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O quarto poder

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Introdução

Introdução

O ambiente no apartamento de João Atílio não dava indícios de que houvera algum tipo de luta no local. O jogo de cadeiras de madeira da índia na varanda, de onde Luciana caiu, estavam alinhadas e não foi encontrado vestígios de sangue no local, pelo menos não a olho nú, mas os peritos não tinham equipamentos capazes de identificar vestígios de sangue em superfícies já limpas. Também é preciso lembrar que João ficou sozinho no apartamento do momento em que Luciana caiu até a hora que o delegado resolveu subir até a residência. Outro ponto bastante enfatizado pelo perito Amilcar foi de que, em casos de suicídio de onde a pessoa se joga de grandes alturas, ela tende a escolher o ponto em que vai cair. Mesmo tendo como objetivo a morte, inconscientemente a tendência é a escolha de um local aberto, sem obstáculos entre o ponto inicial e o chão. Não foi o caso de Luciana, que bateu primeiro no teto da guarita antes de chegar ao solo. - No subconsciente, a pessoa acha que ainda vai se machucar muito, então escolhe um lugar limpo, um gramado, uma calçada, alguma coisa desse tipo. Ali, aparentemente ela escolheu um lugar possível, mas na hora de cair ela tinha uma opção bem melhor. Caso ela tivesse pulado, pelo que a gente calculou, seria próximo da guarita, ela saberia que iria cair ali em cima e ia bater na guarita. Isso aí não é natural, o mais natural seria ela escolher um outro lado que cairia na área livre, sem nada que interrompesse a queda - disse Amilcar.

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Another world Wrapped up inside another place And I hope, and I pray That the pain goes away -Away, The Cranberries

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As finanças do jovem casal Luis Carlos Berrocal e Ana Lúcia Furlan Berrocal não estavam indo bem na cidade onde moravam, Marília, no interior paulista. A situação piorava com quatro filhos para alimentar em casa. Por isso, Luis Carlos tomara uma decisão ao escutar comentários sobre uma terra distante, mais ao centro do país, que estava prosperando. - Estão ganhando dinheiro no Mato Grosso, lá tá crescendo, é lá que o dinheiro tá. Na verdade, o Mato Grosso em questão se tratava de Mato Grosso do Sul. Se atualmente as pessoas ainda têm o costume de confundir o nome dos dois estados, nos anos 80, quando a divisão ainda era recente, a confusão era ainda maior. Mas foi assim que o patriarca foi parar na cidade que mudaria para sempre suas vidas. Ele foi sozinho conhecer o estado e voltou para Marília só para buscar o resto da família. O caminhão onde Luis trabalhava virou cenário da mudança e transportou em sua carroceria o casal, os quatro filhos e a cadela, Lica, por 14 horas de viagem. Em Campo Grande, Luis Carlos investiu no ramo da reciclagem, foi quando as coisas passaram a dar certo e o ferro velho se tornou o sustento da família, que nunca mais voltou para o estado de São Paulo.

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Chamada da matéria sobre a morte de Luciana na capa do Correio do Estado em 4 de janeiro de 1996 - Reprodução

- Não é que a gente não quis ir embora, é que a gente construiu a vida aqui, não tinha o que fazer - disse a mais nova das irmãs mulheres da família, Liziane - Hoje eu não vou sair daqui, onde eu tenho tudo, e vou embora, de jeito nenhum. A vida no jornalismo que Liziane construiu em Campo Grande foi motivada pela morte da irmã. Por ser um caso impactante, a história da menina que caiu do edifício chique da cidade ganhou destaque nas capas dos jornais impressos e nas telas das TVs campo-grandenses. Mesmo sendo uma capital, o município era muito afastado dos grandes centros, onde o jornalismo já estava mais desenvolvido, como São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. O conceito de modernidade ainda estava longe da cidade grande

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com cara de interior, na verdade um estado inteiro interiorano, que foi governado na maior parte de sua vida por ruralistas. As mulheres tinham recém conseguido ocupar seus postos nas redações, em editorias como cultura e cidades, mas as matérias continuavam sendo redigidas majoritariamente por mãos masculinas e as histórias contadas pelas visões de seus donos. Essa ainda é, pelo menos em partes, a realidade da categoria local, mas a globalização e a tecnologia facilitaram o processo de apuração e checagem dos fatos e conseguiram amenizar as “cabeçadas” nas reportagens. O que o tempo não consegue mudar é o fato de que uma matéria começa a ser construída muito antes do momento em que um jornalista coloca as palavras no papel. A forma como uma história será contada depende do meio em que chegou até o repórter, ela já é relatada com a impressão pessoal da fonte - seja de um familiar, uma testemunha, ou um policial; da experiência e bagagem pessoal do jornalista; dos elementos que compõem a cena dos fatos; do posicionamento editorial da empresa da qual ele pertence; do modo que os veículos concorrentes trataram o assunto; da quantidade de tempo ou espaço concedido para a confecção da reportagem; das pautas sociais em discussão naquele recorte de tempo; e talvez ainda, do próprio humor do repórter ou do editor do dia. A imparcialidade no jornalismo é um grande jogo ao acaso. E naquela manhã de janeiro de 1996, quando os responsáveis pela

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Primeira reportagem publicada pelo jornal sobre a morte de Luciana - Reprodução

editoria de polícia chegaram à delegacia depois de um recesso ainda com gostinho de ressaca para ver os boletins de ocorrências dos dias anteriores, a sorte de Luciana foi lançada quando eles se depararam com uma história que renderia assunto, e não apenas brigas de bêbados no trânsito. Havia dois jornais impressos na cidade, o Correio do Estado e o Diário da Serra, chefiados pelo mesmo empresário. Destes, somente o primeiro ainda

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Na segunda reportagem, o caso ganhou mais destaque na capa do Correio do Estado em 8 de janeiro de 1996 - Reprodução

circula, enquanto o outro foi fechado anos depois e grande parte dos arquivos foram perdidos. O jornal noticiou pela primeira vez a queda no dia 4 de janeiro, uma chamada tímida no canto inferior esquerdo dizia “Polícia acha que estudante não se suicidou”, no abre da página 27, o título era “Polícia descarta possibilidade de a estudante ter cometido suicídio”. A matéria não é assinada.

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[...] Conforme informações extra-oficiais, caso Luciana Cristina tivesse cometido suicídio, seu corpo deveria cair ou sobre as árvores que existem na frente do prédio ou na calçada. Isto porque segundo alguns policiais experientes, a garota teria impulsionado o corpo no momento em que pulou. Como ela caiu no hall, não houve qualquer impulso. Restam, portanto, as hipóteses dela ter sido empurrada ou despencado após sofrer algum mal súbito. Mesmo assim, a última hipótese vem sendo tratada com reservas, mesmo porque caso ela tivesse desmaiado, seria grande a possibilidade de ter caído no piso do apartamento. O advogado João Atílio Mariano, bem como seu sobrinho menor de idade, já prestou depoimento à delegada Vilma Fátima de Carvalho, do 1º DP, que comanda as investigações a respeito do caso. [...] O advogado, ao olhar pela janela, disse ter visto o corpo, coberto por um lençol amarelo. Após isso, garantiu, entrou em estado de choque e disse não se lembrar de mais nada. Ele disse não se recordar, por exemplo, de que o zelador do prédio, Ricardo de Lima, lhe telefonou avisando-o de que a garota havia morrido. João Atílio, após ter sido informado da tragédia nem sequer desceu ao hall para verificar a situação. Alguns aspectos do depoimento do advogado chamam a atenção da polícia. Um deles é o fato dele ter visto o corpo da

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Repórteres foram ao Edifício Comodoro cobrir a Reprodução Simulada feita pela perícia no dia 6 de janeiro; reportagem foi publicada no dia 8 daquele mês

namorada coberto com um tecido amarelo. Do 19º andar, de madrugada, numa altura de mais de 60 metros, é muito remota a possibilidade de qualquer pessoa conseguir enxergar o hall do edifício. No local não existe qualquer iluminação, conforme contou o zelador, ontem, ao prestar depoimento. Além disso, o te-

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cido foi colocado sobre o corpo da estudante, por alguns moradores, cerca de 10 minutos após ter ocorrido a tragédia.

No dia 8 de janeiro, a chamada ganhou mais destaque e apareceu no canto inferior esquerdo, abaixo de uma foto do Edifício Comodoro: “Estudante pode ter sido jogada já sem vida”. Desta vez na página 4, o título do abre era “Investigações sobre a morte da estudante podem ter novo rumo”. Outra vez, a matéria não foi assinada.

A reconstituição da morte da estudante Luciana Cristina Bezerra França, de 22 anos, na manhã de sábado passado no Edifício Comodoro, na Capital, poderá mudar o rumo das investigações comandadas pela delegada Vilma Fátima de Carvalho, do 1º DP. Agora, surgiu a possibilidade de a vítima ter sido morta antes de despencar do 19º andar do prédio, numa simulação de suicídio ou queda acidental. [...] Sete tentativas foram realizadas, simulando queda provocada ou acidental, em duas horas e meia de reconstituição. A quadra onde está instalado o edifício foi interditada pela Polícia Civil. A possibilidade de a garota ter sido morta e em seguida atirada pela janela, foi levantada pelos peritos. No entanto, as causas que levaram a essa possibilidade não foram informadas à imprensa. O perito Amilcar da Serra,

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que comandou os trabalhos, disse que irá analisar atentamente duas simulações da queda. Não quis adiantar quais das sete tentativas irão merecer especial atenção. [...] O pedido de realização de exame toxicológico foi feito pelo pai da garota, Luis Carlos Berrocal, que não acredita na hipótese de a estudante ter cometido suicídio. Existe a possibilidade de a estudante ter consumido drogas e morrido acidentalmente, ao cair pela janela, ou jogada, já após ter morrido em consequência do uso de entorpecentes. Esta última hipótese poderia ter ocorrido para a simulação do suicídio. O advogado João Atílio Maria, namorado de Luciana Cristina, esteve no prédio na manhã de sábado. No entanto, ele não quis conversar com a imprensa [...]

- A morte da minha irmã foi uma das coisas que fez eu decidir ser jornalista, pra fazer diferente. Na época, um jornalista chamado Sionei Leão, que depois quase foi meu professor na faculdade, fez uma matéria muito machista, muito misógina, muito horrível. E não tinha internet, não tinha nada, era só a capa do Correio do Estado e do Diário da Serra, e aquilo me machucou demais. Eu ouvi dentro do ônibus, passando na avenida Mato Grosso, de onde dava para ver o Edifício Comodoro, uma pessoa falando “a menina que foi jogada de lá de cima era garota de programa, o jornal falou”. Aquilo acabou comigo.

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Antes de ser jornalista, Sionei Ricardo Leão foi militar do Exército Brasileiro. Sentou praça em Campinas, interior de São Paulo, onde também iniciou os estudos de jornalismo na PUC-Campinas. De dia cumpria suas obrigações no quartel e de noite, a batalha era com os livros. Em 1990 ele já havia sido soldado, cabo e naquele ano atuava como sargento temporário, foi quando foi aprovado para fazer um curso para ingressar nos quadros da carreira, por meio da Escola de Administração do Exército, em Salvador, na Bahia.

No tempo em que ficou em solo soteropolitano precisou trancar os estudos sobre jornalismo. Um ano depois foi transferido para Campo Grande e o novo serviço o permitiu se matricular no curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, no período noturno. Entre uma aula e outra, começou a se envolver com o Movimento Social Negro. Pegou logo gosto pela militância, reconheceu a própria dor e revolta nos rostos de outros alunos ativistas e decidiu que era uma causa pela qual precisava lutar. Chegou a ser preso duas vezes pelo Exército, quando seus princípios começaram a divergir das regras impostas pelo quartel. Teve de tomar uma decisão muito difícil - ou continuava a carreira, ou mantinha os ideais políticos e sociais. Sua história de vida não o deixou fazer outra

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escolha, largou a carreira militar, no mesmo ano em que se formou jornalista, entre os anos de 1996 e 1997. A decisão foi sofrida, mas Sionei se recuperou no ramo da comunicação. Assim que se formou, ingressou como produtor na TV Educativa e depois foi para a TV Bandeirantes.

Mas ficou pouco tempo no telejornalismo e logo foi contratado para trabalhar no Diário da Serra, onde permaneceu até o fechamento do jornal. Campo Grande sempre teve dois jornais diários disputando os leitores. Nesse contexto foi fundada a Folha do Povo, em 1999, que passou a ser o jornal concorrente do Correio do Estado. Sionei fez parte da equipe pioneira dessa redação. Depois de cerca de um ano, já no século 21, foi convidado para trabalhar no veículo concorrente. Nesta mesma época, era correspondente do Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, e fazia bicos para a Revista Raça, que circula até hoje. Também iniciou na carreira acadêmica e deu aulas para o ensino superior. Seus trabalhos nos veículos de tiragem nacional fizeram sua luta pela igualdade racial ser reconhecida além das fronteiras sul-mato-grossenses, e em 2003 foi chamado para fazer parte da assessoria de comunicação da então ministra da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro. Atualmente com 55 anos, ainda permanece no Distrito Federal, onde mora com a esposa e a filha, e trabalha na assessoria do Ministério da

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Justiça e Segurança Pública. - Eu não estava no Diário da Serra em 1996. Devo ter ido para lá em 1998, mais ou menos. Essa matéria deve ser posterior, porque aquele texto que me mandou, eu não me reconheço nele, não foi eu que fiz - disse Sionei a respeito da cobertura midiática no caso Luciana. Enviei as matérias que encontrei no arquivo do Correio do Estado para ele, mas o jornalista disse que não foi ele que as escreveu. Como as matérias não eram assinadas, e não consegui acesso aos arquivos de 1996 do extinto Diário da Serra, não foi possível encontrar a reportagem a que Liziane se referiu. - Aquele texto era do Correio do Estado, né? Com certeza não fui eu que redigi.

Após conversar com Sionei, perguntei a Liziane se as matérias poderiam ser de uma data posterior, como um texto que relembrasse o caso, mas a irmã negou.

- Foi no mesmo ano em que ela morreu. Ele nem vai lembrar, mas foi naquela mesma época, foi no Correio e eu lembro bem.

Depois de 25 anos, fica difícil confiar na memória. Depois de ler antigas reportagens, Sionei se intrigou com a queda sem solução de Luciana, mesmo não recordando do caso. Ele cobriu por muitos anos

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a editoria de polícia, por isso lidava diariamente com crimes, homicídios, assassinatos e tragédias. Os anos de experiência o ensinaram uma coisa: a Polícia Civil brasileira tem, sim, capacidade de resolver mistérios. - Eu aprendi a respeitar muito a Polícia Civil. Pelo que eu via, ela tem essa questão da inteligência, da investigação, então os policiais têm muita técnica, muito conhecimento para investigar e conseguir resolver o crime. Raramente um crime que a polícia tem interesse acaba sem solução, porque ela sabe como fazer. Resta entender porque esse crime está insolúvel até hoje, quais são as dificuldades. Vamos comparar, um exemplo bem distante, o caso Marielle. Dizem que não se resolve por interesse políticos, tem alguma coisa barrando. Não sei se é esse o caso da Luciana, mas a Polícia Civil é muito capacitada para resolver o caso, aqueles que se tornam prioritários, costumeiramente são resolvidos. Pelo que eu vivi, é o que eu posso dizer.

A princípio, a editoria de polícia não era o principal interesse de Sionei, que costumava cobrir cidades. Sua história cruzou com a dos crimes campo-grandenses por uma outra questão: o repórter responsável se demitiu e ficou uma vaga aberta. Entre os disponíveis para preencher a lacuna, Sionei era o único homem, por isso voltou para o mundo do combate ao crime, mas desta vez sob outra perspectiva.

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- Eu conhecia bastante gente de vários movimentos sociais, da defesa da mulher, dos meninos de rua, indígenas. Então tinha essa convivência bem forte, por isso eu formei um pensamento sobre esses temas, tinha um idealismo sobre isso. A gente tem ideia do jornalista como uma pessoa de cabeça aberta, mas nem sempre é assim. Nem todo jornalista é de vanguarda. É mesclado, têm pessoas conservadoras, progressistas, machistas, é um fato. Não é necessariamente um ambiente ideal e acho que esse ambiente ideal não existe, qualquer ambiente reproduz, de certa forma, o que nossa sociedade é. Assim que começou a trabalhar no Diário da Serra, Sionei ouviu boatos sobre o antigo editor chefe da redação. Os outros repórteres comentavam entre uma pauta e outra, no intervalo para o cafézinho, que o antigo responsável pela redação costuma assediar as jornalistas mulheres da equipe. Nunca foi provado nada, mas os relatos também nunca cessaram. - Então não é de se espantar ter relatos de machismo. Agora, até que medida isso pode influenciar no texto que alguém escreve? Porque no jornalismo é assim, o repórter faz, aí tem o revisor, o editor, o editor chefe, várias pessoas leem e isso acaba sendo um filtro e melhora a qualidade do texto. Mesmo assim as redações não estão livres de ter problemas de machismo, racismo, mas eu faço essa defesa por outro lado, pela forma que se constrói o jornalismo acaba minimizando essas tendên-

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cias individuais para uma questão mais profissional e mais adequada, acho que o jornalismo talvez funcione melhor por causa dessa metodologia, dessa prática. Mesmo depois de muitos anos morando em Brasília, Sionei ainda sente falta de Campo Grande. As ruas arborizadas e a culinária local encantavam o paulista. O mesmo aconteceu com os irmãos Berrocal, que cresceram em terra sul-mato-grossense e se acostumaram com os dias quentes na maior parte do ano com a água gelada do tereré para se refrescar.

De acordo com Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1996, Campo Grande tinha 600.069 habitantes. Em estimativa do Instituto feita em 2020, a cidade somava 906.092 pessoas. Foram mais de 300 mil novos moradores em 24 anos. A cidade tem uma característica única que atrai famílias dispostas a largar a agitação dos grandes centros, mas ao mesmo tempo, que não conseguem se acostumar com a ideia de ir morar num lugar onde franquias e empresas multinacionais ainda não chegaram. No centro da cidade, é possível reconhecê-la como capital, mas ao adentrar os bairros que pulsam nas periferias, o cenário que predomina é o dos moradores andando em suas bicicletas, os cachorros vira-latas tirando um cochilo no meio da rua, grupos

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de idosos jogando baralho no boteco da esquina, e as donas de casa tomando tereré em frente às suas casas ao entardecer. Mas como em qualquer outro território, as classes sociais são demarcadas geograficamente. A classe média se acomoda em bairros bem localizados, enquanto os ricos se escondem em seus condomínios luxuosos. Neste público, são dois tipos de moradias, as habitações em regiões afastadas da cidade, consideradas áreas nobres, e os prédios que se erguem exuberantes no coração da capital, mostrando toda sua pomposidade para quem só tem recursos suficientes para avistá-los de longe.

Entre eles está o Edifício Comodoro, que fica no Centro, na divisa com o bairro Jardim dos Estados. Apesar de ser uma estrutura antiga, os 19 andares do prédio não envelheceram mal. O segredo da juventude são as boas condições financeiras, provenientes da alta taxa cobrada aos moradores que o condomínio possui. Quem desejar acordar todos os dias e avistar a cidade do alto de uma sacada larga e espaçosa, em um apartamento com quatro suítes, três vagas na garagem, hidromassagem, sauna, academia e quarto para empregada, O laudo pericial guardado por tanto tempo, exatos 26 anos, nos armários do perito Amilcar carrega ainda uma informação no mínimo intrigante para o desenrolar da história que se passou no 19º

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tudo isso sem se preocupar com barulho de vizinhos, já que é uma moradia por andar, vai precisar desembolsar cerca de R$ 1,6 milhão na compra do imóvel. A área útil de cada apartamento é de 394 m², há terrenos à venda na cidade com o mesmo tamanho. Para manter as regalias que o condomínio proporciona, terá que pagar a taxa de R$ 2,5 mil por mês, como lembra um anúncio de um dos apartamentos. Assim como este, a venda de diversos imóveis são divulgadas na internet, com fotos que mostram cômodos espaçosos com móveis antigos planejados, transparecendo o ar de quem já atingiu seu auge e segue em direção ao declínio.

Visitei o edifício em setembro de 2020. A fachada e toda estrutura frontal do prédio, o lugar onde o corpo de Luciana foi encontrado, passavam por reforma. A rua é bem movimentada, quase não havia lugar para que carros estacionem. A vizinhança tem o tipo de estabelecimentos que qualquer morador deseja, em poucos minutos é possível acessar farmácia, mercado, escola, parque com área esportiva e diversas lojas. Em razão das obras, a guarita estava vazia e os moradores entravam e saiam somente em seus carros, em um portão na

Recorte jornalístico arquivado junto ao laudo da perícia - Reprodução

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lateral direita do edifício. O dia estava nublado e quente, beirando os 40 ºC, e o céu esfumaçado pelas queimadas do Pantanal que dizimaram parte do bioma naquele ano. Me esgueirei por uma entrada reservada para os trabalhadores, entre os tapumes de madeira, e chamei pelo zelador. José Melquides foi quem me atendeu, de maneira muito simpática e solícita. Ele trabalhava lá há pouco tempo, cerca de um ano, e não poderia me ajudar com o caso de Luciana. Ele ouviu a respeito da queda, mas só nas entrelinhas, nunca o contaram diretamente sobre o caso que manchou a imagem do condomínio luxuoso na época. De acordo com Melquides, os responsáveis pelo local responderam à ação judicial. O síndico e porteiro que presenciaram a fatídica noite do Réveillon de 1996 não trabalham mais no lugar, além disso, somente dois moradores atuais habitavam o prédio na época. Nenhum deles gosta de falar sobre o assunto e os dois não passaram a virada em casa naquele ano, sem testemunhar o caso. Todas essas informações o funcionário descobriu aos poucos, em conversas distintas, já que nenhuma orientação foi passada e nenhuma conversa oficial foi proferida. A morte de Luciana se tornou um tabu, raramente comentada em conversas entre moradores. - Vou olhar os documentos no arquivo do condomínio, para ver se acho alguma coisa para

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te ajudar. Anota meu número aí, meu nome é José M-E-L-Q-U-I-D-E-S, escreve certo se não eu não te ajudo hein - disse o zelador, que se despediu dese-jando boa sorte. Dois dias depois, Melquides lamentou, por telefone, que somente arquivos dos últimos cinco anos são guardados e que não poderia ajudar mais. A morte de Luciana foi um acontecimento marcante para a cidade, estampando os principais jornais, e ainda é lembrado por moradores mais antigos de Campo Grande. Registros judiciais de um caso tão impactante na história de um condomínio, curiosamente, não foram guardados.

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