O descaso diante da realidade nos transforma em prisioneiros dela. Ao ignorá-la, nos tornamos cúmplices dos crimes que se repetem diariamente diante de nossos olhos. Daniela Arbex
Ficha técnica APARTAMENTO 19 Autora: Gabrielle T. Rodrigues Orientação: Prof. Dr. Felipe Quintino Capa e ilustração: Pagar o Pato Projeto gráfico: Gabrielle T. Rodrigues
Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Faculdade de Artes, Letras e Comunicação Curso de Jornalismo - Trabalho de Conclusão de Curso Copyright © 2021 Gabrielle T. Rodrigues Todos os direitos reservados
Sumário Introdução ................................................................ 9 Prólogo..................................................................... 11 A menina sob o lençol amarelo ........................... 19 O que aconteceu com Luciana?.............................47 O quarto poder ....................................................... 63 O mistério do Apartamento 19 .............................87 Agradecimentos ................................................... 107
Dedico aos meus pais, José Rodrigues e Neiva Tavares, que me deram a vida e a oportunidade de uma carreira.
Introdução A primeira vez que comentamos sobre livro-reportagem em uma das aulas da graduação, soube que gostaria de escrever um, e o trabalho de conclusão de curso me pareceu o melhor momento para tentar. O problema surgiu quando tive que decidir o tema pelo qual escreveria, pensei em seguir mil caminhos diferentes, mas nenhum deles me interessava o suficiente. A dúvida se esvaiu quando terminei de ler uma publicação no Facebook sobre uma mulher que havia perdido a irmã naquele mesmo dia, 1º de janeiro, só que há 24 anos. Enquanto enxugava as lágrimas - primeiras de muitas que ainda derramaria - entendi que aquela história precisava ser contada. Fui questionada diversas vezes sobre qual era minha motivação em ter escolhido Luciana, mas nunca soube explicar exatamente o porquê. Hoje em dia, penso que fui escolhida por ela. Ao fim de cada capítulo, percebia que poderia ser minha amiga, minha irmã, minha mãe e até eu mesma. Ao longo das páginas, é possível pensar que Luciana fez escolhas erradas, mas lembre-se que acima de tudo, era uma jovem tentando aproveitar seus anos de juventude.
9
Prólogo Na noite de 31 de dezembro de 1995, quando toda sua família e o restante da cidade se arrumavam para comemorar a virada do ano, Ricardo de Lima, de 38 anos, se preparava para mais uma jornada de trabalho. Havia conseguido o emprego de porteiro há três anos, o turno da meia noite às 6h a princípio lhe deixou apreensivo, mas nesta altura já estava acostumado. Apesar de ter que trabalhar em uma data festiva, precisava do dinheiro ao fim do mês e o horário ainda o permitia complementar a renda com atividades alternativas. Como era noite de Réveillon precisaria iniciar seu turno meia hora mais cedo. Assim, às 23h deu um beijo em sua esposa e saiu em direção ao Edifício Comodoro. No caminho, passou por diversas pessoas reunidas esperando o relógio marcar meia noite para comemorarem o início de um novo ciclo. Quando chegou ao prédio, às 23h30, encontrou seus colegas Antônio e Raimundo, que dividiriam a noite de trabalho com ele. Antônio trabalhava ali há pouco tempo, Ricardo ainda não o conhecia tão bem. O homem de 40 anos tinha um turno maior, das 18h às 6h e presenciou o início de uma festa no salão social do condomínio. - Começou por volta das 21h30, tem só uns quatro casais com seus filhos - informou Antônio 11
a Ricardo. O porteiro se surpreendeu, já que a comemoração não foi avisada com antecedência, mas como seu dever era ficar na portaria cuidando do fluxo de pessoas na entrada do prédio, não foi até o local. Meia hora depois, estava distraído olhando a rua quando se assustou com o barulho de fogos de artifícios, o som vinha do salão de festas, só assim percebeu que o ano de 1995 havia ficado para trás. Seus colegas de trabalho apareceram para desejar-lhe feliz ano novo e Antônio aproveitou para comentar sobre a festa. - Serviram só bebida cara, whisky, champanhe, até uns salgadinhos. Estouraram um monte de bombinhas e fogos de artifício, você ouviu? Vai sobrar pra gente limpar. E assim aconteceu, por volta das 2h, quando o último casal finalmente decidiu abandonar o salão de festas, Ricardo, Antonio e Raimundo começaram a recolher o que sobrara dos fogos de artifícios estourados, o vento havia espalhado a sujeira, tornando o processo mais demorado. Já estavam ali há alguns minutos quando um grande estondro cortou o silêncio da madrugada, assustando-os. Ricardo olhou para os colegas, desnorteado, e em seguida para a guarita onde tinha permanecido durante toda aquela noite. Um corpo jazia na entrada do prédio. Antônio e Raimundo se aproximaram, mas Ricardo ficou onde estava, o choque 12
paralisando suas pernas. - Não dá para saber se é um adulto ou uma criança - disse Antônio - Alguém chama a polícia. Foi quando dona Janete, uma das poucas moradoras que não tinha deixado o condomínio na virada do ano, irrompeu na portaria perguntando o que havia acontecido. - Ouvimos um barulho muito alto, minha filha foi até a sacada para ver o que tinha acontecido e viu um corpo no chão - explicou. Ela trazia uma pilha de jornais para cobrir a pessoa já sem vida no local. Os funcionários tentaram cobrir a cena, mas o vento, que mais cedo espalhara vestígios de um momento alegre, agora não permitia que a tragédia fosse encoberta, como se obrigasse os presentes a testemunhar a triste cena. Em silêncio, dona Janete virou de costas e retornou pelo mesmo caminho de onde viera. Minutos depois, a mulher voltou com um tecido laranjado nas mãos, quando ela o estendeu, Ricardo viu que era um lençol. O porteiro ainda tentava assimilar a situação observando os colegas escondendo o corpo dilacerado, o que havia acontecido? A pessoa, adulto ou criança, se jogara da sacada? Se desequilibrou e caiu? E se assim aconteceu, o que havia motivado o desequilíbrio? Estaria ele testemunhando uma vítima de assassinato? No momento que pensou, um arrepio subiu por sua espinha, ele mal conhecia as pessoas do prédio, já que seu turno era de 13
madrugada. Não sabia quem seria capaz de fazer uma coisa dessas, a impressão que tinha até então era a mesma dos que só passavam pela calçada do edifício, um lugar luxuoso criado para acomodar seus donos ricos, levando a vida sem grandes dificuldades. - Onde tem um telefone? É melhor ligar para os moradores que estão no prédio para virem reconhecer o corpo - disse dona Janete, trazendo-o para a realidade. Ricardo foi para a portaria e ligou para a polícia. Depois, com a ajuda de Antônio, que sabia quem esteve na festa, interfonou para os apartamentos dos casais que passaram a virada do ano no salão do condomínio. Conforme ia ligando, os moradores iam descendo imediatamente, uns para tentar reconhecer, outros só por curiosidade. Antes de interfonar para o quarto e último apartamento, a polícia chegou e Antônio saiu para atendê-la. Ricardo continuou o trabalho, o único jeito de se sentir útil naquele momento, e foi atendido com indiferença. -Boa noite senhor João, caiu uma pessoa de um apartamento e está na portaria, estamos ligando para o povo descer para reconhecer. -Vocês deveriam chamar um médico - respondeu o advogado João Atílio, de 49 anos, morador do décimo nono andar. 14
João Atílio começou a noite na companhia de duas pessoas, mas no momento em que atendeu a ligação estava sozinho. Coincidentemente, uma delas passou por Ricardo assim que este desligou o telefone. -Caiu um corpo de um apartamento, seu tio pediu para chamar um médico - disse Ricardo a Frederico Sidney Mariano, de 18 anos, adolescente sobrinho do morador. Fred, como era chamado, pegou o telefone e discou para o Hospital Sírio Libanês, em seguida, passou para Ricardo e saiu em direção a rua, sem olhar em direção ao corpo. -Ele também não deve ter reconhecido-pensou Ricardo, observando-o partir em direção à rua. Alguém o aguardava, mas como outros moradores estavam descendo naquele momento, desviou a atenção do sobrinho de João Atílio para explicar o que estava acontecendo para eles. Enquanto isso, Antonio estava auxiliando o delegado plantonista, que reconhecia a cena, isolava o local em que o corpo caiu e ouvia os moradores. Depois que os peritos chegaram na cena e realizaram os procedimentos necessários, o delegado decidiu subir ao apartamento do único morador que não tinha descido até a portaria. Até aquele momento, ninguém tinha reconhecido o corpo, que estava muito deformado e com os cabelos cobrindo o rosto. Ricardo observou quando o oficial entrou no elevador e desapareceu atrás das 15
portas metálicas, acompanhado do zelador do prédio, senhor Oliveira. Minutos depois, o interfone do porteiro tocou, era o zelador dizendo que haviam descoberto a identidade da jovem que caiu. Ele também repassou a ordem do delegado para informar o restante dos moradores que ainda estavam ali. A outra ocupante do décimo nono andar era a noiva de João Atílio, Luciana Bezerra França, de 22 anos. Ela comemorou o Réveillon com um vestido branco, meia calça e tamancos brancos. Deitada no chão frio da portaria, seu vestido se tornara vermelho e seus calçados já não estavam mais em seus pés. - O lugar onde ela caiu não é muito claro, acho que lá de cima não dá pra ter uma visão exata de quem deveria estar no chão - comentou Ricardo com Antonio. Cerca de 30 minutos depois, João Atílio desceu, pela primeira vez, até a portaria. -Ele estava na festa, agora eu lembro dos dois lá - disse Antônio. Observando que quando o homem viu o corpo estirado no chão, nada disse. Ele ainda não conhecia direito os moradores, já que estava lá há pouco tempo, mas mesmo assim, reparou que João Atílio não estava nervoso, nem apreensivo. Ele também parecia meio bêbado, disse posteriormente Antônio à polícia, mas não cambaleando. 16
Sua postura mudou ao longo de uma conversa com a polícia. Apesar de não conseguir distinguir o que falavam, Ricardo reparou que o morador se alterava bastante. Quando o delegado mudou sua atenção para o zelador, João Atílio foi para a portaria, onde esperou em silêncio. Depois que a perícia retirou o corpo do local, o oficial o levou até a delegacia, acompanhado de um advogado. De repente tudo estava calmo novamente, a multidão se dispersou tão rápido quanto se formou, e Ricardo foi obrigado a retornar ao trabalho com amargor na boca e um peso no estômago. Depois de tudo que havia presenciado, não conseguiria olhar para a portaria sem lembrar da posição em que estava o corpo de Luciana. Enquanto ainda estava refletindo sobre o que acontecera, foi surpreendido com a chegada de Frederico. Só então se lembrou que o jovem passara pelo local e não tinha se afetado com o corpo da noiva de seu tio. Ele passou reto por Ricardo, sem dizer nada. Ricardo olhou para o relógio, eram 4h30. Mesmo tendo a impressão que semanas tinham se passado desde o início daquela noite, ainda faltava uma hora e meia até o fim de seu turno.
17
A menina sob o lençol amarelo You got a fast car I want a ticket to anywhere Maybe we make a deal Maybe together we can get somewhere Any place is better Starting from zero got nothing to lose Maybe we’ll make something Me, myself, I got nothing to prove -Fast Car, Tracy Chapman
1.
1995 Deitada no chão, os cachos de seus cabelos se estendiam ao lado de sua cabeça, formando um mar de ondas paradas. Ao fundo, a fita da banda The Cranberries tocava a música Linger. -If you, if you could return, don’t let it burn, don’t let it fade - cantarolava Luciana, quando Fred, seu gato, surgiu para analisar a curiosa cena de sua dona deitada no chão. Luciana Bezerra França vivia o auge de sua juventude aos vinte e poucos anos, como qualquer outra garota da sua idade. De tez branca, possuía estatura baixa e magra. Seu rosto com seus olhos castanhos era comum. Mesmo bela, sua aparência era comum, do tipo que poderia passar despercebida em uma multidão. Ela havia sido gorda até a adolescência, mas emagreceu com o passar da idade. Vinha de uma família grande, seus pais Luis Carlos Berrocal e Ana Lúcia Furlan Berrocal casaram e tiveram quatro filhos. Luciana era a mais velha, seguida de sua irmã Lais, de 17 anos, Liziane, com 15, e o caçula Luiz Henrique, de 14. Seu pai era dono de um ferro velho, o que havia proporcionado para seus herdeiros uma infância de diversão dentro de carrinhos feitos de papelão. Apesar de simples, a família não passava necessidades, pelo contrário, a reciclagem estava em alta e os negócios iam bem, chegaram a pagar as escolas particulares dos irmãos Berrocal. 20
Luciana gostava de aproveitar as poucas atrações que as noites campo-grandenses na década dos anos 90 tinham a oferecer. Muito vaidosa, gostava de tingir os caracóis de seus cabelos de loiro, e sempre os escovava antes de ir para a balada. Sua beleza atraía atenção de vários garotos, e até de homens. Luciana era muito namoradeira e retribuía aqueles que lhe despertavam interesse. Tinha sido assim com Gil Angelo, seu antigo namorado, com o qual ela viveu grandes momentos juntos, trocando juras de amor, mas o romance chegara ao fim alguns anos atrás, quando conheceu outra pessoa que fez seu coração bater mais forte. João Atílio era um advogado bem-sucedido, charmoso, que sabia preencher um salão com sua presença, tendo conseguido encantá-la em uma festa promovida pela empresa onde Luciana trabalhava, ocasião em que se conheceram. Ele era mais velho, já com 49 anos, enquanto ela tinha 19 anos, quase completando 20. O advogado conhecia um padrão de vida alto e trabalhava para o manter. Bebia das melhores bebidas, comia das melhores comidas, viajava para vários lugares e alimentava seu vício pelo bingo. Sabia de sua influência e não se continha ao mostrá-la para o mundo, traço da personalidade que era apontada como arrogância por muitos. No ano em que se encontraram, João Atílio era divorciado e tinha duas filhas, uma delas com a idade da jovem e outra seis anos 21
mais nova. Enquanto isso, Luciana fazia ensino médio em um colégio particular de Campo Grande. Depois que engataram o namoro, ela parou os estudos por um tempo, mas acabou voltando para a escola. Ela tinha terminado o colegial naquele ano e tinha prestado vestibular para o curso de Administração. - Luciana, cuida da sua vida, vai fazer seu futuro. João Atílio não vai dar camisa para ninguém, é mais velho. Olha aí o que eu passo com seu pai – escutara de sua mãe certa vez, quando ela interrompera os estudos. Apesar disso, João Atílio se dava bem com sua família. Os dois compareciam juntos nos almoços de domingo e ele, com êxito, sempre fazia de tudo para agradar sua mãe. Apesar de sempre aconselhar a filha e colocá-la em primeiro lugar, dona Ana não deixava esconder o carinho que sentia pelo genro. Luciana era fascinada pela vida que ele e seus familiares levavam, já que era tudo muito diferente do que já tinha vivido. Enquanto Frederico Mariano, um dos sobrinhos do noivo que era só alguns anos mais novo que ela, tinha crescido com conforto e desfrutado de viagens internacionais, ela tinha passado a infância brincando com os irmãos no ferro-velho do pai. O mais longe que ela tinha ido com a Belina da família era até a cidade natal Marília, em São Paulo, onde ainda tinha parentes. 22
Mas as diferenças eram superadas pelo amor que sentiam um pelo outro, acreditava Luciana. Seu romance com o advogado beirava os três anos de duração e já tinham aproveitado uma reunião familiar para ficarem noivos naquele ano. Era o costume da época em cidades pequenas, depois de alguns meses de namoro, o casal aproveitar alguma comemoração em família para oficializar a união. Reuniões não faltavam na família de Luciana, já que se juntavam sempre que possível para celebrar a vida. Além de ser a primeira filha de seus pais, também foi a primeira neta de seus avós, e por isso sempre recebeu e doou muito amor aos laços sanguíneos. Nunca brigou com nenhum de seus parentes, pelo contrário, seu coração sempre foi muito bondoso. A parte encrenqueira da família tinha ficado com a irmã mais nova, Liziane, que estava sempre em conflito com a mãe. Talvez por isso Luciana tenha se aproximado tanto dela, Liziane via na irmã o amor que sentia falta em sua mãe, um amor sem cobranças e resistências, mas também sem juízo. Quando ela tinha oito anos, Luciana a levou a um show de uma de suas bandas favoritas, o Legião Urbana, e foi lá que Liziane tomou o primeiro porre com sua melhor amiga e irmã. A família Berrocal passava todas as festividades de fim de ano juntos, em Marília. Naquele ano, em 1995, Luciana decidiu ficar em Campo Grande. 23
Ela fazia aniversário na véspera de natal, 24 de dezembro, e naquele ano permaneceu na cidade para comemorar todas as datas com o noivo. Depois do tempo em que ficou deitada no chão, Luciana se levantou para se despedir da família que estava partindo de viagem. Doeria passar o Réveillon longe deles, pensou Luciana, já que era uma data tão comemorada pela família. Mas terão outros anos.
1992 O sino responsável por findar as aulas ecoou pela escola e os alunos encheram o corredor tão rápido quanto o som se espalhara. Era o último período daquela manhã e os jovens teriam um intervalo para o almoço antes de precisarem retornar para o colégio. Luciana e sua amiga, Liane, caminhavam juntas em direção a saída. - O João Atílio vai vir me pegar pra gente ir comer espetinho ali na Treze de Maio, quer ir? O advogado era o novo namorado de Luciana, na verdade não oficialmente, ainda estavam só se conhecendo. Ela aceitou o convite e os três foram almoçar. Luciana, sempre divertida e falante, tentou puxar vários assuntos, mas a conversa não fluía. Por ele ser muito mais velho que as duas jovens, Liane sentia que não conseguia se entrosar com João Atílio. Quando ele sugeriu para Luciana que ela fizesse cirurgia plástica, como um presente dele, Liane se assustou. Isso tá estranho, pensou 24
a jovem. Assim que eles acabaram de comer, João Atílio levou as duas de volta para a escola. Liane seguiu em direção a sua próxima aula, mas Luciana pegou seu material e foi embora com o namorado. Quando sentou em sua carteira, Liane começou a refletir sobre a amiga. As duas, junto com a Marcinha, que completava o trio de amigas, eram inseparáveis. Elas estudavam juntas, mas a amizade não se continha somente ao colégio, gostavam de ir para festas, passeios aos fins de semana e até viagens. Elas compartilhavam do mesmo sonho: se casar. Mas também tinham consciência do que um casamento representava e de como teriam que ter muitas responsabilidades quando virassem adultas, por isso tinham feito o pacto de aproveitarem o máximo a juventude. Até pouco tempo atrás as três tinham um relacionamento sério, mas recentemente Luciana havia rompido com Gil e logo começou a sair com João Atílio. Liane desconfiava que o advogado poderia ter sido o motivo da separação. Ela nunca tinha visto Luciana assim, tão encantada. A jovem sempre fora uma pessoa de muitas gargalhadas, era a que animava o grupo, mas perto do novo namorado Liane viu essas risadas aumentarem ainda mais. Ela conhecia os sonhos da amiga, sabia que Luciana queria uma nova vida cheia de oportunidades, era por isso que planejava fazer faculdade. Mas agora desconfiava que João Atílio poderia 25
também ter descoberto isso. Depois do dia que saíram para comer espetinho, Luciana começou a namorar sério com João Atílio. Ela parou de comparecer às festas, passeios e viagens junto às amigas, e as três acabaram se afastando. Mesmo não tão próximas, o carinho não acabou e, esporadicamente, conversavam por telefone. O trabalho as aproximava, porque o chefe dela que havia conseguido o emprego para Luciana, mas haviam perdido o contato que fora tão próximo anos antes. Liane culpava o novo namoro da amiga, já que Luciana tinha se encantado pelo mundo de João Atílio e pela proposta de uma nova vida que ele oferecia constantemente. Ele apresentou novas pessoas, restaurantes, cidades, e não gostava de compartilhar o tempo da namorada com os outros, nem mesmo com as amigas dela. Liane ainda lembrava do último presente que João Atílio deu para Luciana, que fez com que ela ligasse em êxtase para Liane. -João Atílio disse que vai me ensinar a dirigir e pagar minha carteira de motorista - disse Luciana aos gritos na chamada. Aprender a dirigir sempre fora seu sonho, mas o salário que ela ganhava no trabalho não era o suficiente e agora ela finalmente conseguiria. Ainda que ficasse feliz com algumas dessas conquistas da amiga, que sempre fora muito sonhadora, Liane sentia uma inquietação com a 26
relação dos dois e por isso sempre achava que em algum momento eles terminariam.
1996 A fazenda onde Liziane e a família passavam as férias em Marília não tinha telefone, artigo de luxo no fim da década de 1990, sobretudo para os moradores da zona rural do município. Para se comunicar com o mundo externo, era preciso ir até a fazenda vizinha, onde tinha um aparelho, ou então até a cidade. Com toda essa burocracia, era difícil falar com Luciana e, apesar de todos os primos que também estavam no local e podiam distrair Liziane, ela sentia falta da irmã. Era 31 de dezembro de 1995 e as cerca de 50 pessoas reunidas na fazenda se preparavam para a ceia de Ano Novo. Por ser um dia quente, típico do verão de final de ano, algumas das crianças resolveram tomar banho em uma represa ali perto, entre elas Liziane e Luiz Henrique, seu irmão mais novo. Dona Ana Lúcia foi acompanhar os filhos, ela estava estranha, percebeu a jovem. Quando chegaram no local, ficou ainda mais inquieta e quando Luiz Henrique entrou na água, Ana logo o mandou sair. -Senti que vou perder um filho – disse desesperada. O filho obedeceu e o grupo voltou para a casa. Com a família muito unida e a tradição de passar juntos a virada do ano levada a sério, assim 27
que deu meia-noite Liziane, seus pais, seus irmãos e alguns tios, seguiram para a cidade amontoados na Belina. Os orelhões em Marília naquela época se assemelhavam a pequenas casinhas, o aparelho era guardado por teto e duas paredes de cimento liso. Quem passasse pela rua naquele momento poderia achar a cena curiosa, uma fila de gente esperava para falar ao telefone. A ligação interurbana conectava a cidade do interior de São Paulo à capital do Mato Grosso do Sul. Para Luciana, ainda não tinha virado o ano, no fuso horário local ainda eram 23h, mas mesmo assim ela se emocionava ao falar com a família. Dona Ana Lúcia foi a última da fila. - Está tudo bem? Você bebeu? - perguntou a mãe, preocupada. - Não, mãe, eu estou aqui com o João Atílio. - Lu, eu te amo, eu te amo, tá bom. A mãe tá indo embora depois de amanhã - se despediu com a saudade apertando o peito. A notícia chegou na manhã seguinte, por volta das 10h. Ainda confusa e em estado de choque, Liziane começou a arrumar suas malas para partir, tarefa que estava planejada para fazer só dali um dia. Ela entrou no banheiro da casa da tia e viu a cena que jamais esqueceria. A mãe estava em pé dentro do cômodo, sem vestes na parte superior do corpo. Ela estava tentando arrumar as coisas da família para irem embora, mas não conseguia completar a tarefa, estava desnorteada, sem saber 28
o que fazer. - Papai, papai, o que que eu vou fazer? – Falava com o avô de Liziane - Eu perdi minha joia mais preciosa, o que eu vou fazer? Ana Lúcia Furlan era uma mãe forte, a vida não lhe deu outra opção, por isso sempre criou os filhos com muita garra. -Sou uma boa mãe, não uma mãe boa - dizia. Com respeito, dedicação e perdão era o jeito que ela levava a vida, mais ainda, tentava mudar o mundo a seu jeito, se esforçando em passar seus ensinamentos aos filhos. Por volta dos 16 anos teve um romance com Cícero Bezerra França, a relação dos dois não deu certo, mas gerou Luciana, que nasceu em 1974. Luciana mantinha pouco contato com o pai biológico. Ele teve uma vida difícil que resultou em problemas psicológicos e gerou vícios, como o alcoolismo. A morte da filha atenuou ainda mais seu sofrimento. Pouco tempo depois da queda de Luciana, Cícero se jogou de um penhasco, de um lugar conhecido como Buracão, em Marília. Quando teve a primeira filha, Ana era catadora no lixão da cidade, foi quando conheceu Luis. Ele era 12 anos mais velho que ela, o casamento ao passar dos anos ficou conturbado, com muitas brigas. Mas a princípio, ele decidiu ser pai, e criou a menina como filha durante toda a sua vida, na época ainda não sabia, mas ele cuidaria dela até mesmo na morte. Ele era um homem íntegro, que 29
gostava de objetividade, e por isso foi direto ao ponto quando o irmão de João Atílio chegou ao sítio. - A Luciana sofreu um acidente – disse. Ele estava em Rancharia, município distante pouco mais de 100 quilômetros de Marília. Como não conseguiram avisar a família na fazenda onde estavam - nem o telefone da vizinha funcionou naquele dia - pediram a ele que fosse até o local para comunicar-lhes a perda. -Fala logo, ela morreu? – Questionou o pai. A resposta mudaria sua vida para sempre. * Liane estava na casa do namorado quando sua sogra a chamou. -Tem alguém no telefone querendo falar com você. - Alô? - Disse ao pegar o fone do aparelho fixo. - Oi Liane - Era Marcinha - Você ficou sabendo o que aconteceu com a Lu? - Saiu o resultado do vestibular? - disse com uma pontinha de esperança na voz. Luciana prestara vestibular para cursar Administração naquele ano e Liane estava torcendo pela amiga. Elas não se viam há muito tempo, toda vez que Liane ou Marcinha a chamava para sair, ela dizia que não podia, ou então até concordava, mas desmarcava em cima da hora. Agora ao telefone com Marcinha, 30
ela esperava que a faculdade lhe proporcionasse novos horizontes. - Não… ela sofreu um acidente. Caiu da sacada do apartamento do João Atílio. Ela morreu, Li, estão falando que pode ter sido suicídio. Não foi suicídio, não foi. Eu conheço ela, tinha tantos sonhos, tantos projetos. Pensou Liane. Os jornais já tinham começado a noticiar a morte da amiga e a polícia não tinha achado provas que incriminasse alguém, mesmo assim a certeza de que a amiga não tinha se matado não saia da sua cabeça. Ela olhou o relógio, estava quase na hora do velório de Luciana. Sua cabeça até ficara doendo de tanto chorar e pensar no assunto. Para evitar mais sofrimento decidiu não ir à despedida fúnebre. Ela ainda conseguir ver Luciana ao fechar os olhos. Os cabelos enrolados dançando no vento, o formato de seus olhos castanhos, o som da sua risada depois de alguma piada, o toque do seu abraço. Ela carregava sua energia para onde ia e Liane não suportaria vê-la sem vida em um caixão. * A maioria das pessoas que estavam na fazenda se dirigiu até Campo Grande, atravessando 629 quilômetros que separam os municípios. Quem desejasse fazer o trajeto nesta década, possivelmente levaria cerca de oito horas para se locomover de um ponto ao outro. Mas em 1996, os carros não 31
eram potentes, as ruas não eram bem pavimentadas e as leis de trânsito não eram tão rigorosas. Só na Belina da família França tinham seis pessoas, além das bagagens. Nos carros dos outros parentes não era diferente. Não se sabe ao certo quanto tempo demoraram para fazer o trajeto, mas foi tempo demais. Quando chegaram à capital sul-ma-
Luciana aos 21 anos era vaidosa e gostava de sentir-se bonita Arquivo Pessoal
32
to-grossense, o corpo de Luciana já estava sendo velado em uma das capelas mais caras da cidade, sem que a família estivesse presente. Hoje já não existe mais, mas era localizada na segunda maior avenida da cidade. Contudo, seu Luis tinha muitos amigos na cidade e no meio da viagem deu um jeito de garantir que fosse feito exame toxicológico no corpo de Luciana antes que ela fosse enterrada. - Não vou deixar que manchem a imagem da minha filha – dissera. Mais tarde, também pagaria para que fosse feita outra perícia mais detalhada, além da que havia sido feita no dia da queda. Foi graças a essa segunda avaliação, e ao pai de Luciana que pagou por ela, que os peritos deram o veredito que a jovem não tinha se suicidado. Luis nunca se conformou com a morte dela. Além de Luciana e dos três filhos que tivera com Ana, Luis tinha outros seis quando se casou. Ele nunca permitiu que as circunstâncias o abatessem, não deixaria que a dor se transformasse em fraqueza dessa vez, precisava continuar sustentando a família. Queria transformar a dor em luta, na esperança de que se descobrisse o que havia acontecido naquela noite, faria justiça em nome da filha. Mas acima de tudo, também era respeitoso. Assim como ele era responsável pelo trabalho, fora ensinado que a esposa era responsável pelos filhos, e Ana não queria descobrir nada, só pretendia seguir a vida e deixar o passado no lugar dele, onde 33
deveria ficar. Nada traria ela de volta e o ódio que ela via crescer nos filhos e no marido a preocupava, era preciso perdoar para seguir em frente. Por isso, Luis decidiu não passar por cima da vontade de uma mãe, então deixou a justiça ao acaso, da vontade dos homens, ou da vontade de Deus. No velório, Frederico Mariano, um dos últimos a ver a jovem em vida, também não estava presente, assim como Liane. Os tios de Luciana eram geniosos, eles tinham acompanhado os irmãos de Marília até Campo Grande e precisaram ser acalmados para que não houvesse confusão no local quando viram o velório acontecendo sem a presença da família. Na realidade deles, a justiça tinha de ser feita pelas próprias mãos e a imagem de cada membro da família devia ser honrada. Mas antes que alguma coisa pudesse acontecer, a outra irmã mais nova de Luciana, Lais, começou a passar mal no meio do velório. Casada, seu marido a encontrou na capela assim que chegaram. Ele havia ficado em Campo Grande naquele fim de ano e foi a única pessoa a reconhecer o corpo da jovem, pois era o único membro da família na cidade. - Onde eu levo ela? – perguntou um tio de Lais. - Vamos levar ela aqui nesse ‘hospital’, que é mais perto – disse o marido de Lais. O hospital 34
em questão era, na verdade, uma maternidade. Lais estava grávida de nove meses e tinha conseguido esconder a gestação de toda a família por todo aquele tempo - somente o casal sabia do bebê a caminho. Foi assim que Ana Carolina nasceu, enquanto sua tia era velada. Antes do enterro, a criança ainda não tinha fraldas, roupas, berço, ou qualquer outra coisa que um recém-nascido precisa. Mas quando os familiares chegaram em casa, a notícia do nascimento havia se espalhado e o enxoval completo foi doado por parentes e amigos que se solidarizaram com os acontecimentos na vida dos Berrocal. * A família foi jogada para uma nova realidade repentinamente e precisaram achar um modo de sobreviver ao sentimento de perda. Uma vida se foi e outra vida chegou, mas uma não substituía a outra. O modo como cada pessoa lidou com as circunstâncias foi diferente, a mãe de Luciana escolheu seguir em frente, ou pelo menos tentar. Ela acreditava que João Atílio não tinha envolvimento na morte da filha, então sempre freou os sentimentos de revolta contra o genro. Mas Liziane não era uma pessoa que se deixava ser contida. - Aquilo me machucou demais. A minha irmã tinha uma filha para criar, minha mãe tinha uma neta para criar e eu me perdi, porque eu não tinha 35
mais a minha irmã. A revolta transformou Liziane e afetou diversos aspectos de sua vida, como o relacionamento com a mãe. As duas viviam em guerra, com uma série de divergências quanto ao posicionamento uma da outra em relação à morte de Luciana. A jovem não se dava por satisfeita em não saber por que Luciana tinha partido e todos à sua volta pareciam simplesmente aceitar. Ela não conseguia aceitar que havia perdido a irmã, que também era sua melhor amiga, que amava os animais e adorava The Cranberries. A irmã era para onde Liziane corria sempre que brigava com a mãe, mas agora Luciana se tornara o motivo do conflito, e Liziane não tinha onde se refugiar. A cada refeição, o lugar vago na mesa de jantar escancarava ainda mais a perda da família. Eram 6 cadeiras - seu Luis sentava na ponta da mesa e Luis Henrique, na outra; Dona Ana, ao lado direito do marido e Liziane, à esquerda. Luciana ficava ao lado da irmã mais nova e de frente para Lais, que sentava do outro lado da mãe. A dinâmica se alterava quando João Atílio comparecia para o almoço e ocupava a segunda posição hierárquica, ao lado do patriarca da família. Vieram novos filhos, sobrinhos e netos, mas a mesa nunca mais seria a mesma e o espaço nunca foi preenchido. - Isso influenciou muito a vida da gente. A morte muda nossa história, ainda mais quando 36
é uma morte violenta, causa danos. Acredite, ela deixa muitos órfãos. Uma pessoa quando perde o pai e a mãe é órfão, quando perde o marido é viúva, uma mãe que perde um filho não tem nem definição, ela fica sem pronome definido. A família nunca mais é a mesma, quando é vítima da violência, nunca mais - vinte e cinco anos depois, o sentimento de revolta em Liziane ainda não passou. Hoje com 40 anos, é casada e tem uma filha de quatro anos, e possui duas graduações, a primeira em Jornalismo, pela Universidade Católica Dom Bosco, e a segunda em Direito pela FCG Facsul. Ela não atua como advogada, mas exerce seus conhecimentos em seu dia a dia como jornalista. Sua carreira é movida por duas paixões que se complementam: a internet e o jornalismo político, especialmente o eleitoral. - Sempre brinco que se tiver eleição para líder de sala, nós estamos lá fazendo campanha - Ela se especializou em comunicação política, marketing digital e redes sociais, com isso, criou uma empresa de consultoria. Na rotina da assessoria política, Liziane raramente encontra outras mulheres ocupando o mesmo cargo que o seu, ou mesmo entre os contratantes, como candidatas. No trabalho que desenvolveu em 2018, na campanha de um candidato para governador do estado de Mato Grosso do Sul, era a única representante do sexo feminino em meio a 60 homens. 37
- Era engraçado que o candidato questionava “Cadê a menina? Chama lá a menina, eu quero a menina. A menina sabe como fazer” Eu não tinha nem nome, eu era “a menina” – diz entre risadas - Eu gostei também, porque em quase 40 anos sendo chamada de menina, então fiquei feliz, mas era muito engraçado. Só que, por outro lado, a gente ganha menos, e o poder de mando também é menor. Então você tem, de alguma forma, que ir se masculinizando ou tomando algumas medidas. Porque, por exemplo, se um chefe homem chega e grita com a equipe, ele é forte. Se uma chefe mulher faz a mesma coisa, ela é doida. O candidato que briga com a equipe, ele passa despercebido, já a candidata mulher está histérica, de TPM. Além da consultoria a figuras políticas, Liziane divide seu tempo em outra empresa, o veículo online de jornalismo A Onça. - O site foi criado justamente para que eu tivesse uma certa independência profissional, porque eu sempre passei por alguns perrengues, como ser demitida por questões políticas, e aí eu fui e criei A Onça. Diferente de outros meios da cidade, o jornal é caracterizado por uma linguagem ácida acerca dos fatos, estilo de escrita que Liziane também leva para suas redes sociais. Em uma cidade que ela define como conservadora, as publicações da jornalista causam polêmica na internet. Seu perfil pes 38
soal no Instagram tem mais de 14 mil seguidores, e a página do jornal no Facebook conta 8 mil curtidas. As publicações geram debates tão acalorados que algumas já renderam processo para Liziane. - Não tem um dia que não tenha um xingamento, um ataque, em especial ao machismo, a gordofobia e a misoginia. A internet é um ambiente bastante covarde, é um celeiro de falsos corajosos, mas eu comecei a dar porrada e me defender. Respondo processo por briga na internet, mas não estou nem aí. Apesar disso, assuntos particulares de Liziane ficam no privado. Por amar o mundo virtual, ela criou redes colaborativas para compartilhar solidariedade. Em grupos fechados no Facebook, arrecada recursos para ajudar grávidas em situação de vulnerabilidade que não possuem condições de realizarem exames médicos, além de ajudarem famílias com cestas básicas e consultas de emergência. Foi a forma encontrada por ela de fazer da internet um ambiente de amparo, e não apenas de ataques. - Eu uso o jornalismo justamente para resolver essas questões. É um instrumento de transformação social, então uma das coisas que pratico, é o site como espaço para um pequeno empreendedor, para mãe empreendedora, mães solos. Na minha vida em geral só contrato mulher, e que seja, de preferência, de alguma minoria. Antes de ser empreendedora, trabalhou 39
como faxineira, atendente de telemarketing, vendedora e até professora. O único cargo que não ocupou foi o de desistência. O trauma causado em sua adolescência ainda insiste em se abrigar na vida de Liziane. Quando Luciana partiu, a família selou um pacto mudo de não tocar no assunto que causava tanta dor. O amor que sentiam por Luciana, que ao mesmo tempo os deixavam mais próximos da jovem, se tornou um luto que a sufoca até hoje. Cada memória, mesmo que feliz, como os almoços de domingo, as risadas despretensiosas, as roupas que ainda tinham seu cheiro, foi pintada com um traço de tristeza. Porque cada momento bom vinha com um lembrete de que eles não se repetiriam, seguido do sentimento de injustiça, da raiva presente em cada “e se”. E se Luciana não tivesse conhecido João Atílio? E se ela tivesse ido passar o Réveillon com a família? E se a morte dela pudesse ter sido evitada? Nada traria ela de volta, a raiva e a sede por justiça não traria ela de volta, mas a passividade e aceitação também não. Nada é capaz de calar o luto, o sentimento de perda está presente em uma manhã de sol ensolarada que traz à memória um momento de risadas, ao tocar uma música no rádio que já foi trilha sonora de um karaokê improvisado na sala, ao despertar no meio da noite e ser traído pela própria mente, que o faz esquecer da realidade e achar que tudo não passou de um pesadelo. Nada é capaz de calar o 40
luto, nem mesmo 25 anos de vida. - A gente vive a vida inteira sem uma resposta, de um laudo inconclusivo, onde ninguém nunca respondeu nada. Existe crime perfeito? Acho que sim, porque alguém matou minha irmã, seja de queda acidental, seja de corpo inerte, suicídio não foi. Então essa lacuna nunca foi preenchida. Aí as pessoas me falam que eu tenho que esquecer e perdoar, mas quem perdoa é Deus. Remoer eu não vou, mas esquecer também não. Jamais, nunca, nunca mesmo. A breve vida de Luciana foi eternizada pelas memórias que deixou, mas Liziane nunca tinha tido coragem de compartilhá-las com o mundo, nem com seus milhares de seguidores, sendo necessárias mais de duas décadas para que isso mudasse. Já passava da meia-noite de 1° de janeiro de 2020 quando o sentimento de melancolia tomou conta da jornalista. Ela estava na casa da sua irmã, Lais, e sentiu que os pensamentos precisavam se tornar palavras. - O que você tanto escreve aí? - perguntou Laís. - Um negócio - Liziane não queria ser repreendida, então não contou para a irmã, só deixou que os sentimentos fossem extraídos através de suas mãos. Com o bloco de notas do celular aberto em suas mãos, pôde ler o que tinha ficado por tanto tempo guardado. De repente viu que estava 41
pronta para contar para o mundo a história de Luciana, então abriu seu perfil no Facebook e publicou. - Foi a forma que encontrei de me libertar de mim mesma. Porque o luto é como um espinho na carne, é a mesma coisa que ficar com uma farpa no dedo. A diferença é que a gente consegue tirar a farpa, o luto não consegue, ele fica lá. Quando apertou o botão, quebrou a regra familiar de nunca tocar no assunto, mas ao mesmo
Foto de Luciana usada por Liziane em sua publicação no Facebook - Arquivo Pessoal
42
tempo, um sentimento de liberdade a invadiu e foi como se soltasse um suspiro que nem sabia que estava guardado. Não se calaria mais, não esconderia a revolta para dentro de si. Por muito tempo Liziane se preocupou com a opinião das outras pessoas sobre ela, caso falasse o que pensava sobre a morte de Luciana, principalmente a de Fred e João Atílio. Por isso sempre tratou o assunto com muito cuidado e na maioria das vezes, não falava nada. - Me perguntaram se eu tinha medo de processo quando publiquei aquilo. Mas o pior de tudo eu já enfrentei: eu perder ela, nunca ter visto a justiça acontecer, nunca ter visto uma resposta. Isso já era o pior, não tinha nada pior para acontecer. Eu pensava no que iriam pensar, no que João Atílio iria pensar. Mas hoje eu digo o mais sincero foda-se para o que vão pensar, porque se minha irmã não tivesse morrido minha vida teria sido muito diferente, se não tivessem tirado ela de mim da maneira que ela foi tirada. Seja pelo caso intrigante, pela forma que a jornalista sabe usar as palavras, ou pelo sentimento de revolta que aflora em qualquer um que conheça a história, a publicação despertou interesse de muitas pessoas de todo o Brasil. Em um grupo fechado no Facebook, destinado a casos policiais e de suspense, chegou a ter mais de 5 mil interações. Uma delas foi a de Frederico, sobrinho do ex-namorado da irmã, que enviou uma mensagem di 43
zendo que estava à disposição para conversar se Liziane assim o quisesse, mas ele nunca obteve resposta. - Minha psicóloga me aconselhou a não falar com ele. Nada do que ele me falar vai mudar o curso da história, então não vai me ajudar. Aí eu já não aceitei mais falar com ele, e ele só entrou em contato comigo porque essa publicação que eu fiz rodou o Brasil. Foi só por isso. A irmã de Luciana não o conhecia na época, já que ele morava em outra cidade e não tinha contato com a família da namorada do tio. Mas João Atílio, por outro lado, convivia com Liziane e a encantava sempre presenteando-a. No seu aniversário de 15 anos, pouco tempo antes da queda, ela ganhou até garrafas de tequila e vinho importados dele. - Era uma pessoa querida na nossa casa. Tanto que quando minha irmã morreu, em nenhum momento minha mãe deixou alguém acusar ele. De tão querido que ele era, ela acreditou. Enquanto pôde, Ana Lucia manteve contato com o ex-genro e fez os filhos manterem também. Por pelo menos dez anos eles cultivaram relações de respeito e civilidade, que se perdeu com o passar do tempo, como qualquer outra relação que não fizesse mais sentido. Depois da morte da filha, Ana desenvolveu problemas de compra compulsiva, que acarretaram na perda das economias
44
do marido. Mas ela se agarrou na fé e passou a ler livros de espiritualidade, com o coração sempre aberto para o perdão. Seu Luis e dona Ana morreram antes de saber o que aconteceu, de fato, naquela noite. No dia 22 de outubro de 2014, a mãe de Luciana faleceu aos 57 anos, em decorrência de complicações causadas por um câncer de intestino. Quatro anos depois, se foi o pai, em 23 de março de 2018. Aos 73 anos, ele sofria de Alzheimer, Mal de Parkinson e diabetes. Liziane conseguiu superar a morte dos pais e dos avós, mas nunca superou o luto pela irmã. Há 25 anos ela pensa todos os dias em Luciana. O fato de nunca terem descoberto o que aconteceu naquele Réveillon a assombra até hoje, a dúvida não permite que o ciclo se encerre. - Essa conta não fecha há 25 anos, ela nunca fechou e eu vou morrer e essa conta não vai fechar. “Ah, mas já passou tanto tempo”. Não tente mensurar a dor do outro, a dor do outro não é sua. Isso, invés de transformar numa derrota, eu transformei num modo de sobrevivência. Tento sobreviver da melhor forma possível, tratando as pessoas da melhor forma possível, porque eu nunca vou saber qual é a dor do outro. Ana Carolina, o bebê esperança, tem agora 25 anos e é mãe. Além da Carol, Lais tem mais dois filhos, João, de 23 anos, e Pedro, de 10. Ela continua casada e tem graduação em enfermagem, mas trabalha em cargo público administrativo. Luiz Hen 45
rique seguiu os caminhos do pai e continuou no ramo da reciclagem, e também tem dois filhos, um de 12 anos e outro de quatro meses. Nenhum dos dois gostam de comentar sobre a morte da irmã.
Amilcar da Serra e Silva Netto é um perito 46
O que aconteceu com Luciana? If you, if you could return, don’t let it burn, don’t let it fade - Linger, The Cranberries
2.
criminal aposentado, de 60 anos, natural de Curitiba, Paraná, mas que mora há 33 anos em Campo Grande. Seus cabelos grisalhos e as rugas no rosto não lhe deixam esconder a idade e os anos de experiência, mas ao falar sobre casos policiais sem soluções, seu olhar curioso e empolgado entrega a mente ainda habilidosa em contestar afirmações ditas como verdadeiras. - Perito é sempre desconfiado né. Se formou em Engenharia Civil na Universidade Federal de Santa Catarina, anos mais tarde se interessou por uma área totalmente diferente, o direito. Iniciou outra graduação e conseguiu o segundo diploma, desta vez pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Fez ainda os cursos de engenharia de segurança, papiloscopista e de perito criminal. Aposentado há quatro anos, faz perícias particulares em uma empresa com mais quatro amigos aposentados. Não satisfeito, escreve atualmente um livro (o segundo em sua carreira) enquanto se isola em casa tentando fugir da pandemia do coronavírus. O tema que escreve é sobre quedas de grandes alturas. - Notei que existe uma falta desse assunto no mercado. Quando alguém precisa escrever sobre isso, não encontra um referencial, então resolvi escrever com base na minha experiência, porque já atendi muitos locais desse tipo - explica. Todo seu currículo o tornou especialista em morte violenta. 48
Em 6 de janeiro, cinco dias após a queda, Amilcar estava apenas nas primeiras horas do plantão quando seu colega de trabalho e amigo, Rui Rodrigues, o chamou para participar de uma reconstituição. Ao contrário de Amilcar, que sempre fora reservado, Rui era mais extrovertido e não se intimidava em ser o centro das atenções. De estatura robusta e tom de pele bronzeada, gostava de longas conversas que se pareciam mais com monólogos, com pausas dramáticas e risadas cortantes em momentos quase cronometrados. O campo-grandense, que não teve uma infância regada a luxos, viu nos estudos a oportunidade de melhorar de vida, se formando em Engenharia Civil na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul em 1984, e ingressou na carreira de perito, onde trabalhou por 27 anos. Enquanto ainda atuava na área, resolveu atender um desejo antigo e voltou para a sala de aula para se tornar jornalista. Sempre foi jeitoso para a coisa, sua postura inquisidora não se abalava nem nos debates nas salas da Anhanguera Uniderp quando sua opinião divergia de sua professora e do restante da turma. Através do trabalho conseguiu criar dois filhos junto a sua esposa e repassou seus ensinamentos. A amizade entre Amilcar e Rui foi formada através da paixão em comum pela profissão que os dois carregavam. Mesmo com as precariedades da área da perícia no Brasil da década de 1990, 49
os dois gostavam de se reunir para estudar e rever casos fora do expediente. Eles estavam dispostos a aprimorar suas técnicas e ajudar a combater os crimes que tinham contato todos os dias. Rui relembra que, apesar de quase três décadas de atuação, nunca se acostumou a ver as cenas de violência. - A gente é acostumado com comida boa, com whisky gostoso e importado, ou com vinho bom. Isso a gente acostuma, mas ver essas coisas ruins a gente não se acostuma. Por mais que você tenha vivência e tenha que colocar seu olho lá e fazer o trabalho técnico, profissional, você nunca se acostuma com as coisas “do mal”. Tanto não acostuma que a gente procurava se aprimorar todo dia Na manhã de 6 de janeiro de 1996, os dois não tinham nada programado e o dia seguia tranquilamente quando a delegada Vilma Fátima de Carvalho, da 1º Delegacia de Polícia de Campo Grande, acionou Rui. - Bom dia Rui! Preciso de uma equipe para fazer uma reprodução simulada no apartamento do João Atílio. - Mas, doutora, nós não temos o laudo do dia da queda pronto ainda, é melhor esperar para conseguirmos mais informações. Mas a delegada insistiu. O pai da vítima já havia pagado pelo trabalho e a imprensa estava em cima do caso. No dia marcado para a reprodução simulada, Rui não possuía evidências suficien 50
tes para montar um roteiro eficiente. O laudo pericial do dia da queda ainda não estava pronto, eles teriam que fazer o trabalho com base em poucas provas, somente com as que a delegada os havia repassado. - A gente tinha as nossas limitações, éramos limitados. Em 1996, fazia pouco mais de 10 anos que o país tinha sido redemocratizado, nós vivemos o período de recessão, muitos chamam de ditadura, eu chamo de recessão, e a gente tinha que obedecer - alegou Rui. O trabalho da perícia era muito mais complicado em 1996. Chamado de Departamento de Polícia Técnica (DPT), os peritos eram subordinados à Polícia Civil, apenas uma repartição. Os plantões duravam 24 horas, com uma média de 18 perícias cada. Eram atendidos desde casos criminais a acidentes de trânsito. - Amilcar, dona Vilma mandou fazer uma reprodução simulada, mas o laudo técnico ainda não ficou pronto, pode ir comigo dar uma força? A reprodução simulada dos fatos (RSF) é garantida à investigação pelo art. 7º do Código de Processo Legal Brasileiro, desde que a ação não contrarie a moralidade ou ordem pública, para verificar a possibilidade de ter sido praticada algum tipo de infração. O perito criminal e presidente do Conselho Nacional dos Dirigentes de Órgãos de Polícia Científica, Cleber Muller explica em seu 51
artigo “Reprodução simulada dos fatos: as múltiplas atuações da perícia criminal na busca da verdade dos fatos”1 que a RSF é, na prática, um modo de verificar a possibilidade dos fatos terem acontecido conforme os depoimentos dos envolvidos. Criada a encenação técnica no local do fato é possível comparar os dados colhidos com os laudos periciais já produzidos e com as versões do réu, vítima e testemunhas. É montado um roteiro conforme as evidências: profissionais, como peritos e policiais, são escalados para desempenhar papéis das pessoas que estariam no local. A encenação quase Hollywodiana tem de ser precisa e os elementos técnicos preservados, por isso, os objetos, armas, veículos, horários, condições climáticas, roupas, estatura e peso dos envolvidos são levados em consideração no momento da reprodução simulada. - No meu entendimento, a reprodução simulada dos fatos deve ser dos últimos exames realizados pela perícia. Onde a maior eficiência deste procedimento está condicionada aos peritos responsáveis terem em mãos todos os documentos 1 MULLER, Cleber. Reprodução simulada dos fatos: as múltiplas atuações da perícia criminal na busca da verdade dos fatos . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6070, 13 fev. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79280. Acesso em: 25 jan. 2021.
52
e informações já produzidas, como laudos, fotografias, relatórios, depoimentos, pareceres, com a brevidade necessária para seu estudo meticuloso e o planejamento da atividade em si - argumenta Muller. Depois de aceitar o convite de Rui, como sempre fazia quando era possível, Amilcar chamou outros colegas dos dois, o perito Roberval e a escrivã Cecília, que no futuro se tornaria sua esposa. A equipe partiu para a rua 13 de junho, em direção ao 19º andar do Edifício Comodoro. Quando chegaram, às 9h10, do dia 6 de janeiro de 1996, encontraram a delegada Vilma Fátima de Carvalho, o proprietário do apartamento, João Atílio Mariano, e os funcionários do condomínio que estavam de plantão na virada do ano, Antonio Carlos da Silva, Ricardo Lima e Raimundo Carlos Sobrinho. - É um monstro de um apartamento, dá para a gente se perder aqui dentro - comentou Rui. Cada residência ocupava um andar inteiro do prédio. Até o momento, os agentes possuíam como provas os depoimentos de João Atílio e seu sobrinho, Frederico, além dos funcionários do condomínio. O laudo pericial da cena ficaria pronto somente dali a três dias, em 9 de janeiro. Tateando no escuro, a equipe decidiu montar um croqui do local, cronometrar o tempo de queda livre de um boneco com as mesmas características físicas de Luciana e calcular o tempo de descida do elevador 53
principal. Depois que o trabalho em campo era feito, o perito montava seu laudo e repassava o material para um dos oito datilógrafos do departamento transcreverem. Em máquinas que não permitiam edição de possíveis erros, era comum que os peritos trocassem os laudos entre si para que o produto fosse revisado, e mesmo assim erros de digitação passavam despercebidos. Por exemplo, segundo o relatório da perícia no caso de Luciana, Frederico apareceu na portaria passados cinco minutos da queda. Os profissionais calcularam o tempo que o elevador levava para fazer o percurso do térreo ao apartamento de onde Luciana caiu, estimado em cerca de 50,79 segundos. Com base no cálculo, os peritos alegaram que era possível que Frederico estivesse no 9º andar no momento da queda. Frederico apareceu na entrada do prédio 5 minutos após a queda do corpo. Considerando que o elevador leva cerca de 50,79 segundos para fazer o percurso, é possível que Frederico estivesse no apartamento do 9 andar no momento da queda. (Grifo do autor)
Mesmo que o elevador estivesse no térreo quando Frederico o acionou, levaria apenas um minuto para que ele chegasse ao apartamento do 54
19º andar. De volta ao térreo, seriam mais 60 segundos. Isso aconteceu por volta das 2h30 do primeiro dia do ano, a festa no salão do condomínio tinha se encerrado e os moradores estavam em seus apartamentos. Para Rui, a probabilidade do adolescente ter parado para que outra pessoa entrasse no elevador em andares inferiores era muito baixa - seriam dois minutos para que Frederico descesse todos os andares e a perícia levou em conta que ele chegou à portaria cinco minutos após a queda. Apenas três minutos de diferença o colocariam em uma possível cena de um crime, mas o relatório cita que ele poderia estar no 9º andar, e não no 19º. Questionado se o número foi um erro
Luciana aos 5 anos - Arquivo Pessoal
de digitação, assim como diversas outras imprecisões verificadas no relatório, os peritos não souberam responder. As máquinas de escrever não foram a única dificuldade da equipe técnica. Se houvesse as tecnologias que existem atualmente, seria possível comprovar os depoimentos das testemunhas com base em imagens das câmeras de segurança, que também indicariam a hora exata de quando os fatos ocorreram. Amilcar explica que os horários, fundamentais no caso para saber quem estava no apartamento no momento da queda, foram baseados apenas nas declarações de quem estava presente no condomínio naquela noite. - Se fosse hoje em dia, ela teria o celular dela, o sobrinho teria o dele, o João também teria, o prédio seria todo vigiado com circuito de vigilância, então a gente conseguiria saber onde estava cada pessoa, em cada hora. Onde estavam as pessoas da festa, o próprio vigia, o horário que foi ligado para a delegacia, então todas essas coisas juntas iriam bater - apontou Amilcar. A sacada onde Luciana passou seus últimos momentos de vida era projetada na face leste do Edifício Comodoro. Sua área era de aproximadamente 12 metros quadrados (m²) - é possível encontrar lofts e estúdios com este tamanho - e estava a uma altura de 57 metros do térreo. O parapeito de um metro era feito de estrutura metálica, acrí 56
lico e mureta de alvenaria. A norma ABNT NBR 14.718 criada em 2001, e revisada em 2008, fixa critérios de segurança para construções civis. Ela prevê altura mínima de 1,1 metro para guarda-corpos. A altura entre o parapeito e o teto da guarita, onde houve o primeiro impacto, era de 53,8 metros e a projeção da distância entre o local da queda e o ponto onde a jovem caiu era de 3,3 metros. Esses dados foram usados para calcular, com o auxílio do boneco se passando por Luciana, a velocidade horizontal da queda. Amilcar explicou em seu relatório pericial que quando é feito análise de locais de morte violenta por queda, ou lançamento, dois fatores são muito importantes: a velocidade horizontal de lançamento (ou queda) e a posição que o corpo da vítima bateu no obstáculo. Em relação a velocidade, em casos de queda acidental (um pintor que caia de um andaime, por exemplo) ou ação voluntária (suicídio) a tendência é que ela seja muito pequena e que o corpo se desloque verticalmente muito próximo do ponto de origem. Nestes casos, a velocidade horizontal fica entre 2 e 3 metros por segundo (m/s). Velocidades inferiores a 2 m/s podem ser caracterizadas por um simples desequilíbrio involuntário. Já a respeito da posição de impacto da vítima, os conceitos físicos apontam que para alturas de precipitação inferiores a 40 metros, as posições 57
mais comuns são as de pé ou de mergulho em caso de suicídio. Em acidentes ou homicídios, a impactação é aleatória pelo fato do corpo estar animado por um movimento de rotação e translação. Os peritos começaram pela sacada, onde estava disposto normalmente um jogo de estofado em cana da índia, material que se assemelha ao bambu, muito comum em jardins de casas brasileiras. Pela posição de impacto do corpo na guarita, a altura e posição de onde caiu, a vítima foi projetada com uma velocidade horizontal de aproximadamente 1 m/s, número compatível com queda acidental, ou precipitação de corpo inerte. Ou seja, como o corpo estava próximo do prédio, não era possível que ela tivesse se impulsionado na hora da queda, como acontece em casos de suicídio. Se a velocidade da queda de Luciana fosse de 2 m/s ou 3 m/s, compatível com suicídio, seu corpo teria caído na calçada ou no muro do edifício, mas, na verdade, ela caiu na portaria. Foi a primeira prova que contestava a hipótese de suicídio. Como a reprodução simulada aconteceu antes do laudo técnico do dia da queda ficar pronto, o perito Gerson Tamio Sato, responsável pelo trabalho, aproveitou os cálculos e experimentos feitos pela equipe e os anexou em seu relatório. Como conclusão, foi declarado que as hipóteses mais prováveis para a explicação do evento foram de quem a vítima tenha sofrido queda acidental, ou tenha 58
ocorrido remoção de corpo inerte (inconsciente ou sem vida). - De uma forma ou outra, ela caiu, ela não se jogou. Mas como o resultado da perícia ficou para a investigação, vai depender do depoimento, das contradições, das acareações, que fogem do escopo do nosso trabalho, aí depende das investigações explicou Rui. A família de Luciana alega que muitos veículos jornalísticos da época especularam que essa queda acidental poderia ter sido ocasionada em razão da vítima estar sob efeito de álcool ou drogas. Nesse caso, ela poderia ter se debruçado na sacada e se desequilibrado. Frederico e João Atílio afirmaram que ela bebeu champanhe e vinho durante a festa, mas não é possível saber a quantidade. Os exames que definem se a pessoa estava, ou não, sob efeito de entorpecentes na hora da morte demandam aparelhos específicos e por isso são muito caros. Em consequência, o Estado não arca com os custos de todas as análises das vítimas de homicídio, embora colete o material necessário e os armazene caso a Justiça determine posterior análise ou familiares resolvam arcar com os custos do teste. Atualmente, Campo Grande detém tecnologia suficiente para realizar os exames, mas há 25 anos, as amostras eram encaminhadas para a cidade de São Paulo. O pai de Luciana pagou para que este exame fosse feito e, de acordo com a irmã 59
Liziane, ele apontou que ela não havia consumido drogas ilícitas naquela noite. Ainda assim, o laudo do exame, conforme o Instituto de Medicina e Odontologia Legal (Imol), tem caráter sigiloso e só é fornecido para a Justiça. O Instituto de Medicina e Odontologia Legal (IMOL) de Campo Grande, só disponibiliza o exame toxicológico para a Justiça, por serem dados sigilosos. Resta ainda a hipótese de descarte de corpo inerte, que é quando a vítima é jogada inconsciente - desmaiada ou já sem vida. - Uma pessoa que caiu do 13º andar, por exemplo, foi um dos últimos casos que atendi, a velocidade de queda é em torno de 100 km/h. Quando você chega nesse tempo, a queda é considerada de um décimo de segundo. Se você está a 100 km/h em 0,1 segundo, significa que seu peso é multiplicado por 28 vezes. Um ser humano de 70 a 80 quilogramas teria o peso aumentado pela grande velocidade e causaria o mesmo impacto que um elefante asiático batendo no chão. Todos os órgãos internos do corpo, coração, fígado, baço, eles também vêm junto com você, na hora que você bate… Mas se você estiver consciente, vai tentar reagir, e a tendência é bater com o pé ou a mão, então vai fraturar o osso da canela, da perna, ossos estruturais. Luciana bateu com as costas no teto da guarita do prédio, o que fez com que seu corpo quase se 60
dividisse em dois, deixando seus órgãos expostos. Ele ficou tão lesionado que ninguém conseguiu reconhecê-la até a chegada da perícia. O modo como ela caiu pode indicar que ela estava inconsciente no momento da queda, o que daria mais respaldo para a teoria de descarte de corpo inerte. Contudo, o que fez com que os peritos não descartassem a possibilidade de queda acidental, com ela consciente, é que, essa hipótese explicada pelo perito de que a pessoa tenta reagir e se impacta primeiro com as extremidades, só vale para alturas de até 40 metros. Quando passa disso, a pessoa não tem mais controle da queda, e Luciana caiu de uma altura de 57 metros. Não foi só os cálculos que fizeram com que os peritos descartassem a hipótese de suicídio. Em uma cena de morte violenta, onde há indícios dessa situação, os peritos procuram evidências do “Ritual de Alívio” - alguma carta se despedindo de familiares, amigos ou amantes, ou algum objeto que remeta a uma memória afetiva da vítima. Um policial que foi para a guerra pode pegar seu uniforme e medalhas e deixar no ambiente, por exemplo, ou então, uma mãe que perdeu o filho pode pegar fotos antigas, roupas da criança, brinquedos, etc. -Sem contar que às vezes a pessoa também toma algumas atitudes, paga contas, liga para pessoas mais próximas para se despedir, se desculpar - explica o perito. 61
Em novembro de 2013, em Paranaíba, no interior de Mato Grosso do Sul, um caso de suicídio duplo ficou conhecido pelo casal usar essa simbologia. A cidade com cerca de 40 mil habitantes na época, fica a 413 quilômetros da capital. José Valdoir Mariano, 50 anos, e Ana Lúcia Rosa de Queiroz, 31, foram encontrados mortos, cada um com um tiro na cabeça, no quarto de um motel do município. Os dois vestiam roupas perfeitamente alinhadas, estavam de bruços e não havia indícios de luta no local. A arma calibre 22 estava na mão direita do homem, só havia dois disparos. Dentro do quarto havia uma caixa de presentes com dois envelopes, um branco, com o nome de um homem escrito do lado de fora, e um rosa, endereçada a duas pessoas, com R$ 1 mil dentro. A polícia não revelou o conteúdo do primeiro envelope, nem para quem estavam direcionados, mas adicionou ao boletim de ocorrência que poderia se tratar de um suicídio com ritual de alívio. Foi o suficiente para os principais jornais sul-mato-grossenses: “Casal morre dentro de motel e Polícia suspeita de ‘Ritual de Alívio’”, saiu no Campo Grande News; “Casal é achado morto e polícia suspeita do ‘ritual do alívio’”, noticiou o Correio do Estado; “Casal encontrado morto em motel do interior de MS cometeu suicídio coletivo em ‘ritual de alívio’”, publicou o Midiamax.
O ambiente no apartamento de João Atílio não dava indícios de que houvera algum tipo de luta no local. O jogo de cadeiras de madeira da índia na varanda, de onde Luciana caiu, estavam alinhadas e não foi encontrado vestígios de sangue no local, pelo menos não a olho nú, mas os peritos não tinham equipamentos capazes de identificar vestígios de sangue em superfícies já limpas. Também é preciso lembrar que João ficou sozinho no apartamento do momento em que Luciana caiu até a hora que o delegado resolveu subir até a residência. Outro ponto bastante enfatizado pelo perito Amilcar foi de que, em casos de suicídio de onde a pessoa se joga de grandes alturas, ela tende a escolher o ponto em que vai cair. Mesmo tendo como objetivo a morte, inconscientemente a tendência é a escolha de um local aberto, sem obstáculos entre o ponto inicial e o chão. Não foi o caso de Luciana, que bateu primeiro no teto da guarita antes de chegar ao solo. - No subconsciente, a pessoa acha que ainda vai se machucar muito, então escolhe um lugar limpo, um gramado, uma calçada, alguma coisa desse tipo. Ali, aparentemente ela escolheu um lugar possível, mas na hora de cair ela tinha uma opção bem melhor. Caso ela tivesse pulado, pelo que a gente calculou, seria próximo da guarita, ela saberia que iria cair ali em cima e ia bater na guarita. Isso aí não é natural, o mais natural seria ela escolher um outro lado que cairia na área livre, sem nada que interrompesse a queda - disse Amilcar.
64
O quarto poder Another world Wrapped up inside another place And I hope, and I pray That the pain goes away -Away, The Cranberries
65
3.
1986 As finanças do jovem casal Luis Carlos Berrocal e Ana Lúcia Furlan Berrocal não estavam indo bem na cidade onde moravam, Marília, no interior paulista. A situação piorava com quatro filhos para alimentar em casa. Por isso, Luis Carlos tomara uma decisão ao escutar comentários sobre uma terra distante, mais ao centro do país, que estava prosperando. - Estão ganhando dinheiro no Mato Grosso, lá tá crescendo, é lá que o dinheiro tá. Na verdade, o Mato Grosso em questão se tratava de Mato Grosso do Sul. Se atualmente as pessoas ainda têm o costume de confundir o nome dos dois estados, nos anos 80, quando a divisão ainda era recente, a confusão era ainda maior. Mas foi assim que o patriarca foi parar na cidade que mudaria para sempre suas vidas. Ele foi sozinho conhecer o estado e voltou para Marília só para buscar o resto da família. O caminhão onde Luis trabalhava virou cenário da mudança e transportou em sua carroceria o casal, os quatro filhos e a cadela, Lica, por 14 horas de viagem. Em Campo Grande, Luis Carlos investiu no ramo da reciclagem, foi quando as coisas passaram a dar certo e o ferro velho se tornou o sustento da família, que nunca mais voltou para o estado de São Paulo. 66
Chamada da matéria sobre a morte de Luciana na capa do Correio do Estado em 4 de janeiro de 1996 - Reprodução
- Não é que a gente não quis ir embora, é que a gente construiu a vida aqui, não tinha o que fazer - disse a mais nova das irmãs mulheres da família, Liziane - Hoje eu não vou sair daqui, onde eu tenho tudo, e vou embora, de jeito nenhum. A vida no jornalismo que Liziane construiu em Campo Grande foi motivada pela morte da irmã. Por ser um caso impactante, a história da menina que caiu do edifício chique da cidade ganhou destaque nas capas dos jornais impressos e nas telas das TVs campo-grandenses. Mesmo sendo uma capital, o município era muito afastado dos grandes centros, onde o jornalismo já estava mais desenvolvido, como São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. O conceito de modernidade ainda estava longe da cidade grande 67
com cara de interior, na verdade um estado inteiro interiorano, que foi governado na maior parte de sua vida por ruralistas. As mulheres tinham recém conseguido ocupar seus postos nas redações, em editorias como cultura e cidades, mas as matérias continuavam sendo redigidas majoritariamente por mãos masculinas e as histórias contadas pelas visões de seus donos. Essa ainda é, pelo menos em partes, a realidade da categoria local, mas a globalização e a tecnologia facilitaram o processo de apuração e checagem dos fatos e conseguiram amenizar as “cabeçadas” nas reportagens. O que o tempo não consegue mudar é o fato de que uma matéria começa a ser construída muito antes do momento em que um jornalista coloca as palavras no papel. A forma como uma história será contada depende do meio em que chegou até o repórter, ela já é relatada com a impressão pessoal da fonte - seja de um familiar, uma testemunha, ou um policial; da experiência e bagagem pessoal do jornalista; dos elementos que compõem a cena dos fatos; do posicionamento editorial da empresa da qual ele pertence; do modo que os veículos concorrentes trataram o assunto; da quantidade de tempo ou espaço concedido para a confecção da reportagem; das pautas sociais em discussão naquele recorte de tempo; e talvez ainda, do próprio humor do repórter ou do editor do dia. A imparcialidade no jornalismo é um grande jogo ao acaso. E naquela manhã de janeiro de 1996, quando os responsáveis pela
68
Primeira reportagem publicada pelo jornal sobre a morte de Luciana - Reprodução
editoria de polícia chegaram à delegacia depois de um recesso ainda com gostinho de ressaca para ver os boletins de ocorrências dos dias anteriores, a sorte de Luciana foi lançada quando eles se depararam com uma história que renderia assunto, e não apenas brigas de bêbados no trânsito. Havia dois jornais impressos na cidade, o Correio do Estado e o Diário da Serra, chefiados pelo mesmo empresário. Destes, somente o primeiro ainda
69
Na segunda reportagem, o caso ganhou mais destaque na capa do Correio do Estado em 8 de janeiro de 1996 Reprodução
circula, enquanto o outro foi fechado anos depois e grande parte dos arquivos foram perdidos. O jornal noticiou pela primeira vez a queda no dia 4 de janeiro, uma chamada tímida no canto inferior esquerdo dizia “Polícia acha que estudante não se suicidou”, no abre da página 27, o título era “Polícia descarta possibilidade de a estudante ter cometido suicídio”. A matéria não é assinada.
70
[...] Conforme informações extra-oficiais, caso Luciana Cristina tivesse cometido suicídio, seu corpo deveria cair ou sobre as árvores que existem na frente do prédio ou na calçada. Isto porque segundo alguns policiais experientes, a garota teria impulsionado o corpo no momento em que pulou. Como ela caiu no hall, não houve qualquer impulso. Restam, portanto, as hipóteses dela ter sido empurrada ou despencado após sofrer algum mal súbito. Mesmo assim, a última hipótese vem sendo tratada com reservas, mesmo porque caso ela tivesse desmaiado, seria grande a possibilidade de ter caído no piso do apartamento. O advogado João Atílio Mariano, bem como seu sobrinho menor de idade, já prestou depoimento à delegada Vilma Fátima de Carvalho, do 1º DP, que comanda as investigações a respeito do caso. [...] O advogado, ao olhar pela janela, disse ter visto o corpo, coberto por um lençol amarelo. Após isso, garantiu, entrou em estado de choque e disse não se lembrar de mais nada. Ele disse não se recordar, por exemplo, de que o zelador do prédio, Ricardo de Lima, lhe telefonou avisando-o de que a garota havia morrido. João Atílio, após ter sido informado da tragédia nem sequer desceu ao hall para verificar a situação. Alguns aspectos do depoimento do advogado chamam a atenção da polícia. Um deles é o fato dele ter visto o corpo da
71
Repórteres foram ao Edifício Comodoro cobrir a Reprodução Simulada feita pela perícia no dia 6 de janeiro; reportagem foi publicada no dia 8 daquele mês
namorada coberto com um tecido amarelo. Do 19º andar, de madrugada, numa altura de mais de 60 metros, é muito remota a possibilidade de qualquer pessoa conseguir enxergar o hall do edifício. No local não existe qualquer iluminação, conforme contou o zelador, ontem, ao prestar depoimento. Além disso, o te-
72
cido foi colocado sobre o corpo da estudante, por alguns moradores, cerca de 10 minutos após ter ocorrido a tragédia.
No dia 8 de janeiro, a chamada ganhou mais destaque e apareceu no canto inferior esquerdo, abaixo de uma foto do Edifício Comodoro: “Estudante pode ter sido jogada já sem vida”. Desta vez na página 4, o título do abre era “Investigações sobre a morte da estudante podem ter novo rumo”. Outra vez, a matéria não foi assinada. A reconstituição da morte da estudante Luciana Cristina Bezerra França, de 22 anos, na manhã de sábado passado no Edifício Comodoro, na Capital, poderá mudar o rumo das investigações comandadas pela delegada Vilma Fátima de Carvalho, do 1º DP. Agora, surgiu a possibilidade de a vítima ter sido morta antes de despencar do 19º andar do prédio, numa simulação de suicídio ou queda acidental. [...] Sete tentativas foram realizadas, simulando queda provocada ou acidental, em duas horas e meia de reconstituição. A quadra onde está instalado o edifício foi interditada pela Polícia Civil. A possibilidade de a garota ter sido morta e em seguida atirada pela janela, foi levantada pelos peritos. No entanto, as causas que levaram a essa possibilidade não foram informadas à imprensa. O perito Amilcar da Serra,
73
que comandou os trabalhos, disse que irá analisar atentamente duas simulações da queda. Não quis adiantar quais das sete tentativas irão merecer especial atenção. [...] O pedido de realização de exame toxicológico foi feito pelo pai da garota, Luis Carlos Berrocal, que não acredita na hipótese de a estudante ter cometido suicídio. Existe a possibilidade de a estudante ter consumido drogas e morrido acidentalmente, ao cair pela janela, ou jogada, já após ter morrido em consequência do uso de entorpecentes. Esta última hipótese poderia ter ocorrido para a simulação do suicídio. O advogado João Atílio Maria, namorado de Luciana Cristina, esteve no prédio na manhã de sábado. No entanto, ele não quis conversar com a imprensa [...]
- A morte da minha irmã foi uma das coisas que fez eu decidir ser jornalista, pra fazer diferente. Na época, um jornalista chamado Sionei Leão, que depois quase foi meu professor na faculdade, fez uma matéria muito machista, muito misógina, muito horrível. E não tinha internet, não tinha nada, era só a capa do Correio do Estado e do Diário da Serra, e aquilo me machucou demais. Eu ouvi dentro do ônibus, passando na avenida Mato Grosso, de onde dava para ver o Edifício Comodoro, uma pessoa falando “a menina que foi jogada de lá de cima era garota de programa, o jornal falou”. Aquilo acabou comigo.
74
Antes de ser jornalista, Sionei Ricardo Leão foi militar do Exército Brasileiro. Sentou praça em Campinas, interior de São Paulo, onde também iniciou os estudos de jornalismo na PUC-Campinas. De dia cumpria suas obrigações no quartel e de noite, a batalha era com os livros. Em 1990 ele já havia sido soldado, cabo e naquele ano atuava como sargento temporário, foi quando foi aprovado para fazer um curso para ingressar nos quadros da carreira, por meio da Escola de Administração do Exército, em Salvador, na Bahia. No tempo em que ficou em solo soteropolitano precisou trancar os estudos sobre jornalismo. Um ano depois foi transferido para Campo Grande e o novo serviço o permitiu se matricular no curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, no período noturno. Entre uma aula e outra, começou a se envolver com o Movimento Social Negro. Pegou logo gosto pela militância, reconheceu a própria dor e revolta nos rostos de outros alunos ativistas e decidiu que era uma causa pela qual precisava lutar. Chegou a ser preso duas vezes pelo Exército, quando seus princípios começaram a divergir das regras impostas pelo quartel. Teve de tomar uma decisão muito difícil - ou continuava a carreira, ou mantinha os ideais políticos e sociais. Sua história de vida não o deixou fazer outra
75
escolha, largou a carreira militar, no mesmo ano em que se formou jornalista, entre os anos de 1996 e 1997. A decisão foi sofrida, mas Sionei se recuperou no ramo da comunicação. Assim que se formou, ingressou como produtor na TV Educativa e depois foi para a TV Bandeirantes. Mas ficou pouco tempo no telejornalismo e logo foi contratado para trabalhar no Diário da Serra, onde permaneceu até o fechamento do jornal. Campo Grande sempre teve dois jornais diários disputando os leitores. Nesse contexto foi fundada a Folha do Povo, em 1999, que passou a ser o jornal concorrente do Correio do Estado. Sionei fez parte da equipe pioneira dessa redação. Depois de cerca de um ano, já no século 21, foi convidado para trabalhar no veículo concorrente. Nesta mesma época, era correspondente do Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, e fazia bicos para a Revista Raça, que circula até hoje. Também iniciou na carreira acadêmica e deu aulas para o ensino superior. Seus trabalhos nos veículos de tiragem nacional fizeram sua luta pela igualdade racial ser reconhecida além das fronteiras sul-mato-grossenses, e em 2003 foi chamado para fazer parte da assessoria de comunicação da então ministra da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro. Atualmente com 55 anos, ainda permanece no Distrito Federal, onde mora com a esposa e a filha, e trabalha na assessoria do Ministério da
76
Justiça e Segurança Pública. - Eu não estava no Diário da Serra em 1996. Devo ter ido para lá em 1998, mais ou menos. Essa matéria deve ser posterior, porque aquele texto que me mandou, eu não me reconheço nele, não foi eu que fiz - disse Sionei a respeito da cobertura midiática no caso Luciana. Enviei as matérias que encontrei no arquivo do Correio do Estado para ele, mas o jornalista disse que não foi ele que as escreveu. Como as matérias não eram assinadas, e não consegui acesso aos arquivos de 1996 do extinto Diário da Serra, não foi possível encontrar a reportagem a que Liziane se referiu. - Aquele texto era do Correio do Estado, né? Com certeza não fui eu que redigi. Após conversar com Sionei, perguntei a Liziane se as matérias poderiam ser de uma data posterior, como um texto que relembrasse o caso, mas a irmã negou. - Foi no mesmo ano em que ela morreu. Ele nem vai lembrar, mas foi naquela mesma época, foi no Correio e eu lembro bem. Depois de 25 anos, fica difícil confiar na memória. Depois de ler antigas reportagens, Sionei se intrigou com a queda sem solução de Luciana, mesmo não recordando do caso. Ele cobriu por muitos anos
77
a editoria de polícia, por isso lidava diariamente com crimes, homicídios, assassinatos e tragédias. Os anos de experiência o ensinaram uma coisa: a Polícia Civil brasileira tem, sim, capacidade de resolver mistérios. - Eu aprendi a respeitar muito a Polícia Civil. Pelo que eu via, ela tem essa questão da inteligência, da investigação, então os policiais têm muita técnica, muito conhecimento para investigar e conseguir resolver o crime. Raramente um crime que a polícia tem interesse acaba sem solução, porque ela sabe como fazer. Resta entender porque esse crime está insolúvel até hoje, quais são as dificuldades. Vamos comparar, um exemplo bem distante, o caso Marielle. Dizem que não se resolve por interesse políticos, tem alguma coisa barrando. Não sei se é esse o caso da Luciana, mas a Polícia Civil é muito capacitada para resolver o caso, aqueles que se tornam prioritários, costumeiramente são resolvidos. Pelo que eu vivi, é o que eu posso dizer. A princípio, a editoria de polícia não era o principal interesse de Sionei, que costumava cobrir cidades. Sua história cruzou com a dos crimes campo-grandenses por uma outra questão: o repórter responsável se demitiu e ficou uma vaga aberta. Entre os disponíveis para preencher a lacuna, Sionei era o único homem, por isso voltou para o mundo do combate ao crime, mas desta vez sob outra perspectiva.
78
- Eu conhecia bastante gente de vários movimentos sociais, da defesa da mulher, dos meninos de rua, indígenas. Então tinha essa convivência bem forte, por isso eu formei um pensamento sobre esses temas, tinha um idealismo sobre isso. A gente tem ideia do jornalista como uma pessoa de cabeça aberta, mas nem sempre é assim. Nem todo jornalista é de vanguarda. É mesclado, têm pessoas conservadoras, progressistas, machistas, é um fato. Não é necessariamente um ambiente ideal e acho que esse ambiente ideal não existe, qualquer ambiente reproduz, de certa forma, o que nossa sociedade é. Assim que começou a trabalhar no Diário da Serra, Sionei ouviu boatos sobre o antigo editor chefe da redação. Os outros repórteres comentavam entre uma pauta e outra, no intervalo para o cafézinho, que o antigo responsável pela redação costuma assediar as jornalistas mulheres da equipe. Nunca foi provado nada, mas os relatos também nunca cessaram. - Então não é de se espantar ter relatos de machismo. Agora, até que medida isso pode influenciar no texto que alguém escreve? Porque no jornalismo é assim, o repórter faz, aí tem o revisor, o editor, o editor chefe, várias pessoas leem e isso acaba sendo um filtro e melhora a qualidade do texto. Mesmo assim as redações não estão livres de ter problemas de machismo, racismo, mas eu faço essa defesa por outro lado, pela forma que se constrói o jornalismo acaba minimizando essas tendên-
79
cias individuais para uma questão mais profissional e mais adequada, acho que o jornalismo talvez funcione melhor por causa dessa metodologia, dessa prática. Mesmo depois de muitos anos morando em Brasília, Sionei ainda sente falta de Campo Grande. As ruas arborizadas e a culinária local encantavam o paulista. O mesmo aconteceu com os irmãos Berrocal, que cresceram em terra sul-mato-grossense e se acostumaram com os dias quentes na maior parte do ano com a água gelada do tereré para se refrescar. De acordo com Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1996, Campo Grande tinha 600.069 habitantes. Em estimativa do Instituto feita em 2020, a cidade somava 906.092 pessoas. Foram mais de 300 mil novos moradores em 24 anos. A cidade tem uma característica única que atrai famílias dispostas a largar a agitação dos grandes centros, mas ao mesmo tempo, que não conseguem se acostumar com a ideia de ir morar num lugar onde franquias e empresas multinacionais ainda não chegaram. No centro da cidade, é possível reconhecê-la como capital, mas ao adentrar os bairros que pulsam nas periferias, o cenário que predomina é o dos moradores andando em suas bicicletas, os cachorros vira-latas tirando um cochilo no meio da rua, grupos 80
de idosos jogando baralho no boteco da esquina, e as donas de casa tomando tereré em frente às suas casas ao entardecer. Mas como em qualquer outro território, as classes sociais são demarcadas geograficamente. A classe média se acomoda em bairros bem localizados, enquanto os ricos se escondem em seus condomínios luxuosos. Neste público, são dois tipos de moradias, as habitações em regiões afastadas da cidade, consideradas áreas nobres, e os prédios que se erguem exuberantes no coração da capital, mostrando toda sua pomposidade para quem só tem recursos suficientes para avistá-los de longe. Entre eles está o Edifício Comodoro, que fica no Centro, na divisa com o bairro Jardim dos Estados. Apesar de ser uma estrutura antiga, os 19 andares do prédio não envelheceram mal. O segredo da juventude são as boas condições financeiras, provenientes da alta taxa cobrada aos moradores que o condomínio possui. Quem desejar acordar todos os dias e avistar a cidade do alto de uma sacada larga e espaçosa, em um apartamento com quatro suítes, três vagas na garagem, hidromassagem, sauna, academia e quarto para empregada, O laudo pericial guardado por tanto tempo, exatos 26 anos, nos armários do perito Amilcar carrega ainda uma informação no mínimo intrigante para o desenrolar da história que se passou no 19º 81
tudo isso sem se preocupar com barulho de vizinhos, já que é uma moradia por andar, vai precisar desembolsar cerca de R$ 1,6 milhão na compra do imóvel. A área útil de cada apartamento é de 394 m², há terrenos à venda na cidade com o mesmo tamanho. Para manter as regalias que o condomínio proporciona, terá que pagar a taxa de R$ 2,5 mil por mês, como lembra um anúncio de um dos apartamentos. Assim como este, a venda de diversos imóveis são divulgadas na internet, com fotos que mostram cômodos espaçosos com móveis antigos planejados, transparecendo o ar de quem já atingiu seu auge e segue em direção ao declínio. Visitei o edifício em setembro de 2020. A fachada e toda estrutura frontal do prédio, o lugar onde o corpo de Luciana foi encontrado, passavam por reforma. A rua é bem movimentada, quase não havia lugar para que carros estacionem. A vizinhança tem o tipo de estabelecimentos que qualquer morador deseja, em poucos minutos é possível acessar farmácia, mercado, escola, parque com área esportiva e diversas lojas. Em razão das obras, a guarita estava vazia e os moradores entravam e saiam somente em seus carros, em um portão na Recorte jornalístico arquivado junto ao laudo da perícia - Reprodução
82
lateral direita do edifício. O dia estava nublado e quente, beirando os 40 ºC, e o céu esfumaçado pelas queimadas do Pantanal que dizimaram parte do bioma naquele ano. Me esgueirei por uma entrada reservada para os trabalhadores, entre os tapumes de madeira, e chamei pelo zelador. José Melquides foi quem me atendeu, de maneira muito simpática e solícita. Ele trabalhava lá há pouco tempo, cerca de um ano, e não poderia me ajudar com o caso de Luciana. Ele ouviu a respeito da queda, mas só nas entrelinhas, nunca o contaram diretamente sobre o caso que manchou a imagem do condomínio luxuoso na época. De acordo com Melquides, os responsáveis pelo local responderam à ação judicial. O síndico e porteiro que presenciaram a fatídica noite do Réveillon de 1996 não trabalham mais no lugar, além disso, somente dois moradores atuais habitavam o prédio na época. Nenhum deles gosta de falar sobre o assunto e os dois não passaram a virada em casa naquele ano, sem testemunhar o caso. Todas essas informações o funcionário descobriu aos poucos, em conversas distintas, já que nenhuma orientação foi passada e nenhuma conversa oficial foi proferida. A morte de Luciana se tornou um tabu, raramente comentada em conversas entre moradores. - Vou olhar os documentos no arquivo do condomínio, para ver se acho alguma coisa para 84
te ajudar. Anota meu número aí, meu nome é José M-E-L-Q-U-I-D-E-S, escreve certo se não eu não te ajudo hein - disse o zelador, que se despediu dese-jando boa sorte. Dois dias depois, Melquides lamentou, por telefone, que somente arquivos dos últimos cinco anos são guardados e que não poderia ajudar mais. A morte de Luciana foi um acontecimento marcante para a cidade, estampando os principais jornais, e ainda é lembrado por moradores mais antigos de Campo Grande. Registros judiciais de um caso tão impactante na história de um condomínio, curiosamente, não foram guardados.
85
O mistério do Apartamento 19 “Eu não consegui ter convicção e dizer o que de fato aconteceu. Consegui praticamente eliminar o suicídio, mas decidi entre queda acidental ou remoção de corpo inerte”, Amilcar da Serra
4.
andar. O quarto em que Luciana dividia com João Atílio foi um dos cômodos alvos dos exames periciais. Ao entrar no ambiente, os profissionais não encontraram sinais de luta ou violência, porém, em cima da cama, acharam um bilhete datilografado e assinado por Luciana, onde se despedia de familiares e do namorado, o conteúdo exato que estava escrito não foi revelado. Ao lado do papel estava um vidro de comprimidos aberto e vazio, o rótulo apresentava a descrição: ??????
Liziane não sabia da existência do bilhete até o dia que ela me concedeu uma entrevista. Por ela só ter 15 anos na época, ela acha que alguns detalhes podem ter sido escondidos dela, ou ainda, que as minuciosidades talvez tenham sido esquecidas em meio ao turbilhão de sentimentos. - Sabe por que que não diz o conteúdo do bilhete? Porque talvez a Luciana e o Fred tivessem um caso. Ele tinha 17 anos e ela, 22. O João Atílio era um cara muito influente, já pensou em um advogado corno? Se não foi por isso, por que não colocaram foto do bilhete? Sendo que a gente vê inquéritos muitos mais antigos que têm. Porque não era um bilhete de despedida, pode ter sido um bilhete romântico - diz Liziane, revoltada. De volta ao dia da perícia, ainda no quarto do 88
casal, no parapeito da janela que dava para a sacada, havia marcas de um calçado, não dava para saber se era um sapato feminino ou masculino, mas o tamanho era compatível com o número que Luciana calçava. Vale lembrar que a vítima estava descalça quando caiu. A equipe partiu então para o quarto da filha de João Atílio, que não estava presente no dia da queda. O ambiente era tipicamente adolescente, um pouco bagunçado, com pôsteres de artistas nas paredes e bichinhos de pelúcia na cama. Contrastando a leveza da juventude, a polícia encontrou um objeto que pode ter sido o último usado por Luciana em vida, uma máquina de escrever. O quarto de Frederico também guardava seu tanto de estranheza. A suíte estava bastante bagunçada, a cama sem lençóis e roupas de molho na pia do banheiro, mas o que mais surpreendeu a equipe estava numa gaveta do quarto: o diário de Luciana. Mesmo que fossem próximos, é um objeto pessoal demais para estar nas dependências do sobrinho do noivo da vítima. Ele teria surrupiado o caderno de Luciana? Ou os dois eram mais próximos do que inicialmente a polícia havia pensado? O bilhete e o vidro de remédios seriam uma prova certeira se os exames periciais não tivessem descartado a hipótese de suicídio. Luciana sabia datilografar, havia feito curso e usava as pesadas 89
máquinas de escrever em seu trabalho. Mesmo assim, o mais comum em casos de bilhetes de despedida ainda era papel e caneta. Neste caso, além de datilografá-la, a jovem ainda teria o trabalho de guardar a máquina no quarto da filha do noivo. Luciana também não ficou sozinha no apartamento após a festa, então, teria de achar um jeito de escrever o bilhete sem levantar as suspeitas de Frederico e João Atílio, que alegou em depoimento não acreditar que ela pretendia se matar. A outra opção é que ela tenha escrito antes da festa, com antecedência, o que levanta a dúvida sobre as motivações dela ter ido até a festa mesmo com pensamentos suicidas. O bilhete foi encontrado no dia da queda, mas como este laudo só foi liberado nove dias depois, a equipe que voltou ao apartamento no dia 6 para fazer a reprodução simulada não tinha conhecimento da existência desta prova. O perito Rui Rodrigues afirmou que “assinado”, nos termos técnicos, significa letra cursiva, à caneta. Não consta nos registros se foi feita perícia neste bilhete, para comparar a letra da assinatura com a da vítima. Na verdade, os dois laudos não deram importância para a descoberta, que é citada apenas uma vez em um pequeno parágrafo, assim como o fato do diário de Luciana estar no quarto de Fred. - Se não foi um suicidio e tinha um bilhete... no que você chega a conclusão?! Porque você tinha 90
duas hipóteses do que aconteceu, mas a hora que alguém põe um bilhete, quer dizer que foi um suicídio. E se quer dizer que foi um suicídio, mas que você sabe que não foi, sobressai a hipótese do homicídio, que se comprovaria através da remoção do corpo inerte. Mas assim, pra provar por A mais B e dizer: é isso! Não tem como. O horário, o bilhete com caracteristicas que não batem com suicídio. Dentro desse tempo, entre o fim da festa e a queda, será que daria para ela ir lá, se debruçar e cair? E se fosse, por que ela faria isso? - diz Amilcar. * João Atílio tinha duas filhas, Vanessa e Fernanda. A mãe de Luciana manteve contato com o ex-genro por muitos anos, inclusive quando Vanessa ficou doente, um ano depois que Luciana morreu. Ela era quase da mesma idade de Liziane quando decidiu realizar um procedimento estético, mas a cirurgia teve complicações. A jovem ficou internada no hospital, em coma, onde dona Ana Lúcia ia sempre visitá-la. Mas pouco tempo depois, não resistiu e morreu. Foi um período difícil para João Atílio. Em 1995 ele tinha perdido a mãe. Em 1996, morreu Luciana. No ano seguinte, em 1997, foi Vanessa. E em 1998, o advogado perdeu o pai. 91
Hoje, aos 74 anos, ele ainda está vivo, mas não consegui fazer contato. Contudo, nos laudos da perícia existe um depoimento do advogado, possivelmente o primeiro dado por ele, datado de 2 de janeiro de 1996, às 17h45, em Campo Grande. O trabalho foi conduzido pela delegada Vilma Fátima de Carvalho, em parceria com o delegado Gildésio Gomes de Almeida. O documento tem informações que divergem dos fatos repassados pela família de Luciana. João Atílio informou que estava separado judicialmente desde setembro de 1992 e que namorava Luciana há três anos. Ele estava no apartamento do Edifício Comodoro desde o dia 23 de dezembro, junto com sua filha Vanessa, de 14 anos. Luciana frequentava assiduamente o local, mas ele não tinha pretensão de casar com a jovem, apenas morar com ela. - Ela era jovem e tinha muitos planos - disse aos delegados. Em 31 de dezembro, Luciana ficou ocupada cozinhando pratos típicos de Réveillon para o casal levar no almoço do outro dia, na casa do pai de João Atílio. Preparou um salpicão - uma receita que mistura massas, legumes, frutas e frango - e um bolo frio. Quando era por volta de 20h30, o porteiro ligou para João para o convidar para uma festa no salão do condomínio. Ele aceitou. Antes de irem para a festa, Luciana ainda
preparou uma porção de arroz com carne e os dois levaram até a casa da jovem, para alimentar os cachorros da família. Quando estava lá, o telefone tocou e João atendeu. Era Laís, a irmã de Luciana. Ele passou o telefone para ela e foi pegar um vestido branco emprestado para sua filha Vanessa, que depois não serviu nela. Ao chegarem ao apartamento, os dois foram se preparar para a celebração, junto com Frederico, que também iria. Vanessa tinha ido a uma festa, a mesma que Fred compareceria depois de sair com o tio. Luciana vestiu um vestido branco e um sapato dourado. Ele reclamou com a moça em relação ao comprimento da peça, achara muito curto, mas ela não trocou a peça e eles desceram para o salão social. Quando já havia passado da meia-noite, por volta de 1h15, um familiar de Luciana ligou. - Ela estava contente, mas após esse momento Luciana quase chorou de saudades deles. Ela foi a primeira pessoa a ir embora da festa, depois Fred e em seguida fui eu. Quando chegou ao apartamento, Fred o disse que Luciana estava chorando. João então foi falar com ela e declarou que não iria para a festa junto com o sobrinho, que ficaria com ela. Fred então se despediu para sair e seu tio o acompanhou até o elevador, quando ele desceu, o advogado se dirigiu até a cozinha do apartamento para tampar os assados.
- Eu entrei na sala e disse: Lu? Mas ela não respondeu. Fui até a sacada e disse, Lu? Então, olhei para baixo e vi um corpo no solo coberto com um pano amarelo. Ele não soube responder aos delegados com qual roupa ela estava vestida, mas disse que Fred não viu nada porque já havia saído do apartamento. O depoimento finaliza da seguinte maneira: João acredita que ela não se suicidou, porque ela não teria motivo para isso, que ela não lhe deixou nada escrito, que ela nada lhe declarou, salvo a saudade que
Família de Luciana ainda guarda imagens de João Atílio na época que ele era noivo de Luciana, a data da foto é desconhecida - Arquivo Pessoal
94
tinha de sua mãe. Ele alega que sempre se deu muito com os familiares de Luciana. Quando o interfone tocou, ele alega que nada sabe dizer sobre essa ligação, pois saiu de si e nada se recorda a não ser que estava com a polícia, que a polícia estava presente, e que ele perdeu a noção das coisas quando viu o corpo conforme anteriormente relatado. Ele diz que ela era uma menina meiga, simpática, amorosa, dada com toda sua família. Nada mais disse, nem lhe foi perguntado.
Ao rever as declarações de João Atílio, o perito Amilcar estranhou o fato dele não ter descido para ver o corpo. - Não posso acusar ninguém, mas posso dar minha impressão. Na hora que ele não achou ela e olhou para baixo e viu um corpo, a primeira dedução seria de que era ela que estava ali. O normal é a pessoa descer rápido, mesmo sabendo que ela já estaria morta. Mas desceria na expectativa de fazer alguma coisa, ou confirmar mesmo se era ela. E isso ele não fez, ficou no apartamento, isso é outra coisa que deixa o negócio suspeito. Frederico também prestou depoimento, mesmo tendo apenas 17 anos, faria 18 no mês de setembro. As declarações dele também divergiram de alguns pontos relatados por João Atílio. Às 11h 95
do dia 3 de janeiro, Fred disse às delegadas Vilma Fátima de Carvalho e Ivone de Mello que passeava em Campo Grande desde o dia 25 de dezembro e estava hospedado no apartamento 19 do Edifício Comodoro, na casa de seu tio. Ele, João e Luciana foram à festa do condomínio. Tomou, junto com seu tio, copos de whisky e Luciana bebeu vinho. - Todos estavam animados e se divertindo. Depois da meia noite, Luciana saiu da festa e minutos depois Fred a seguiu. No apartamento, a namorada de seu tio estava no quarto do casal e conversava com Frederico, que estava se arrumando para sair, ora no quarto de sua prima Vanessa, ora no quarto de visitas. Luciana falava sobre seu irmão, João Henrique, que tinha 14 anos. Quando João chegou ao apartamento, Fred o convidou para ir até a festa. O tio perguntou para Luciana se ela queria ir e ela disse que não, mas que não se importaria se João quisesse ir. O tio disse então que, se Luciana não fosse, ele também não iria. Fred telefonou ao seu primo, Luiz Carlos, para que viesse buscá-lo. Em seguida, foi até o elevador, acompanhado de seu tio, e desceu. Quando chegou a portaria, estavam lá três pessoas, que disseram apontando para o saguão, “um corpo pulou, você reconhece?”. Frederico bateu o olho e disse que não. O 96
cheiro de sangue o incomodou, então não se aproximou do corpo e seguiu até o portão. Quando chegou na calçada, seu primo encostou o carro e juntos foram para a festa. Mesmo seu primo sendo médico, ele não disse nada sobre a cena que acabara de presenciar, nem do corpo que tinha visto, porque não queria incomodar. Ele só voltou para o prédio por volta das 4h30. Neste ponto, o depoimento de Fred também foi diferente das informações repassadas pelo porteiro Ricardo. Ele disse, em depoimento, que Frederico passou pela portaria depois que Ricardo já tinha interfonado para o apartamento 19 e conversado com João Atílio. O advogado tinha dito ao porteiro para que eles chamassem um médico. Quando ligou para João, disse “Sr. João, caiu uma pessoa de um apartamento e está na portaria, estão pedindo para o povo descer para reconhecer”, e a resposta foi de que deveria chamar um médico. Ricardo então repetiu a frase para Frederico, que pegou o telefone da portaria e ligou para um hospital e passou o gancho para Ricardo. Em seguida, saiu, não lhe dizendo nenhuma palavra. - Frederico nem sequer olhou para o corpo - Ricardo pensou que Frederico não tinha a reconhecido porque não comentou nada. Naquele momento, vários condôminos estavam chegando na 97
portaria, e por isso não viu com quem Fred saiu. Ele voltou ao prédio por volta das 4h30, mas Ricardo disse que os dois não conversaram. O depoimento do sobrinho de João Atílio termina assim: Frederico esclarece ainda que Luciana estava vestida com um vestido branco e que, inclusive antes de ele deixar o apartamento, ela estava de vestido branco. Perguntado a Frederico se ele sabe onde está o vestido, ele diz que não sabe onde se encontra. Ele também descreve o vestido sendo uma peça inteira, podendo ser confundida com uma camiseta. Além disso, disse que quando chegou ao prédio, seu tio não se encontrava, sendo informado pelo porteiro que o mesmo estava na delegacia. Frederico telefonou para dois tios seus e para seu pai, para que tomassem providências. Nada mais foi dito, nem foi perguntado.
O perito Amilcar também comentou sobre o depoimento de Fred. - O que eu estranhei muito foi a investigação bater tanto nesse vestido que Luciana estava. Como João Atílio comentou que houve um desentendimento entre o casal sobre o comprimento do vestido da jovem, a polícia pode ter 98
suspeitado de que em um possível homicídio, o ciúmes fosse a motivação. A mesma desconfiança que Liziane teve ao saber do bilhete supostamente deixado pela irmã. Frederico tem atualmente 43 anos. Consegui encontrá-lo nas redes sociais, onde descobri que ele mora em Maringá, no Paraná, e é fisioterapeuta. Tentei marcar uma entrevista, mas minha mensagem nunca foi respondida. As investigações sobre a morte de Luciana são uma incógnita. Tentei acessar o inquérito do caso mas em todos os caminhos que tentava encontrei uma porta fechada. A 1º Delegacia de Polícia, responsável pelas investigações, não possui mais em seu arquivo documentos do ano de 1996, todos foram incinerados. O Fórum de Campo Grande tem os arquivos dessa época, mas não estão digita-
Luciana era apaixonada por gatos - Arquivo Pessoal
99
lizados. Era necessário o número do inquérito para conseguir localizá-lo em meio a milhares de outros documentos guardados há 25 anos. Mas a família de Luciana não sabia qual era esse número. - Quando minha mãe faleceu, a gente não queria lembrar mais disso, então queimamos tudo - disse Liziane. Consegui então localizar a delegada responsável pelo caso, Vilma Fátima de Carvalho. Ela está aposentada, mas ainda atua como advogada e presta consultoria jurídica em uma cidade no interior de Mato Grosso do Sul. Ela me informou que não tinha informações sobre o inquérito e, a princípio, topou conceder uma entrevista sobre o caso, mas quando a procurei novamente para conversar, ela não atendeu às ligações, nem respondeu minhas mensagens. -O Ministério Público Estadual (MPE) pode conseguir achar o número - o responsável pelo Arquivo do Fórum, seu Adalto, me deu um fio de esperança. Quando tentei contato no setor responsável, o sistema de busca estava indisponível. Tive que rir, parecia uma conspiração. Depois de uma semana, o sistema voltou, mas só para me dar outra notícia negativa. - Infelizmente não localizei nada. Em 1996 não existiam os sistemas de informatização que existem hoje, as anotações eram feitas em livros. 100
Tente ver na Polícia Civil se consegue alguma informação - me disse Adriana, uma funcionária do MPE. Fiquei nesse pingue-pongue entre os órgãos públicos durante pouco mais de um ano. Na última vez que fui ao Fórum, Adalto se comoveu pela minha busca e me disse que provavelmente o caso foi arquivado como suicídio e nunca foi a julgamento. Isso porque todos os casos de homicídios foram digitalizados a partir de 1988, se João Atílio ou Frederico Mariano aparecessem como réus, o sistema teria encontrado-os. - Acha que tem cabimento morrer uma pessoa e não saber como ela morreu? A pessoa cair do prédio, pelo amor de Deus… Hoje você pode reclamar disso, pode reclamar nas redes sociais, antigamente não podia fazer nada, tinha que aguentar as coisas. É muito difícil falar sobre as próprias dores, sobre suas fraquezas. E a minha irmã era minha fraqueza, eu me sentia muito fraca quando eu pensava em tudo que ela pode ter passado quando a gente não sabe o que aconteceu naquela noite, entendeu, porque a gente não sabe. E nunca vamos saber - lamentou Liziane. * Vinte e cinco anos depois do que aconteceu, Liane Penzo ainda pensa em Luciana. Ela se casou com o namorado que tinha aos 20 anos e tiveram 101
duas filhas. Atualmente com 45 anos, ela trabalha com marketing e se mudou para os Estados Unidos, onde ainda vive com a família. - Para mim foi bem difícil perder ela, a amizade dela, a pessoa incrível que ela era. Ela era uma menina muito feliz, uma menina de riso fácil, eu lembro até das gargalhadas dela. Ela dava gargalhadas de tudo e isso tudo acabou para mim. Foi um choque muito grande porque ninguém estava esperando, ela não estava doente, não tinha nada. Muito pelo contrário, eu esperava que em breve a gente ia voltar a ter o contato de antes e de repente ela foi embora. Foi muito difícil, na verdade eu nem sei se já superei não, ela ainda faz muita falta. Foi uma grande perda, muito triste, a mãe dela sofreu tanto. E a Lu viveu nada, muito pouco. Acho que é por isso que ela tinha tanta sede de viver, porque o tempo seria curto, às vezes eu penso assim. Liane não acredita até hoje na hipótese que a amiga tenha se suicidado, eram muitos sonhos e planos compartilhados entre as duas. - Eu não posso dizer que foi ele especificamente, porque eu não acompanhei o relacionamento deles, ela sumiu, não tinha mais tempo para a gente, marcava de encontrar com a gente e não ia mais. Então a gente percebia que algo tinha mudado, algo estava diferente. E os comentários foram que ele tinha algo a ver, mas isso fiquei sabendo 102
só pela boca dos outros, eu realmente não sei de nada, então não tenho como afirmar. Mas eu acredito que alguém tenha feito alguma coisa - Quando elas se distanciaram no início da vida adulta, Liane achava que seria apenas uma fase que em breve seria superada, estavam apenas em páginas diferentes da vida, mas as boas lembranças que estavam guardadas suscitavam a esperança de que bons momentos seriam vividos novamente. Liana sentia falta da risada da amiga, saudade que só aumentou com o passar dos anos. De todas as peças que se moveram em torno da tragédia, o tempo pode ter sido o maior dos vilões. Ao mesmo tempo que pode ter sido decisivo para revelar quem estava no apartamento com Luciana no momento que ela caiu - Fred desceu antes ou não? - foi cruel com as investigações. Em 1996 as tecnologias pareciam uma piada perto do que é possível encontrar hoje. Não necessariamente tecnologias de ponta, mas um simples circuito de câmeras de segurança poderia ter feito a diferença no caso de Luciana. Já existiam celulares e computadores, a internet ainda era uma criança, mas em cidades de estados interioranos, eles só ganhariam popularidade a partir dos anos 2000. Num lugar que supostamente ninguém viu como Luciana caiu, olhos virtuais poderiam ter dado a resposta que a família da vítima busca há 25 anos. 103
O avanço no sistema Judiciário também poderia auxiliar na solução das incoerências que envolvem o caso. Atualmente, a morte poderia ser investigada inicialmente como feminicídio, crime que não existia no Código Penal em 1996. O assassinato de mulheres motivados justamente por serem mulheres virou lei apenas em 2015, mas o termo foi usado pela primeira vez em 1976 pela escritora e ativista, Diana Russell, durante um depoimento no Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres, em Bruxelas. No artigo “Violência contra mulher: feminicídios no Brasil”, os pesquisadores explicam que na maior parte dos casos de feminicídio, os responsáveis são homens, principalmente parceiros ou ex-parceiros, e decorrem de situações de abusos no domicílio, ameaças ou intimidação, violência sexual, ou situações nas quais a mulher tem menos poder ou recursos que o homem. Dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) apontaram que, no Brasil, mulheres de 20 a 29 anos e de 30 a 39 anos foram as principais vítimas entre o triênio de 2009 a 2011. Em Mato Grosso do Sul, o Mapa do Feminicídio elaborado pelo governo estadual, mostrou que 30 mulheres foram vítimas do crime em 2019, e 98 sofreram tentativa de feminicídio. - Não faz sentido a gente falar de uma história que pode ter sido um assassinato e que ficou im 104
pune e que ninguem nunca soube da história verdadeira. Por conta do que? Qual o motivo? Por que era um advogado? Por que morava num prédio de luxo? Por que era filha de um sucateiro? A minha mãe catou lixo para cuidar da minha irmã. Ana Lúcia Furlan França ela se chamava quando minha irmã nasceu, e aos 39 anos ela viu minha irmã ser arrancada dos braços dela. Então, se a gente não tiver coragem para falar das histórias, muito mais Lucianas vão acontecer. Essa é a minha Luciana, quantas outras Lucianas têm por aí, que morreram e ninguém sabe o que aconteceu. O crime já prescreveu, ninguém vai preso, não vai acontecer nada. “Ah, fulano matou?” Não sei, não vou falar quem matou com todas as letras, mas até hoje ninguém sabe o que aconteceu. Será que se minha irmã fosse a filha do advogado e ela morasse no prédio chique eles não teriam resolvido? - disse Liziane.
105
Agradecimentos Sem minha família este trabalho nunca teria se concretizado. Agradeço ao meu pai, José, por me apoiar incondicionalmente. À minha mãe, Neiva, por nunca me deixar pensar em desistir. E à minha irmã, Louys, que ouviu meus desabafos ao longo de todo o processo. Também agradeço aos meus professores, que me deram a bagagem necessária para a construção deste livro, mas em especial meu orientador, Felipe, que me reconfortou diante das dificuldades e me animou com sua empolgação perante novas conquistas. Aos meus amigos, os quais atormentei incansavelmente durante o último ano com infinitos áudios ansiosos, perguntas técnicas e dúvidas de gramática. São tantos que precisaria de outro livro para conseguir listá-los, mas não poderia deixar de citar o Alex e Luana, por estarem presentes nos meus piores momentos, Guilherme, por revisar todo o livro em apenas uma noite, Isabela e Júlia, por me explicarem questões jurídicas, Jéssica, por dividir comigo seus conhecimentos sobre livro-reportagem, Rafaela e José, que me animaram e distraíram quando necessário, Lorayne e Luana, que tiraram minhas dúvidas sobre questões de engenharia. Agradeço ao perito Amilcar, que me recebeu e falou sobre o caso com muita animosidade. Por fim, minha eterna gratidão à Liziane e sua família, que com 107
partilharam suas histórias e permitiram que eu as contasse.
108
“Eu não estou longe, apenas estou do outro lado do Caminho... Você que aí ficou, siga em frente, a vida continua, linda e bela como sempre foi”. - Santo Agostinho