QUEM SABE SOBRE ADOÇÃO? Histórias de pais adotivos
IZABELA PIAZZA PINTO
QUEM SABE SOBRE ADOÇÃO? Histórias de pais adotivos
IZABELA PIAZZA PINTO
Título: Quem sabe sobre adoção? Histórias de pais adotivos Copyright© 2020 Izabela Piazza Pinto. Todos os direitos reservados.
Autora Izabela Piazza Pinto Orientador Prof. Dr. Felipe Quintino Monteiro Lima Projeto gráfico e diagramação Izabela Piazza Pinto Contato izabelapiazza22@gmail.com
Projeto Experimental do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
QUEM SABE SOBRE ADOÇÃO? Histórias de pais adotivos
IZABELA PIAZZA PINTO
Para os meus pais adotivos, João e Teresinha.
Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento. Clarice Lispector
SUMÁRIO
PRÓLOGO
Um breve relato sobre adoção no Brasil p. 12
01 De onde eu te vejo p. 18
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03
Mãe da Maria Clara p. 28 Pai da Sofia p. 46
05 04 Mãe da Carol e da Camila p. 64
Mãe da Andressa p. 80
APÊNDICE
Adoção no Brasil, caminhos p. 94
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Prólogo Um breve relato sobre adoção no Brasil
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Essa história começa a ser contada no período do Brasil colonial quando a adoção acontecia informalmente sem bases na lei. As instituições de caridade que acolhiam crianças e adolescentes deixavam as mesmas à margem de uma vida de servidão e sem direitos de um filho legítimo.¹ Quase um século depois surgiu o Código Civil de 1916 que restituiu uma prática conhecida em outros países: a transferência escrita da responsabilidade tutelar de um menor para um adulto. Assim qualquer pessoa que tivesse mais de 50 anos, sem filhos, poderia adotar de acordo com um contrato estabelecido com os pais biológicos.
Reprodução do Código Civil de 1916.²
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¹ Moraes, Patrícia Jakeliny F.S.; Faleiros, Vicente de Paula. Adoção e Devolução: Resgatando Histórias, 2015. ² Documento pertencente ao acervo do Senado Federal.
Não existiam restrições relacionadas a sexo, estado civil ou nacionalidade. O adotado também não respondia a restrições referentes à idade, apenas obedecia uma diferença de 18 anos dos pais adotivos. Além disso, o documento poderia ser revogado e a criança não cortava o vínculo com os pais biológicos. É nesse período que a “adoção à brasileira” se torna uma prática comum. O termo se refere a uma atitude clandestina que ocorria quando os pais ou a família de origem entregava seu filho para outra pessoa que registrava como se fosse dela. Essa atitude priorizava o lado que desejava ter filhos, mas falhava ao abandonar os interesses do adotado. Em 1957 ocorrem algumas alterações nesse Código Civil, desta vez com um olhar maior para os adotados. A idade mínima para adotar baixa para os 30 anos e a diferença de idade passa a ser 16 anos. A mudança foi durante o governo de Juscelino Kubitschek, que protagonizou no cenário político um caso de adoção dentro da própria família. Ele e sua esposa, Sarah Kubitschek, adotaram Maria Estela após uma decisão dos pais biológicos em entregar a filha.³
Ao lado esquerdo Márcia, filha biológica do casal, seguida da mãe, Sarah, depois Maria Estela e na frente JK — 1953. 4 4
³ Lei nº 3.133, de 8 de maio de 1957. Arquivo da foto: Memorial JK. Disponível em: <http://www.memorialjk.com.br/>.
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Oito anos depois surge a lei nº 4.655 que legitimava a adoção, trazia direitos hereditários, tornava um vínculo irrevogável e cortava os laços com a família biológica. Pouco depois, em 1979, surge o código de menores que divide a adoção em duas formas, a simples e a plena. A primeira se assemelhava ao Código Civil, destinando-se a crianças abandonadas pelos pais que, após autorizarem a entrega, mudavam de família, mas não detinham dos direitos de um filho legítimo. E a plena era destinada para os que tivessem até 7 anos de idade e assegurava os mesmos direitos de um filho biológico. Com a nova Constituição Federal de 1988 foi instaurada uma só forma de adoção. A partir dela é consolidado, dois anos depois, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A idade para adotar novamente diminuiu. Passou para 21 anos. Com o avançar dos novos trâmites jurídicos outras alterações são feitas, como a lei nº 12.010/2009 que consolida a criação de um sistema que reúne os dados das pessoas que querem adotar e das crianças e adolescentes aptos à adoção. 5 Nessa linha temporal a adoção se encontra entre avanços e recuos, em alguns momentos prevalece o interesse do adotante e em outros do adotado. Os dados mais recentes refletem como a legislação, ainda resguardada de burocracia, carece de políticas públicas de ambos os lados atingidos. Conforme dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) há mais de 30 mil crianças acolhidas em abrigos e instituições, dentre elas 5.166 estão aptas para adoção, 3.796 estão em um processo de adoção e 4.481 foram adotadas a partir de 2019 até novembro de 2020. A balança se desequilibra com o número de pretendentes sete vezes maior do que o número de crianças prontas para serem adotadas, chegando a 35.865. 6 Quando o recorte é feito em Mato Grosso do Sul os números saltam para o mesmo desnivelamento: 724 crianças e adolescentes estão acolhidas, 133 disponíveis para adoção, 164 em um processo de adoção e 212 adotadas no mesmo período, de 2019 até novembro de 2020. Os pretendentes triplicam os números chegando a 310. Mais informações sobre o sistema de adoção estão dispostas no apêndice, tal como também os passos para quem pretende adotar ou conhecer os métodos do processo. 6 Os dados estão disponíveis em: <https://www.cnj.jus.br/sna/>. 5
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Entretanto, desses pretendentes quatro são solteiros e, apesar do número baixo, isso indica uma outra realidade viável para maternidade e paternidade solo. Um dos impedimentos que aumenta esse quantitativo, entre pretendentes e crianças disponíveis, está na escolha do perfil, uma vez que os mesmos exigem cor da pele, sexo, idade e outras questões. Na capital do estado, Campo Grande, dos 71 pretendentes ativos apenas 12 registraram na ficha que não havia preferência por cor, enquanto 28 optavam por crianças brancas e 22 por pardas. Nem todas as crianças estão aptas para adoção, visto que isso ocorre apenas quando todos os recursos para ficar com a família de origem são esgotados. A destituição familiar pode ocorrer quando há algum perigo que coloca a vida em risco, como o abuso infantil. No relatório do Disque 100 de 2019 foram registrados no país mais de 80 mil denúncias de violações de direitos humanos contra crianças e adolescentes. Violência psicológica, física, sexual, exploração de trabalho e outros indicadores alertavam sobre a situação infantil. Além disso, 52% dos casos denunciados são praticados por pessoas próximas à vítima, como mãe, pai, padrasto, tio e outros. 7 Os indicativos mostram que os laços sanguíneos quando não acompanhados dos afetivos valem pouco, senão nada. Os estigmas que sondam a adoção também precisam de mais discussão e medidas que derrubem barreiras de preconceito e medo sobre a cor, idade, sexo ou histórico da criança. Quem opta pela adoção parte de uma escolha humana em lidar e acolher o sofrimento ou o abandono do outro. São dois protagonistas de uma mesma história que enfrentam durante o processo as próprias dores, de um lado a espera por um pai ou uma mãe e do outro a vontade de se tornar isso. Dois extremos em busca do mesmo fim: ter uma família.
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Relatório disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-ainformacao/ouvidoria/Relatorio_Disque_100_2019_.pdf>
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De onde eu te vejo
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Uma tela com espessura fina e um comprimento de seis polegadas junto com um fone de ouvido branco que se arrasta por mais de um metro ao longo do pescoço são minhas ferramentas. As principais ferramentas. As únicas que entram na categoria tecnológica. De resto tem papel, caneta, anotações e blocos espalhados pela mesa e pela parede dos mais variados tons de amarelo. O medo de qualquer falha de memória toma espaço em pequenos rabiscos ao longo do dia. Era setembro de 2018. Para ser mais exata era uma terça-feira, dia 18 de setembro de 2018, às 11h44 quando decidi falar sobre a adoção como pesquisa. Nesse dia o clima estava agradável e por algum motivo havia ido a casa de um querido amigo para conversar. Nesse horário iniciei uma outra conversa que mudaria por completo o que pensei que achava saber da adoção. Um diálogo longo o suficiente para colocar todos os desejos da pesquisa que acabava de nascer. O professor, atento aos detalhes, escutou do início ao fim. O começo estava embaralhado como cartas desordenadas jogadas na mesa. Mas ao final ele soube a necessidade desse tema. O que não foi esperado era que antes de encerrar a ligação, agradecer e despedir, ele questionou o porquê de pesquisar esse assunto. Um fio de ansiedade atravessou a linha telefônica naquele instante. É claro, ele notou em algum momento que a pesquisadora também partilhava de algo singular e pessoal com o tema. Quase dois anos depois, também em uma terça-feira, dia 15 de setembro de 2020, apareceu a primeira história. E que história. Por volta das 16h, quase 17h, Fabiana mandou mensagem pelo aplicativo whatsapp sinalizando um entusiasmo em contar detalhes da sua vida. — Oi, meu nome é Fabiana Ferreira, sobre o seu livro...— enviou por mensagem de texto às 16h54. A conversa se estendeu no restante da semana com detalhes minuciosamente contados quase sem interrupções de perguntas. Uma viagem para o passado de uma menina paulista. Sua voz se apresentava tênue e contínua, o raciocínio se prolongava entre as frases até que encerrasse as partes. Dos acontecimentos cada fissura de palavra conseguiu voltar no tempo para reconstruir aqueles dias tão longe. Sem timidez e sem pressa conheço boa parte de quem é Fabiana 18
nos primeiros minutos. O êxtase talvez seja maior do lado de cá da tela quando encerro essa conversa. Das dezenas de perguntas estruturadas no papel branco risco uma a uma a medida que aparecem mais do que singelas respostas. Muito mais. A terça, quarta, quinta e sexta passam. Tão depressa que o calendário pendurado na parede da cozinha aponta para a próxima entrevista e no celular um despertador agendado reforça o compromisso. Um diário azul com páginas amareladas cheios de linhas pretas abraçam os primeiros esboços do que escuto de Fabiana. Palavras riscadas, circuladas, grifadas com um marca-texto neon verde preenchem as ideias do que fazer para contar essa história. Dali em diante o corpo toma formas. Dias depois me encontro com Rita. Preparo tudo de novo. As perguntas. A caneta. O bloco de anotação. O fone. Ajusto o celular em diagonal com a câmera apontada para o sujeito a sua frente. A cadeira também é ajustada pelo tamanho que tem do chão e pelo espaço que acolhe as costas. Dali em diante é a espera. O toque da chamada é parecido com a da ligação por voz e se interrompe quando do outro lado a segunda personagem dessa narrativa atende. No relógio do celular os minutos se aproximam para cravar quatro horas da tarde. A conversa se delonga até o anoitecer, mas o tempo se torna relativo com a quantidade de assuntos e pedaços extraídos do passado e do presente. Rita está sentada no sofá da sua casa, com o cabelo preso para trás onde seu rosto aparece com traços mais perceptíveis. Quando ela sorri as bochechas formam duas maçãs no rosto. Quando ela chora seu rosto murcha e os olhos se enchem d’água. Os ruídos também ocupam seu próprio lugar na conversa. Uma interferência, talvez da internet ou dos próprios aparelhos, impede que ela escute algumas perguntas. A repetição parece uma insistência e até poderia ser se estivéssemos no mesmo espaço, mas nesse caso atípico ela compreende as tentativas de escuta e de fala. O silêncio também se apresenta quando é necessário um fôlego a mais para retomar a difícil história. Mais adiante enquanto Rita vai reconstruindo cenas da sua própria vida o barulho ao fundo é preenchido por duas vozes infantis. Logo depois essas vozes ganham corpo e aparecem também na tela 19
do outro lado. São duas meninas, uma delas está mais acanhada e aparece pouco e a outra olha para Rita em busca de respostas. — É uma amiga da mamãe filha, estamos conversando. — diz. Um oi com aceno caloroso é visto do lado de cá da tela. Depois as meninas desaparecem do vídeo e retomamos a viagem. No dia 15 de outubro conheço André e Ireno. Mais André do que Ireno. Os dias anteriores foram longos pensando nas histórias que haviam passado, mas o tempo se encurtava novamente no calendário. Às 16h05 ligo para André e enquanto o telefone toca posiciono os materiais em cima da mesa. Encaixo o celular em uma espécie de tripé improvisado para que o lado de lá consiga ter mais visibilidade da entrevistadora. Aguardo mais alguns minutos e então ele aparece. Jogamos conversa fora nos primeiros momentos e percebo, olhando para tela, que ele está em um cômodo que se assemelha a um escritório, com um painel de anotações pendurado na parede logo atrás da cadeira em que está sentado. Falamos inicialmente sobre o clima para quebrar qualquer timidez e de alguma forma criar uma proximidade, mesmo que seja partilhando de um conhecimento genérico. Nos dias anteriores havia chovido e neste dia também. Felizmente a internet se manteve estável durante toda conversa o que proporcionou um relato ininterrupto. Rapidamente ganho confiança e consigo adentrar em memórias tão distantes que necessito de um lápis na mão e um papel para não perder a cronologia da linha do tempo que desenhei enquanto ouvia. A voz se mostra gentil e paciente para explicar cada vírgula. Também aparecem risadas espontâneas em torno das perguntas mais brandas. Quando o relógio avança, a conversa já se encaminhou para um lugar distante das perguntas semi estruturadas. Cada palavra verbalizada do lado de lá é naturalmente exposta. O passado de André revela mais sobre adoção do que o esperado. Antes de todas as entrevistas sabia pouco ou quase nada de cada um, apenas que eram pais e mãe adotivos. Pois bem, surpresas aparecem. O papel em cima da mesa, que antes era branco, está rabiscado com algumas ideias à lápis. O quarto vai se escurecendo à medida que o sol se põe do lado de fora da casa o que indica também outro fator surpresa. Escuto, assim como escutei quando estava com Rita, vozes de uma criança ao fundo. 20
Ela aparece na câmera escalando a cadeira em que André estava sentado e então se acomoda por ali mesmo ainda com resquícios de sono. Balbucia algumas palavras e tateia o rosto do seu pai até que lhe dê mais atenção. Pouco depois ela encontra um celular e liga em uma música ou vídeo infantil que a entretem na mesma hora. Ele, por sua vez, tenta se concentrar e retomar o raciocínio da última pergunta feita, mas fica dividido em partilhar com a filha algumas palavras e terminar de contar a sua história. Mais a frente outra pessoa aparece, Ireno. Percebo então, com essas sequências de eventos, que anoiteceu enquanto conversávamos. Quando acaba organizo todo o material que estava em cima da mesa e saio para sentar no quintal de casa em uma tentativa de montar a história na própria cabeça. Dias depois o último encontro acontece. Não estava nos planos, em nenhum deles, visitar pessoalmente cada personagem. Isso porque um vírus assola vários países no mundo todo e infelizmente é transmitido pelo ar até onde os noticiários divulgaram. Portanto a população foi indicada a permanecer em casa até segundas ordens e evitar aglomerações. Porém, os jornais continuavam a noticiar a queda no isolamento mesmo em situações de crescimento de óbitos.¹ A convite vou na casa da última entrevistada, Silvia. Combinamos de manter a distância e acatamos as medidas protetivas. Na manhã do dia 19 de outubro estou no trabalho tentando mapear a distância entre os endereços e qual o caminho mais rápido que posso escolher. Depois do almoço preparo todas as anotações que estavam na mesa e coloco dentro de uma mochila para não ficar nada para trás. Entro no carro por volta das 14h30, nosso encontro foi marcado às 15h. Quando estou a menos 1km de distância, de acordo com o GPS, mantenho a velocidade mais baixa para olhar os números das casas. Passo duas vezes pela rua certa até que enxergo a casa de Silvia. Ela aparece no portão e se mostra receptiva logo de cara. Entramos e andamos até a porta que fica no fundo da casa. Alguns cachorros aparecem latindo sem parar como se denunciassem a forasteira que acabava de chegar. Há dois sofás um de frente para o outro na sala, me sento em um e Silvia ¹ “Em duas semanas, mortes por Covid-19 mais que dobram em Campo Grande”. Campo Grande News, 5 ago. 2020.
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no outro. Retiro o diário azul da bolsa, pego uma caneta e ligo o gravador. Posiciono o gravador no braço do sofá e pego uma almofada para servir de apoio enquanto faço anotações. Começamos a conversa. A sala é bastante espaçosa e se interliga a um outro cômodo aberto que se assemelha a uma sala de jantar. O telhado é alto o que dimensiona ainda mais o ambiente. O ventilador de teto está ligado, mas só percebo a sua presença quando vamos para cozinha que está bem mais silenciosa. Continuamos a conversa de lá. Vejo fotos da família, da filha, dos pais. Viro cada página do álbum cuidadosamente para não estragar e aproveito para fazer os próprios registros. A cozinha é toda branca, com eletrodomésticos, armários e parede quase da mesma cor. Um relógio está pendurado bem próximo de onde estou sentada e escuto o tic tac mecânico sincronizado. Silvia se permite abrir para todas as perguntas. Ela dá várias risadas espontâneas ao longo do diálogo. O modo como fala exala partes consideráveis da própria personalidade. Em alguns questionamentos ela leva mais tempo para se recordar e ficamos em silêncio aguardando. Também noto a confiança em contar dos seus sentimentos e das suas fragilidades. Logo se vê que a trajetória foi longa e com percalços. No fim a despedida acontece no portão da casa e cada uma segue o seu caminho.
O porquê da adoção Em dezembro de 1992 meus pais adotaram o primeiro filho, Davi. Eles se casaram dois anos antes, em maio de 1990. Tentaram ter um filho biológico logo nos primeiros meses de casados, mas perceberam que seria algo mais complicado do que o planejado. Teresinha, minha mãe, conseguiu engravidar três vezes e todas elas resultaram em aborto espontâneo. Decidiram então mapear o genoma para ver a origem das falhas e foram até Bauru (SP) para consultar um geneticista conhecido. No do meu pai, João, o resultado não apontou nenhuma alteração significativa, mas para minha mãe a conclusão foi ruim. Translocação cromossômica equilibrada. 22
O nome estranho nada mais é que uma alteração nos cromossomos que podem resultar em alguma deficiência ou aborto. Ainda com os riscos existem possibilidades de um filho nascer saudável, como lembra minha mãe de ter ouvido esse incentivo em forma de esperança.
“Sei que sou pecadora também, mas não sou uma pessoa má, erro muitas vezes mas me perdoe do fundo do meu coração e me abençõe e me conceda a graça de dar a luz a um filhinho cheio de graça e luz no nosso lar. Prometo ter calma e paciência para esperar, pois sei que irá me atender, coloco toda a minha esperança em ti. Sua filha Teresinha”
Carta escrita por volta de 1990 e 1991
Os dois pararam as tentativas por um tempo e deram entrada na documentação para conseguir adotar. Ficaram em média um ano esperando. No dia 15 de dezembro de 1992, eles receberam um telefone de uma amiga pedindo que fossem até a casa dela. Quando chegaram lá viram um bebê dormindo nos braços dela e logo depois receberam a notícia que essa criança na verdade era o filho deles, que ela havia buscado no hospital para fazer uma surpresa. Eles oficializaram a adoção e se tornaram pais a partir desse dia. 23
Bilhete escrito de meu pai para minha mãe comemorando o primeiro aniversário de casamento como pais.
Em abril de 1994 eles conseguiram ter uma filha biológica, Gabriela. Ela nasceu saudável após os nove meses de gestação. Depois do parto minha mãe ainda pensava em ter filhos, mas foi orientada pelo mesmo geneticista sobre os riscos de outra gravidez. — Teresinha, você já foi abençoada com dois filhos saudáveis, aconselho que você encerre essas tentativas. E foi o que ela fez. Quatro anos depois veio à tona a vontade de ter mais um filho. Tanto ela quanto meu pai eram bastante devotos a Deus e a Nossa Senhora. Faziam terços, novenas, rezas e promessas. Na igreja todos sabiam desde o início das tentativas, das filas, da chegada e da nova vontade de ter mais um filho. Então eles ficaram sabendo de uma menina de 15 anos que estava grávida e o pai não aceitava a situação querendo dar a criança para alguém. Uma mulher da igreja, cujo nome era Gláucia, conhecia essa família mais de perto e foi ela quem trouxe essa notícia para os meus pais adotivos. Eles entraram com o pedido de adoção e aguardaram até que fossem avisados no hospital do nascimento do bebê. Em 21 de julho de 1998, uma terça-feira, uma assistente social ligou para eles do hospital Evangélico, também em Dourados, anunciando o meu nascimento. Meus pais não tinham carro próprio e pediram para um amigo uma carona para que eles pudessem ir até lá. Depois disso fizeram todos os registros e colocaram seus nomes na minha certidão. 24
Minha mãe está comigo no colo, minha irmã Gabriela embaixo ao lado do meu pai e meu irmão — dezembro de 1999.
A adoção se faz também de histórias. De muitas. E todas se ligam por esse mesmo fio, mas engana-se quem pensa que são as mesmas. Na complexidade de cada narrativa a fila de espera é só metade do caminho para explicar o que tudo isso significa. Silvia, André, Rita e Fabiana são conhecidos também como mãe da Maria, pai da Sofia, mãe da Carol e da Camila e a mãe da Andressa. De onde eu os vi pude reconhecer e reconstruir o íntimo de suas vidas com a adoção.
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Mãe da Maria Clara
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Filha de pai militar e de cidade interiorana, Silvia nasceu e cresceu em Ladário, no Mato Grosso do Sul. O município fica localizado mais ao norte do estado, próximo à fronteira boliviana, e faz parte de uma região pantaneira interligada ao Rio Paraguai. Com o pai, a mãe e os dois irmãos mais novos ela viveu boa parte de sua vida nessa cidade. Os pais, Guilhermando e Ivanir, se casaram há 50 anos , em maio de 1970. A primeira filha, a Silvia, nasceu antes mesmo de completarem um ano juntos, em 28 de fevereiro de 1971. O segundo veio um pouco mais tarde em abril de 1977. A terceira e última filha chegou 10 anos depois da primeira, em fevereiro de 1981. O pai se alistou logo cedo no exército, antes de se casar. De 1977 a 1979 a família teve que passar um curto período no Rio de Janeiro a pedido do governo militar. Logo depois desse tempo voltaram para Ladário. Guilhermando se aposentou anos depois e continua até hoje na mesma cidade com a esposa. Mesmo agora, aos 75 anos de idade, ele possui resquícios da vida que teve no exército. É uma pessoa autoritária, exigente e algumas vezes repele a ajuda de terceiros. Apesar da filha mais velha notar todas essas características, boas ou ruins do pai, sabe que no fundo se parece mais com ele do que imaginaria. Esse jeito mandão que esteve presente na sua infância e adolescência a fazia questionar tudo e a todos. Silvia é uma pessoa que não mede meias palavras. Ela fala o que dá na telha, sem economizar os verbos. Alguns até comentam: “Você é muito parecida com ele”. A mãe é uma ternura de gente, pelo que Silvia conta. A parte oposta do casal. Há mais abertura com ela. E os irmãos são bem unidos, se uniram mais por conta dos pais que adoeceram, mas antes também existia essa relação afetuosa. A irmã, Teresa, por ser dez anos mais nova não tinha tanta proximidade quando Silvia esteve na fase da adolescência. Era mais a “bonequinha” da irmã mais velha, como se recorda de chamá-la. uma fofura de menina da qual tinha bastante carinho. Mas ela também mostrou um lado hostil com a irmã, vivia fazendo brincadeirinhas supondo que ela fosse adotada. — Eu não vi a mãe grávida… — dizia Silvia para Teresa. — Ôhh madrinha, você viu a minha mãe grávida? — recorria a 28
menina para a madrinha com sérias dúvidas sobre a origem. Vários perdões já foram depositados nessa história. Silvia se arrepende totalmente e o destino, que na época ela não fazia a mínima ideia, ainda brincou com ela de volta. Outros termos também são usados para questionar a eficiência de laços não-sanguíneos, às vezes tão intrínsecos no vocabulário de uma criança, que mesmo sem maldade, passa para frente essas palavras. Outra situação como essa também passou pela sua vida. Aos 16 anos de idade ela namorou um garoto que, ao seu ver, não se parecia com os pais. Ele tinha traços orientais com o olho mais puxado nas laterais, diferentemente dos pais. Convivendo mais com a família ela soube que a mãe era de origem polonesa e o pai de origem síria. Então na cabeça da Silvia não fazia sentido o filho do casal ter saído com aqueles traços e guiada pela curiosidade ela resolveu tocar nesse assunto com o namorado. — Marcelo, você tem certeza que eles sãos seus pais? — perguntou curiosa. — Sim Silvia, imagina… São meus pais sim. — Então tá né, se você diz... O assunto ainda ficou na sua cabeça, mas com a resposta resolveu não perguntar mais. Os anos se passaram, eles já não estavam mais juntos, e ela o reencontrou quando tinha 21 anos. O primeiro assunto dos dois foi essa conversa que tiveram na adolescência. — Silvia, lembra quando você perguntou da minha origem? Dos meus pais? — Sim, lembro sim! O que tem? — Então, você estava certa… Minha mãe me contou que eu sou adotado no meio de uma briga que tivemos. Essa informação marcou. Vinte anos depois ela voltaria nessas duas lembranças para repensar sobre como gostaria que sua filha adotada soubesse da própria origem. Nesse dia ela ainda não tinha ciência de como seria importante o reencontro com o Marcelo, mas depois teria certeza das consequências que esconder algo poderiam trazer.
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Mudanças Com 17 anos Silvia decidiu se mudar para Campo Grande. De início o pai não gostou muito da ideia, mas logo deixou que ela seguisse o próprio caminho. Ela morou um tempo na casa de uns parentes e depois ficou em um apartamento com alguns primos. Começou o curso de serviço social, terminou, se formou e partiu para arquitetura, também se formou e depois pensou o que fazer com esses dois diplomas. Foi então que estudou todos os dias que pôde para passar em algum concurso, qualquer prova que tivesse ela estava dentro e um dia conseguiu ser aprovada em uma delas entrando para a polícia rodoviária. Ela conheceu o primeiro marido ainda na época da faculdade, aos seus 20 anos. Eles namoraram e casaram dez anos depois. Ficaram juntos até seus 31 anos de idade quando ele sofreu um acidente fatal de carro. Pensavam em ter filhos, estavam começando uma bateria de exames para verificar se conseguiriam gerar uma criança biologicamente. Mas os planos mudaram depois da morte dele. Viúva e sem filhos ela precisou buscar outros caminhos. Antes dos 30 ela não pensava em ser mãe, não tinha aquele desejo fundamentado desde a infância de uma menina brincando com as suas bonecas de mamãe e filhinha. Para ela a maternidade parecia vir de fora, da própria sociedade impondo esses desejos que talvez naturalmente não acontecessem. Por isso o anseio de gerar uma criança biológica pairava na sua imaginação entre um sim e um não. Ainda assim não aconteceria tão cedo. Ela queria ter o próprio dinheiro, controlar a própria vida e se assegurar dentro dos próprios medos. Os cursos deram certo, mas o trabalho mais estável só veio aos 28 anos de idade. Não era o momento ideal para parar, ela já tinha esperado tempo demais e queria dar passos mais longos na carreira. Silvia é uma pessoa metódica. Os detalhes da sua vida, por menores ou maiores que sejam, precisam acontecer perfeitamente ou o mais perto disso. Ela gosta de saber onde está pisando e onde vai chegar com cada decisão. Nesse momento queria uma estabilidade sólida no emprego, passar por todo o estágio probatório e só depois que fechasse esse ciclo iniciaria outro. Com 31 ela se casou com o primeiro marido. Ainda com algumas 30
dúvidas, mas casou. Não sabia se estava pronta para ser mãe, se teria esse instante de estar pronta também, talvez não tivesse e ela teria que descobrir tentando. Por isso começou os exames que no final não valeram de nada com a morte do marido. Outra história começava a partir dali. Com 36 anos ela conheceu o Reginaldo, atual marido, que entrou em uma sintonia rápida com ela, mas por outro lado ele já tinha filhos do primeiro casamento. Depois que ela sofreu um acidente grave de trabalho e ele a ajudou na recuperação, viu que era a pessoa certa para assumir um relacionamento sério independente se teriam ou não filhos juntos. Quando se conheceram ele tinha um filho com 7 anos de idade e uma filha com 5. Logo as férias do casal também eram as férias da criançada. A aproximação aconteceu simultaneamente à medida que o tempo passava, ela se enxergou na relação como uma “boadrasta” acolhendo os filhos do marido. Dali veio uma vontade de ter seus filhos também, ainda mais porque se colocou em algumas situações como mãe deles e no fundo ela sabia que não era e nem poderia ocupar um lugar de mãe porque eles já tinham uma. Aos poucos ela foi percebendo que não poderia intervir mais do que permitissem, quando permitissem. Mas por outro lado acabou sendo a ponte entre as duas famílias devido ao atrito entre o marido e a ex-esposa dele. As crianças foram crescendo e entrando nas fases da pré-adolescência e adolescência e os pais não se comunicavam direito. Ela remediava da forma mais pacífica possível, como uma diplomata. Gostava dos dois filhos como se fossem dela, os tratava da melhor forma possível e cabível dentro daquele cenário. A enteada chegou a engravidar na adolescência e Silvia esteve lá para acompanhar, fotografar e viver aqueles instantes como se fosse a mãe. Olhando de fora parece que ser madrasta pode causar sensações estranhas e pisar em territórios proibidos que são previamente demarcados e destinados ao pai e a mãe, mas proporcionam sentimentos de um parentesco único.
Tentativas
O acidente de trabalho impossibilitou que Silvia tentasse ter filhos biológicos durante um ano. Ela precisava manter um repouso quase absoluto. 31
O acidente acertou uma região próxima ao quadril, lesionando uma hérnia e dificultando movimentações muito bruscas. Por isso não poderia gerar uma criança, isso iria contra o que o seu corpo físico suportaria. A estrutura da lombar estava comprometida, não aguentaria peso algum. Quando passou esse período de repouso ela já estava com 40 anos. Parecia um pouco tarde demais, com escolhas mais limitadas e difíceis de fazer. Também se perguntava se o marido realmente queria ter outro filho, porque afinal ele era pai de duas crianças e talvez só quisesse mais um por causa dela. — Você já tem filhos, você é separado, quer mesmo ter outro filho? — Sim Silvia, eu quero ter esse filho. Por mais que suas palavras fossem bastante diretas era a forma mais prática de saber o que eles fariam a partir dali. Começaram as tentativas. Como a idade tornava difícil uma fecundação rápida, partiram para a inseminação artificial. Ao todo foram quatro sessões. A cada resultado negativo ouvia uma voz esperançosa dos médicos dizendo: “Não, vamos tentar mais uma vez”. Se sentia iludida por aquelas palavras, mas no final acabava cedendo. A cunhada também partilhou dessa fase junto com ela, mas em um ano que decidiu parar as tentativas e se dedicar a campanhas políticas acabou engravidando. Silvia se lembra que estavam todos reunidos se divertindo e bebendo enquanto o Brasil levava uma goleada de 7x1 contra a Alemanha na copa de 2014. Uma semana depois desse evento a cunhada descobriu a gravidez, mas Silvia ainda não sabia como era essa sensação. Ela realizou três tentativas em Campo Grande. A primeira não deu certo. A segunda chegou a fecundar e foi até a 14º semana, mas no final não segurou também. Os exames apontavam uma trombofilia na gestação, isso fez com que o feto não recebesse os nutrientes necessários para o crescimento e consequentemente viesse a óbito. Com 14 semanas os dois fetos fecundados não apresentavam mais batimento cardíaco. Foi um desespero receber a notícia e lidar com o luto da gravidez perdida. Cada tentativa custou em média 14 mil reais. Não só o emocional pesava, mas também a condição financeira para custear esse desejo de ser mãe. Silvia teve que lidar com a ansiedade corroendo os nervos e o psicológico dividido entre os fracassos das tentativas e o alto investimento 32
financeiro nelas. Não foi fácil e não foi barato. Na quarta vez ela resolveu ir até a capital paulista para outra bateria de exames que poderiam ou não identificar o problema dessa dificuldade na fecundação. Na volta levou os exames para a ginecologista que a acompanhava, mas ela deu outra negativa sobre a possibilidade da gravidez. — Olha Silvia, o acidente que você sofreu lesionou seu corpo em uma região bem delicada mesmo...— explicava para ela. — Sabe do que mais doutora? Eu acho que vou mudar de lado viu. — disse para a médica indicando que gostaria de adotar. De fato ela estava mudando de lado, atravessando a rua e indo ao fórum. A clínica ficava localizada em frente ao fórum, coincidência ou não a geografia deu uma força maior para que ela não desistisse da ideia. E a relação com a médica se transformou em amizade porque agora os projetos não envolveriam mais aquela montanha de exames e testes. O marido acompanhou de perto cada procedimento e percebia a insatisfação dela que já estava alcançando os limites do emocional. Na quarta e última tentativa ele perguntou se não havia chegado a hora de parar. Esse sonho foi vivido intensamente por ela. Ele sabia como era o sentimento de ter filhos, de amá-los e ensiná-los. Mas ela ainda não. Era um projeto bastante especial e talvez por isso a aposta havia sido tão alta. — Silvia, vamos tentar de outro jeito. — aconselhou ele. — Mas você não se importa? — Não, por mim tudo bem. — Então tá bom, é pra já.
A filha Foram dois anos ao todo de espera na adoção. Entre idas e vindas eles tiveram um bom tempo para refletir sobre o que estavam procurando e sentir a ansiedade pulsar ainda mais forte na esperança de encontrar um filho. De início eles faziam tudo como combinado. O que pediam eles atendiam de prontidão. Fizeram o curso obrigatório e do curso conheceram o grupo de apoio, mas esse não era obrigatório. Pois bem, faltaram algumas 33
vezes e deixaram um pouco de lado. O tiro saiu pela culatra. A correria do dia-a-dia somaram 6 meses de ausência no grupo. No final do semestre fizeram uma avaliação do casal e anexaram ao processo. Silvia queria morrer de tanta raiva quando leu a avaliação. No papel dizia que ela vivia um luto pelas perdas quando tentou engravidar. Ela sabia quem era a pessoa que escreveu aquilo. Não tinha como, por mais que tentasse só pensava nessa pessoa com ódio. “Como isso?!?” se questionava em pensamentos. Ela detestava que outra pessoa desse qualquer tipo de pitaco em cima da sua escolha em adotar. — O que que tem? Eu quero adotar! Por que você está se metendo? — dizia ferozmente. Hoje ela entende essa avaliação e até a intimação que recebeu para comparecer ao grupo de apoio. Essa pessoa não estava errada, Silvia realmente precisava aprender com a adoção e só conseguiria se entrasse a fundo nessa história que agora fazia parte dela. Não faltou mais aos grupos e passou a ter um carinho por essa pessoa que mantém contato até hoje. Na ficha ela optou inicialmente por adotar um bebê recém-nascido ou com poucos meses, mas como era tamanha a ansiedade resolveu aumentar para receber crianças de até um ano e idade. Outra mudança repentina foi a escolha de um menino. A enteada, aquela que engravidou na adolescência, havia descoberto que teria uma menina, então Silvia preferiu trocar sua escolha. Até pensou que viria mais rápido, o que de fato aconteceu. Ligaram para eles avisando de um menino com 7 meses de idade que era compatível ao perfil escolhido. Chegando lá Silvia e o parceiro viram uma criança que aparentava quase um ano de idade, mas até então isso não parecia ser um problema para eles. A questão foi saber da história de origem. O marido ficou assustadíssimo. Silvia por outro lado já imaginava e até esperava ouvir histórias amargas de abandono infantil. Os dois se precipitaram em mudar o perfil da criança. A filha, que ainda existia apenas na imaginação, tinha nome, toalhas bordadas pela avó materna e outros itens de decoração para quando chegasse. Mas o menino não tinha nada. Silvia se sentiu culpada pela situação, mesmo não criando nenhum vínculo com ele. No fim pediu para alterar a ficha de novo e colocar uma menina. Essa foi a última alteração. — Tá tudo bem Silvia, a gente entende! Foi melhor acontecer agora 34
do que vocês adotarem e acabar em uma devolução. — disse a mesma profissional que avaliou o casal meses atrás. Ela se lembra de ouvir muitas histórias de devolução e ficava inquieta só de imaginar alguém que quer tanto ter um filho para no final devolvê-lo. “Isso não é mercadoria”, lembra de comentar com algumas pessoas. Uma história que se recorda com mais detalhes é de uma mãe adotiva que pediu a devolução de um bebê com poucos meses alegando que ele chorava demais. Era de revirar o estômago. Quando chegasse sua vez não teria um talvez, seria definitivo.
9 meses Por ser formada em serviço social Silvia conhecia bem os caminhos legais e ilegais na adoção. Soube de casos de adoção à brasileira em várias regiões do país, principalmente em cidades de interior. Chegou a receber propostas indiretas oferecendo um caminho mais rápido. — Ah, por que você não vem pra cá? A gente conhece uma criança que tá precisando… Silvia negou todas as propostas ou grupos clandestinos de adoção. Colocava na sua cabeça que era uma vida humana e esse não era o jeito de se resolver as coisas. Por outro lado ela sentia um aperto quando recebia essas propostas ou quando sabia que era só ir até lá que encontraria uma criança precisando de uma mãe. Foi duro esperar dentro de um sistema lento e burocrático. — Alô? Eu gostaria de saber como anda o meu processo? — perguntava em incontáveis ligações ao fórum. — Não Silvia, não saiu nada ainda. A impressão que dava era que depois de tantas ligações nem precisava dizer o nome e sobrenome, pela voz ansiosa e questionadora dava para chutar que se tratava dela ligando pela quarta ou quinta vez. Outro receio que ela tinha era de adotar uma criança por esses meios clandestinos e continuar o vínculo com a família biológica. Uma pessoa próxima a ela viveu essa realidade após adotar uma criança diretamente com a família de origem sem os trâmites legais. De início parecia que estava tudo bem, mas com o tempo a mãe biológica começou a ter um contato maior 35
para conseguir ajuda para os outros filhos. E no fundo as escolhas eram escassas. Pouco se podia fazer vivendo à margem. Silvia não queria viver nessa mesma condição. Porque é isso, uma condição. A pressão constante de perder o filho não vale o tempo economizado das filas de espera. Nove meses depois de habilitados que receberam a ligação falando da filha. Foi o período de uma gestação. No dia 1 de agosto de 2016 nascia a Maria Clara e da sua história se tem alguns detalhes. Ela é a quarta filha, mas só foram saber da sua existência quando o Conselho Tutelar interveio em outro filho da sua mãe biológica. Nessa visita viram que ela estava grávida e a partir daí acompanharam o caso mais de perto. Não houve pré-natal ou qualquer outro exame. Foi uma ligação para acionar o SAMU, a chegada até o hospital Santa Casa e o parto. No dia seguinte ela recebeu alta e foi embora. Maria por outro lado teve que ficar, fez alguns exames e foi encaminhada para um abrigo. Sem sequelas ela se desenvolveu de maneira saudável. Uma pediatra chegou a pedir alguns exames do coração por ela ter nascido pouco antes do previsto, mas não houve alterações significativas. A mãe biológica era usuária de drogas e ainda assim, pelo que se sabe, viveu dias lúcidos para manter a filha saudável. Ficou longe das ruas e passou boa parte da gravidez na casa do pai. Silvia não foi atrás de mais linhas dessa história, mesmo como policial resolveu manter distância dos fatos. Não sabe se foi presa ou se voltou para a rua, não sabe se está viva ou morta. Quando Maria chegou no abrigo acionaram a fila de adoção. Por ligação avisaram a Silvia e o marido que havia uma nova criança à espera deles. — Pode vir conhecê-la, sua filha tem três meses. — avisou alguém da equipe. Então essa era a sensação, pensou. Uma ligação curta como um aviso prévio acatado de imediato. Aos 45 anos se tornava mãe. Depois de tantas tentativas, estresses, emoções confusas e dúvidas frequentes. Essa era a sensação. Ao chegar percebeu que havia um engano entre as crianças e a sua filha na verdade era mais nova do que informaram ao telefone. Não eram 36
três meses de vida, mas sim uma quinzena. O que no fundo não mudava nada. Conheceu a Maria de pertinho, apreciou cada detalhe que conseguisse memorizar e dois dias depois levou a filha para casa. A licença maternidade para ficar com a filha foi difícil de conseguir. Uma briga judicial. Ela queria os 6 meses, mas só conseguia ouvir que receberia no máximo 3. — Ah, mas você não gerou, não tem necessidade do pós-operatório. — ouvia como uma desculpa mal formulada. — Deixa eu te explicar, o pós-operatório são 40 dias, eu sei disso porque eu perdi o meu bebê e 40 dias depois eu tinha que estar no trabalho. — Se são 40 dias, por que você quer 6 meses? — Os 40 dias são para a mãe, o restante do tempo é para o bebê, é para cuidar desse bebê, entendeu? Se recorda de conhecer outras pessoas que também lutavam para conseguir esses meses na adoção, principalmente quando era adoção de uma criança nova. O marido trabalhava em comércio autônomo, então o problema maior era com a licença dela. No final conseguiu os 6 meses.
Silvia e Maria Clara — Em 2016
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Família
Entre eles a ideia de ter um parente adotivo divergiu. O irmão da Silvia teve um filho ainda muito jovem na adolescência. Por conta da pouca idade quem ficou com as responsabilidade foi o pai e ele por sua vez não gostou muito da ideia. A avó também tinha adotado à brasileira uma menina. Por isso o pai foi tão negativo quando soube que a filha, mesmo anos depois dessa história, tinha optado pela adoção. — Você vai se decepcionar como eu me decepcionei e como a sua avó se decepcionou também. — Não, pai, você não entende, o que eu quero fazer é adotar, eu tô querendo ter uma filha, o que você fez foi criar uma neta, o que a minha avó fez foi criar uma afilhada, isso é adoção à brasileira. Eu quero colocar o nome em alguém que vai ser o meu filho, não vai nascer do meu ventre, mas do meu coração. Depois que ele conheceu a Maria reavaliou que as palavras ditas para a filha não se aplicavam ali, não faziam o menor sentido. Ele se apaixonou completamente pela neta. Às vezes ela na sua pequenez de tamanho consegue desmontar o avô rígido e autoritário como ninguém mais conseguiria. Inclusive um dos seus lugares favoritos é a casa dos avós. Ela chora em ter que voltar de Ladário para a rotina normal da escolinha e da capital. Nem em vídeo chamada os avós podem aparecer que isso já lhe bate muita saudade. — Mãe por que a gente tem que voltar pra casa? — perguntava querendo ficar mais uns dias com os avós. A avó paterna também tinha um pé atrás com a adoção. Silvia lembra que eles estavam assistindo televisão quando começou a passar a história do ator Bruno Gagliasso e da esposa Giovanna Ewbank que adotaram uma menina no Malawi, país africano. — Ah, como que adota né? — comentou como se estivesse pensando alto. — Ôh vó, logo logo a senhora vai ter uma neta adotada viu. — avisou Silvia. — Como assim? Vocês vão adotar? Isso vai dar problema hein. — Não não, espera aí! O que a senhora tá querendo dizer? — Que ela pode ser mal educada ou ter problema… 38
— Pois é, mas é aí que a senhora se engana, tem neta sua que é de sangue, mas educadíssima né? — disse em tom de ironia. Depois de uma longa conversa, quase sem fim, ela entendeu que os laços consanguíneos são meros detalhes na criação de uma criança. E que independente do passado que a criança teve isso não interferia que ela recebesse outra criação ou outras formas de afeto. Mas que era difícil ouvir isso era. Chegou a perder amizades que derramavam baldes de água fria no instante que ela compartilhava a alegria da adoção e de se tornar mãe. Outros enxergavam como uma ação humanitária. — Ah Silvia, eu acho tão lindo você ter adotado, ter tirado uma criança da rua… — Nossa, mas eu também acho lindo você ter adotado seus filhos viu. — Não, eles são meus mesmo. — Então eu achei lindo que você deixou o trabalho quando a sua esposa ficou grávida né, saiu de lá, abriu mão de ficar viajando para acompanhar seus filhos nascerem, então você adotou seus filhos, tem tanto pai que tem e abandona mesmo convivendo junto. Algumas respostas eram mais ácidas que outras, mas esse era o jeito dela de lidar com as perguntas ou insinuações que irritavam. Enquanto isso algumas pessoas nem tinham notado que a Maria era filha adotiva e comentavam com a Silvia como se tivessem acompanhado toda a gestação. Talvez seja só uma falha de memória, uma desatenção sem fundo de maldade. — Nossa, parece que foi ontem que eu te vi de barrigão aqui na igreja. — comentava uma amiga próxima. Na hora que ouviu a vontade que teve era de rir ali mesmo, mas guardou a história para contar depois no grupo de apoio. Não quis estragar esse momento cômico corrigindo a amiga. Outras pessoas vão mais além, relacionam traços físicos da Maria aos pais. — Ela é a sua cara, tem o olho igual do pai, os cílios também, mas as covinhas lembram sua enteada. — diziam amigos próximos. Silvia se emocionava em ouvir essas comparações, ainda que no fundo soubesse que a sua genética era diferente da filha. Não importa. Elas também se pareciam fisicamente e isso ninguém poderia tirar dela. 39
Maria Clara fotografando para o primeiro aniversário
Maria Uma menina falante como a mãe, gosta de conhecer pessoas novas e conversar com elas durante horas. Vive uma paixão intensa por água. Ama piscina, rio, praia e a natação que faz toda semana. Faz birra, questiona e fica brava, mas depois de conversar com a mãe se acalma. O pai é super coruja, quando vê ela na água sai gritando atrás de uma bóia, mas a mãe logo lembra que ela sabe nadar e muito bem por sinal. Quem vê de fora fica curioso em como a família lida com a adoção. A história da Maria não é mistério para ninguém. Quem pergunta sabe. Silvia adora falar sobre suas rezas durante os 9 meses e como Maria carrega o nome da Mãe de Jesus que ouvia suas preces. Na última viagem da família algumas pessoas perguntaram da origem dela e a Silvia não poupou fôlego para contar de novo essa história. Não se cansa de falar da filha. É como um passatempo em que se diverte revivendo tudo outra vez. 40
— Ela é minha filha, nasceu do coração com 15 dias… — começa contando a história. — Mãe, o que que tem 15 dias? — interrompe a filha para a surpresa de quem tá ouvindo. — Nós te conhecemos com 15 dias filha. — responde Silvia tranquilamente. — Aé mãe? Então tá. — E você conta assim? — questiona a pessoa assustada com a naturalidade. — Uhum. — E ela entende? — Não sei, mas um dia vai entender. Desde o início ela falou abertamente com a filha sobre a adoção, não quer gerar nenhum possível trauma ou confusão quando ela entender melhor o assunto. Apenas uma condição foi colocada, que a Maria aguarde completar a maioridade para tomar alguma decisão de conhecer sua origem ou até visitar a mãe biológica. Silvia ainda pensa na adoção para ter um segundo filho ou filha, por enquanto espera a recuperação dos pais, mas não deixa de cogitar isso para um futuro mais próximo. E se der certo mesmo pensa em adotar uma criança mais velha. A casa é cheia de crianças. Sobrinhos, afilhados, parentes de consideração e os da família mesmo. Sua história se assemelha a de uma tia bastante querida que também vivia com a casa cheia, adorava cuidar dos filhos dos irmãos e amigos, mas no fim nunca pôde ter o próprio filho. Quando ela conheceu a Maria se arrependeu no mesmo instante de não ter tentado outros meios para ser mãe igual a Silvia fez. — Eu deveria ter feito igual vocês… Deveria ter feito isso com o meu velho. Silvia chorou e se arrepiou ao ver a tia se abrir assim. Não esperava tal resposta e menos ainda que mesmo depois de tantas crianças que tinha criado e visto crescer sentisse falta de ter um filho. Na verdade ela se viu nessa tia, como um espelho mirado em um futuro paralelo e talvez tivesse esse mesmo final se não fosse pela adoção da Maria. 41
Reginaldo, Maria e Silvia — Em 2017
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Pai da Sofia
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André morou toda sua infância na frente de uma igreja, uma simples casa na frente de uma igreja. Filho do seu Roque e da dona Lurdes, ele é o caçula dos quatro filhos do casal. Hoje aos 43 anos é formado em filosofia, história e pedagogia e desde a infância pensava nos estudos como uma boa saída da vida dura que os pais levaram. Sua história na adoção começou bem antes, quando aos três meses foi adotado pelo casal. Pouquíssimos detalhes se sabe dessa história. Ele é o único filho adotivo da família, nunca procurou sua mãe biológica, até pensou por um tempo, às vezes pensa também por agora, mas o assunto definitivamente não tira seu sono. Os pais abriram algumas brechas para conversar, mas rapidamente receberam uma negativa do filho. Por não sentir falta de afeto em casa, não vê motivos maiores para saber seu passado, para ele seria só mais uma pessoa. Nada disso impediu André de ter uma infância como as outras. Brincava horas e horas na rua de casa e quando dava o horário de ir embora voltava, tomava seu banho, jantava e ia para cama. Embora se divertisse com os amigos, ele gostava mesmo era de estar colado nos livros. Enxergava como um ato muito responsável e por isso adorava optar por esses momentos. A igreja que ficava na frente de casa foi um dos seus lugares mais visitados na infância. Era uma igreja católica daquelas que são cheias de eventos, que não param durante o final de semana e que basicamente todo mundo se conhece pelo nome ou sobrenome da família. Foi lá que ele fez catequese e anos depois se tornou catequista, neste espaço ele também se envolveu com alguns projetos de solidariedade. Sua relação com a igreja nunca teve atritos, se manteve boa ao longo dos anos. O pai, já falecido, foi um sujeito mais quieto, falava o básico para os filhos e se mantinha em silêncio o restante do tempo. Ele trabalhava como pedreiro e seguia à risca algumas regras. Quando os filhos se reuniam no sofá para assistir televisão era uma alegria que só, mas se tivesse uma cena que seu Roque entendia como proibida, todos eram obrigatoriamente retirados da sala até que a cena acabasse e daí pudessem retornar em segurança. De fato não era um homem de muitas palavras, mas atento a tudo. No trabalho o pai levava André e os sobrinhos, que moravam com a família, para o ajudarem depois da aula. A tarefa até que parecia fácil, carregar tijolos para cá e para lá onde fosse necessário deixá-los. O que 46
atrapalhava mesmo era fazer isso debaixo de um sol quente, que ardia a pele e até na sombra fazia calor. André detestava estar ali e a figura paterna, atenta a tudo, percebia a insatisfação do filho só de olhar. Para evitar qualquer briga e passar raiva à toa, optava por liberar o filho dos serviços e deixá-lo estudar. No fim era exatamente isso que ele queria, estudar. Quando chegava o final de semana ele pagava os sobrinhos pela ajuda prestada e André também recebia, mesmo sem ter feito grandes coisas. Às vezes ganhava até mais que os sobrinhos para comprar um livro ou outro material que ajudasse nos estudos. No fundo ele sabia que essa era a melhor aposta que o filho poderia fazer. Uma forma de ter o que ele não teve, pelo menos tentar ter. E ele sentia essa confiança depositada pelo pai, o que o deixava mais faceiro para continuar. Essa era a vida que eles tinham, da forma como foi e como dava para ser. Poucos recursos financeiros. Pouca oportunidade batendo na porta. Mas um momento ali e outro aqui de alegria sincera. Isso já estava de bom tamanho para André.
Das perdas O desejo de fazer faculdade crescia a cada ano que se passava. Pensava bastante no curso de medicina, mas algo o impedia de levar para frente essa vontade. Anos atrás, quando tinha por volta de seus sete anos teve que lidar com a primeira morte. Apesar de muito novo, ele se lembra bem do dia em que receberam a notícia da morte do irmão, ele estava na casa da madrinha que morava no fundo de uma escola. Um lugar bastante familiar, a escola. Passou anos brincando ali, aprendendo ali e memorizando cada pedaço daquele lugar. As primas, que eram muitas, também participaram dessa infância. Com três para quatro anos ele já sabia ler e escrever uma variedade considerável de palavras. Mas nesse dia, parte de um final de semana, a história era outra. O pai e a mãe tinham decidido visitar a madrinha e ao anoitecer receberam a notícia de que o filho havia morrido. Ele, com apenas 24 anos de idade, foi assassinado enquanto trabalhava no seu turno da noite dirigindo um ônibus. Só se ouvia gritos e berros desesperados diluindo aquela informação trágica. O velório foi no amanhecer do dia seguinte, um 47
domingo. E como se não bastasse um luto, nessa mesma noite o pai da madrinha, que recebia a família em casa, também havia partido. André não entendeu nada, não conseguiu relacionar uma coisa na outra ou chorar pela perda do irmão. Foram dois velórios ao mesmo tempo, ele, ainda sem entender, se divertia no revezamento das cerimônias. Entrava em um carro de carona e ia para um dos velórios, horas depois pegava outra carona para fazer o mesmo. O pai, generoso como sempre, havia lhe dado dinheiro para comprar qualquer comida enquanto estivessem ali. Ele aproveitou e encheu uma sacolinha de doces que transitava com ele para cada local que ia. Não houve vivência ou sofrimento do luto. O cheiro da morte impregnaria seus próximos anos. Por isso não conseguiu fazer medicina, lidar com os mortos era dificilmente problemático. Ele se culpava por não ter chorado, por não ter sofrido e não ter sentido essa falta que todos derramavam entre lágrimas. Tempos mais tarde a igrejinha, aquela na frente de sua casa, começou a lhe atormentar com os muitos velórios realizados ali. Era comum que ocorressem essas cerimônias, mas agora elas tinham ganhado um peso mais doloroso. Parecia até uma perseguição com ele, mas não tinha outro jeito, se quisesse entrar em casa teria que ao menos passar em frente. Ir em qualquer velório da família também lhe custava o sossego. Terapias e terapias mais tarde deram um pouco de respiro, mas isso só veio depois da vida adulta já ter começado. Agora quando vê o corpo ali estendido no funeral, confirmando a morte, não se assusta mais. Por volta de 1994 outra perda significativa chegava. Seu pai faleceu aos 66 anos atropelado por um ônibus. Difícil não pensar nas duas situações como uma ironia maldosa do destino. Era uma quinta-feira comum como as outras quintas, Roque havia ido ao mercado na hora do almoço e ao voltar de lá montou em sua bicicleta em direção a sua casa de frente da igreja. Ao fazer a curva da esquina para entrar na rua, um ônibus veio em sua direção e bateu. André estava no oftalmologista no instante que isso aconteceu. Os irmãos, que já não moravam mais em casa, souberam da notícia depois. Os sobrinhos, aqueles 48
que ajudavam com os tijolos, estavam ali por perto e a notícia chegou com mais rapidez para eles. Após a perda do marido, dona Lurdes estreitou mais as suas relações com o filho caçula, era ele quem resolvia todos perrengues diários. Até o último dia foi ele quem esteve presente para dar o conforto que ela precisava. Na época da faculdade do filho ela vivia perguntando sobre os netos como quem não quer nada, mas ao mesmo tempo espera uma resposta positiva. — Quando vai me dar um neto hein? — pedia carinhosamente. — Não conte comigo por enquanto mãe… — ria André, sabendo que isso estava bem fora dos seus planos. Dona Lurdes faleceu em 2014. Não chegou a conhecer a filha de André.
Eles Mais de uma década de namoro, união e cumplicidade. O casal, André e Ireno, se conheceram pela rede social, já em desuso, chamada Orkut. O Facebook ainda estava no início, então apareceu pouco nessa história. De qualquer forma a internet foi o primeiro passo entre eles. Se adicionaram, viraram amigos virtuais e trocaram mensagens até finalmente se encontrarem fora da tela. Ireno, que hoje trabalha na área da saúde, tinha se aproximado também da educação, foi uma boa maneira de criar afinidades com André. A relação deu tão certo que logo foram morar juntos. Não são casados no religioso e nem no civil, mas possuem união estável, que foi indispensável para adotar. No futuro é possível que aconteça um daqueles casamentos pomposos, cheios de decorações e familiares animados. E o melhor de tudo é que podem incluir a filha na cerimônia. Quer dizer, isso é a cereja do bolo para eles. Ter um filho ou uma filha pela adoção era o plano perfeito de André. A ideia de filhos biológicos passava longe da sua cabeça, isso quando passava. Ser adotado lhe fazia ter um apreço maior nessa forma de se tornar pai. O contrário mais parecia uma obrigação, como se recorda do ditado popular: “Quem pariu Mateus que balance”.¹ ¹O ditado expressa a ideia de que os pais devem se responsabilizar pelos filhos que geraram.
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André compreende a adoção como um ato de pura escolha, na sua forma mais lapidada e única. Você escolhe ser pai, escolhe ter um filho, depois amá-lo, ensiná-lo e passar para frente partes suas, de preferência as melhores. Não há compromisso previamente estabelecido, e, no entanto, eles acontecem voluntariamente. Um passo para o lugar desconhecido, sem vestígios de laços sanguíneos ou genéticos. É assim que ele sente quando se lembra dos pais falecidos, é um aconchego que nunca lhe faltou, pelo contrário teve de sobra. A conversa sobre ter filhos acontecia de vez em quando. A criança imaginada ocupava lugares entre um diálogo e outro do casal. Eles já moravam juntos tinha um bom tempo e André estava acostumado a viver cercado de crianças pela infância que tivera, especialmente os sobrinhos que moravam na sua casa. — E aí, vamos ter uma menina ou um menino? Que idade? E… e o nome? Pensou em algum? — diziam os dois quase em concordância.
Cada passo
André e Ireno começaram o curso preparatório da adoção no início de 2016. Esse foi o momento de responder uma série de questões que antes eram feitas só entre eles. A faixa etária ficou de 0 a 3 anos, depois aumentaram mais um ano. Se ia ser menino ou menina pouco importava, mas acabou que o parceiro preferiu por uma menina. Em outra parte do questionário perguntavam sobre aceitar ou não crianças com doenças tratáveis, André pensava que buscar por uma criança totalmente saudável era ilusório, mais cedo ou mais tarde todas elas adoecem de alguma maneira e precisam de cuidados. A cor realmente não importava, mas como tinham que responder colocaram que estavam abertos a todas as opções descritas. A ficha estava pronta. Ao final do curso uma psicóloga que acompanhava o processo pediu que eles fizessem um teste de personalidade para entender melhor as condições dos futuros pais. O teste era caro, mas de qualquer jeito seria feito. André não pensava em economizar esforços para conhecer sua filha, Ireno também não. O resultado do teste não apontou nada que fosse desfavorável. A pequena conquista foi um alívio. Na verdade qualquer passo, por menor 50
que fosse, era o suficiente para preencher as inseguranças com pontadas de alegria. O peso da espera era mais leve a cada dia bom. No grupo de apoio todos os casais que estavam ali participando, e principalmente esperando sua vez na fila, compartilhavam cada etapa com os outros. Toda reunião alguém chegava anunciando que havia conseguido adotar. Era uma empolgação que contagiava o ambiente. Mesmo aqueles que ainda estavam longe, ou começando, ou só não sabiam direito em que pé estava o próprio processo, ficavam felizes. Cada família que se formava era acompanhada de perto pelos outros quase pais. No celular os grupos virtuais se enchiam de fotos das novas crianças, isso provocava, de um jeito bom, um misto de ansiedade e entusiasmo em André. Nessas horas ele pensa que a justiça lhe parece ser rigorosamente burocrática e lenta ao passo que também parece funcionar no tempo correto para que dê certo o encontro entre pais e filhos. É confuso. A habilitação saiu no dia 25 de maio de 2018, também conhecido como o dia nacional da adoção. ² Como o processo, mesmo antes da fila, era um constante esperar de coisas, eles curtiam de melhor forma que desse, decidindo detalhes aqui e ali que lhes fossem cabíveis e controláveis. — Esse nome aqui você gostou? — comentavam entre si. — Não, acho que não fica legal… Ah, e esse? O que você acha? — Um dia chegaram a um consenso pelo nome Sofia. Foram pelo menos dois anos sonhando com a Sofia, que agora ganhava um nome.
Um bebê
Na ficha estava que eles aceitariam crianças de 0 a 4 anos, no entanto, não esperavam que conseguissem adotar um bebê. Uma criança maior era o esperado, até porque André sentia que as pessoas olhavam diferente para eles por serem um casal homoafetivo, ainda mais dois homens cuidando de um bebê. Depois que veio a habilitação a expectativa era uma montanha russa de adrenalina. “Quando vai chegar? Quando vai chegar? Quando vai ²A data foi escolhida oficialmente em 2002, mas faz uma homenagem ao primeiro encontro nacional de associações e grupos de apoio à adoção realizado no dia 25 de maio de 1996.
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chegar?”. E no grupo de apoio mais pais anunciavam que tinham conseguido adotar, isso só despertava um nervosismo sem fim, mesmo que no fundo estivesse feliz pelas novas famílias. — Acho que eu vou ligar no fórum para saber o porquê dessa demora. — disse André para o companheiro. — Não, não liga, tenha calma, vamos ver… Espera! — respondeu Ireno aparentando ser o mais tranquilo na situação. No final ele não ligou. Se eles não tinham dito nada é porque nada precisava ser dito. E tudo bem também, eles haviam aguardado bastante tempo, um pouco a mais ou a menos não iria matar ninguém. No fundo decidiu que não queria saber o motivo pela demora, tentaria ao máximo não pensar nisso e seguiria a rotina normalmente. “Eles esqueceram da gente”, pensou decepcionado. Para não aumentar a ansiedade era melhor que evitasse pensar mais a respeito. A solução foi não fazer absolutamente nada. Não havia respostas no meio daquele silêncio, ficar quieto num canto parecia até que confortável para derrubar a montanha de expectativas criadas. No dia 10 de outubro, uma quarta-feira, ele foi trabalhar durante o dia e voltou no finalzinho da tarde para casa. Corrigiu algumas atividades, preparou suas próximas aulas e quando Ireno chegou decidiram sair para jantar. Inicialmente iam comer em casa mesmo, mas para espairecer um pouco saíram. O primeiro restaurante estava fechado, tiveram que mudar a rota e André se lembrou de outro local bom para jantar. A noite parecia tranquila, sem muitos acontecimentos, só a conversa rotineira ocupando o ambiente. Por volta das 19h da noite o telefone dele tocou. Pegou o celular, olhou para tela e viu o contato “Núcleo de adoção” na chamada. — Eu acho que tem alguma coisa de errado né? — comentou com o parceiro antes de atender. Não tinha outra alternativa para descobrir do que se tratava a ligação repentina. — Alô, é o André? — perguntou a assistente social que acompanhava o processo deles. — Sim, sou eu pode falar. — Então, quero fazer algumas perguntas, vocês já estão habilitados né? 52
— Sim sim, já estamos. — E vocês pediram o que? — Menina. — Cor? — Ah… isso é indiferente para nós. — Tá bem e a idade? — Bom, colocamos de 0 a 4 anos. — Aceitam com doenças tratáveis? — Aham. — Então pelo que eu vejo aqui vocês já estão selecionados… Por acaso você vai viajar nesse feriadão que vai ter? — Não! — respondeu de prontidão para que não houvessem dúvidas de que eles estavam prontos para receber a criança naquele exato momento se fosse o caso, mas imaginava que isso só ocorreria no dia seguinte. — O que ela tá dizendo aí? — perguntava Ireno tentando entender a conversa. Mais algumas instruções foram dadas no telefone. — Olha, eu preciso que vocês dois venham ao fórum, tá? Marquei aqui para o dia 15, segunda-feira, 13h da tarde para a gente conversar pessoalmente… Ah, antes que eu me esqueça, venham com tempo, tá? Porque depois de conversarmos nós vamos na maternidade. A visita não aconteceria no próximo dia como foi imaginado no início da ligação. O feriado, que a assistente social se refere, era o dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, e a data que marca a divisão do estado, mas de qualquer forma seria só depois só depois de todos esses dias que veria a filha pela primeira vez. — Só pode ser um bebê, ela falou de maternidade Ireno… — disse começando a explicar o que tinham conversado no telefone. Ao final da conversa, com tudo verbalizado, os dois perderam a fome. Foram para casa com aquela conversa se repetindo na cabeça várias e várias vezes. Tentou se concentrar em algumas atividades que faltavam da aula, mas a mente viajava para longe. Foi dormir era mais de meia-noite. Duas da manhã estava de pé de novo, sem sono, agitado, apressado e ansioso. No outro dia Ireno pegou um plantão no trabalho e André resolveu almoçar com a irmã para trazer as boas novas. 53
— Meu deus, eu não acredito! — disse a irmã entusiasmada antes mesmo de conhecer a sobrinha. — Verdade, eu tô te falando. — riu o caçula. Eles dois cultivam uma relação bem próxima. O outro irmão é mais afastado, até divergem em opiniões, que dificulta uma conversa amigável. São comportamentos e atitudes que André reprova e prefere manter a distância do que sofrer o desgaste da aproximação.
Chegou
No dia 12, a 3 dias para receber a filha, o parceiro chegou do plantão já se arrumando para ir as compras. Foram ao centro naquelas lojinhas especializadas em coisas de bebes para todos os tipos e gostos. Compraram berço, carrinho, bebê-conforto, roupinhas, sapatos e praticamente tudo porque até o momento não tinham nada. O sábado foi uma correria para arrumar e montar os móveis. Não deu nem tempo de pintar, só organizar os móveis em cada espaço. O domingo foi destinado à lavagem das roupas compradas. Lavar, passar e organizar uma parte delas para colocar naquelas bolsas que os pais carregam com tudo de mais necessário e urgente para os filhos ainda pequenos. Quando finalmente chegou a segunda-feira, dia 15, tudo estava nos seus lugares, a seus postos, prontamente organizados e arrumados. Nesse dia ele preferiu não desperdiçar um segundo que fosse. Nem almoçou, apenas se arrumou, arrumou as coisas da filha e chamou o uber pelo aplicativo. Chegando lá, mais aliviado por estar com tempo de sobra, resolveu almoçar. O Ireno, que acabava de sair do trabalho, não quis comer. Ao ver o casal, a psicóloga do fórum ficou assustada com o horário tão adiantado. — Oi, você que é o André? — Isso, sou eu. — Desculpa, mas o nosso horário é só 13h, não? — Não, é só 13h mesmo. — André, agora são 12h27. — ao ouvir a resposta ele conferiu no relógio e notou que estava mais adiantado que a hora marcada no aparelho dela. — Na verdade é 12h25, porque eu sei que se eu chegar atrasado vai parecer que eu não tenho responsabilidade né? — brincou. 54
Após entender a situação ela pediu que eles aguardassem chamarem. Isso sim foi uma eternidade de espera. Estavam ali, há metros de uma decisão importante, mas o tempo não passava. Os últimos anos pareciam mais rápidos do que aqueles minutos. André andava de um lado para o outro dentro do Fórum. Foi ao banheiro n vezes. Não conseguia conter a inquietação. 13h e nada de chamarem. “Será que tem algo de errado?”, se perguntava nas idas e vindas ao banheiro. Quando deu 13h30 chamaram. Até que enfim. Ao entrarem ouviram a história de origem da filha. Explicaram algumas situações pelas quais a mãe biológica havia passado. Não tinham fotos, apenas eventos contados verbalmente. — E então, vocês querem conhecê-la ou não? — perguntou um dos membros da equipe. — Mas eu já vim aqui para isso, gente, você não está entendendo, eu não durmo desde o dia 10. — riu tentando se expressar do melhor jeito possível. — Que bom viu… Eu vou fazer a autorização e aí vocês podem ir na maternidade, fiquem tranquilos que é aqui pertinho do fórum. E realmente era próximo. Todo aquele tempo de conversa para no final saberem que a filha estava apenas algumas quadras de distância. Eram quase 15h quando encerraram-se as perguntas e foram ao encontro da paternidade. Chegando lá ele percebeu que havia uma equipe esperando por eles, a psicóloga, a assistente social e até os médicos. Foram levados ao quarto da Sofia onde mais dois bebês estavam acompanhados de suas mães. A primeira mulher estava olhando para o seu bebê dentro da incubadora que aparentava ser um recém-nascido prematuro. A segunda mulher também fazia o mesmo com o seu bebê um pouco maior. A terceira mulher era a cuidadora e acompanhante da Sofia até que os possíveis pais chegassem. A Sofia estava deitada em um berço móvel aberto. — É esta daqui. — disse alguém da equipe apontando para a Sofia. André se aproximou para olhar mais perto e viu como seu tamanho era pequeno. Quanto mais perto, mais se dava para ver seu comprimento. Realmente minúscula. Foi encaixando as mãos envolta da cabeça e do corpo da filha para puxá-la para cima e acolher no seu colo. 55
— Eu posso tirar fotos? — perguntou para a equipe. — Mas a filha é de vocês? — questionou alguém num tom provocativo bom. — É, ela é sim. — Então pode.
O primeiro registro fotográfico com a Sofia ainda na maternidade. — Da esquerda para a direita: André, Sofia e Ireno.
Dali saíram para fazer o pedido da guarda e levar a filha para casa no mesmo dia, mas a juíza, responsável pelo caso, não havia assinado a autorização e pediu para que os novos papais ficassem tranquilos que no dia seguinte daria certo. Pois bem, logo cedo no dia 16, terça-feira, estavam indo ao fórum novamente, pegaram a autorização pronta e seguiram para maternidade. Chegando lá a médica responsável pediu que eles se internassem por um dia para conhecerem todos os procedimentos necessários para cuidar da filha. Afinal, eles eram pais de primeira viagem e ainda por cima de um bebê. E assim foi o restante do dia, aprenderam o que precisavam e dormiram por 56
lá mesmo. Na tarde de quarta-feira, dia 17, receberam alta e foram para casa. Agora começava a prova real da paternidade. Estariam sozinhos e teriam que colocar em prática o máximo que absorveram dos ensinamentos. Até do que aprenderam no ano anterior sobre adoção. Mas isso era tão maravilhoso que qualquer desafio parecia na verdade uma aventura divertida. Quando Sofia chegou em casa olhou para todos os cantos buscando talvez uma referência familiar, mas aquele ambiente nunca havia sido visitado por ela antes, então de fato era estranho e essa estranheza a fez chorar nos primeiros minutos com o novo lar. Depois passou, os olhinhos se acostumaram com as novas sensações e pessoas a sua volta.
Primeiros Meses
André foi o primeiro homem do seu local de trabalho a tirar a licença que comumente é concedida as mães. Foram 6 meses mais o mês que tinha guardado das férias: 7 meses para ficar com a filha e acompanhar suas primeiras palavras balbuciadas, a rigidez das pernas miúdas tentando ficar de pé, os primeiros tombos, os choros intermitentes da madrugada, o gosto ou desgosto pelas papinhas, a fragilidade das pálpebras para abrir os olhos, se mexer e até girar o corpo de um lado para o outro. Ireno não teve a mesma sorte com a lei. Para ele foi negado esses 6 meses, mesmo trabalhando para o mesmo órgão que o marido. Estranho era, mas pouco se podia fazer. Parecia que a licença dependia de uma olhar mais atento ao caso, o que não ocorreu. Nem os dias garantidos pela lei ele conseguiu. Foi uma interpretação completamente errônea da situação. O que deu para fazer foi tirar 5 dias de folga guardados quando trabalhou nas eleições. Pelo menos isso não podiam questionar ou retirar dele. André viu a decepção do parceiro de perto e pensou sobre como as leis da adoção evoluíram e ao mesmo tempo estavam presas a pessoas despreparadas e que até pareciam agir com má vontade. Mas os dias com a filha recém chegada não iam esperar. Com ou sem licença essa era a nova rotina dos dois. Os cuidados eram precisamente organizados. De três em três horas o mamá era preparado. Se ela precisasse mamar às 7h da manhã, por exemplo, 57
quinze minutos antes era o mínimo para que tudo estivesse pronto. Sofia era acordada, a fralda era trocada e então ela mamava. Isso levava em média meia hora e depois era o momento de arrotar o que carregava mais uns minutinhos. O tempo passava depressa. Ao final tudo precisava ser lavado e secado para que estivesse pronto para o uso novamente. O ciclo terminava e outro começava. Para facilitar as coisas André teve a ideia de colocar uma cama no corredor da casa. Pensava que dessa forma seria mais fácil de ouvir a filha acordando ou chorando pedindo por algo. E também o que lhe sobrava disso tudo não passava de uma hora. Uma hora para cochilar. Se sentia um daqueles zumbis de filme de ficção com o rosto cansado, olheiras mais profundas e o corpo adormecido só recebendo ordens mecânicas. O banho era um ritual especial, com toda a preocupação que ele tinha preferia que não fosse nem tão cedo e nem tão tarde, tinha medo da filha sentir frio demais ou calor demais. Um pouco antes do almoço lhe parecia o horário ideal para dar um banho nela e colocá-la para aquela soneca pós-almoço. Até para pegá-la ele tinha medo, era tão pequena que qualquer movimento brusco parecia que causaria danos permanentes. E quando ela estava dormindo muito silenciosa ele ia lá para verificar se realmente estava respirando. Uma coruja, como diria as expressões populares. Os meses foram passando e logo Sofia estava prestes a completar seu primeiro ano de vida. A família, das duas partes, estavam felizes. Alguns pareciam até que tinham passado pelo processo junto com eles. Ela era amada e querida. Ganhou tanto presente que a casa se encheu de coisas. Foi visitada por muitos amigos e parentes do casal. A festa de um ano foi bastante numerosa, chegou a passar a lista de convidados de tanta gente que quis ir. É uma nostalgia lembrar desse acolhimento e desse carinho pelas pessoas queridas entre eles. A relação dos dois sempre foi bem quista também. Eles evitavam de reparar o que as pessoas externas pensavam com os olhares, porque apesar delas não cuidarem das próprias atitudes, o comportamento entregava qualquer disfarce montado. Certa vez eles foram ao shopping com a filha e uma senhorinha, pelo que aparentava o físico, os seguiu quase a passarela inteira entre as lojas. André segurava a filha no colo quando finalmente ela alcançou os três. 58
— Oi, tudo bem? Ela é filha de vocês? — perguntou com o ar curioso. — É sim. — respondeu André. — E ela é adotiva? — É. — Ahhh que bom, que legal viu, seria tão bom se todo mundo tivesse essa cabeça né, quanta coisa boa aconteceria… — tecia vários elogios ao casal e a filha. Ela correu basicamente o shopping todo para dizer isso. André riu da situação. Achou graça de como aquilo parecia ser tão importante para ela e totalmente normal para eles. Ele achou interessante também essa curiosidade toda para cima deles, principalmente como ela avaliou o mundo a fora, mesmo ele sabendo que o que fizeram não era mérito algum de paz mundial, apenas um caminho de formar uma família. Na escola onde ele trabalha também presenciou situações engraçadas de se ver. Como ele dá aula para crianças e adolescentes do sexto ao nono ano alguns pais aparecem na coordenação para se apresentarem e saberem do desempenho dos filhos. Uma vez ele recebeu duas mães, de uma relação homoafetiva também, para conhecerem a escola. Um dos filhos delas era aluno de André no sexto ano e, quando os colegas de sala perguntavam ele falava tranquilamente que tinha duas mães. “Essa é a minha mãe e essa é a minha outra mãe”. As crianças achavam graça e algumas vezes até interessante em ter duas mães quando a maioria delas só tinha uma. Ele pensa que para a geração da Sofia isso vai ser o menor dos problemas, isso se for um problema. Como os dois são presentes e preenchem as duas funções tradicionais de uma mãe e um pai não parece que isso vai fazer falta na adolescência ou vida adulta da filha. Pelo menos é o que esperam.
A igreja
Um lugar comum na sua infância também foi na vida adulta. Por mais que fizesse parte de uma religião que já expressou opiniões contrárias a relação homoafetivas, sempre teve uma relação leve, sem purgatórios ou condenações. No dia 10 de outubro de 2019 batizou a filha na igreja Católica 59
durante a própria missa. Foi a única criança daquele dia a ser batizada. O padre parecia empolgado mostrando a menina para a comunidade. Uma apresentação e tanto. Os pais que estavam em cima do altar não viram nenhum olhar de reprovação, apenas curiosidade e animação pela filha deles. O padre gostou tanto da família que até estreitou laços com um casal de primos do Ireno e os convidou para alguns eventos da igreja. Não houve alardes e caras feias da plateia. Talvez em outros tempos esse pedido, de dois pais para batizar a filha, teria sido uma afronta que acabaria na fogueira. André ri dessa pensamento, mas no fundo fica feliz de estar nesse tempo aqui e não no de lá. É provável que a filha compartilhe dessa mesma relação com a igreja, ainda mais que ela vem pegando as manias e os jeitos dos pais. Às vezes desperta uma braveza nela que só uma fala firme para pacificar a situação. Ela é esperta, adora levar os brinquedos para todos os cantos da casa e quando apronta vê o sinal do pai com as mãos, como quem vai apanhar, mas se aproveita da situação para bater na mão dele como se fosse um toque entre amigos íntimos. E é claro, ele se desmonta com essa esperteza. Os traços vem aparecendo cada vez mais e dá aquela impressão de que desde o início ela esteve ali, como se fosse uma filha biológica deles. Têm dias que ela escolhe assistir seus desenhos, outros que ela prefere levar as bonecas para a casinha montada dentro do quarto. André e Ireno se revezam para tirar os sapatos e entrar nas brincadeiras dela. Ela também gosta de passear com o seu carrinho e toda vez que dá essa vontade vai até o portão chamando um dos pais para o passeio. Nem que seja uma volta na quadra ou na praça, ela adora esses passeios e não abre mão de pedir por eles. Quando ela estiver pronta e quiser conhecer sua mãe biológica, os pais vão permitir prontamente, muito porque isso é um direito dela, mas também porque parte desse amor que depositam nela é também para que ela se sinta livre com as próprias decisões e escolhas que fará na vida. Aqui não há o medo de serem substituídos ou esquecidos, eles agradecem por um dia essa pessoa ter gerado a filha deles e se ela tiver essa curiosidade será bem respeitada. Esse sentimento é muito do que o próprio André sente com a sua mãe biológica. Ele foi amado pelos pais e sabe que isso só foi possível dessa 60
maneira. Não teria outro jeito senão esse de conhecê-los. Assim como é o caso da sua filha também. Não precisa existir segredos entre eles, o que for para ser vai acontecer e ele se sente preparado para as fases das perguntas. Por já saber um pouco do passado da filha decidiu que se a mãe biológica dela tiver outros filhos ele, junto com o Ireno, também vão adotar os irmãos da Sofia. Ele quer lutar para que ela tenha vínculos com seus irmãos biológicos e aceitaria de coração criar esses irmãos que seriam filhos também. Mas caso não aconteça ele pretende ter outros filhos adotivos quando a filha estiver mais velha. Isso são planos bem futuros, não estão no papel, apenas na imaginação. No momento tudo que ele olha é pensando primeiro na filha. Outro dia desses pensou que as compras básicas também interferiram, antes uma calça por mais cara que fosse ele compraria, mas hoje não gastaria e evitaria de olhar. Agora, se fosse para a Sofia a calça com o mesmo valor, mesmo que com metade do pano, ele gastaria de olhos fechados e ainda usaria a desculpa de que o preço estava compensando para aliviar a consciência. Essa é a Sofia que há pouco tempo aprendeu a subir na cadeira e da cadeira subir na mesa, como numa escalada radical. Que gruda em um pai e depois no outro. E que tem a certidão um pouco diferente com dois nomes especiais: o pai André e o pai Ireno.
Ireno, Sofia e André
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Mãe da Carol e da Camila
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O nome da mãe, da irmã e das crianças foram alterados para preservar a identidade da família que ainda espera a decisão final do processo de adoção. Rita teve sua infância vivida décadas atrás, por volta de 1970. Campo-grandense de terra natal, ela logo se tornou capixaba com os pais e os irmãos. Mas antes de ir para o Espírito Santo foi deixada, junto com a irmã mais velha Inês, em um abrigo de Dourados (MS). Tinha 2 anos quando chegou, e entre 5 e 6 quando saiu. De todos os filhos, justo a Rita havia sido escolhida para ficar lá, esse sentimento de cachorro abandonado, como ela própria intitula, se perdurou anos até o reencontro de mãe e filha. O abrigo se chamava Lar Santa Ana. Um lugar relativamente espaçoso, com vários pilares que seguravam a estrutura do local e formavam um longo corredor. O telhado de fora não tinha laje, isso permitia ver as telhas expostas uma encaixada na outra. Em datas especiais, como a páscoa, o Lar ficava cheio de decorações penduradas no alto ou coladas na parede. Chegou a receber também grandes personagens do imaginário infantil, como o papai noel. Foi lá que Rita teve catapora e precisou se isolar por dias até passar, lembra-se de olhar pela janela e ver as crianças correndo e gritando no jardim durante as brincadeiras. Para ela era como um casarão preenchido de meninas e meninos por todos os lados. As lembranças desse tempo são gentis, mas o motivo que a fez ir para lá nem tanto. Quando saiu do abrigo sua noção de espaço e de relações afetivas foi se alterando. O lugar anterior foi significativo para compor aquilo que entendia como casa. Mas esses anos rapidamente ficaram para trás. A mãe tinha se juntado com outra pessoa, quase como um casamento só que sem os papéis oficiais. O padrasto, esse novo membro da família, foi quem teve o papel de buscar Rita e Inês no abrigo. Desse dia pouca coisa se lembra, os rostos são como borrões na memória. A certidão, que até os 6 não existia, ganhou um registro de pai. Mas para infelicidade dela a história se repetiria. A mãe precisou novamente deixar a filha com outra pessoa, dessa vez uma tia que morava na Bahia. Ela, a tia, já tinha dois meninos e aceitou cuidar de mais uma criança, mesmo que sem registrá-la como era comum na época. Pouco depois a família se mudou para o Espírito Santo, onde ela passaria toda sua infância e juventude até completar 16 anos. A mãe chegou 64
a escrever algumas cartas. Não com tanta frequência, mas como um sinal à longa distância para mandar notícias. Como tinha pouca idade, quem lia geralmente era sua tia. Mais de 2 mil km separavam elas. A possibilidade de uma visita era quase remota e o pouco dinheiro aumentava ainda mais a distância. Com o tempo o papel desgastou e se perdeu. Em uma viagem de outra tia de Campo Grande à Bahia, ela recebeu o convite de passar um tempo com a mãe, seria a oportunidade de voltar para lá e reencontrá-la. Aceitou. Mas aos 18 já quis sair de casa e cuidar da própria vida. Desde muito nova trabalhava, isso não lhe parecia problema algum, embora para o padrasto isso demonstrasse uma afronta. — Isso não é coisa de moça! — dizia numa tentativa de impor limites. Ele queria que ela obedecesse suas ordens. Talvez ser uma moça do lar, com afazeres domésticos como a maioria. Mas ela não era assim. Tinha feito contabilidade e descobrira um talento incrível para área. A facilidade em executar suas funções fez com que outros escritórios da cidade a procurassem oferecendo emprego. E claro, ela não recusou tal oportunidade de crescer por si só. Eu queria ser muito, relembra dos anseios mais fortes da juventude. A irmã saiu de casa bem cedo também. As duas partilham dessas passagens amargas entre a infância e a adolescência. Os irmãos, que eram filhos do padrasto, ficaram até os 30 anos em casa. O voo competiu apenas para as irmãs e quando chegou o momento de partir Rita escolheu ir para o interior, cerca de 100 km da capital, em Dois Irmãos do Buriti (MS). O histórico de viagens é alto. A cada parada uma página a mais. Dos 18 pra 19 anos ela conheceu o ex-marido. Namoraram por 2 anos e depois se casaram. Se mudaram novamente, dessa vez um retorno ao Espírito Santo. Dez anos depois retornaram para capital sul-mato-grossense. A relação até que foi duradoura, mas após 20 anos juntos resolveram cada um ir pro seu lado. Pouco antes da separação ela compartilhava do sonho de ser mãe, de construir algo mais sólido, mais alegre e contínuo. O sonho era só. Só seu. Completamente. E não houve negociações. Ele não quis e isso significava uma divergência de opinião gritante. Um escuro no claro. Talvez tenha sido isso que consumou a relação e a destinou ao fracasso. 65
Prosseguindo A vida seguiu. Tinha que seguir, não tinha outro jeito. Ela continuou estudando e trabalhando, fez uma prova importante para um concurso e passou, se tornando professora em uma rede estadual de ensino. Com o dinheiro mais estável conseguiu comprar sua própria casa. Mas o desejo em ter filhos não ficava para trás. Ainda queria viver essa experiência. Ter a chance de vivê-la. Na juventude não pensava de maneira alguma sobre isso. Chegava a dar arrepios. — Não quero ser mãe não, deus me livre! — ria enquanto se lembrava da Rita mais nova. O projeto de mãe existia claro, mas só seria concretizado se tivesse condições suficientes para sustentar. Era um sonho caro financeiramente falando. A sua infância lhe mostrou a parte menos doce possível de como a tragédia pode chegar e ficar. De forma alguma queria que isso se repetisse. E se havia alguma chance de acontecer então definitivamente não era o momento ideal para pensar sobre isso. A Rita da infância ainda habitava ali no inconsciente fazendo refletir seriamente as situações reais de abandono infantil. O plano ficou em stand by por um tempo. Enquanto isso finalizou alguns cursos, organizou a casa e foi vivendo dia após dia tranquilamente. Sem pressa pra essa outra ideia. Como algo que poderia ser adiável. — Depois eu vejo essa história aí de filho… — falava para si mesma. O destino mais uma vez arrebentou suas expectativas, como uma onda forte quebrando na beira do mar. Sem dó nem piedade. Quase conseguia ouvir ele dizendo: “Não vai ter filho não, agora quem não quer sou eu”. Parecia que alguém lá de cima pregava uma peça, mas acreditando nisso ou não essa era sua nova realidade. Ter filhos seria bem mais difícil do que um dia imaginara. A primeira gravidez durou 4 meses. Estava caminhando bem até que o útero não aguentou mais e deixou sair antes da hora. Uma segunda tentativa também começou positiva, parecia que seria diferente, mas no final foi igual. O ultrassom já anunciava pelo monitor que seria um menino. O coração já dava para ser ouvido por aqueles aparelhos tecnológicos. O 66
quarto já estava arrumado à espera. Os parentes ansiosos. Ela então nem se fala. Mas nada disso adiantou. Outra criança jazia na terra. Em meados de 2011 a situação, que já não era das melhores depois dos dois abortos espontâneos, piorou. Ela ficou doente por um longo período. O corpo físico foi testado inúmeras vezes. Na primeira foi um câncer no rim. O exame denunciou, o diagnóstico foi feito e a cirurgia marcada. Então retiraram o órgão. Na segunda vez foi a bexiga, mesmo procedimento. O tumor se localizava em um pedaço e como de praxe precisava ser extirpado dali. Na terceira vez foi o útero. Esse removeu a última chance de gerar uma criança no ventre. Foi câncer de mais para uma pessoa só. No início foi firme consigo mesma e aguentou cada retirada de suas partes. Estava segurando bem as pontas até que acabou. O que deveria ser um alívio, como uma vitória a ser comemorada, se tornou uma depressão profunda. Parecia que o sistema nervoso estava controlando suas emoções até o exato instante que pudesse descarregar tudo. O choro, a raiva, a tristeza e principalmente a solidão. A religião cristã apareceu como um sopro de ar fresco no meio daquele vento acinzentado de azar. Rita buscava por explicações sobre a vida após a morte. Uma maneira de encarar os problemas com justificativas mais próximas do plano espiritual. Era delicado falar sobre as perdas, entendê-las e mais do que isso encará-las. Os filhos, os órgãos, os filhos, os cânceres. Na religião espírita ela também procurou conforto, talvez encontrasse explicação melhor a respeito do que significa a morte e para onde vai toda essa gente que morre. Claro que no fundo ela queria saber era das suas perdas pessoais.
Outro lado
Gestar uma criança não estava mais em pensamento. Nem tinha como estar. A adoção então apareceu. Não funcionava como um simples plano “b” entrando em ação imediatamente, mas uma possibilidade bastante viável para ser mãe. A irmã Inês e o marido tinham optado pela adoção antes dela, isso, querendo ou não, passou pela sua cabeça no instante em que decidiu pensar a respeito. 67
— Bom, se eles conseguiram eu também posso. — dizia numa tentativa de encorajar o próprio desejo. A diferença entre a irmã e ela é que sua jornada continuava solo. Isso não era um problema dos grandes, principalmente comparado a tudo que havia passado nos anos anteriores, apenas que seria interessante ter alguém para dividir o medo, a felicidade, o desejo e o amor. Pensar em alguém ali com ela poderia facilitar o processo, acelerar talvez. O não parecia certeiro para quem iniciasse a adoção só. — Eles não vão aprovar. — falava para si mesma. De um jeito ou de outro precisava dar esse primeiro passo. Se a resposta seria sim ou não só descobriria mais para frente, por enquanto bastava começar. Em janeiro de 2019 fez o curso preparatório, e obrigatório, para o processo de adoção. Mais de um ano depois conseguiria finalmente adotar. Na ficha ela colocou que gostaria de duas meninas na faixa etária dos 4 aos 8 anos. Na sua cabeça não fazia sentido pegar uma bebê recém nascido. Pelas contas rápidas em 10 anos ela já teria 60 e sem habilidade alguma para correr atrás de uma criança, quem dirá fôlego. Não era só isso que a afastava dessa “não escolha”, nunca sentiu que levasse jeito para cuidar de um ser tão pequeno, até mesmo quando as colegas davam seus bebês de colo para ela segurar, mesmo que só por uns minutos, acabava gerando desconforto, preferia se esquivar daquela situação. A adoção tardia lhe parecia a melhor solução. Uma criança mais velha significava, ao seu ver, uma independência maior. Afinal ela já sabe um pouco do mundo a fora, entende mais ou menos como se cuidar, entende de rotina e não precisa de tanta ajuda externa. Não que ela pensasse em negar esse último fator, muito pelo contrário, mas ela queria que a criança tivesse uma esperteza de gente grande que não fica à deriva de riscos maiores. A sua criança imaginada também não poderia ser muito mais velha, como um adolescente por exemplo, porque gostaria de inserir um pouco de si naquela pequena pessoa, como um pote que se preenche com o que vem de fora. Independente dela querer ou não todas elas teriam um passado, uma história e um sofrimento, mas quanto menores em idade elas forem parece que há mais abertura para se moldar, quase como se pudessem esquecer suas cicatrizes. Pequena ilusão. 68
O medo ficava indo e vindo, pensava seriamente se poderia concretizar aquele desejo, pensava em como seria quando elas chegassem, se daria conta ou não, se seria muito difícil ou pouco difícil. O que seria ou não seria ficava flutuando todo santo dia. Lembrava de ouvir dos antigos que tudo acontecia por um motivo e se não acontecia é porque motivo algum existia. — Se Deus não te deu é porque você não pode ter. — lembra de ouvir. Outros medos também percorriam sua mente. E se seus futuros filhos quisessem saber do passado? E se eles quisessem conhecer esse passado? E se, ainda pior, esse passado quisesse de volta seus filhos? Resposta não tinha, nunca teve até o momento, mas se assustava um bocado nesses questionamentos. De vez em quando alguns pensamentos positivos varriam pra longe tudo isso. — Viver um dia de cada vez. — Reforçava quase como um mantra. Cair nesses questionamentos era um abismo, de nada adiantava, de nada ajudava. Então era melhor nem se atrever a voltar lá. Apenas seguir em frente, o que tivesse que vir seria encarado da melhor forma. Foi preparada para esperar o tempo que fosse, mas se possível que fosse rápido. Ela fez alguns cursos, frequentou palestras, estudou a fundo o assunto, mesmo que nas suas especificidades, conheceu e conversou com outros pais, também na fila, ouviu muitas histórias, viu a realidade de outros personagens, com a trajetória parecida da sua, e aguardou sua vez. Mapeou o que conseguiu, tentou entender os possíveis cenários, que encontraria a frente, e continuou aguardando. A prática fugiu de quase toda teoria, como uma ferida aberta sem possibilidade de cura.
15 de maio de 2020
Meses antes os jornais locais anunciavam possíveis casos de um vírus vindo da China. Pouco se sabia ainda, mas com o avançar das horas mais informações chegavam de todo lugar. Mato Grosso do Sul apresentava, inicialmente, cinco casos suspeitos, segundo informações da própria Secretaria Estadual de Saúde. O alarde ganharia mais força nos meses seguintes. A pandemia, intitulada Covid-19, traria consequências até 69
na vida de Rita.¹ Toda documentação necessária estava correta, em dia, não faltava mais nenhum empecilho burocrático para adotar. Ela provou que estava apta para criar uma criança, do jeito que viesse mesmo. Só queria que chegasse logo. — Não vai chegar? Não vai chegar? — perguntava sozinha. A casa passava por reforma para receber as filhas, mesmo que ainda não tivessem nomes, rostos, cores, idade ou qualquer informação. O quarto foi organizado sistematicamente. Tinha cama, travesseiro, guardaroupa e os brinquedos. A decoração não podia ser tão infantil porque havia uma possibilidade de vir uma criança mais velha com 8 anos, mas também não poderia ser o contrário por causa da mais nova. Tudo calculado com cuidado. A reforma foi feita com calma, afinal todos diziam para ela que o processo era longo, levaria até 3 anos. Pra quê pressa, pensou. E num almoço sem pretensão alguma o telefone tocou, mas num descuido nem ouviu tocar, pois estava ocupada fazendo a comida. Era a assistente tentando contato, mas sem sucesso. Teve que ligar para a irmã que por sua vez ligou para o pedreiro, responsável pelas mudanças na casa, que então deu a notícia. Ela queria tanto apressar o processo que quando recebeu a notícia antecipada não acreditou. Queria mais um tempinho que fosse. O frio na barriga subiu com tudo. “O que eu faço agora?”, se perguntava. Apesar disso, aquele foi, de longe, o momento mais feliz em anos. — Alô Rita, tudo bem? Olha têm duas meninas, você gostaria de conhecer? — explicava a assistente social ao telefone. Não teve pausa. — Ah meu deus do céu! Claro, quero conhecer sim. — respondia ela com o coração na boca. Ela foi até o abrigo conhecer as meninas. Antes de começar o período de convivência em casa ela precisava acostumar as duas com a sua presença, por isso fazia visitas rotineiras ao local. Soube também que elas tinham um certo receio, timidez, com gente nova e que talvez não fosse ¹ “MS tem 5 suspeitas de coronavírus; uma é de uma mulher que esteve em Veneza”. Campo Grande News, 27 fev. 2020.
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ter uma grande receptividade como é de se esperar. O caminho seria pela conquista, pela confiança e pela paciência. Ao chegar lá a mais nova, Camila com 2 anos, já sabia da visita que receberia, então correu até Rita e a recebeu com um abraço. A mais velha, Carol com 6 anos, veio junto com a irmã, um pouco mais distante. O amor foi de primeira. Nesse dia cada uma estava com seu vestido rodado e sandália colorida nos pés, segurando uma boneca de brinquedo. Toda tarde a visita se repetia. Com o vírus se espalhando cada vez mais, o processo de adoção foi acelerado. Não fazia sentido ir todos os dias visitar as meninas podendo contaminá-las ou contaminar outras crianças do abrigo. O contrário também não era bom porque Rita fazia parte do grupo de risco que seguia outras recomendações mais severas. Então as meninas conheceram o tal quarto planejado. No dia em que foram buscá-las, Inês decidiu ir junto, queria porque queria participar desse momento. — Você não pode ir junto. — avisou Rita. — Ah, mas eu vou sim...— respondeu Inês ignorando qualquer ordem da irmã. Ao chegar, Camila estava aos prantos. Inês pegou a menina no colo e acelerou o passo para ir embora o quanto antes de lá com medo que a menina pedisse para ficar. Ela estava tão preocupada nesse dia, mas ao reviver as lembranças Rita acha graça das atitudes amorosas e protetivas que a irmã tinha. Foi por volta das 14h do dia 15 de maio que elas chegaram em casa. A nova mãe chorou de tanta alegria que não se aguentava mais. Camila ainda sentiu falta do abrigo, mesmo sendo pequena tinha boas relações com os funcionários e era muito mimada por eles. Com a correria dos dias isso ficou para trás. Já Carol reparou em toda casa, batia o olho analisando pedaço por pedaço daquele novo lugar. Para receber as filhas ela havia preparado um café da tarde, com bolo, salgadinho, doces, fruta e suco. A irmã encheu a casa com os filhos para descontrair um pouco as meninas, fazê-las se sentirem à vontade. Os novos primos, também adotivos, estão na fase da adolescência já, mas ajudaram na recepção. Inês adotou ao todo 4 crianças, todos ainda bebês, 71
com poucos meses. Foi essa história que inspirou na adoção de Camila e Carol. As duas eram irmãs antes mesmo da adoção, apesar de não terem tanto contato dentro do abrigo por uma ficar no berçário enquanto a outra ficar com as crianças mais velhas. A escolha por adotar duas e não uma também foi influenciada pela irmã ao perceber que uma criança com companhia se desenvolve melhor e às vezes encontra mais apoio, se tornam amigas e brincam juntas. Brigam também, mas faz parte.
Tudo virado
A rotina mudou quase por completo. Era o trabalho remoto, por causa do vírus, as filhas se adaptando e ela tentando mensurar o que ocorria a sua volta. Com medo das meninas adoecerem se apressou para fazer um plano de saúde, também matriculou em uma escolinha e tentou montar alguns afazeres para ocupar o dia delas. Mesmo saudáveis ficar o dia inteiro dentro de casa parecia, de alguma forma, adoecer o corpo. Não tinha nem escapatórias no parque aberto, só dentro de casa e nada mais. Como alternativa a mãe de primeira viagem saiu comprando vários brinquedos para preencher esse tédio nocivo. Foi bola, foi piscina, bicicleta, boneca e até onde a imaginação infantil pudesse viajar para reinventar brincadeiras. Outro passatempo que se tornou favorito foi assistir a filmes de princesa na plataforma Netflix. Claro que isso só acontecia depois de terminar as tarefas da escola. Assistiam aos vídeos e faziam os exercícios. A Camila, por ser muito nova, se aventurava em desenhos feitos no papel. A Carol, por saber ler, tinha bem mais atividades que a irmã. E a mãe acompanhava tudo de perto, conseguia enxergar as qualidades e falhas das filhas, quem era mais paciente ou teimosa por exemplo. Foi nesse olhar meio descontraído e meio atento que ela notou que os desenhos da mais nova denunciavam situações vividas antes do abrigo. Não fazia sentido pra ela, isso não constava no processo, não constava em lugar algum. Mas estava ali diante dos seus olhos. O desenho, um tanto abstrato, apontava para problemas maiores e mais assustadores.
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O abuso
Na infância, Rita sofreu abuso dentro de casa. Ela ainda estava no Espírito Santo quando a tragédia lhe ocorreu. Eram pessoas de sua confiança. De sua família. O elo afetivo se rompeu. A mãe, que já desconfiava de antemão, justificou a escolha do abrigo como uma maneira de assegurar a filha de qualquer mal. Mesmo sem verbalizar que esse era o objetivo, a filha interpretou assim. Era como se a mãe deixasse suas palavras não ditas suspensas no ar, jogadas nas entrelinhas. Porém, a atitude foi em vão. Mesmo longe ela sofreu aquilo que estava sendo evitado a qualquer custo. Anos de terapia seriam gastos mais tarde para entender toda aquela bagunça cheia de precedentes. Os relacionamentos pessoais foram complicados de se levar. Era difícil exercer confiança com outras pessoas. O sentimento de rejeição era parte da sua carne, intrínseco, irretirável. “Sempre alguém vai tirar o corpo fora e eu vou ficar só”, pensava. No amor então nem se fala, era um ciúme que sufocava qualquer relação, como uma enchente inundando todos os cômodos sem pedir licença. Era uma possessão que gritava, esperneava e implorava por atenção. O medo de ficar sozinha era carregado desde a infância, desde o abrigo, talvez até antes do abrigo. Uma mala pesada demais para uma pessoa só. Na ficha das filhas, Camila e Carol, não existiam informações sobre violência ou abuso sexual. Disseram para Rita que não sabiam de nada. Foi depois de um tempo de toda a mudança para casa nova que a mãe percebeu um comportamento diferente. Primeiro apareceram traços nos desenhos da filha mais nova que representavam figurativamente o abuso. Depois quando foi trocar a fralda percebeu que a filha pequena estava com machucados, até pensou que poderiam ser assaduras da própria roupa no atrito com a pele, mas certo dia encontrou a irmã mais velha abusando da mais nova. Um completo precipício sem saída. Chorou durante dias. Não conseguia arquitetar uma solução cabível. Estava diante de um espelho. A mesma situação da infância agora atormentava suas filhas. Então foi atrás de uma psicóloga para ajudar as meninas. Carol apresentava uma compulsão sexual. Para ela qualquer corpo é corpo. Um 73
longo trabalho seria feito nos próximos meses depois da descoberta. A psicóloga foi uma aliada dessa tarefa com as mães e as meninas. Havia momentos extremos de sofrimento. O passado todo voltava à tona. Descobriu que foram os próprios familiares biológicos que abusaram de suas filhas. O avô, o padrasto e o filho do padrasto. Um questionamento incansável dessas tristes revelações: por quê, por quê, por quê. Agora era hora de resolver. Encarar o que desse para encarar. A irmã, percebendo a dor, deu conselhos para desistir. Não de maneira maldosa ou má intencionada, mas como um cuidado por saber do histórico de experiências ruins da irmã. — Por que você não devolve elas? Acho que vai ser muita coisa pra você lidar. — aconselhou a irmã. — Nem pensar! Eu vou procurar ajuda pra elas, eu tenho que fazer isso, agora elas são minhas filhas. — encerrou a conversa. O atendimento era alternado entre as meninas e a Rita. Primeiro elas e depois a mãe, até para saber como seria o procedimento de ajuda. Cada uma precisou dormir em quartos separados, durante o dia podiam conviver juntas, mas durante as sonecas cada uma em um quarto. O banho a mesma regra. Antes ela dava banho nas meninas ou tomava banho com elas, mas agora isso havia sido negado como forma de conter os impulsos sexuais. Beijo, abraço, aconchego, aperto de bochecha e cheiro estavam proibidos. Por enquanto o carinho se dava a distância mesmo. No decorrer dos meses as meninas melhoraram significativamente. A compulsão exagerada havia passado. Foram ensinadas várias formas de lidar quando sentissem esse desejo novamente. Carol aprendeu que a irmã não era só mais um corpo avulso, mas alguém que ela deveria protegê-la e cuidá-la. Elas aprenderam da forma mais lúdica possível para aliviar os traumas. Quando as aulas voltarem, ao final da pandemia, é possível que se reavalie esses comportamentos para que não voltem. Carol também tinha outra questão importante a se resolver, ela não compreendia o abandono da mãe biológica. Não aceitava que ela nunca mais voltaria para buscá-la. Quando a juíza soube desses conflitos e dos abusos explicou que se a situação não se resolvesse as meninas teriam que ser separadas, colocando a mãe em um beco sem saída para escolher com 74
qual filha ficaria. Esse dia nunca chegou, felizmente não precisou tomar essa decisão, mas se fosse o caso preferia não ficar com nenhuma ao invés de separá-las. Nada foi suficiente para prepará-la para o real. Ela leu tanto livro de adoção. Sabia que o abuso ou comportamento agressivo poderiam estar presentes, mas ainda assim foi surpreendida. Compreendia na teoria, não na prática.
Convivência
A licença maternidade foi concedida com sucesso. Em setembro completou quatro meses que foram renovados para mais dois. Foi essencial esse período de convivência e adaptação em tempo integral. Talvez se as coisas fossem diferentes, sem pandemia e sem licença, não teria visto a tempo os problemas das filhas. Poderia aparecer só lá no futuro, quando fosse tarde demais para travar qualquer trauma. A rotina se divide em etapas, mesmo no período de isolamento. Logo cedo, às 6h30 da manhã, elas acordam, tomam café, brincam um pouco e se concentram nas atividades escolares. Por volta do meio dia tem o almoço seguido da soneca da tarde que é despertada lá para o final do dia. Assistem desenho, brincam e quando vê já deu a hora de dormir e recomeçar tudo outra vez. As duas têm um gênio do cão, como descreve a mãe. E a quem puxaram também. Elas falam, questionam, reclamam e dizem logo de cara o que querem ou não. E se querem vão lutar até conseguirem. — Eu quero, por que que não pode? — resmungavam as duas. A opinião própria é em tudo. Escolhem a roupinha que vão vestir, guardam os brinquedos após uma sessão inteira de diversão e até dobram as cobertas da cama que são bem maiores que o tamanho delas, em largura e altura. Era isso mesmo que a mãe queria quando pensava em filhos independentes, crianças livres e donas de si. E caso tenham curiosidade pelo passado, em saber o nome do pai ou da mãe, isso não será problema algum contanto que sintam-se bem. O vínculo e a segurança foram estabelecidos dentro de casa. As meninas não cansam de chamar a mãe o dia todo, ôh mãe, mãe, mãe vem cá. A convivência vem misturando o jeito de cada uma, incorporando manias e 75
influenciando até na aparência física, se é que é possível. — Eu sou sua filha mesmo mamãe, você deve ter me deixado em algum lugar para me buscar depois. — brincou a mais nova. A palavra mãe foi dita desde o início pela Camila, sem muita cerimônia. A Carol demorou um pouco mais, preferia falar “tia” ao conversar com a mãe. Depois se acostumou melhor, principalmente quando entendeu que ela se tornara sua nova mãe, podendo deixar o passado para trás. De vez em quando chorava ao ouvir das filhas essa palavra tão curta. Não entendia quem precisava mais de quem porque sentia que no final era ela que estava sendo adotada pelas meninas e não o contrário.
Conciliação A mãe de Rita voltou para o Espírito Santo e após anos de intrigas entre elas finalmente houve acordo de paz. Hoje em dia o contato é recíproco, as duas se falam direto pelo celular. Ela virou outra pessoa. Os medos que aterrorizavam seus dias se foram. Até aquela vontade de saber mais sobre a morte passou. Seu único objetivo daqui para frente era viver. Ela sabia que para ter as meninas o preço a se pagar era alto. Não financeiramente claro, mas alguém teria que sofrer. Ela entendia que na adoção era desse jeito. Uma criança precisava ser abandonada para realizar os sonhos de pais que ainda não pais. Um pensamento egoísta e inevitável. Nunca quis que as filhas enfrentassem a dor daquela forma tão amarga, mas sabia que só nesse turbilhão de ruindade encontraria sua família. — Mãe eu te amo, você sabe que eu te amo, né? — Carol repetia incansáveis vezes essas declarações. A mãe de Rita recebe diariamente vídeos das meninas e chora de emoção. Quem diria depois de tanto tempo poder desfrutar com a filha momentos como esse. Poder ser avó mesmo falhando como mãe. Uma boa segunda chance. No dia 15 de setembro chegou outro papel referente a uma avaliação feita para aprovar ou não a adoção. O resultado foi positivo. Por enquanto continua com a guarda provisória, mas parece estar bem próxima de conseguir a certidão oficial com a guarda permanente. Não quer perdê-las nesse processo. Mas só o que pode fazer é esperar. Dessa vez acompanhada das filhas. 76
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Mãe da Andressa
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Fabiana é bauruense, mas ficou no interior de São Paulo apenas até os três anos de idade. Filha de José e Maria, como na bíblia, ela e suas irmãs se mudaram para Campo Grande por volta de 1976. A irmã mais velha chama-se Patrícia, a mais nova Sherlly. A família, que até então estava completa, logo diminuiu. O pai, que hoje é falecido ou desencarnado, foi embora quando Fabiana tinha 6 anos de idade. Nessa época ele já tinha 5 filhos do primeiro casamento e só voltaria na vida das meninas 17 anos depois. O reencontro teria aproximado a família outra vez se não fosse pelos vícios contínuos no álcool e o comportamento sexualizado do pai que afastava qualquer um. Apesar dos problemas familiares foi pela meia-irmã que essa história tomaria rumos diferentes diante da adoção. Mas enquanto ele começava outro caminho em 1979, dona Maria precisava se virar sozinha para criar as três filhas. Cada uma logo ganhou sua própria função e responsabilidade dentro de casa. O trabalho ocupava quase que o dia inteiro de dona Maria. O sustento da casa dependia do seu tempo, das horas trabalhadas e do salário após cada jornada. “Era o suficiente para nos faltar um pouco de amor”, recordava Fabiana desses tempos. Ela entendia a mãe. É claro que entendia. Mas sentiu falta desse toque físico, do aconchego, das palavras que geralmente carregam afeto. Pensara, quase como um desejo, que um dia seria uma mãe diferente. As três meninas não tinham tanto tempo vago para brincadeiras de infância, mas entre um intervalo e outro encontravam tempo para as brigas e disputas. Fabiana era a mais marrenta entre elas, o gênio forte sempre lhe custava uma surra no final do dia. Apesar de ser só uma criança, ela não era muito de chorar depois do castigo. Era debochada, ria na cara da dona Maria que por sua vez dizia: “Você tem que chorar”. Era uma forma de confirmar que ela aprendera alguma lição, mas isso só a fazia levar tudo ainda mais na maior leviandade.
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Patrícia, Sherlly e Fabiana
A Patrícia, por ser mais velha, tinha a missão de cuidar das irmãs, era ela quem dava as ordens. A Sherlly era meio adoentada, fraquinha, tinha que ficar aos cuidados dos outros. E Fabiana, que dividia o meio termo, nem mais nova e nem mais velha, fazia de tudo um pouco. Aos 7 anos ela ajudava sua mãe com uns trocados que conseguia limpando a casa da vizinha, depois começou a cuidar de crianças como babá. Aos 15 já trabalhava no comércio no centro da cidade. A partir daí não parou mais, continuou trabalhando igual a mãe fazia. Ela e sua família moravam no bairro Moreninha, zona sul de Campo Grande. O bairro foi fundado em meados de 1981 e atualmente se divide em quatro unidades representando um dos bairros mais populosos da cidade.¹ Na época em que ela morou tinham vários grupos de adolescentes. ¹ “A cidade Moreninhas, onde você nasce e morre”. Campo Grande News, 04 nov. 2011.
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Eram meninos, meninas e jovens em geral que ficavam na rua brincando, festejando ou arrumando confusão. E claro, ela estava entre eles. Começou então a se envolver em uns grupos, arrumou algumas brigas e certa vez voltou com o olho roxo para casa. Essa fase logo ficou para trás. Das três, ela se destacou. Foi para faculdade, estudou, fez pós-graduação, seguiu seus planos e idealizações adultas. Alguns foram desajeitados, como o relacionamento amoroso de quase uma década que chegou ao extremo de afastá-la da família. O término, apesar de agora lhe causar alívio, demorou para desatar. A perda final reverberou de tal forma que influenciou seus próximos passos até chegar na adoção. As irmãs e a mãe, que haviam perdido o contato, voltaram a conviver com ela de novo. Depois disso o assunto romance lhe pareceu chato, não despertava a mesma emoção de antes e tampouco trazia a realidade das relações. “Eu buscava o que as pessoas chamavam de príncipe encantado, mas um dia eu desisti dessa ideia”. Ela ficou 7 anos completamente sozinha. O tempo, apesar de amargo, lhe fez repensar bastante coisa.
O primeiro encontro
Edna era meia-irmã por parte de pai. Ela é um dos 5 filhos que ele teve do primeiro casamento. Apesar disso a relação com a Fabiana é próxima e amigável, acabou que se estendeu na vida adulta e anos mais tarde se revelou essencial no processo de adoção, ainda que nenhuma das duas tivessem ideia disso quando a história se iniciou. A meia-irmã trabalhava como manicure e atendia várias mulheres em casa ou quando necessário ia até elas. Entre um trabalho e outro ela conheceu a Caroline ², uma mulher que trabalhava na prostituição. O envolvimento com a sua família foi acontecendo aos poucos até ter um envolvimento bem mais sério. Caroline teve 7 filhos ao todo. A sexta era a Andressa que se tornaria, em alguns meses, filha adotiva de Fabiana. Nesse momento ela tinha por volta de dois anos. A sétima filha era Vitória e tinha um ano de idade. Em uma crise forte de dependência química, ela pegou as duas meninas e as levou para a casa da manicure. ² Nome fictício.
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— Cuida pra mim! — disse ela. A explicação foi que não havia com quem deixá-las, mas prometeu no final da conversa que seria temporário, só por alguns dias, para quebrar um galho. Ela foi embora. As meninas ficaram. E a promessa se esvaziou. Os dias correram. E o que começou como uma semana logo se estendeu em uma quinzena. A meia-irmã teve a ideia de ir até a casa da avó e levá-las para lá, afinal eram netas dela. Mas ao chegar a avó não queria conversa, pediu que voltassem para casa. — Você não pegou essas meninas na mão dela?! Então você vai devolver na mão dela. — disse a avó na tentativa de se esquivar do problema. Não restaram escolhas. A esperança era de que um dia Caroline retornasse e buscasse suas filhas. Andressa e Vitória precisavam de uma família e de um lugar que pudessem se sentir em casa. A Fabiana chegou a conhecê-las quando visitou a meia-irmã, não se recorda com tantos detalhes da mais nova, mas se lembra bem da Andressa. Foi uma sensação incomum, que só depois faria mais sentido.
14 de setembro de 2008
O clima agradável fazia daquele domingo um dia tradicional para se encontrar com a família e realizar aqueles almoços que se estendem até o final melancólico da tarde. O convite dessa vez veio da meia-irmã, afinal era a família dela que festeja neste dia. Fabiana aceitou e o encontro foi na saída de Rochedo. Como já era esperado viu Andressa novamente, mas nada da irmã mais nova. Foi quando soube que ela havia sido entregue para avó novamente. Dessa vez não houve recusa, a avó aceitou a menina e um tempo depois encontrou um casal de advogados bastante interessados em criá-la. Eles tinham um desejo em ter filhos e prometeram para a avó que cuidariam bem dela. Então a Vitória se foi. A irmã, por outro lado, ainda continuava sem destino e nessa época era cuidada pela Paula, sobrinha de Fabiana e filha de sua meia-irmã. Durante esse almoço a menina estava solta. Livre como uma criança entregue a suas próprias brincadeiras. Corria pra lá, corria pra cá, esbarrava de vez em quando em algumas pessoas e continuava a se divertir em suas meninices. 83
Mais tarde, naquele mesmo dia, Fabiana ajudou a sobrinha a dar banho e comida para Andressa. Enquanto faziam isso conversavam para passar o tempo. Conversa vai, conversa vem. E mesmo evitando pensar a respeito, ela já estava olhando para a futura filha de uma forma diferente. Não tinha como adivinhar que aquela criança, abrigada pela família, ocupava cada vez mais lugares em seus sentimentos. Precisou verbalizar. — Paula, dá a Andressa pra mim? — disse antes mesmo que pudesse mudar de ideia. Os planos dela, até então, não tinham relação alguma com a maternidade. Ela estava se organizando para passar um tempo fora. Tinha terminado a faculdade em dezembro de 2003 e agora finalmente havia uma oportunidade para ir, viajar, conhecer outros lugares e crescer profissionalmente. Parecia o momento ideal para fazer tal plano. Mas o destino soprou para outro lugar. — Não tia… a Andressa é minha! — disse a sobrinha. O almoço seguiu normal. “Tá bem”, pensou ela se conformando com a resposta da sobrinha. Foi um momento que passou. Ela tinha entendido que talvez não fizesse sentido mesmo pedir aquilo para a sobrinha. A conversa seguiu seu ritmo natural. Continuaram confraternizando entre seus entes queridos. Foi um domingo parecido com os anteriores. Os dias seguintes é que seriam diferentes.
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Primeiro registro de Andressa e Fabiana, por volta de novembro de 2008
Um dia
Foi o suficiente. Eram 14h da tarde de uma segunda-feira quando o telefone de Fabiana começou a tocar. Ela viu que era a sobrinha e logo atendeu. Só não imaginava que receberia naquele dia comum tal proposta. Nem havia tempo suficiente para ensaiar qualquer resposta de prontidão. — Tia, sabe aquela bolacha do pacote? A senhora quer ela? — disse a sobrinha se referindo a Andressa. Um turbilhão de pensamentos passaram pela cabeça dela depois de ouvir essa pergunta. Todos os sentimentos possíveis estavam presentes naquele instante. Era inimaginável para ela ouvir aquela proposta. A alegria tomou conta nos primeiros instantes. Depois o afeto acalentou sua imaginação ao pensar na filha. Logo o medo chegou e tomou espaço. Veio a raiva. O ódio. E principalmente a dúvida. “Será que eu consigo?”, se perguntava enquanto tentava entender a situação. Os olhos logo responderam as emoções. O choro veio. As lágrimas esquentaram o rosto carregadas de felicidade e entusiasmo. O corpo físico se comportava entre tremores da cabeça aos pés. O nervosismo ultrapassou a sua mente e descarregou todas as energias nas partes extremas do corpo humano. Foi confuso. Adoravelmente confuso. Ela deixou a sobrinha na ligação em espera enquanto ligava para dona Maria. Um conselho de mãe cairia bem naquele momento. Precisava ouvir a voz dela. Seria uma forma de saber se o que sentia era coerente mesmo, se estava tomando a decisão certa e não vivendo em um impulso repentino. — Mãe, seguinte, a Paula me ligou aqui para falar da Andressa...— disse ainda revivendo aquela ligação enquanto contava para mãe. — Filha, eu ajudei suas irmãs a criarem seus filhos, eu ajudo você também. Se você quer a Andressa, a gente vai criá-la. — disse dona Maria para o conforto da filha. Esse apoio foi certeiro e necessário. Mas ainda faltava uma outra ligação a ser feita. A irmã mais velha, que também morava com ela, tinha uma filha que precisava de cuidados constantes. Por isso pensou que trazer outra criança poderia causar mais dificuldade para a irmã que já tinha seus próprios compromissos em tempo integral. 85
— Patrícia, a Paula me ligou para falar da Andressa — repetiu quase a mesma frase que dissera minutos mais cedo com a mãe. — Não pensa duas vezes, vamos buscá-la agora! — respondeu a irmã. — Não, eu tenho que pensar sim, eu trabalho fora e você já tem sua filha… — Eu vou te ajudar a cuidar dela! — confirmou mais uma vez. Com o apoio das duas, ela finalmente acalmou seu coração e percebeu que teria coragem de fazer essa escolha. Retornou então para a sobrinha e disse que ficaria com Andressa. Mas dessa vez com uma condição. Não queria repetir o que tinha acontecido com a meia-irmã, aquela história de ficar com a menina só por alguns dias. Ela queria mais. E sentia que tinha chegado a hora de exigir isso. A guarda por si só não bastava, ela queria adotá-la como filha.
Espera
Ainda era dia 15 de setembro de 2008. As ligações feitas durante a tarde tinham se encerrado. Havia chegado o momento de andar com as próprias pernas para o processo legal da adoção. O contato com a mãe biológica era necessário, bastante difícil, mas necessário. Ela ligou, as duas marcaram de ir ao fórum e uma semana depois se encontraram lá. Caroline assinou um documento, reconhecido posteriormente em cartório, para comprovar suas faculdades mentais e verificar se havia mesmo ciência sobre a adoção. Ela assinou sem postergar e o processo se iniciou a partir dali. 21 dias depois seria a primeira audiência. Novamente Fabiana estava decidindo sua vida em uma segundafeira. Era 6 de outubro, um dia após as eleições municipais. A política de algum jeito criou uma ponte de fácil acesso para voltar as lembranças vividas anos atrás. Talvez pela movimentação intensa ou pelos anúncios incansáveis em televisões e rádios sobre os próximos quatro anos. Ou simplesmente uma assimilação dos fatos. A questão é que do lado de fora deste cenário, Fabiana lutava por um outro tipo de mandato, um bem mais longo do que de costume na política. Na verdade, quase nada se assemelhava, exceto pelo caminho bastante burocrático. No processo de adoção não existem votos, nem multidões, é 86
apenas, nesse caso, a decisão para uma mãe e a uma filha. Na primeira audiência Caroline não compareceu. Disse por telefone que estava no estado do Paraná, o que dá em média 800 km de distância, e não voltaria tão cedo para Campo Grande. A audiência aconteceria de qualquer jeito, com ou sem ela, mas a ausência era significativa para alterar o processo. Mudava o rumo da história, tornava-o, dentre tantas coisas, mais difícil de se realizar. — Você tem ciência que agora muda totalmente de figura essa adoção consensual para não consensual? — disse a defensora responsável pelo caso. — Tenho sim! — respondeu Fabiana. — E você tem noção que eu vou te investigar e virar sua vida de ponta cabeça? — Tenho. — Posso fazer isso então? — Pode. — encerrou a conversa.
Avesso
O processo de guarda provisória começou. Foram feitas algumas visitas à casa de Fabiana e logo notaram que ela oferecia uma boa qualidade de vida para a futura filha. Chegaram a visitar a avó biológica também e depois a própria Caroline quando retornou a cidade. A mãe biológica alegou não se lembrar de ter cedido a guarda da filha, muito menos de ter conversado e conhecido Fabiana. Era um processo diferente dos demais, não houve espera em filas, ou a ansiedade de imaginar o filho e conhecê-lo. A Andressa já estava ali, pronta, nascida, crescida e à mercê de um sistema para ter uma família. Fabiana não tinha medo de perder a guarda para a avó ou a mãe, ela sentia que isso seria difícil de acontecer. Nenhuma das duas, ao seu ver, se esforçaram para ficar com a menina. Mas poderiam existir outros parentes que quisessem essa guarda. E apesar do foco ser na proteção da criança, os laços consanguíneos podem pesar na decisão final de um processo. A adoção não foi pensada para ser dessa forma, mas nem todas as ações humanas são de fácil controle. Crianças nascem a cada minuto que passa, mas infelizmente seus pais não são multiplicados na mesma 87
quantidade para equilibrar essa balança. Caroline teve 7 filhos, a vida não lhe foi doce para que pudesse cuidar de todos eles, talvez nem ela tenha sido gentil com a própria vida. São fatores que de vez em quando se permitem o controle, mas em uma via contrária podem atropelar bruscamente qualquer desejo. No final de todo o conflito familiar e judicial quem sofre é a criança. Não sabe se vai, não sabe se fica. Para onde e quando vai. Depois que vai há dúvidas se aquele novo lugar é seguro, se pode finalmente se abrigar e descansar. A criança pode até não verbalizar o que sente, mas sente tudo à flor da pele e isso aparece, como foi no caso de Andressa, anos mais tarde em outras fases da vida.
Encontro
O processo durou 2 anos ao todo, a guarda provisória era revisada e estendida a cada 6 meses. Foi necessário também realizar alguns cursos que são obrigatórios para quem quer entrar legalmente na adoção. Ela se lembra de alguns comentários que ouviu de pessoas dizendo que o seu caso era atípico, afinal enquanto todos esperavam por um filho, ela só aguardava um documento que oficializasse seu vínculo já existente. A irmã mais velha fez questão de estar presente no dia em que foram buscar Andressa. O sentimento de aflição, anseio e nervoso ocupavam quase que por completo o ambiente. A menina chegou toda vestida com roupas jeans, uma calça e uma jaqueta que servia de agasalho. Nas costas carregava uma mochila pequena. Com um olhar de tom curioso ela observava aquelas pessoas adultas em sua volta. — Você vai ser minha mãe? — disse sem saber que essas palavras ocupariam um grande espaço nas lembranças de Fabiana. A emoção contornou seu rosto, o choro foi inevitável, mas também veio acompanhado de sorrisos largos de ponta a ponta. Já em casa, ela preparou um leite com achocolatado e um pão para receber a filha. Mesmo nova, ela já expressava bem do que gostava ou não ao recusar de cara o leite e pedir um chá como gente grande faz. Depois tomou banho sozinha, mostrou que sabia se virar bem apesar da pouca idade. Em 12 de outubro de 2008, pouco depois de Andressa chegar, ela 88
encontrou o atual marido em uma festa de casamento que os dois tinham sido convidados. Carlos logo entrou para a vida e para a família dela. Tudo foi muito rápido. Os planos iniciais de viajar e aproveitar a vida solteira foram trocados por uma família que aumentou quase da noite para o dia. Ele entrou com o processo de adoção dois anos depois quando já estavam noivos e decididos a se casar. Com todas as etapas concluídas ele também conseguiu a guarda da filha. E a certidão finalmente estava completa. Fabiana já tinha cruzado seu caminho com o dele várias vezes antes mesmo de ficarem juntos, mas nunca havia dado em nada. Sua conexão com a religião espírita a fez pensar que isso precisava acontecer para que mais tarde pudessem ter uma família juntos. A ligação com a filha adotiva também parte do mesmo princípio. No espiritismo a adoção é vista como uma conexão anterior ao plano terreno, acontece antes mesmo do nascimento. Os laços espirituais são mais fortes que os sanguíneos, pois revelam, aos que acreditam, que os acontecimentos não partem do acaso ou mera coincidência, mas sim predestinados e interligados.
O desenrolar
Anos mais tarde ela e o marido tiveram uma filha biológica chamada Mariah. De início a relação entre irmãs foi complicada, a mais nova ocupou um lugar que antes não tinha disputa. Andressa sofreu calada durante um tempo, até entender que não era mais filha única. A relação atual é de amor e ódio o que se assemelha um pouco com a infância de Fabiana com as irmãs. Na pré-adolescência a fase foi mais complicada. Ela estava no sétimo ano da escola quando se envolveu com amizades que a distanciaram de sua família. A educação recebida até aquele momento foi por água abaixo. Começaram as mentiras, intrigas e comportamentos agressivos. — Eu não sou sua filha — dizia em momentos de raiva. Mesmo sabendo que aquilo era da boca pra fora, Fabiana ficou sem saída sobre o que fazer. Tinha medo só de pensar onde essa situação chegaria na vida de Andressa. Ela ouvia o tempo todo que a filha queria ir embora, que não precisava daquela família e que não se sentia filha deles. 89
Em uma atitude extrema e dolorosa ela decidiu deixar a filha passar um tempo com a família biológica. Foi de longe a decisão mais difícil de se tomar. Mas o comportamento ficava cada vez mais estridente e dependendo da espera poderia ser tarde demais. A origem da filha de alguma forma afugentava suas relações, só depois de tentar ela saberia se poderiam retomar a relação de mãe e filha. A casa da avó e da mãe biológica ficava no caminho que Fabiana fazia quando ia para casa. Então ela sabia onde elas moravam, mas evitava falar isso para a filha para não criar nenhuma situação ruim. Mas neste momento não tinha escapatórias, ela iria saber de qualquer jeito. Pouco antes de ir para lá Andressa tentou suicídio. Foi o ápice para preocupar completamente sua mãe. Então ela ficou 45 dias com a família biológica, passou natal e ano novo com eles. De longe, Fabiana sentia a dor como se perdesse a filha, mas quando acabou esse vasto tempo, o retorno se mostrou caloroso e assertivo. Em anos anteriores ela tinha questionado os pais do porquê foi adotada. A família tentou vários métodos para estabelecer uma boa relação afetiva, desde tratamentos psicológicos até espirituais. Mas só o tempo conseguiu assegurar esse vínculo e fortalecê-lo. No mês de novembro Andressa completa 15 anos. Fabiana a chama de espírito guerreiro. Seu desejo sempre foi manter uma amizade com a filha e ela vê que agora consegue apesar dos pesares da vida, principalmente vida adolescente. Ela não conhece todos os segredos da filha, nem seus medos ou traumas. Isso foi aparecendo aos poucos. Ela foi descascando camada por camada, cada vez que encontrava uma abertura para se aproximar mais da filha. Algumas coisas ela pega no ar. Outras tinha que espiar de longe para entender a linguagem mais jovial. No fundo ela só deseja que a filha se encontre e possa ficar plenamente em paz com a sua origem. Andressa é como a maioria das adolescentes com seus dias de sol e de chuva. Talvez ela ainda se machuque com o assunto da adoção, mas segue encarando os fantasmas do passado. Ela já se apaixonou e já namorou também. Têm seus próprios ídolos que admira e estilos musicais que passa o dia ouvindo. É como qualquer outro filho buscando entender seus pais. 90
Carlos, Fabiana, Mariah na frente e Andressa ao lado da mãe, dezembro de 2019
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Apêndice Adoção no Brasil, caminhos
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A criação do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) surgiu no ano de 2019 e é regulamentado pela resolução 289/2019¹ do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Anterior a isso existiam dois sistemas: o Cadastro Nacional de Adoção (CNA) e o Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas (CNCA). O sistema mais recente engloba os anteriores. Um dos objetivos previstos para esse novo sistema é auxiliar os juízes da Infância e Juventude no momento de conduzir os procedimentos de adoção, visto que o próprio sistema reúne informações sobre os pretendentes habilitados e as crianças e adolescentes disponíveis para adoção. Outro fator importante levado em consideração é a ordem cronológica das pessoas já habilitadas, ou seja, aquelas que estão na fila de espera são posicionadas de acordo com o perfil escolhido e com a data que foram registradas. Conforme o Art. 8º da mesma resolução, é necessário esgotar a busca na fila de pretendentes habilitados no Brasil para que recorram à adoção internacional. O tempo na fila de espera varia de acordo com o perfil desejado, por isso, quanto mais aberta for a pretensão dos candidatos mais rápido eles conseguem adotar. Do outro lado, a criança está apta para adoção quando é deixada na maternidade, assim que nasce, ou quando passa por uma destituição familiar. Na lei nº 13.509/2017², conhecida como lei da adoção, existe a chamada “entrega voluntária”, na qual a mãe biológica pode entregar seu filho para adoção de acordo com o procedimento e assistência da própria Justiça da Infância e Juventude. Entretanto, o abandono de um recémnascido é crime, conforme descrito no Código Penal.
¹ Resolução Nº 289 de 14/08/2019: Art. 1º O Conselho Nacional de Justiça implantará o Sistema Nacional de Adoção e de Acolhimento – SNA, cuja finalidade é consolidar dados fornecidos pelos Tribunais de Justiça referentes ao acolhimento institucional e familiar, à adoção, incluindo as intuitu personae, e a outras modalidades de colocação em família substituta, bem como sobre pretendentes nacionais e estrangeiros habilitados à adoção. ² Art. 19-A. A gestante ou mãe que manifeste interesse em entregar seu filho para adoção, antes ou logo após o nascimento, será encaminhada à Justiça da Infância e da Juventude.
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A partir disso inicia o processo de busca da família extensa, termo utilizado para se referir a parentes ou familiares próximos à mãe biológica. Quando esgotada essas opções a criança fica sob guarda provisória de quem estiver habilitado para adotá-la ou de entidades que desenvolvam o acolhimento familiar ou institucional. Podem adotar indivíduos maiores de dezoito anos que tenham pelo menos dezesseis anos de diferença que o adotado. Não é obrigatório estar casado, mas em casos de adoção conjunta é necessário que os pretendes sejam casados civilmente ou que apresentem documento de união estável. A adoção tardia se estabelece quando a criança adotada tem mais de três anos. Nesses casos a adaptação pode necessitar de mais tempo de ambas as partes, principalmente, quando o histórico é de maus tratos ou abuso. Por isso a necessidade de um preparo prévio dos adotantes para que os mesmos tenham consciência da escolha e não repitam a devolução e destituição familiar daquela criança. Os passos para adoção partem de duas etapas diferentes, primeiro a habilitação do pretendente e depois o processo. A orientação ocorre da seguinte forma³: 1. Primeiro procurar a Vara da Infância e Juventude mais próxima. É necessário ter em mãos as documentações4 solicitadas para abertura do processo. 2. A partir da entrega dos documentos é formalizada a entrada na adoção. Inicia-se o procedimento de habilitação. 3. Os pretendentes recebem visita domiciliar e passam por entrevistas de profissionais da área da psicologia e assistência social. Nessas entrevistas são realizados relatórios que registram e avaliam os pretendentes. O documento é anexado ao processo. ³ Cartilha do Ministério da mulher, família e dos direitos humanos intitulada “Adoção e o direito de crianças e adolescentes - à convivência familiar e comunitária” divulgada no ano de 2020 pelo Governo Federal. 4 Essas documentações são: carteira de identidade, CPF, certidão de nascimento ou de casamento, em casos de união estável uma declaração, além de apresentar um comprovante de renda mensal, um atestado de sanidade física e mental, uma certidão de antecedentes criminais e uma certidão negativa de distribuição cível.
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4. São oferecidos cursos obrigatórios e grupos de apoio para preparar os pretendentes para a adoção. 5. Depois é decidido pelo juiz se o pretendente está ou não habilitado. 6. Em caso de estar habilitado ele é adicionado ao SNA onde aguarda a fila de espera até que encontre uma criança disponível que corresponda ao perfil selecionado. Essa inscrição é válida por três anos mediante a uma nova avaliação conforme o Art.197 da lei da adoção.5 7. Quando o sistema encontra esse perfil o pretendente é acionado para iniciar a adoção. 8. A adoção ocorre primeiramente em estágio de convivência familiar pelo prazo de noventa dias, salvo os casos com complicações maiores a se averiguar. Também é observado a idade da criança para verificar se é necessário mais tempo. 9. Quando o pretendente passa desse estágio, ele chega no último onde é deferida a adoção. O registro original é cancelado e é realizado um novo com o nome dos pais adotivos. O ECA prevê que a adoção é uma medida excepcional, ou seja, quando esgotam todas as outras alternativas para oferecer uma família a criança, e irrevogável. Nesse sentido, outra destituição familiar, no caso da adoção, só ocorre se verificarem prejuízos ao adotado que arrisque sua integridade física, psicológica ou moral.
De acordo com o artigo, o contato com crianças e adolescentes em regime de acolhimento familiar ou institucional deve ser realizado sob supervisão e avaliação da equipe técnica da Justiça da Infância e Juventude para garantia do direito à convivência familiar. 5
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Agradecimento Este livro faz parte de um sonho que atravessou minha adolescência e juventude. Antes de escolher pela adoção ela havia me escolhido. É genuíno contar histórias parecidas como a minha e ao mesmo tempo diferentes da minha. O sistema pode perpetuar, mas o que é feito de carne e osso se modifica constantemente. Obrigada à todos os pais e mães que confiaram em mim. Obrigada à todos da minha família e amigos, em especial Gabriela minha irmã. E por fim, obrigada professor Felipe por acompanhar e ajudar nesse projeto.
Este livro foi composto na tipografia Adobe Garamond e League Spartan, em corpo 11/12 para texto e 14 para títulos. A obra faz parte de um trabalho de conclusão do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.