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A menina sob o lençol amarelo
A menina sob o lençol amarelo 1.
You got a fast car I want a ticket to anywhere Maybe we make a deal Maybe together we can get somewhere Any place is bett er Starting from zero got nothing to lose Maybe we’ll make something Me, myself, I got nothing to prove -Fast Car, Tracy Chapman
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1995
Deitada no chão, os cachos de seus cabelos se estendiam ao lado de sua cabeça, formando um mar de ondas paradas. Ao fundo, a fita da banda The Cranberries tocava a música Linger. -If you, if you could return, don’t let it burn, don’t let it fade - cantarolava Luciana, quando Fred, seu gato, surgiu para analisar a curiosa cena de sua dona deitada no chão. Luciana Bezerra França vivia o auge de sua juventude aos vinte e poucos anos, como qualquer outra garota da sua idade. De tez branca, possuía estatura baixa e magra. Seu rosto com seus olhos castanhos era comum. Mesmo bela, sua aparência era comum, do tipo que poderia passar despercebida em uma multidão. Ela havia sido gorda até a adolescência, mas emagreceu com o passar da idade. Vinha de uma família grande, seus pais Luis Carlos Berrocal e Ana Lúcia Furlan Berrocal casaram e tiveram quatro filhos. Luciana era a mais velha, seguida de sua irmã Lais, de 17 anos, Liziane, com 15, e o caçula Luiz Henrique, de 14. Seu pai era dono de um ferro velho, o que havia proporcionado para seus herdeiros uma infância de diversão dentro de carrinhos feitos de papelão. Apesar de simples, a família não passava necessidades, pelo contrário, a reciclagem estava em alta e os negócios iam bem, chegaram a pagar as escolas particulares dos irmãos Berrocal.
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Luciana gostava de aproveitar as poucas atrações que as noites campo-grandenses na década dos anos 90 tinham a oferecer. Muito vaidosa, gostava de tingir os caracóis de seus cabelos de loiro, e sempre os escovava antes de ir para a balada. Sua beleza atraía atenção de vários garotos, e até de homens. Luciana era muito namoradeira e retribuía aqueles que lhe despertavam interesse. Tinha sido assim com Gil Angelo, seu antigo namorado, com o qual ela viveu grandes momentos juntos, trocando juras de amor, mas o romance chegara ao fim alguns anos atrás, quando conheceu outra pessoa que fez seu coração bater mais forte.
João Atílio era um advogado bem-sucedido, charmoso, que sabia preencher um salão com sua presença, tendo conseguido encantá-la em uma festa promovida pela empresa onde Luciana trabalhava, ocasião em que se conheceram. Ele era mais velho, já com 49 anos, enquanto ela tinha 19 anos, quase completando 20. O advogado conhecia um padrão de vida alto e trabalhava para o manter. Bebia das melhores bebidas, comia das melhores comidas, viajava para vários lugares e alimentava seu vício pelo bingo. Sabia de sua influência e não se continha ao mostrá-la para o mundo, traço da personalidade que era apontada como arrogância por muitos. No ano em que se encontraram, João Atílio era divorciado e tinha duas filhas, uma delas com a idade da jovem e outra seis anos
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mais nova. Enquanto isso, Luciana fazia ensino médio em um colégio particular de Campo Grande. Depois que engataram o namoro, ela parou os estudos por um tempo, mas acabou voltando para a escola. Ela tinha terminado o colegial naquele ano e tinha prestado vestibular para o curso de Administração. - Luciana, cuida da sua vida, vai fazer seu futuro. João Atílio não vai dar camisa para ninguém, é mais velho. Olha aí o que eu passo com seu pai – escutara de sua mãe certa vez, quando ela interrompera os estudos.
Apesar disso, João Atílio se dava bem com sua família. Os dois compareciam juntos nos almoços de domingo e ele, com êxito, sempre fazia de tudo para agradar sua mãe. Apesar de sempre aconselhar a filha e colocá-la em primeiro lugar, dona Ana não deixava esconder o carinho que sentia pelo genro. Luciana era fascinada pela vida que ele e seus familiares levavam, já que era tudo muito diferente do que já tinha vivido. Enquanto Frederico Mariano, um dos sobrinhos do noivo que era só alguns anos mais novo que ela, tinha crescido com conforto e desfrutado de viagens internacionais, ela tinha passado a infância brincando com os irmãos no ferro-velho do pai. O mais longe que ela tinha ido com a Belina da família era até a cidade natal Marília, em São Paulo, onde ainda tinha parentes.
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Mas as diferenças eram superadas pelo amor que sentiam um pelo outro, acreditava Luciana. Seu romance com o advogado beirava os três anos de duração e já tinham aproveitado uma reunião familiar para ficarem noivos naquele ano. Era o costume da época em cidades pequenas, depois de alguns meses de namoro, o casal aproveitar alguma comemoração em família para oficializar a união. Reuniões não faltavam na família de Luciana, já que se juntavam sempre que possível para celebrar a vida. Além de ser a primeira filha de seus pais, também foi a primeira neta de seus avós, e por isso sempre recebeu e doou muito amor aos laços sanguíneos. Nunca brigou com nenhum de seus parentes, pelo contrário, seu coração sempre foi muito bondoso.
A parte encrenqueira da família tinha ficado com a irmã mais nova, Liziane, que estava sempre em conflito com a mãe. Talvez por isso Luciana tenha se aproximado tanto dela, Liziane via na irmã o amor que sentia falta em sua mãe, um amor sem cobranças e resistências, mas também sem juízo. Quando ela tinha oito anos, Luciana a levou a um show de uma de suas bandas favoritas, o Legião Urbana, e foi lá que Liziane tomou o primeiro porre com sua melhor amiga e irmã.
A família Berrocal passava todas as festividades de fim de ano juntos, em Marília. Naquele ano, em 1995, Luciana decidiu ficar em Campo Grande.
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Ela fazia aniversário na véspera de natal, 24 de dezembro, e naquele ano permaneceu na cidade para comemorar todas as datas com o noivo. Depois do tempo em que ficou deitada no chão, Luciana se levantou para se despedir da família que estava partindo de viagem. Doeria passar o Réveillon longe deles, pensou Luciana, já que era uma data tão comemorada pela família. Mas terão outros anos.
1992
O sino responsável por findar as aulas ecoou pela escola e os alunos encheram o corredor tão rápido quanto o som se espalhara. Era o último período daquela manhã e os jovens teriam um intervalo para o almoço antes de precisarem retornar para o colégio. Luciana e sua amiga, Liane, caminhavam juntas em direção a saída. - O João Atílio vai vir me pegar pra gente ir comer espetinho ali na Treze de Maio, quer ir? O advogado era o novo namorado de Luciana, na verdade não oficialmente, ainda estavam só se conhecendo. Ela aceitou o convite e os três foram almoçar. Luciana, sempre divertida e falante, tentou puxar vários assuntos, mas a conversa não fluía. Por ele ser muito mais velho que as duas jovens, Liane sentia que não conseguia se entrosar com João Atílio. Quando ele sugeriu para Luciana que ela fizesse cirurgia plástica, como um presente dele, Liane se assustou. Isso tá estranho, pensou
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a jovem. Assim que eles acabaram de comer, João Atílio levou as duas de volta para a escola. Liane seguiu em direção a sua próxima aula, mas Luciana pegou seu material e foi embora com o namorado. Quando sentou em sua carteira, Liane começou a refletir sobre a amiga. As duas, junto com a Marcinha, que completava o trio de amigas, eram inseparáveis. Elas estudavam juntas, mas a amizade não se continha somente ao colégio, gostavam de ir para festas, passeios aos fins de semana e até viagens. Elas compartilhavam do mesmo sonho: se casar. Mas também tinham consciência do que um casamento representava e de como teriam que ter muitas responsabilidades quando virassem adultas, por isso tinham feito o pacto de aproveitarem o máximo a juventude. Até pouco tempo atrás as três tinham um relacionamento sério, mas recentemente Luciana havia rompido com Gil e logo começou a sair com João Atílio. Liane desconfiava que o advogado poderia ter sido o motivo da separação. Ela nunca tinha visto Luciana assim, tão encantada. A jovem sempre fora uma pessoa de muitas gargalhadas, era a que animava o grupo, mas perto do novo namorado Liane viu essas risadas aumentarem ainda mais. Ela conhecia os sonhos da amiga, sabia que Luciana queria uma nova vida cheia de oportunidades, era por isso que planejava fazer faculdade. Mas agora desconfiava que João Atílio poderia
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também ter descoberto isso.
Depois do dia que saíram para comer espetinho, Luciana começou a namorar sério com João Atílio. Ela parou de comparecer às festas, passeios e viagens junto às amigas, e as três acabaram se afastando. Mesmo não tão próximas, o carinho não acabou e, esporadicamente, conversavam por telefone.
O trabalho as aproximava, porque o chefe dela que havia conseguido o emprego para Luciana, mas haviam perdido o contato que fora tão próximo anos antes. Liane culpava o novo namoro da amiga, já que Luciana tinha se encantado pelo mundo de João Atílio e pela proposta de uma nova vida que ele oferecia constantemente. Ele apresentou novas pessoas, restaurantes, cidades, e não gostava de compartilhar o tempo da namorada com os outros, nem mesmo com as amigas dela. Liane ainda lembrava do último presente que João Atílio deu para Luciana, que fez com que ela ligasse em êxtase para Liane. -João Atílio disse que vai me ensinar a dirigir e pagar minha carteira de motorista - disse Luciana aos gritos na chamada. Aprender a dirigir sempre fora seu sonho, mas o salário que ela ganhava no trabalho não era o suficiente e agora ela finalmente conseguiria. Ainda que ficasse feliz com algumas dessas conquistas da amiga, que sempre fora muito sonhadora, Liane sentia uma inquietação com a
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relação dos dois e por isso sempre achava que em algum momento eles terminariam.
1996
A fazenda onde Liziane e a família passavam as férias em Marília não tinha telefone, artigo de luxo no fim da década de 1990, sobretudo para os moradores da zona rural do município. Para se comunicar com o mundo externo, era preciso ir até a fazenda vizinha, onde tinha um aparelho, ou então até a cidade. Com toda essa burocracia, era difícil falar com Luciana e, apesar de todos os primos que também estavam no local e podiam distrair Liziane, ela sentia falta da irmã. Era 31 de dezembro de 1995 e as cerca de 50 pessoas reunidas na fazenda se preparavam para a ceia de Ano Novo. Por ser um dia quente, típico do verão de final de ano, algumas das crianças resolveram tomar banho em uma represa ali perto, entre elas Liziane e Luiz Henrique, seu irmão mais novo. Dona Ana Lúcia foi acompanhar os filhos, ela estava estranha, percebeu a jovem. Quando chegaram no local, ficou ainda mais inquieta e quando Luiz Henrique entrou na água, Ana logo o mandou sair. -Senti que vou perder um filho – disse desesperada. O filho obedeceu e o grupo voltou para a casa.
Com a família muito unida e a tradição de passar juntos a virada do ano levada a sério, assim
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que deu meia-noite Liziane, seus pais, seus irmãos e alguns tios, seguiram para a cidade amontoados na Belina. Os orelhões em Marília naquela época se assemelhavam a pequenas casinhas, o aparelho era guardado por teto e duas paredes de cimento liso. Quem passasse pela rua naquele momento poderia achar a cena curiosa, uma fila de gente esperava para falar ao telefone. A ligação interurbana conectava a cidade do interior de São Paulo à capital do Mato Grosso do Sul. Para Luciana, ainda não tinha virado o ano, no fuso horário local ainda eram 23h, mas mesmo assim ela se emocionava ao falar com a família. Dona Ana Lúcia foi a última da fila. - Está tudo bem? Você bebeu? - perguntou a mãe, preocupada. - Não, mãe, eu estou aqui com o João Atílio. - Lu, eu te amo, eu te amo, tá bom. A mãe tá indo embora depois de amanhã - se despediu com a saudade apertando o peito.
A notícia chegou na manhã seguinte, por volta das 10h. Ainda confusa e em estado de choque, Liziane começou a arrumar suas malas para partir, tarefa que estava planejada para fazer só dali um dia. Ela entrou no banheiro da casa da tia e viu a cena que jamais esqueceria. A mãe estava em pé dentro do cômodo, sem vestes na parte superior do corpo. Ela estava tentando arrumar as coisas da família para irem embora, mas não conseguia completar a tarefa, estava desnorteada, sem saber
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o que fazer. - Papai, papai, o que que eu vou fazer? – Falava com o avô de Liziane - Eu perdi minha joia mais preciosa, o que eu vou fazer?
Ana Lúcia Furlan era uma mãe forte, a vida não lhe deu outra opção, por isso sempre criou os filhos com muita garra. -Sou uma boa mãe, não uma mãe boa - dizia. Com respeito, dedicação e perdão era o jeito que ela levava a vida, mais ainda, tentava mudar o mundo a seu jeito, se esforçando em passar seus ensinamentos aos filhos. Por volta dos 16 anos teve um romance com Cícero Bezerra França, a relação dos dois não deu certo, mas gerou Luciana, que nasceu em 1974. Luciana mantinha pouco contato com o pai biológico. Ele teve uma vida difícil que resultou em problemas psicológicos e gerou vícios, como o alcoolismo. A morte da filha atenuou ainda mais seu sofrimento. Pouco tempo depois da queda de Luciana, Cícero se jogou de um penhasco, de um lugar conhecido como Buracão, em Marília.
Quando teve a primeira filha, Ana era catadora no lixão da cidade, foi quando conheceu Luis. Ele era 12 anos mais velho que ela, o casamento ao passar dos anos ficou conturbado, com muitas brigas. Mas a princípio, ele decidiu ser pai, e criou a menina como filha durante toda a sua vida, na época ainda não sabia, mas ele cuidaria dela até mesmo na morte. Ele era um homem íntegro, que
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gostava de objetividade, e por isso foi direto ao ponto quando o irmão de João Atílio chegou ao sítio. - A Luciana sofreu um acidente – disse. Ele estava em Rancharia, município distante pouco mais de 100 quilômetros de Marília. Como não conseguiram avisar a família na fazenda onde estavam - nem o telefone da vizinha funcionou naquele dia - pediram a ele que fosse até o local para comunicar-lhes a perda. -Fala logo, ela morreu? – Questionou o pai. A resposta mudaria sua vida para sempre.
* Liane estava na casa do namorado quando sua sogra a chamou. -Tem alguém no telefone querendo falar com
você.
fixo. - Alô? - Disse ao pegar o fone do aparelho
- Oi Liane - Era Marcinha - Você ficou sabendo o que aconteceu com a Lu? - Saiu o resultado do vestibular? - disse com uma pontinha de esperança na voz. Luciana prestara vestibular para cursar Administração naquele ano e Liane estava torcendo pela amiga. Elas não se viam há muito tempo, toda vez que Liane ou Marcinha a chamava para sair, ela dizia que não podia, ou então até concordava, mas desmarcava em cima da hora. Agora ao telefone com Marcinha,
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ela esperava que a faculdade lhe proporcionasse novos horizontes. - Não… ela sofreu um acidente. Caiu da sacada do apartamento do João Atílio. Ela morreu, Li, estão falando que pode ter sido suicídio. Não foi suicídio, não foi. Eu conheço ela, tinha tantos sonhos, tantos projetos. Pensou Liane. Os jornais já tinham começado a noticiar a morte da amiga e a polícia não tinha achado provas que incriminasse alguém, mesmo assim a certeza de que a amiga não tinha se matado não saia da sua cabeça. Ela olhou o relógio, estava quase na hora do velório de Luciana. Sua cabeça até ficara doendo de tanto chorar e pensar no assunto. Para evitar mais sofrimento decidiu não ir à despedida fúnebre. Ela ainda conseguir ver Luciana ao fechar os olhos. Os cabelos enrolados dançando no vento, o formato de seus olhos castanhos, o som da sua risada depois de alguma piada, o toque do seu abraço. Ela carregava sua energia para onde ia e Liane não suportaria vê-la sem vida em um caixão.
* A maioria das pessoas que estavam na fazenda se dirigiu até Campo Grande, atravessando 629 quilômetros que separam os municípios. Quem desejasse fazer o trajeto nesta década, possivelmente levaria cerca de oito horas para se locomover de um ponto ao outro. Mas em 1996, os carros não
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eram potentes, as ruas não eram bem pavimentadas e as leis de trânsito não eram tão rigorosas. Só na Belina da família França tinham seis pessoas, além das bagagens. Nos carros dos outros parentes não era diferente. Não se sabe ao certo quanto tempo demoraram para fazer o trajeto, mas foi tempo demais. Quando chegaram à capital sul-ma-
Luciana aos 21 anos era vaidosa e gostava de sentir-se bonita - Arquivo Pessoal
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to-grossense, o corpo de Luciana já estava sendo velado em uma das capelas mais caras da cidade, sem que a família estivesse presente. Hoje já não existe mais, mas era localizada na segunda maior avenida da cidade. Contudo, seu Luis tinha muitos amigos na cidade e no meio da viagem deu um jeito de garantir que fosse feito exame toxicológico no corpo de Luciana antes que ela fosse enterrada. - Não vou deixar que manchem a imagem da minha filha – dissera. Mais tarde, também pagaria para que fosse feita outra perícia mais detalhada, além da que havia sido feita no dia da queda. Foi graças a essa segunda avaliação, e ao pai de Luciana que pagou por ela, que os peritos deram o veredito que a jovem não tinha se suicidado. Luis nunca se conformou com a morte dela. Além de Luciana e dos três filhos que tivera com Ana, Luis tinha outros seis quando se casou. Ele nunca permitiu que as circunstâncias o abatessem, não deixaria que a dor se transformasse em fraqueza dessa vez, precisava continuar sustentando a família. Queria transformar a dor em luta, na esperança de que se descobrisse o que havia acontecido naquela noite, faria justiça em nome da filha. Mas acima de tudo, também era respeitoso. Assim como ele era responsável pelo trabalho, fora ensinado que a esposa era responsável pelos filhos, e Ana não queria descobrir nada, só pretendia seguir a vida e deixar o passado no lugar dele, onde
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deveria ficar. Nada traria ela de volta e o ódio que ela via crescer nos filhos e no marido a preocupava, era preciso perdoar para seguir em frente. Por isso, Luis decidiu não passar por cima da vontade de uma mãe, então deixou a justiça ao acaso, da vontade dos homens, ou da vontade de Deus.
No velório, Frederico Mariano, um dos últimos a ver a jovem em vida, também não estava presente, assim como Liane. Os tios de Luciana eram geniosos, eles tinham acompanhado os irmãos de Marília até Campo Grande e precisaram ser acalmados para que não houvesse confusão no local quando viram o velório acontecendo sem a presença da família. Na realidade deles, a justiça tinha de ser feita pelas próprias mãos e a imagem de cada membro da família devia ser honrada. Mas antes que alguma coisa pudesse acontecer, a outra irmã mais nova de Luciana, Lais, começou a passar mal no meio do velório. Casada, seu marido a encontrou na capela assim que chegaram. Ele havia ficado em Campo Grande naquele fim de ano e foi a única pessoa a reconhecer o corpo da jovem, pois era o único membro da família na cidade. - Onde eu levo ela? – perguntou um tio de
Lais.
- Vamos levar ela aqui nesse ‘hospital’, que é mais perto – disse o marido de Lais. O hospital
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em questão era, na verdade, uma maternidade. Lais estava grávida de nove meses e tinha conseguido esconder a gestação de toda a família por todo aquele tempo - somente o casal sabia do bebê a caminho. Foi assim que Ana Carolina nasceu, enquanto sua tia era velada. Antes do enterro, a criança ainda não tinha fraldas, roupas, berço, ou qualquer outra coisa que um recém-nascido precisa. Mas quando os familiares chegaram em casa, a notícia do nascimento havia se espalhado e o enxoval completo foi doado por parentes e amigos que se solidarizaram com os acontecimentos na vida dos Berrocal.
*
A família foi jogada para uma nova realidade repentinamente e precisaram achar um modo de sobreviver ao sentimento de perda. Uma vida se foi e outra vida chegou, mas uma não substituía a outra. O modo como cada pessoa lidou com as circunstâncias foi diferente, a mãe de Luciana escolheu seguir em frente, ou pelo menos tentar. Ela acreditava que João Atílio não tinha envolvimento na morte da filha, então sempre freou os sentimentos de revolta contra o genro. Mas Liziane não era uma pessoa que se deixava ser contida. - Aquilo me machucou demais. A minha irmã tinha uma filha para criar, minha mãe tinha uma neta para criar e eu me perdi, porque eu não tinha
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mais a minha irmã. A revolta transformou Liziane e afetou diversos aspectos de sua vida, como o relacionamento com a mãe. As duas viviam em guerra, com uma série de divergências quanto ao posicionamento uma da outra em relação à morte de Luciana. A jovem não se dava por satisfeita em não saber por que Luciana tinha partido e todos à sua volta pareciam simplesmente aceitar. Ela não conseguia aceitar que havia perdido a irmã, que também era sua melhor amiga, que amava os animais e adorava The Cranberries. A irmã era para onde Liziane corria sempre que brigava com a mãe, mas agora Luciana se tornara o motivo do conflito, e Liziane não tinha onde se refugiar. A cada refeição, o lugar vago na mesa de jantar escancarava ainda mais a perda da família. Eram 6 cadeiras - seu Luis sentava na ponta da mesa e Luis Henrique, na outra; Dona Ana, ao lado direito do marido e Liziane, à esquerda. Luciana ficava ao lado da irmã mais nova e de frente para Lais, que sentava do outro lado da mãe. A dinâmica se alterava quando João Atílio comparecia para o almoço e ocupava a segunda posição hierárquica, ao lado do patriarca da família. Vieram novos filhos, sobrinhos e netos, mas a mesa nunca mais seria a mesma e o espaço nunca foi preenchido. - Isso influenciou muito a vida da gente. A morte muda nossa história, ainda mais quando
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é uma morte violenta, causa danos. Acredite, ela deixa muitos órfãos. Uma pessoa quando perde o pai e a mãe é órfão, quando perde o marido é viúva, uma mãe que perde um filho não tem nem definição, ela fica sem pronome definido. A família nunca mais é a mesma, quando é vítima da violência, nunca mais - vinte e cinco anos depois, o sentimento de revolta em Liziane ainda não passou. Hoje com 40 anos, é casada e tem uma filha de quatro anos, e possui duas graduações, a primeira em Jornalismo, pela Universidade Católica Dom Bosco, e a segunda em Direito pela FCG Facsul. Ela não atua como advogada, mas exerce seus conhecimentos em seu dia a dia como jornalista. Sua carreira é movida por duas paixões que se complementam: a internet e o jornalismo político, especialmente o eleitoral. - Sempre brinco que se tiver eleição para líder de sala, nós estamos lá fazendo campanha - Ela se especializou em comunicação política, marketing digital e redes sociais, com isso, criou uma empresa de consultoria. Na rotina da assessoria política, Liziane raramente encontra outras mulheres ocupando o mesmo cargo que o seu, ou mesmo entre os contratantes, como candidatas. No trabalho que desenvolveu em 2018, na campanha de um candidato para governador do estado de Mato Grosso do Sul, era a única representante do sexo feminino em meio a 60 homens.
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- Era engraçado que o candidato questionava “Cadê a menina? Chama lá a menina, eu quero a menina. A menina sabe como fazer” Eu não tinha nem nome, eu era “a menina” – diz entre risadas - Eu gostei também, porque em quase 40 anos sendo chamada de menina, então fiquei feliz, mas era muito engraçado. Só que, por outro lado, a gente ganha menos, e o poder de mando também é menor. Então você tem, de alguma forma, que ir se masculinizando ou tomando algumas medidas. Porque, por exemplo, se um chefe homem chega e grita com a equipe, ele é forte. Se uma chefe mulher faz a mesma coisa, ela é doida. O candidato que briga com a equipe, ele passa despercebido, já a candidata mulher está histérica, de TPM.
Além da consultoria a figuras políticas, Liziane divide seu tempo em outra empresa, o veículo online de jornalismo A Onça. - O site foi criado justamente para que eu tivesse uma certa independência profissional, porque eu sempre passei por alguns perrengues, como ser demitida por questões políticas, e aí eu fui e criei A Onça. Diferente de outros meios da cidade, o jornal é caracterizado por uma linguagem ácida acerca dos fatos, estilo de escrita que Liziane também leva para suas redes sociais. Em uma cidade que ela define como conservadora, as publicações da jornalista causam polêmica na internet. Seu perfil pes-
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soal no Instagram tem mais de 14 mil seguidores, e a página do jornal no Facebook conta 8 mil curtidas. As publicações geram debates tão acalorados que algumas já renderam processo para Liziane. - Não tem um dia que não tenha um xingamento, um ataque, em especial ao machismo, a gordofobia e a misoginia. A internet é um ambiente bastante covarde, é um celeiro de falsos corajosos, mas eu comecei a dar porrada e me defender. Respondo processo por briga na internet, mas não estou nem aí. Apesar disso, assuntos particulares de Liziane ficam no privado. Por amar o mundo virtual, ela criou redes colaborativas para compartilhar solidariedade. Em grupos fechados no Facebook, arrecada recursos para ajudar grávidas em situação de vulnerabilidade que não possuem condições de realizarem exames médicos, além de ajudarem famílias com cestas básicas e consultas de emergência. Foi a forma encontrada por ela de fazer da internet um ambiente de amparo, e não apenas de ataques. - Eu uso o jornalismo justamente para resolver essas questões. É um instrumento de transformação social, então uma das coisas que pratico, é o site como espaço para um pequeno empreendedor, para mãe empreendedora, mães solos. Na minha vida em geral só contrato mulher, e que seja, de preferência, de alguma minoria. Antes de ser empreendedora, trabalhou
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como faxineira, atendente de telemarketing, vendedora e até professora. O único cargo que não ocupou foi o de desistência. O trauma causado em sua adolescência ainda insiste em se abrigar na vida de Liziane. Quando Luciana partiu, a família selou um pacto mudo de não tocar no assunto que causava tanta dor. O amor que sentiam por Luciana, que ao mesmo tempo os deixavam mais próximos da jovem, se tornou um luto que a sufoca até hoje. Cada memória, mesmo que feliz, como os almoços de domingo, as risadas despretensiosas, as roupas que ainda tinham seu cheiro, foi pintada com um traço de tristeza. Porque cada momento bom vinha com um lembrete de que eles não se repetiriam, seguido do sentimento de injustiça, da raiva presente em cada “e se”. E se Luciana não tivesse conhecido João Atílio? E se ela tivesse ido passar o Réveillon com a família? E se a morte dela pudesse ter sido evitada? Nada traria ela de volta, a raiva e a sede por justiça não traria ela de volta, mas a passividade e aceitação também não. Nada é capaz de calar o luto, o sentimento de perda está presente em uma manhã de sol ensolarada que traz à memória um momento de risadas, ao tocar uma música no rádio que já foi trilha sonora de um karaokê improvisado na sala, ao despertar no meio da noite e ser traído pela própria mente, que o faz esquecer da realidade e achar que tudo não passou de um pesadelo. Nada é capaz de calar o
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luto, nem mesmo 25 anos de vida. - A gente vive a vida inteira sem uma resposta, de um laudo inconclusivo, onde ninguém nunca respondeu nada. Existe crime perfeito? Acho que sim, porque alguém matou minha irmã, seja de queda acidental, seja de corpo inerte, suicídio não foi. Então essa lacuna nunca foi preenchida. Aí as pessoas me falam que eu tenho que esquecer e perdoar, mas quem perdoa é Deus. Remoer eu não vou, mas esquecer também não. Jamais, nunca, nunca mesmo. A breve vida de Luciana foi eternizada pelas memórias que deixou, mas Liziane nunca tinha tido coragem de compartilhá-las com o mundo, nem com seus milhares de seguidores, sendo necessárias mais de duas décadas para que isso mudasse. Já passava da meia-noite de 1° de janeiro de 2020 quando o sentimento de melancolia tomou conta da jornalista. Ela estava na casa da sua irmã, Lais, e sentiu que os pensamentos precisavam se tornar palavras. - O que você tanto escreve aí? - perguntou
Laís.
- Um negócio - Liziane não queria ser repreendida, então não contou para a irmã, só deixou que os sentimentos fossem extraídos através de suas mãos. Com o bloco de notas do celular aberto em suas mãos, pôde ler o que tinha ficado por tanto tempo guardado. De repente viu que estava
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pronta para contar para o mundo a história de Luciana, então abriu seu perfil no Facebook e publicou. - Foi a forma que encontrei de me libertar de mim mesma. Porque o luto é como um espinho na carne, é a mesma coisa que ficar com uma farpa no dedo. A diferença é que a gente consegue tirar a farpa, o luto não consegue, ele fica lá. Quando apertou o botão, quebrou a regra familiar de nunca tocar no assunto, mas ao mesmo
Foto de Luciana usada por Liziane em sua publicação no Facebook - Arquivo Pessoal
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tempo, um sentimento de liberdade a invadiu e foi como se soltasse um suspiro que nem sabia que estava guardado. Não se calaria mais, não esconderia a revolta para dentro de si. Por muito tempo Liziane se preocupou com a opinião das outras pessoas sobre ela, caso falasse o que pensava sobre a morte de Luciana, principalmente a de Fred e João Atílio. Por isso sempre tratou o assunto com muito cuidado e na maioria das vezes, não falava nada. - Me perguntaram se eu tinha medo de processo quando publiquei aquilo. Mas o pior de tudo eu já enfrentei: eu perder ela, nunca ter visto a justiça acontecer, nunca ter visto uma resposta. Isso já era o pior, não tinha nada pior para acontecer. Eu pensava no que iriam pensar, no que João Atílio iria pensar. Mas hoje eu digo o mais sincero foda-se para o que vão pensar, porque se minha irmã não tivesse morrido minha vida teria sido muito diferente, se não tivessem tirado ela de mim da maneira que ela foi tirada. Seja pelo caso intrigante, pela forma que a jornalista sabe usar as palavras, ou pelo sentimento de revolta que aflora em qualquer um que conheça a história, a publicação despertou interesse de muitas pessoas de todo o Brasil. Em um grupo fechado no Facebook, destinado a casos policiais e de suspense, chegou a ter mais de 5 mil interações. Uma delas foi a de Frederico, sobrinho do ex-namorado da irmã, que enviou uma mensagem di-
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zendo que estava à disposição para conversar se Liziane assim o quisesse, mas ele nunca obteve resposta. - Minha psicóloga me aconselhou a não falar com ele. Nada do que ele me falar vai mudar o curso da história, então não vai me ajudar. Aí eu já não aceitei mais falar com ele, e ele só entrou em contato comigo porque essa publicação que eu fiz rodou o Brasil. Foi só por isso. A irmã de Luciana não o conhecia na época, já que ele morava em outra cidade e não tinha contato com a família da namorada do tio. Mas João Atílio, por outro lado, convivia com Liziane e a encantava sempre presenteando-a. No seu aniversário de 15 anos, pouco tempo antes da queda, ela ganhou até garrafas de tequila e vinho importados dele.
- Era uma pessoa querida na nossa casa. Tanto que quando minha irmã morreu, em nenhum momento minha mãe deixou alguém acusar ele. De tão querido que ele era, ela acreditou. Enquanto pôde, Ana Lucia manteve contato com o ex-genro e fez os filhos manterem também. Por pelo menos dez anos eles cultivaram relações de respeito e civilidade, que se perdeu com o passar do tempo, como qualquer outra relação que não fizesse mais sentido. Depois da morte da filha, Ana desenvolveu problemas de compra compulsiva, que acarretaram na perda das economias
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do marido. Mas ela se agarrou na fé e passou a ler livros de espiritualidade, com o coração sempre aberto para o perdão. Seu Luis e dona Ana morreram antes de saber o que aconteceu, de fato, naquela noite. No dia 22 de outubro de 2014, a mãe de Luciana faleceu aos 57 anos, em decorrência de complicações causadas por um câncer de intestino. Quatro anos depois, se foi o pai, em 23 de março de 2018. Aos 73 anos, ele sofria de Alzheimer, Mal de Parkinson e diabetes. Liziane conseguiu superar a morte dos pais e dos avós, mas nunca superou o luto pela irmã. Há 25 anos ela pensa todos os dias em Luciana. O fato de nunca terem descoberto o que aconteceu naquele Réveillon a assombra até hoje, a dúvida não permite que o ciclo se encerre. - Essa conta não fecha há 25 anos, ela nunca fechou e eu vou morrer e essa conta não vai fechar. “Ah, mas já passou tanto tempo”. Não tente mensurar a dor do outro, a dor do outro não é sua. Isso, invés de transformar numa derrota, eu transformei num modo de sobrevivência. Tento sobreviver da melhor forma possível, tratando as pessoas da melhor forma possível, porque eu nunca vou saber qual é a dor do outro. Ana Carolina, o bebê esperança, tem agora 25 anos e é mãe. Além da Carol, Lais tem mais dois filhos, João, de 23 anos, e Pedro, de 10. Ela continua casada e tem graduação em enfermagem, mas trabalha em cargo público administrativo. Luiz Hen-
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rique seguiu os caminhos do pai e continuou no ramo da reciclagem, e também tem dois filhos, um de 12 anos e outro de quatro meses. Nenhum dos dois gostam de comentar sobre a morte da irmã.
Amilcar da Serra e Silva Netto é um perito
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