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Prólogo

Na noite de 31 de dezembro de 1995, quando toda sua família e o restante da cidade se arrumavam para comemorar a virada do ano, Ricardo de Lima, de 38 anos, se preparava para mais uma jornada de trabalho. Havia conseguido o emprego de porteiro há três anos, o turno da meia noite às 6h a princípio lhe deixou apreensivo, mas nesta altura já estava acostumado. Apesar de ter que trabalhar em uma data festiva, precisava do dinheiro ao fim do mês e o horário ainda o permitia complementar a renda com atividades alternativas. Como era noite de Réveillon precisaria iniciar seu turno meia hora mais cedo. Assim, às 23h deu um beijo em sua esposa e saiu em direção ao Edifício Comodoro. No caminho, passou por diversas pessoas reunidas esperando o relógio marcar meia noite para comemorarem o início de um novo ciclo.

Quando chegou ao prédio, às 23h30, encontrou seus colegas Antônio e Raimundo, que dividiriam a noite de trabalho com ele. Antônio trabalhava ali há pouco tempo, Ricardo ainda não o conhecia tão bem. O homem de 40 anos tinha um turno maior, das 18h às 6h e presenciou o início de uma festa no salão social do condomínio. - Começou por volta das 21h30, tem só uns quatro casais com seus filhos - informou Antônio

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a Ricardo. O porteiro se surpreendeu, já que a comemoração não foi avisada com antecedência, mas como seu dever era ficar na portaria cuidando do fluxo de pessoas na entrada do prédio, não foi até o local. Meia hora depois, estava distraído olhando a rua quando se assustou com o barulho de fogos de artifícios, o som vinha do salão de festas, só assim percebeu que o ano de 1995 havia ficado para trás. Seus colegas de trabalho apareceram para desejar-lhe feliz ano novo e Antônio aproveitou para comentar sobre a festa. - Serviram só bebida cara, whisky, champanhe, até uns salgadinhos. Estouraram um monte de bombinhas e fogos de artifício, você ouviu? Vai sobrar pra gente limpar. E assim aconteceu, por volta das 2h, quando o último casal finalmente decidiu abandonar o salão de festas, Ricardo, Antonio e Raimundo começaram a recolher o que sobrara dos fogos de artifícios estourados, o vento havia espalhado a sujeira, tornando o processo mais demorado. Já estavam ali há alguns minutos quando um grande estondro cortou o silêncio da madrugada, assustando-os. Ricardo olhou para os colegas, desnorteado, e em seguida para a guarita onde tinha permanecido durante toda aquela noite. Um corpo jazia na entrada do prédio. Antônio e Raimundo se aproximaram, mas Ricardo ficou onde estava, o choque

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paralisando suas pernas. - Não dá para saber se é um adulto ou uma criança - disse Antônio - Alguém chama a polícia. Foi quando dona Janete, uma das poucas moradoras que não tinha deixado o condomínio na virada do ano, irrompeu na portaria perguntando o que havia acontecido. - Ouvimos um barulho muito alto, minha filha foi até a sacada para ver o que tinha acontecido e viu um corpo no chão - explicou. Ela trazia uma pilha de jornais para cobrir a pessoa já sem vida no local. Os funcionários tentaram cobrir a cena, mas o vento, que mais cedo espalhara vestígios de um momento alegre, agora não permitia que a tragédia fosse encoberta, como se obrigasse os presentes a testemunhar a triste cena. Em silêncio, dona Janete virou de costas e retornou pelo mesmo caminho de onde viera. Minutos depois, a mulher voltou com um tecido laranjado nas mãos, quando ela o estendeu, Ricardo viu que era um lençol. O porteiro ainda tentava assimilar a situação observando os colegas escondendo o corpo dilacerado, o que havia acontecido? A pessoa, adulto ou criança, se jogara da sacada? Se desequilibrou e caiu? E se assim aconteceu, o que havia motivado o desequilíbrio? Estaria ele testemunhando uma vítima de assassinato? No momento que pensou, um arrepio subiu por sua espinha, ele mal conhecia as pessoas do prédio, já que seu turno era de

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madrugada. Não sabia quem seria capaz de fazer uma coisa dessas, a impressão que tinha até então era a mesma dos que só passavam pela calçada do edifício, um lugar luxuoso criado para acomodar seus donos ricos, levando a vida sem grandes dificuldades. - Onde tem um telefone? É melhor ligar para os moradores que estão no prédio para virem reconhecer o corpo - disse dona Janete, trazendo-o para a realidade. Ricardo foi para a portaria e ligou para a polícia. Depois, com a ajuda de Antônio, que sabia quem esteve na festa, interfonou para os apartamentos dos casais que passaram a virada do ano no salão do condomínio. Conforme ia ligando, os moradores iam descendo imediatamente, uns para tentar reconhecer, outros só por curiosidade. Antes de interfonar para o quarto e último apartamento, a polícia chegou e Antônio saiu para atendê-la. Ricardo continuou o trabalho, o único jeito de se sentir útil naquele momento, e foi atendido com indiferença. -Boa noite senhor João, caiu uma pessoa de um apartamento e está na portaria, estamos ligando para o povo descer para reconhecer. -Vocês deveriam chamar um médico - respondeu o advogado João Atílio, de 49 anos, morador do décimo nono andar.

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João Atílio começou a noite na companhia de duas pessoas, mas no momento em que atendeu a ligação estava sozinho. Coincidentemente, uma delas passou por Ricardo assim que este desligou o telefone. -Caiu um corpo de um apartamento, seu tio pediu para chamar um médico - disse Ricardo a Frederico Sidney Mariano, de 18 anos, adolescente sobrinho do morador. Fred, como era chamado, pegou o telefone e discou para o Hospital Sírio Libanês, em seguida, passou para Ricardo e saiu em direção a rua, sem olhar em direção ao corpo. -Ele também não deve ter reconhecido-pensou Ricardo, observando-o partir em direção à rua. Alguém o aguardava, mas como outros moradores estavam descendo naquele momento, desviou a atenção do sobrinho de João Atílio para explicar o que estava acontecendo para eles. Enquanto isso, Antonio estava auxiliando o delegado plantonista, que reconhecia a cena, isolava o local em que o corpo caiu e ouvia os moradores. Depois que os peritos chegaram na cena e realizaram os procedimentos necessários, o delegado decidiu subir ao apartamento do único morador que não tinha descido até a portaria. Até aquele momento, ninguém tinha reconhecido o corpo, que estava muito deformado e com os cabelos cobrindo o rosto. Ricardo observou quando o oficial entrou no elevador e desapareceu atrás das

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portas metálicas, acompanhado do zelador do prédio, senhor Oliveira. Minutos depois, o interfone do porteiro tocou, era o zelador dizendo que haviam descoberto a identidade da jovem que caiu. Ele também repassou a ordem do delegado para informar o restante dos moradores que ainda estavam ali. A outra ocupante do décimo nono andar era a noiva de João Atílio, Luciana Bezerra França, de 22 anos. Ela comemorou o Réveillon com um vestido branco, meia calça e tamancos brancos. Deitada no chão frio da portaria, seu vestido se tornara vermelho e seus calçados já não estavam mais em seus pés. - O lugar onde ela caiu não é muito claro, acho que lá de cima não dá pra ter uma visão exata de quem deveria estar no chão - comentou Ricardo com Antonio.

Cerca de 30 minutos depois, João Atílio desceu, pela primeira vez, até a portaria. -Ele estava na festa, agora eu lembro dos dois lá - disse Antônio. Observando que quando o homem viu o corpo estirado no chão, nada disse. Ele ainda não conhecia direito os moradores, já que estava lá há pouco tempo, mas mesmo assim, reparou que João Atílio não estava nervoso, nem apreensivo. Ele também parecia meio bêbado, disse posteriormente Antônio à polícia, mas não cambaleando.

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Sua postura mudou ao longo de uma conversa com a polícia. Apesar de não conseguir distinguir o que falavam, Ricardo reparou que o morador se alterava bastante. Quando o delegado mudou sua atenção para o zelador, João Atílio foi para a portaria, onde esperou em silêncio. Depois que a perícia retirou o corpo do local, o oficial o levou até a delegacia, acompanhado de um advogado. De repente tudo estava calmo novamente, a multidão se dispersou tão rápido quanto se formou, e Ricardo foi obrigado a retornar ao trabalho com amargor na boca e um peso no estômago. Depois de tudo que havia presenciado, não conseguiria olhar para a portaria sem lembrar da posição em que estava o corpo de Luciana. Enquanto ainda estava refletindo sobre o que acontecera, foi surpreendido com a chegada de Frederico. Só então se lembrou que o jovem passara pelo local e não tinha se afetado com o corpo da noiva de seu tio. Ele passou reto por Ricardo, sem dizer nada. Ricardo olhou para o relógio, eram 4h30. Mesmo tendo a impressão que semanas tinham se passado desde o início daquela noite, ainda faltava uma hora e meia até o fim de seu turno.

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