18 minute read

O mistério do Apartamento 19

“Eu não consegui ter convicção e dizer o que de fato aconteceu. Consegui praticamente eliminar o suicídio, mas decidi entre queda acidental ou remoção de corpo inerte”, Amilcar da Serra

4.

Advertisement

andar. O quarto em que Luciana dividia com João Atílio foi um dos cômodos alvos dos exames periciais. Ao entrar no ambiente, os profissionais não encontraram sinais de luta ou violência, porém, em cima da cama, acharam um bilhete datilografado e assinado por Luciana, onde se despedia de familiares e do namorado, o conteúdo exato que estava escrito não foi revelado. Ao lado do papel estava um vidro de comprimidos aberto e vazio, o rótulo apresentava a descrição:

Liziane não sabia da existência do bilhete até o dia que ela me concedeu uma entrevista. Por ela só ter 15 anos na época, ela acha que alguns detalhes podem ter sido escondidos dela, ou ainda, que as minuciosidades talvez tenham sido esquecidas em meio ao turbilhão de sentimentos.

- Sabe por que que não diz o conteúdo do bilhete? Porque talvez a Luciana e o Fred tivessem um caso. Ele tinha 17 anos e ela, 22. O João Atílio era um cara muito influente, já pensou em um advogado corno? Se não foi por isso, por que não colocaram foto do bilhete? Sendo que a gente vê inquéritos muitos mais antigos que têm. Porque não era um bilhete de despedida, pode ter sido um bilhete romântico - diz Liziane, revoltada.

De volta ao dia da perícia, ainda no quarto do

 88

casal, no parapeito da janela que dava para a sacada, havia marcas de um calçado, não dava para saber se era um sapato feminino ou masculino, mas o tamanho era compatível com o número que Luciana calçava. Vale lembrar que a vítima estava descalça quando caiu.

A equipe partiu então para o quarto da filha de João Atílio, que não estava presente no dia da queda. O ambiente era tipicamente adolescente, um pouco bagunçado, com pôsteres de artistas nas paredes e bichinhos de pelúcia na cama. Contrastando a leveza da juventude, a polícia encontrou um objeto que pode ter sido o último usado por Luciana em vida, uma máquina de escrever. O quarto de Frederico também guardava seu tanto de estranheza. A suíte estava bastante bagunçada, a cama sem lençóis e roupas de molho na pia do banheiro, mas o que mais surpreendeu a equipe estava numa gaveta do quarto: o diário de Luciana. Mesmo que fossem próximos, é um objeto pessoal demais para estar nas dependências do sobrinho do noivo da vítima. Ele teria surrupiado o caderno de Luciana? Ou os dois eram mais próximos do que inicialmente a polícia havia pensado? O bilhete e o vidro de remédios seriam uma prova certeira se os exames periciais não tivessem descartado a hipótese de suicídio. Luciana sabia datilografar, havia feito curso e usava as pesadas

 89

máquinas de escrever em seu trabalho. Mesmo assim, o mais comum em casos de bilhetes de despedida ainda era papel e caneta. Neste caso, além de datilografá-la, a jovem ainda teria o trabalho de guardar a máquina no quarto da filha do noivo.

Luciana também não ficou sozinha no apartamento após a festa, então, teria de achar um jeito de escrever o bilhete sem levantar as suspeitas de Frederico e João Atílio, que alegou em depoimento não acreditar que ela pretendia se matar. A outra opção é que ela tenha escrito antes da festa, com antecedência, o que levanta a dúvida sobre as motivações dela ter ido até a festa mesmo com pensamentos suicidas. O bilhete foi encontrado no dia da queda, mas como este laudo só foi liberado nove dias depois, a equipe que voltou ao apartamento no dia 6 para fazer a reprodução simulada não tinha conhecimento da existência desta prova. O perito Rui Rodrigues afirmou que “assinado”, nos termos técnicos, significa letra cursiva, à caneta. Não consta nos registros se foi feita perícia neste bilhete, para comparar a letra da assinatura com a da vítima. Na verdade, os dois laudos não deram importância para a descoberta, que é citada apenas uma vez em um pequeno parágrafo, assim como o fato do diário de Luciana estar no quarto de Fred. - Se não foi um suicidio e tinha um bilhete... no que você chega a conclusão?! Porque você tinha

 90

duas hipóteses do que aconteceu, mas a hora que alguém põe um bilhete, quer dizer que foi um suicídio. E se quer dizer que foi um suicídio, mas que você sabe que não foi, sobressai a hipótese do homicídio, que se comprovaria através da remoção do corpo inerte. Mas assim, pra provar por A mais B e dizer: é isso! Não tem como. O horário, o bilhete com caracteristicas que não batem com suicídio. Dentro desse tempo, entre o fim da festa e a queda, será que daria para ela ir lá, se debruçar e cair? E se fosse, por que ela faria isso? - diz Amilcar.

João Atílio tinha duas filhas, Vanessa e Fernanda. A mãe de Luciana manteve contato com o ex-genro por muitos anos, inclusive quando Vanessa ficou doente, um ano depois que Luciana morreu. Ela era quase da mesma idade de Liziane quando decidiu realizar um procedimento estético, mas a cirurgia teve complicações. A jovem ficou internada no hospital, em coma, onde dona Ana Lúcia ia sempre visitá-la. Mas pouco tempo depois, não resistiu e morreu.

Foi um período difícil para João Atílio. Em 1995 ele tinha perdido a mãe. Em 1996, morreu Luciana. No ano seguinte, em 1997, foi Vanessa. E em 1998, o advogado perdeu o pai.

 91

Hoje, aos 74 anos, ele ainda está vivo, mas não consegui fazer contato. Contudo, nos laudos da perícia existe um depoimento do advogado, possivelmente o primeiro dado por ele, datado de 2 de janeiro de 1996, às 17h45, em Campo Grande.

O trabalho foi conduzido pela delegada Vilma Fátima de Carvalho, em parceria com o delegado Gildésio Gomes de Almeida. O documento tem informações que divergem dos fatos repassados pela família de Luciana.

João Atílio informou que estava separado judicialmente desde setembro de 1992 e que namorava Luciana há três anos. Ele estava no apartamento do Edifício Comodoro desde o dia 23 de dezembro, junto com sua filha Vanessa, de 14 anos. Luciana frequentava assiduamente o local, mas ele não tinha pretensão de casar com a jovem, apenas morar com ela. - Ela era jovem e tinha muitos planos - disse aos delegados.

Em 31 de dezembro, Luciana ficou ocupada cozinhando pratos típicos de Réveillon para o casal levar no almoço do outro dia, na casa do pai de João Atílio. Preparou um salpicão - uma receita que mistura massas, legumes, frutas e frango - e um bolo frio. Quando era por volta de 20h30, o porteiro ligou para João para o convidar para uma festa no salão do condomínio. Ele aceitou. Antes de irem para a festa, Luciana ainda

preparou uma porção de arroz com carne e os dois levaram até a casa da jovem, para alimentar os cachorros da família. Quando estava lá, o telefone tocou e João atendeu. Era Laís, a irmã de Luciana. Ele passou o telefone para ela e foi pegar um vestido branco emprestado para sua filha Vanessa, que depois não serviu nela. Ao chegarem ao apartamento, os dois foram se preparar para a celebração, junto com Frederico, que também iria. Vanessa tinha ido a uma festa, a mesma que Fred compareceria depois de sair com o tio. Luciana vestiu um vestido branco e um sapato dourado. Ele reclamou com a moça em relação ao comprimento da peça, achara muito curto, mas ela não trocou a peça e eles desceram para o salão social. Quando já havia passado da meia-noite, por volta de 1h15, um familiar de Luciana ligou. - Ela estava contente, mas após esse momento Luciana quase chorou de saudades deles. Ela foi a primeira pessoa a ir embora da festa, depois Fred e em seguida fui eu. Quando chegou ao apartamento, Fred o disse que Luciana estava chorando. João então foi falar com ela e declarou que não iria para a festa junto com o sobrinho, que ficaria com ela. Fred então se despediu para sair e seu tio o acompanhou até o elevador, quando ele desceu, o advogado se dirigiu até a cozinha do apartamento para tampar os assados.

- Eu entrei na sala e disse: Lu? Mas ela não respondeu. Fui até a sacada e disse, Lu? Então, olhei para baixo e vi um corpo no solo coberto com um pano amarelo. Ele não soube responder aos delegados com qual roupa ela estava vestida, mas disse que Fred não viu nada porque já havia saído do apartamento. O depoimento finaliza da seguinte maneira:

João acredita que ela não se suicidou, porque ela não teria motivo para isso, que ela não lhe deixou nada escrito, que ela nada lhe declarou, salvo a saudade que

Família de Luciana ainda guarda imagens de João Atílio na época que ele era noivo de Luciana, a data da foto é desconhecida - Arquivo Pessoal

 94

tinha de sua mãe. Ele alega que sempre se deu muito com os familiares de Luciana. Quando o interfone tocou, ele alega que nada sabe dizer sobre essa ligação, pois saiu de si e nada se recorda a não ser que estava com a polícia, que a polícia estava presente, e que ele perdeu a noção das coisas quando viu o corpo conforme anteriormente relatado. Ele diz que ela era uma menina meiga, simpática, amorosa, dada com toda sua família. Nada mais disse, nem lhe foi perguntado.

Ao rever as declarações de João Atílio, o perito Amilcar estranhou o fato dele não ter descido para ver o corpo.

- Não posso acusar ninguém, mas posso dar minha impressão. Na hora que ele não achou ela e olhou para baixo e viu um corpo, a primeira dedução seria de que era ela que estava ali. O normal é a pessoa descer rápido, mesmo sabendo que ela já estaria morta. Mas desceria na expectativa de fazer alguma coisa, ou confirmar mesmo se era ela. E isso ele não fez, ficou no apartamento, isso é outra coisa que deixa o negócio suspeito.

Frederico também prestou depoimento, mesmo tendo apenas 17 anos, faria 18 no mês de setembro. As declarações dele também divergiram de alguns pontos relatados por João Atílio. Às 11h

 95

do dia 3 de janeiro, Fred disse às delegadas Vilma Fátima de Carvalho e Ivone de Mello que passeava em Campo Grande desde o dia 25 de dezembro e estava hospedado no apartamento 19 do Edifício Comodoro, na casa de seu tio.

Ele, João e Luciana foram à festa do condomínio. Tomou, junto com seu tio, copos de whisky e Luciana bebeu vinho. - Todos estavam animados e se divertindo.

Depois da meia noite, Luciana saiu da festa e minutos depois Fred a seguiu. No apartamento, a namorada de seu tio estava no quarto do casal e conversava com Frederico, que estava se arrumando para sair, ora no quarto de sua prima Vanessa, ora no quarto de visitas. Luciana falava sobre seu irmão, João Henrique, que tinha 14 anos. Quando João chegou ao apartamento, Fred o convidou para ir até a festa. O tio perguntou para Luciana se ela queria ir e ela disse que não, mas que não se importaria se João quisesse ir. O tio disse então que, se Luciana não fosse, ele também não iria. Fred telefonou ao seu primo, Luiz Carlos, para que viesse buscá-lo. Em seguida, foi até o elevador, acompanhado de seu tio, e desceu. Quando chegou a portaria, estavam lá três pessoas, que disseram apontando para o saguão, “um corpo pulou, você reconhece?”. Frederico bateu o olho e disse que não. O

 96

cheiro de sangue o incomodou, então não se aproximou do corpo e seguiu até o portão. Quando chegou na calçada, seu primo encostou o carro e juntos foram para a festa. Mesmo seu primo sendo médico, ele não disse nada sobre a cena que acabara de presenciar, nem do corpo que tinha visto, porque não queria incomodar. Ele só voltou para o prédio por volta das 4h30. Neste ponto, o depoimento de Fred também foi diferente das informações repassadas pelo porteiro Ricardo. Ele disse, em depoimento, que Frederico passou pela portaria depois que Ricardo já tinha interfonado para o apartamento 19 e conversado com João Atílio. O advogado tinha dito ao porteiro para que eles chamassem um médico.

Quando ligou para João, disse “Sr. João, caiu uma pessoa de um apartamento e está na portaria, estão pedindo para o povo descer para reconhecer”, e a resposta foi de que deveria chamar um médico. Ricardo então repetiu a frase para Frederico, que pegou o telefone da portaria e ligou para um hospital e passou o gancho para Ricardo. Em seguida, saiu, não lhe dizendo nenhuma palavra. - Frederico nem sequer olhou para o corpo - Ricardo pensou que Frederico não tinha a reconhecido porque não comentou nada. Naquele momento, vários condôminos estavam chegando na

 97

portaria, e por isso não viu com quem Fred saiu. Ele voltou ao prédio por volta das 4h30, mas Ricardo disse que os dois não conversaram.

O depoimento do sobrinho de João Atílio termina assim:

Frederico esclarece ainda que Luciana estava vestida com um vestido branco e que, inclusive antes de ele deixar o apartamento, ela estava de vestido branco. Perguntado a Frederico se ele sabe onde está o vestido, ele diz que não sabe onde se encontra. Ele também descreve o vestido sendo uma peça inteira, podendo ser confundida com uma camiseta. Além disso, disse que quando chegou ao prédio, seu tio não se encontrava, sendo informado pelo porteiro que o mesmo estava na delegacia. Frederico telefonou para dois tios seus e para seu pai, para que tomassem providências. Nada mais foi dito, nem foi perguntado.

O perito Amilcar também comentou sobre o depoimento de Fred. - O que eu estranhei muito foi a investigação bater tanto nesse vestido que Luciana estava.

Como João Atílio comentou que houve um desentendimento entre o casal sobre o comprimento do vestido da jovem, a polícia pode ter

 98

suspeitado de que em um possível homicídio, o ciúmes fosse a motivação. A mesma desconfiança que Liziane teve ao saber do bilhete supostamente deixado pela irmã. Frederico tem atualmente 43 anos. Consegui encontrá-lo nas redes sociais, onde descobri que ele mora em Maringá, no Paraná, e é fisioterapeuta. Tentei marcar uma entrevista, mas minha mensagem nunca foi respondida. As investigações sobre a morte de Luciana são uma incógnita. Tentei acessar o inquérito do caso mas em todos os caminhos que tentava encontrei uma porta fechada. A 1º Delegacia de Polícia, responsável pelas investigações, não possui mais em seu arquivo documentos do ano de 1996, todos foram incinerados. O Fórum de Campo Grande tem os arquivos dessa época, mas não estão digita-

Luciana era apaixonada por gatos - Arquivo Pessoal

 99

lizados. Era necessário o número do inquérito para conseguir localizá-lo em meio a milhares de outros documentos guardados há 25 anos. Mas a família de Luciana não sabia qual era esse número. - Quando minha mãe faleceu, a gente não queria lembrar mais disso, então queimamos tudo - disse Liziane. Consegui então localizar a delegada responsável pelo caso, Vilma Fátima de Carvalho. Ela está aposentada, mas ainda atua como advogada e presta consultoria jurídica em uma cidade no interior de Mato Grosso do Sul. Ela me informou que não tinha informações sobre o inquérito e, a princípio, topou conceder uma entrevista sobre o caso, mas quando a procurei novamente para conversar, ela não atendeu às ligações, nem respondeu minhas mensagens. -O Ministério Público Estadual (MPE) pode conseguir achar o número - o responsável pelo Arquivo do Fórum, seu Adalto, me deu um fio de esperança. Quando tentei contato no setor responsável, o sistema de busca estava indisponível. Tive que rir, parecia uma conspiração. Depois de uma semana, o sistema voltou, mas só para me dar outra notícia negativa. - Infelizmente não localizei nada. Em 1996 não existiam os sistemas de informatização que existem hoje, as anotações eram feitas em livros.

 100

Tente ver na Polícia Civil se consegue alguma informação - me disse Adriana, uma funcionária do MPE. Fiquei nesse pingue-pongue entre os órgãos públicos durante pouco mais de um ano. Na última vez que fui ao Fórum, Adalto se comoveu pela minha busca e me disse que provavelmente o caso foi arquivado como suicídio e nunca foi a julgamento. Isso porque todos os casos de homicídios foram digitalizados a partir de 1988, se João Atílio ou Frederico Mariano aparecessem como réus, o sistema teria encontrado-os. - Acha que tem cabimento morrer uma pessoa e não saber como ela morreu? A pessoa cair do prédio, pelo amor de Deus… Hoje você pode reclamar disso, pode reclamar nas redes sociais, antigamente não podia fazer nada, tinha que aguentar as coisas. É muito difícil falar sobre as próprias dores, sobre suas fraquezas. E a minha irmã era minha fraqueza, eu me sentia muito fraca quando eu pensava em tudo que ela pode ter passado quando a gente não sabe o que aconteceu naquela noite, entendeu, porque a gente não sabe. E nunca vamos saber - lamentou Liziane.

*

Vinte e cinco anos depois do que aconteceu, Liane Penzo ainda pensa em Luciana. Ela se casou com o namorado que tinha aos 20 anos e tiveram

 101

duas filhas. Atualmente com 45 anos, ela trabalha com marketing e se mudou para os Estados Unidos, onde ainda vive com a família. - Para mim foi bem difícil perder ela, a amizade dela, a pessoa incrível que ela era. Ela era uma menina muito feliz, uma menina de riso fácil, eu lembro até das gargalhadas dela. Ela dava gargalhadas de tudo e isso tudo acabou para mim. Foi um choque muito grande porque ninguém estava esperando, ela não estava doente, não tinha nada. Muito pelo contrário, eu esperava que em breve a gente ia voltar a ter o contato de antes e de repente ela foi embora. Foi muito difícil, na verdade eu nem sei se já superei não, ela ainda faz muita falta. Foi uma grande perda, muito triste, a mãe dela sofreu tanto. E a Lu viveu nada, muito pouco. Acho que é por isso que ela tinha tanta sede de viver, porque o tempo seria curto, às vezes eu penso assim.

Liane não acredita até hoje na hipótese que a amiga tenha se suicidado, eram muitos sonhos e planos compartilhados entre as duas. - Eu não posso dizer que foi ele especificamente, porque eu não acompanhei o relacionamento deles, ela sumiu, não tinha mais tempo para a gente, marcava de encontrar com a gente e não ia mais. Então a gente percebia que algo tinha mudado, algo estava diferente. E os comentários foram que ele tinha algo a ver, mas isso fiquei sabendo

 102

só pela boca dos outros, eu realmente não sei de nada, então não tenho como afirmar. Mas eu acredito que alguém tenha feito alguma coisa - Quando elas se distanciaram no início da vida adulta, Liane achava que seria apenas uma fase que em breve seria superada, estavam apenas em páginas diferentes da vida, mas as boas lembranças que estavam guardadas suscitavam a esperança de que bons momentos seriam vividos novamente. Liana sentia falta da risada da amiga, saudade que só aumentou com o passar dos anos.

De todas as peças que se moveram em torno da tragédia, o tempo pode ter sido o maior dos vilões. Ao mesmo tempo que pode ter sido decisivo para revelar quem estava no apartamento com Luciana no momento que ela caiu - Fred desceu antes ou não? - foi cruel com as investigações. Em 1996 as tecnologias pareciam uma piada perto do que é possível encontrar hoje. Não necessariamente tecnologias de ponta, mas um simples circuito de câmeras de segurança poderia ter feito a diferença no caso de Luciana. Já existiam celulares e computadores, a internet ainda era uma criança, mas em cidades de estados interioranos, eles só ganhariam popularidade a partir dos anos 2000. Num lugar que supostamente ninguém viu como Luciana caiu, olhos virtuais poderiam ter dado a resposta que a família da vítima busca há 25 anos.

 103

O avanço no sistema Judiciário também poderia auxiliar na solução das incoerências que envolvem o caso. Atualmente, a morte poderia ser investigada inicialmente como feminicídio, crime que não existia no Código Penal em 1996. O assassinato de mulheres motivados justamente por serem mulheres virou lei apenas em 2015, mas o termo foi usado pela primeira vez em 1976 pela escritora e ativista, Diana Russell, durante um depoimento no Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres, em Bruxelas. No artigo “Violência contra mulher: feminicídios no Brasil”, os pesquisadores explicam que na maior parte dos casos de feminicídio, os responsáveis são homens, principalmente parceiros ou ex-parceiros, e decorrem de situações de abusos no domicílio, ameaças ou intimidação, violência sexual, ou situações nas quais a mulher tem menos poder ou recursos que o homem. Dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) apontaram que, no Brasil, mulheres de 20 a 29 anos e de 30 a 39 anos foram as principais vítimas entre o triênio de 2009 a 2011. Em Mato Grosso do Sul, o Mapa do Feminicídio elaborado pelo governo estadual, mostrou que 30 mulheres foram vítimas do crime em 2019, e 98 sofreram tentativa de feminicídio. - Não faz sentido a gente falar de uma história que pode ter sido um assassinato e que ficou im-

 104

pune e que ninguem nunca soube da história verdadeira. Por conta do que? Qual o motivo? Por que era um advogado? Por que morava num prédio de luxo? Por que era filha de um sucateiro? A minha mãe catou lixo para cuidar da minha irmã. Ana Lúcia Furlan França ela se chamava quando minha irmã nasceu, e aos 39 anos ela viu minha irmã ser arrancada dos braços dela. Então, se a gente não tiver coragem para falar das histórias, muito mais Lucianas vão acontecer. Essa é a minha Luciana, quantas outras Lucianas têm por aí, que morreram e ninguém sabe o que aconteceu. O crime já prescreveu, ninguém vai preso, não vai acontecer nada. “Ah, fulano matou?” Não sei, não vou falar quem matou com todas as letras, mas até hoje ninguém sabe o que aconteceu. Será que se minha irmã fosse a filha do advogado e ela morasse no prédio chique eles não teriam resolvido? - disse Liziane.

 105

This article is from: