês. Em meados de 2014, alguns artistas da capital utilizaram as redes sociais para reclamar do atraso no repasse de verbas e pagamentos por serviços prestados ao município, conforme relata a atriz Fernanda Kunzler: — Em 2014 levamos o calote da Prefeitura, não investiram nos dois fundos que temos para a área (FMIC/Fomteatro). Em 2015 lançam edital que só foi pago em 2016, e assim vem sendo, estamos com dois anos em aberto. Por exemplo, foi repassado em julho de 2020 os recursos que era para ter sido pagos em agosto de 2019, que se tivessem sido feitos, ano passado no início da pandemia e paralisação, estaríamos finalizando os trabalhos. No Estado de Mato Grosso do Sul, a Lei Estadual 2.645/2003 do Fundo de Investimentos Culturais do Estado de Mato Grosso do Sul – FIC-MS, implementada para o setor cultural também é alvo de críticas similares. Em setembro de 2020, a atriz também relata que houve situações de atrasos com relação aos investimentos da Fundação Estadual de Cultura: — No Estado, FCMS, lançaram o FIC Fundo de Investimento Cultural em 2015, terminaram de pagar em 2017, e não lançaram mais nada para o setor cultural, nenhum edital! Os editais públicos são onde se concretiza a política cultural, onde se investe de forma democrática os recursos previstos para o setor.... Lançaram outro FIC em 2019 e estão pagando esse ano.... Para ser reformulado e efetivado. Porém há vários trabalhadores que não acessaram o FIC, nós por exemplo. Em 6 anos de governo Azambuja, lançaram somente dois editais (nossa política pública, previsto na lei do sistema de cultura). Onde estão os outros 4 anos de investimento cultural? Durante a gravação para o radiodocumentário, o produ-
tor Vitor Samudio também falou sobre o assunto: — Os pagamentos, o que acontece? A gente percebe sempre, assim, a cultura, nunca é prioridade na gestão. E, assim, não é você falar de gestor, de um outro gestor, de um governo. De uma forma geral a cultura acaba não sendo prioridade em praticamente todos os governos. Então, sempre quando há um problema financeiro, há algumas questões que envolvem o cofre público, eles vão cortando. As primeiras gorduras que eles vão tirando, e que eles chamam de gorduras, são esses setores. É a cultura, é o esporte... E isso acaba afetando diretamente a toda uma cadeia econômica. —, analisou o produtor do Urgente Cia, Vitor Samudio. Na mesma época, Solimar Alves foi questionada sobre o incumprimento constitucional por parte do Estado em destinar 1% dos Orçamentos do Estado à cultura: — Bom, o 1% da cultura, ele tem até 2025, se não me engano, para ser totalmente implantado. Então, quando o Sistema Estadual de Cultura foi aprovado pela Lei 5060, foi dado um prazo para que essas ações fossem executadas. Então, ele vem sendo implementado. Mas, tudo isso também damos de frente com a questão financeira, orçamentária. E dessa crise, que não é só o nosso Estado que está passando, é o país inteiro. Passou por uma crise, todos os Estados tiveram que fazer o contingenciamento. Então a cultura também não ficou. Então se você me pergunta: “o governo colocou o 1%? ” Não! Não por conta de tudo isso, né? Não tinha como, se nem na educação, na saúde, na segurança que são colocadas como áreas prioritárias em todo e qualquer governo não conseguiu atingir aquelas metas, destinar os recursos. Realmente. Então a cultura, também, ficou um pouco a desejar, ficou um pouco esperando que viessem mais recursos. Esperamos que no próximo ano essa economia dê uma virada e que possamos estar aplicando maiores recursos para a área cultural como um todo. —, defendeu a gestora de investimentos culturais. Para o ator e produtor do grupo Urgente Cia, Vitor Samudio o discurso de que a cultura é um setor pouco lucrativo não se sustenta: — Se você investe em cultura, você vai ter menos pessoas na rua, menos pessoas cometendo atos de vandalismo. Porque essas pessoas, esse tempo ocioso que elas têm, e isso que vai se formando dentro do universo que ela tem dentro da cabeça dela, com a cultura, se ela tem um violão, se ela faz aula de violão, se ela faz aula de teatro, se ela faz aula de dança, a cabeça dela vai
sendo ocupada. A mesma coisa a saúde pública. Várias pessoas aí com problemas de depressão, da ordem psíquica ou psicológica, as artes podem trabalhar muito bem isso. Então, assim, de certa forma há uma inversão de um pensamento e a questão dos atrasos do cachê vem muito por questão desse pensamento de que, “olha, há um problema no financeiro. Da ordem do financeiro, no cofre público, então aonde a gente começa cortando? Ah, vamos começar cortando pela cultura, vamos começar pelo esporte”. E é onde essas pessoas, no caso, nós, né? Porque eu me incluo como artista, acabam sofrendo, porque são serviços que são prestados e que não são pagos de uma forma... de uma forma, certa. O que acontece? O artista, nada mais é do que um trabalhador. Da mesma forma que existe o advogado, que existe a secretária, existem aquelas pessoas que fazem limpeza urbana na cidade, existem várias outras profissões, existe o artista ali também que é um trabalhador. Ele precisa acordar cedo, planejar o trabalho dele, correr atrás das coisas dele, ele tem a família para cuidar, o aluguel para pagar, o filho para dar comida. Então, quando ele vai lá e presta um serviço e faz o seu trabalho, e aí acontece esse descaso no sentido de demorar meses e as vezes até anos para se receber o seu cachê, o seu trabalho. A empresa de energia elétrica, o dono da casa, não vai colabor no sentido de “aí, então eu vou deixar as contas e você”. Elas não param, então, quer dizer, é um processo muito cruel porque são trabalhadores que prestam serviços e não o recebem os seus pagamentos em dia. —, finalizou, batendo com o punho fechado sobre a mesa de modo a repercutir cada palavra. Na avaliação da antropóloga Marlei Sigrist, o Estado ainda precisa promover mais esforços em relação a cultura: — Eu penso que, ultimamente nós temos tido pouco incentivo por parte do poder público quanto a isso. Ele deveria ter mais propostas, mais projetos de preservação e valorização da cultura. Principalmente a cultura regional, a cultura tradicional que é o que nos dá a grande diferença em relação ao restante do Brasil. Então o poder público tem investido, mas em alguns prédios, algumas arquiteturas e etc... Mas, na questão da cultura tradicional, que é uma cultura passada de geração para outra, ela não é palpável, o que nós chamamos de patrimônio imaterial, pouco se tem feito. Eu posso dizer, por exemplo, que há três anos nós já entramos com a solicitação de registro da Festa do Divino lá dos Malaquias, que tem 110, 112 anos. Mas até agora está parado, está engavetado o projeto. Então não é possível que o governo feche os olhos para essas questões que são prioritárias para a preservação do nosso patrimônio cultural e imaterial. Eu tenho esse olhar, hoje, para essa nossa cultura tradicional.
Durante a produção do Radiodocumentário para o Laboratório de Radiojornalismo II a temática sobre o poder público e as políticas públicas junto ao setor cultural não ficou de fora:
— Vitor, na sua opinião, em termos de governo, o Estado valoriza as artes, a sua cultura? —, interrogo no estúdio de rádio. À minha frente, Vitor Samudio meditou um instante antes formular sua resposta: — A minha opinião é que ainda não. Porque, ainda não valoriza da forma que deveria valorizar. Não valoriza no incentivo econômico, financeiro. Não valoriza num aspecto simbólico, não valoriza num aspecto... cidadão, entendeu? Por exemplo, a gente tem muitos artistas daqui, de Mato Grosso do Sul, artistas nossos, que são referências. Vários. Não é um, não são dois, não são três, não são cinco. São vários. A gente estava falando agorinha sobre essa questão das artes lá fora e tal. Mas tem várias referências aqui. E que a gente, assim, sequer, muitas pessoas não sabem, não conhecem, não sabem qual é o trabalho. Questionada sobre as críticas, a gerente de fundos de investimentos da Fundação de Cultura detalhou as ações da instituição: — Como está falando de Estado, vamos falar via Governo do Estado, né? Tem as ações direcionadas nas diversas áreas. Tanto na área que podemos falar da difusão cultural, que é mais para as atividades de apresentações de espetáculos, de propiciar com que os produtores culturais, artistas, no caso de teatro, música, dança, artes visuais, eles possam estar apresentando e difundindo o seu trabalho. Também tem as ações pelo pessoal do artesanato com a participação em feiras, na reciclagem, na capacitação dos próprios artesãos. Na questão do patrimônio rebuscando os bens que relevam, que registram a memória cultural do nosso Estado, na questão de imóveis. E quanto nos bens... imateriais. Tanto os bens materiais quanto os imateriais! E somando-se a essas ações, tem-se o FIC, que é o Fundo de Investimentos Culturais que através de um edital em que o produtor se habilita, recebe o recurso para que possa fazer o seu projeto e colocá-lo na rua e chegar de encontro a comunidade. Na avaliação do produtor e ator Vitor Samudio, os investimentos em cultura precisam ser enxergados como ações do poder público que beneficiam a cadeia econômica da região. — Porque, assim, tem gente que ainda diz que a cultura é gasto. Mas na verdade a cultura não é gasto, muito pelo contrá-
rio. A cadeia produtiva e econômica da cultura é muito grande. Quando você investe, por exemplo, na montagem de um espetáculo de teatro, você não está investindo só naquele grupo. Você está investindo naquele grupo, e você está investindo numa série de pessoas, em uma cadeia gigante de pessoas que trabalham em torno daquela ideia. É o pipoqueiro que vende a pipoca em frente ao teatro, é a costureira que faz o figurino. São as pessoas que trabalham na gráfica, são as pessoas que fazem a cenografia, são os atores em si. Então, assim, é uma série de pessoas. A cadeia econômica da cultura, é muito ampla, então o dinheiro quando entra para a cultura, acaba se descentralizando, diferente, por exemplo, das obras. As obras concentram então o empreiteiro, acabam concentrando aquele recurso que vem distribuído muito pouco. A cultura não, ela consegue distribuir de uma forma bem mais ampla. Pegando inclusive até, por exemplo, o turismo, a segurança pública, a educação. Porque, assim, há algumas contas que muitos gestores ainda não fizeram, ou, não procuraram saber. Quando se investe em cultura, você investe menos em segurança pública, você investe menos em saúde pública entendeu? Então, de certa forma, investir na cultura acaba gerando muito mais economia para o próprio cofre público, e outros setores. Na visão da coordenadora do Museu da Imagem e Som do Estado, MIS, Marinete Pinheiro, é preciso valorizar ações da Fundação de Cultura na promoção de diálogos com a sociedade: — A gente acaba tendo essa necessidade da interlocução entre a sociedade civil, principalmente de quem é um conhecedor de causa, de quem é o pesquisador. Na verdade, quem é esse artista que está ali, e a gestão pública. Então, assim, é uma relação que tem de ser muito azeitada para que isso aconteça, e para que daí a sociedade tenha um conhecimento de que esses patrimônios existem. É muito mais fácil você tombar um bem público como, por exemplo, um prédio. Enfim. Um espaço muito mais visível do que você conceituar e colocar essa relação de necessidade de que um saber, de que um modo de fazer ou que uma atividade artística, como por exemplo, a Festa do Divino que é tão importante para aquela região do Estado, que seja reconhecida e seja retomada como um patrimônio que passa a ser uma relação de quem pertence ao Estado, pertence não só para àquela comunidade que está ali. Mas, pertence a todos nós que temos de alguma forma uma relação com esse pensamento, com essa prática produzida. Deveras, na metade da década de 2010, uma importante ação do governo federal permitiu que a sociedade civil pudesse propor ao governo a gestão pública, algumas ações.