A ferrovia estratégica na cidade central

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS CURSO DE JORNALISMO

RELATÓRIO DO PROJETO: “A FERROVIA ESTRATÉGICA NA CIDADE CENTRAL”

ANDRÉ LUIZ MOURA E SANTOS

Campo Grande Setembro / 2016


Relatório do projeto: “A ferrovia estratégica na cidade central” André Luiz Moura e Santos

Relatório apresentado como requisito parcial para aprovação na disciplina Projetos Experimentais do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

Orientador: Prof. Dr. Edson Silva

UFMS Campo Grande Setembro - 2016



SUMÁRIO 1. Introdução

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2. Atividades desenvolvidas

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2.1 Execução

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2.2 Dificuldades encontradas

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2.3 Objetivos alcançados

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3. Suportes teóricos adotados

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3.1 Conceitos

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3.2 Apuração

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3.3 Redação

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4. Considerações finais

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5. Referências

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6. Apêndices

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6.1 Transcrições de entrevistas

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6.1.1 Engenheiro Celso Higa

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6.1.2 Sociólogo Paulo Cabral

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6.1.3 Euclides Pereira

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6.1.4 Ex ferroviário Willian Álvaro Monteiro

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6.1.5 Arquiteto e urbanista Ângelo Arruda

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RESUMO: O objetivo deste projeto experimental é refletir sobre a modalidade jornalística grande reportagem e, selecionado o tema “a presença da ferrovia Noroeste do Brasil em Campo Grande”, aplicar o conhecimento na produção da grande reportagem. Esse trabalho vai ao encontro do jornalismo de profundidade e amplitude, que oferece ao leitor informação e interpretação que o faz entender melhor a estrutura da sociedade onde habita. Nesse sentido, a presença da ferrovia em Campo Grande é capaz de revelar características sociais, econômicas, históricas e culturais da cidade. É um assunto que ficou no passado, uma vez que a ferrovia foi desativada. Entretanto, ler sobre ele fornece entendimento sobre a sua importância para a atual organização urbana de Campo Grande, que abriga atividades humanas e ampara a experiência de espaço e vida coletiva.

PALAVRAS-CHAVE: Grande reportagem, ferrovia, Campo Grande


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1. INTRODUÇÃO O produto deste projeto experimental é um livro acadêmico. Dois textos principais compreendem o conteúdo deste livro. O primeiro, um ensaio jornalístico que propõe um debate de ideias sobre a grande reportagem como gênero. O segundo, uma grande reportagem. E para a sua produção foi definido um tema: a presença da estrada férrea historicamente conhecida como Noroeste do Brasil (NOB) em Campo Grande. Considerando a natureza da grande reportagem, a sua vocação inata de procurar uma interpretação do cotidiano, de buscar a reflexão sobre a realidade social, o elemento ferrovia se mostrou adequado para tematizar o relato jornalístico de profundidade. A partir da participação da via férrea é possível pensar as diversas facetas da cidade, sua história, sua urbanização. Isso porque, dizem os pesquisadores, a ferrovia cumpriu um papel fundamental de fomentadora do desenvolvimento de Campo Grande. O título do livro acompanha o da grande reportagem. Ambos foram nomeados A ferrovia estratégica na cidade central. Este nome se explica no decorrer da narrativa, onde o leitor entende o motivo dos adjetivos estratégica e central qualificarem os substantivos ferrovia e cidade. A característica específica da NOB, no trecho mato-grossense (Itapura-Corumbá) é a estratégia militar. Enquanto que as demais ferrovias que até então existiam, e mesmo o trecho paulista da Noroeste, tinham uma razão econômica, o escoamento do café. A origem da Itapura-Corumbá, por sua vez, está relacionada às preocupações do governo brasileiro com a defesa de fronteiras. O traçado da ferrovia é, portanto, estratégico. E a característica peculiar de Campo Grande é sua equidistância, sua localização geográfica centralizada na região sul do antigo Mato Grosso. Esta característica já exercia alguma ação antes da presença da estrada férrea, quando Campo Grande era uma paragem de gado, uma confluência de rotas de circulação e comércio. Depois que os serviços ferroviários se estabeleceram na cidade, essa característica se acentuou, porque se adequou perfeitamente aos propósitos


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estratégicos da linha. E mais uma vez a localização central no mapa foi vantajosa para a cidade. O ensaio jornalístico A grande reportagem como forma discute conceitualmente os aspectos técnicos, éticos e estéticos do gênero. Ele contribui com a discussão a respeito das renovações e inovações dentro do jornalismo impresso, sugerindo caminhos, indicando um jornalismo interpretativo atento às problemáticas sociais da pós-modernidade. A discussão é estribada em conceitos de diversos pesquisadores da área do Jornalismo. Este ensaio é dividido em seis momentos: 1. Discute a absorção de outras áreas do conhecimento pelo jornalismo na grande reportagem, o espaço que o repórter tem para refletir sobre as práticas jornalísticas e experimentar novas possibilidades nos campos da apuração e redação. 2. Crítica ao jornalismo convencional. Este item recupera as origens positivistas do newsmaking e aponta cada um dos problemas de suas características. Também, examina os conceitos que o sustentam: síntese, objetividade, veracidade. 3. As práticas do new journalism na apuração e na redação jornalística. Como Gay Talese escreveu uma reportagem de perfil de um personagem que se recusou a conceder entrevista? Como Tom Wolfe escrevia variando entre focos narrativos? 4. O gênero jornalístico grande reportagem e suas peculiaridades e diferenças com gênero notícia. As características da narrativa de profundidade. 5. Os modelos de reportagem propostos por Oswaldo Coimbra, em O texto da reportagem impressa: reportagem narrativa, descritiva e dissertativa. E os modelos propostos por Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari, em Técnica de reportagem: reportagem de fatos, de ação e documental. 6. O livro-reportagem como espaço para os jornalistas que desejam explorar o seu poder comunicativo.


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A grande reportagem A ferrovia estratégica na cidade central apresenta o crescimento urbano de Campo Grande a partir da presença da estrada de ferro NOB. A estrutura da narrativa segue um modelo fragmentário, de mosaico, organizado em dez entretítulos. 

“Rua velha”. Reconstituição da vila Campo Grande dos primeiros anos do século vinte. Coloração do ambiente estribada em fontes documentais. As relações entre os sertanejos que habitavam a vila.

“Era um sertão, era um mato grosso”. A Retirada da Laguna como evento que motivou a definição do traçado da estrada de ferro Itapura-Corumbá. A relação entre as preocupações do governo brasileiro em defender as fronteiras e a construção da NOB. Emílio Schnoor, o engenheiro responsável pelo desenho da via-permanente. A definição de Campo Grande como ponto estratégico para o guarnecimento de fronteiras.

“Campo Grande pré-ferrovia”. O crescimento urbano e comercial de Campo Grande após o momento em que foi definido que este município receberia os trilhos da ferrovia.

“Japoneses”. Como os imigrantes japoneses trabalharam na construção da Itapura-Corumbá.

“O suor dos operários”. Os operários das frentes de trabalho que edificaram a estrada de ferro Itapura-Corumbá. As vicissitudes da construção da linha no Pantanal. As condições insalubres de trabalho. A violência entre os funcionários das empreiteiras responsáveis pela construção da estrada.

“As frentes de trabalho se encontram”. Detalhes sobre como as turmas de operários se encontraram, em Campo Grande, finalizando provisoriamente a construção da estrada de ferro.

“Uma estação em silêncio”. A estação ferroviária que foi construída no local onde a ligação dos trilhos se deu. Descrição do personagem Euclides Sampaio Pereira, senhor que reside em uma casa de madeira, ao lado da estação. Descrição do personagem Willian Monteiro, ex ferroviário que trabalhou nessa


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estação durante a decadência da ferrovia. Motivos que explicam a privatização da NOB. 

“A ceroula encomendada”. Narração da história de José Estevam de Castilho, funcionário de uma das empreiteiras que construiu a estrada de ferro.

“Campo Grande pós-ferrovia”. O crescimento da cidade depois que os serviços ferroviários já estavam estabelecidos, durante a década de vinte. Descrição dos ambientes da cidade, as ruas, o comércio local. A relação entre a ferrovia e o estabelecimento da Rua 14 de Julho como rua principal. O debate sobre a urbanização da cidade nas páginas dos periódicos locais. Os imigrantes japoneses que se estabeleceram em Campo Grande depois que a construção da ferrovia terminou. Os sírio-libaneses que imigraram de Corumbá para Campo Grande. O fim da cultura do homem do sertão.

“Trem que chega, desce gente, na plataforma, na cidade”. A Estação Ferroviária de Campo Grande recebendo o trem de passageiros que trazia o então presidente do Estado de Matto-Grosso, o coronel Pedro Celestino.


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2. ATIVIDADES DESENVOLVIDAS 1. Considero como parte inicial do projeto experimental ter participado do evento SBPJor, realizado pelo nosso curso de Jornalismo. Nesta ocasião, vários trabalhos acadêmicos sobre reportagem de profundidade e temas análogos foram apresentados e debatidos por pesquisadores de várias universidades. 2. Pesquisa em livros teóricos a respeito do gênero jornalístico grande reportagem, suas características, seus conceitos, sua estética, seus métodos de captação de informação, os repórteres que trabalharam com esse gênero. Para a realização deste item, utilizei o acervo de livros da Biblioteca Central da UFMS. 3. Produção do ensaio jornalístico A grande reportagem como forma. 4. Pesquisa documental a respeito da história da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil e história de Campo Grande. Esta pesquisa foi realizada sobretudo no acervo do Arquivo Histórico de Campo Grande (ARCA), no acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul (IGHMS), no acervo da Biblioteca Pública Estadual Dr. Isaías Paim, no acervo da Biblioteca Central da UFMS, e na internet. 5. Apuração. Realização de entrevistas com fontes especialistas e personagens. Observação direta dos ambientes que foram descritos na grande reportagem A ferrovia estratégica na cidade central. 6. Redação da grande reportagem. Elaboração da estrutura da narrativa jornalística de profundidade. 7. Diagramação do livro.


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2.1 Execução: Entrevistas gravadas com os especialistas: 1. Sociólogo Paulo Cabral; 2. Engenheiro e pesquisador Celso Higa; 3. Arquiteto e urbanista Ângelo Arruda.

Entrevistas gravadas com os personagens: 1. Ex ferroviário Willian Álvaro Monteiro; 2. Euclides Sampaio Pereira.

As entrevistas gravadas estão transcritas no apêndice. Existiram também outras fontes de informação, com quem estabeleci conversas informais, ou porque o gravador era um fator de inibição da fonte, ou porque a relação repórter-fonte se tornou próxima o suficiente para dispensar a intermediação de tecnologias. As fontes deste quesito foram: 1. O ex ferroviário João Ronaldo; 2. A historiadora Rita de Cássia, do Arquivo Histórico de Campo Grande (ARCA); 3. A professora Maria Madalena D. M. Greco, do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul (IHGMS); 4. Celso Higa. Observação direta da Estação de Ligação, trinta quilômetros distante do perímetro urbano de Campo Grande. Nesta oportunidade, além de fazer anotações impressionistas sobre o ambiente, fotografei o edifício da estação, com o intuito de produzir imagens para ilustrar o livro.


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2.2 Dificuldades Encontradas: 1. Debruçar-se sobre uma quantidade grande de informações foi a tarefa mais difícil do processo. Depois que os dados foram apurados, o repórter precisa analisar as informações e ter uma ideia criativa sobre a engenharia do texto, precisa tomar a decisão sobre a forma da grande reportagem. Não há uma fórmula, como a pirâmide invertida. Não há um manual de redação. E essa liberdade só poderia ter como consequência a angústia.

2.3 Objetivos Alcançados A respeito dos objetivos que foram projetados no plano de trabalho, no item geral, eram dois: conceituar o gênero jornalístico grande reportagem e produzir narrativas jornalísticas sobre o tema “ferrovia NOB em Campo Grande”. O primeiro foi alcançado satisfatoriamente. O produto desse trabalho é o texto A grande reportagem como forma. O segundo foi também alcançado, mas sofreu alterações. As narrativas jornalísticas, conforme a programação inicial, seriam três grandes reportagens temáticas, considerando os principais aspectos de influência da ferrovia: o histórico, o econômico e o social. Esse planejamento se mostrou problemático no decorrer da etapa prática do projeto, por causa da disponibilidade de fontes pessoais. Durante a apuração das informações relacionadas à história da estrada férrea, por exemplo, as entrevistas com especialistas só puderam ser agendadas para mais tarde, quando eu deveria, conforme o cronograma estabelecido com meu orientador, estar produzindo a reportagem de aspectos culturais. A quantidade de reportagens diminuiu então para uma única. O objetivo de tal decisão não foi subtrair as informações ou diminuir o conteúdo do produto final. Esta decisão alterou apenas a forma de enunciação da grande reportagem, a maneira como as informações captadas se conectam e se relacionam no texto.


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3. SUPORTES TEÓRICOS ADOTADOS: 3.1 Conceitos No livro Técnica de reportagem: notas sobre a narrativa jornalística, Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari afirmam que a reportagem “é uma extensão da notícia” (1986, p. 11), é uma ampliação do fato nuclear. Edvaldo Pereira Lima, em Páginas ampliadas, elabora a respeito dessa característica da reportagem, modalidade de mensagem jornalística criada para atender a necessidade de ampliar os fatos, de colocar para o receptor a compreensão de maior alcance. “É a ampliação do relato simples, raso, para uma dimensão contextual. Em especial, esse patamar de maior amplitude é alcançado quando se pratica a grande-reportagem, aquela que possibilita um mergulho de fôlego nos fatos e em seu contexto” (1993, p. 24, grifo meu). A distinção entre noticiar e reportar, segundo Sodré e Ferrari, reside na ultrapassagem de um episódio restrito de interesse para um “registro envolto em circunstâncias que conduzirão o leitor a um posicionamento crítico, revelando-lhe ângulos insuspeitados, salientando outros apenas entrevistos” (1986, p. 36). Citando Nilson Lage, Lima afirma, sobre a reportagem, que ela é “uma expansão que situa o fato em suas relações mais óbvias com outros fatos antecedentes, consequentes ou correlatos”. E pode alcançar o nível de “ensaio capaz de revelar, a partir da prática histórica, conteúdos de interesse permanente” (1993, p. 26-27). A grande reportagem faz isso estabelecendo relações entre fatos isolados e a situação global de um determinado fenômeno. E o resultado são matérias de interesse humano. A grande reportagem procura enriquecer tempo e espaço. Conforme Cremilda Medina, em Notícia, um produto à venda, essa modalidade jornalística “abre o aqui num círculo mais amplo, reconstitui o já no antes e depois, deixa os limites do acontecer para um estar acontecendo atemporal ou menos presente” (1978, p. 134). Portanto, há uma abertura de espaços geográficos que vai além de um único local onde um fato aconteceu, e há uma recusa da atualidade como princípio, uma vez que ela se expande e se torna contemporaneidade. Conforme Marcelo Bulhões, em Jornalismo e literatura em convergência: “o conceito de atualidade passa por uma dilatação” (2006, p. 193).


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Este conceito “passa a significar a ocorrência que muitas vezes não é rigorosamente atual, mas ganha essa condição seja por um novo fato que desperta o interesse público para uma ocorrência antiga, seja por um artifício que o traga para o presente” (LIMA, 1993, p. 23). Citando Dulcília Helena, Lima afirma que o eixo que deve governar a dimensão temporal da atividade jornalística é a contemporaneidade: Pode englobar a formação de uma tendência cultural que já dura meio século ou um fato que aconteceu ontem. Contudo, não é por ter acontecido ontem, e sim por estar relacionado com uma série de contextos. (...) Não é o tempo que decide: a conformação cultural importa muito mais (1993, p. 57)

A grande reportagem é uma forma de expressão do jornalismo interpretativo, o esforço de entender a rede de forças que atuam em um fato. Para cumprir essa missão de tecer a relação de causas e efeitos, e realizar o empenho de abraçar a realidade, Lima (1993, p. 26) afirma que a interpretação jornalística procura 1. Contextualizar o fato nuclear; 2. Buscar antecedentes, resgatar as origens e desenvolvimento do problema; 3. Entrevistar especialistas e testemunhas para dar sustentação; e 4. Humanizar personagens, voltar-se para o homem. A narrativa da grande reportagem é de profundidade. Existem, segundo Lima (1993, p. 37), duas maneiras de se aprofundar no tema da grande reportagem e trazer mais detalhes que complementem a informação nuclear. A primeira, horizontalmente, no sentido extensivo, o repórter busca mais dados, números, informações, detalhes, para ampliar quantitativamente a taxa de conhecimento do leitor sobre o tema. E a segunda, verticalmente, no sentido intensivo, o repórter analisa, de vários ângulos, as causas, os efeitos, e as implicações do tema, aumentando qualitativamente o conhecimento do leitor a respeito. Uma contribuição interessante da vertente jornalismo literário à grande reportagem é o desvinculo com a informação objetiva. Uma dimensão subjetiva, de detalhes, gestos, incorpora-se ao real para conferir uma visão mais completa da verdade. Segundo Felipe Pena, “o jornalismo literário não se baseia na veracidade, mas


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sim na verossimilhança, ou seja, na mimetização da realidade” (Jornalismo literário, 2006, p. 103, grifo meu). Isso porque a verdade com v maiúsculo é um amálgama de várias realidades. E, conforme Lima, o desafio do jornalismo é “assumir a relatividade de qualquer visão e tentar, dentro desse limite abarcar com o máximo de fidelidade possível a compreensão total da realidade” (1993, p. 82, grifo meu). Medina, em Entrevista, o diálogo possível, afirma que Não são os comunicadores que avançam nas rupturas. Este é um privilégio da arte. Mas os mais conscientes, os que se aperfeiçoam, podem aprender muito e introduzir nas fórmulas gastas algumas formas que os artistas já experimentaram (2005, p. 62).

A grande reportagem é o espaço onde o repórter aceita o desafio de exercitar toda a sua habilidade de comunicador. Conforme Lima, há uma inquietude de “procurar realizar um trabalho que lhe permita utilizar todo o seu potencial de construtor de narrativas da realidade” (1993, p. 33). Lima, citando Juan Gargurevich, afirma que a reportagem é um gênero jornalístico entendido como uma das “formas que busca o jornalista para se expressar” (1993, p. 27). A natureza da grande reportagem é a de funcionar como uma zona onde o repórter procura novas experiências dentro do jornalismo. Diz Medina: Jornalistas e comunicadores devem se aproximar das conquistas artísticas para poderem renovar seu estilo e, em última instância, o grau de eficiência de seus textos quanto à comunicação propriamente dita (Entrevista, o diálogo possível, 2005, p. 63).

Conforme Lima, a grande reportagem é o catalisador ou disparador do livroreportagem (1993, p. 36-37). O livro A ferrovia estratégica na cidade central, produto deste projeto experimental, é, portanto, pelo menos em sua parcela prática, um livroreportagem. E, nos conformes das propostas de classificação de Lima, em Páginas ampliadas, é um livro-reportagem-história, uma vez que focaliza um tema do passado recente ou mais distante no tempo. O tema, porém, tem geralmente algum elemento que o conecta com o presente, dessa forma possibilitando um elo comum com o leitor atual. Esse elemento pode surgir de uma atualização artificial de um fato passado ou por motivos os mais variados (1993, p. 46).


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3.2 Apuração

A proposta da grande reportagem é elevar o potencial de captação do real. Para tanto, utiliza-se de pesquisa em fontes documentais, em “fontes registradas de conhecimento” (LIMA, 1993, p. 100). É útil para fundamentar o assunto, conferir solidez ao tema, para encontrar fontes a serem entrevistadas, para localizar questões ou gerar dúvidas que possam enriquecer o conteúdo, e para que o repórter se prepare intelectualmente para etapas posteriores, como a entrevista. Segundo Lima, a documentação é utilizada “principalmente na matéria de profundidade e em especial a que focaliza mais a situação e a questão, do que o fato ou o acontecimento isolado” (1993, p. 100). A grande reportagem utiliza-se de entrevistas de compreensão do tipo conceitual, “como parte em busca do aprofundamento” (LIMA, 1993, p. 85). Esse método de entrevista é realizado sobretudo com especialistas em determinado tema ou fontes que tenham qualificação para responder perguntas sobre o assunto. Outra técnica de captação útil à grande reportagem é a observação participante. Nos conformes dessa técnica, o repórter procura se envolver nos próprios acontecimentos, viver, na pele, o clima inerente ao ambiente de seus personagens. Bulhões, em Jornalismo e literatura em convergência, sugere que os repórteres façam como o romancista francês Émile Zola, que saia às ruas de uma cidade, visitava os locais em que se davam os episódios da narrativa, palmilhava os espaços descritos, sentia o cheiro dos ambientes, deixava-se impregnar das marcas da vida pulsante. Zola precisava conhecer seus personagens de perto, estar com eles, e anotar seus caracteres (2006, p. 68). Conforme Sodré e Ferrari, em Técnica de reportagem, “a humanização se acentuará na medida em que o relato for feito por alguém que não só testemunha a ação, mas também participa dos fatos” (1986, p. 15, grifo meu). Na relação com suas fontes pessoais, o repórter precisa buscar estabelecer um diálogo possível. Conforme Medina, não é possível enquadrar nos limites de um questionário fechado, duma cronologia rígida, de uma presentificação radical uma


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personagem que ultrapassa estes limites (Entrevista, o diálogo possível, 2005, p. 30). Conforme a pesquisadora, uma boa entrevista é aquela cujo “depoimento desceu ao subsolo do entrevistado, afloraram traços de sua personalidade, revelaram-se comportamentos, valores” (2005, p. 43). 3.3 Redação Uma vez que a grande reportagem reúne uma quantidade considerável de informações, dados, entrevistas... torna-se inviável escrevê-la nos conformes da pirâmide invertida, iniciando o relato do ponto mais importante ou interessante. É necessário tomar decisões quanto à estrutura do texto. É sim possível falar a respeito da forma no campo da grande reportagem. Em O texto da reportagem impressa, Oswaldo Coimbra chama essa característica do texto jornalístico de segunda face: “o texto enquanto estrutura cujos elementos estão internamente organizados” (1993, p. 7). Bulhões, por sua vez, afirma que a produção da narrativa de profundidade é uma atitude individualizada, centrada na figura do eu que reporta, o que insinua a marca de pessoalidade na forma expressiva. É o que permite circunscrever a reportagem na viabilidade da realização de um estilo, ou seja, de uma forma verbal que comporta a marca da individualidade (Jornalismo e literatura em convergência, 2006, p. 45).

O texto do repórter, conforme Lima, “deve fluir com naturalidade, transitar suavemente de uma passagem para outra. Deve ter ritmo, cadência, um pulsar característico” (1993, p. 111). E a engenharia de armação do texto, os segmentos que formam uma narrativa, “requer um hábil tratamento de montagem, de estruturação e ordenamento do conjunto de ações, ambientes, personagens, discussões, questões” (LIMA, 1993, p. 125). Lima propõe que a edição do texto da narrativa extensa deve revelar engenhosidade. Tradicionalmente, a maneira de conduzir essa construção é a que se dá cronologicamente no tempo e linearmente no espaço, com princípio meio e fim assim ordenados. Mas o homem inventou o cinema e o


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jornalismo impresso moderno apoderou-se dos cortes no tempo e espaço, das inversões de lógica convencional para justapor, avançar célere em flash-forward antecipando o tempo, recuar em corte para o passado em flash-back, para resgatar o que já foi (1993, p. 126).

Coimbra (1993), com fins analíticos, separa a segunda face da reportagem em modelos: o dissertativo, o descritivo e o narrativo. Citando Roberto Magalhães, Coimbra diz que “a divisão que se faz em discurso narrativo, descritivo e dissertativo é na verdade mais de efeito didático, uma vez que, geralmente, essas modalidades coexistem e se completam” (1993, p. 88). 1. Dissertativo ou expositivo: análise das causas e efeitos de um determinado fato. O repórter argumenta sobre uma questão de modo a tentar convencer o leitor a comungar sua visão do problema (LIMA, 1993, p. 117). 2. Descritivo: imobilização de objetos, seres, ambientes, para os representar. Dá-se através de observação direta ou indireta, reconstituída com o auxílio de fontes (LIMA, 1993, p. 115). 3. Narrativo: ordenação de fatos, acontecimentos, numa sequência temporal. (LIMA, 1993, p. 113). A reportagem dissertativa relaciona “informações generalizantes” do autor e depois apresenta os argumentos para justificar a afirmação, confirmando-a com analogias, declarações de fontes, exemplos , fatos... (COIMBRA, 1993, p. 23). A reportagem descritiva fixa pessoas, ambientes e coisas em um único momento, sem progressão de tempo. Este modelo propõe expansões predicativas, detalhamento, pormenorização do momento apreendido, o que gera verossimilhança (COIMBRA, 1993, p. 86-87). Os instrumentos fundamentais que o repórter utiliza para descrever são os seus “cinco sentidos e todas as suas possibilidades de percepção” (COIMBRA, 1993, p. 98). Fazendo uso dos seus processos cognitivos, o repórter atribui traços, qualidades ou características. Descrever, conforme Coimbra, é “selecionar os aspectos que mais impressionam os sentidos” (1993, p. 107).


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A descrição de pessoas, segundo Coimbra, pode ser direta, a “descrição estática dos atributos da personagem num fragmento reservado a esta finalidade”. Ou indireta, “mais dinâmica, mas aparece de forma dispersa nas palavras que a personagem pronuncia, nos seus atos e nas suas reações perante os outros” (1993, p. 105). As palavras empregadas por uma personagem, afirma Coimbra, “não transmitem apenas aquilo que significam literalmente. Servem também para caracterizá-la” (1993, p. 108). Podem revelar sua região de origem, a época em que viveu, sua idade, sua profissão... Na descrição jornalística, o acúmulo de uma série de informações e indícios poderão descrever a personagem, levando o leitor a tirar suas próprias conclusões (1993, p. 118). A reportagem narrativa organiza fatos, mostrando mudanças progressivas de estado. Os fatos são “organizados dentro de uma relação de anterioridade ou de posterioridade” (COIMBRA, 1993, p. 44). A narrativa tem que selecionar a perspectiva sob a qual será mostrado o que se pretende. Tem que optar pelos olhos que serão extensores da visão do leitor. Dentre os focos narrativos que Coimbra propõe, o mais utilizado em A ferrovia estratégica na cidade central foi o narrador onisciente (em 3ª pessoa). “É o modo de narrar de quem não somente conhece todos os acontecimentos mas até mesmo os pensamentos das personagens” (1993, p. 47). O narrador em terceira pessoa cria um efeito de neutralidade, de distanciamentos dos fatos. Conforme Bulhões, em Jornalismo e literatura em convergência: “a extensa narrativa jornalística oculta os andaimes de sua edificação e em seu lugar apresenta o efeito da onisciência” (2006, p. 199, grifo meu).


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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS O resultado deste projeto experimental, o livro acadêmico A ferrovia estratégica na cidade central, é organizado em dois momentos, um teórico e outro prático. O teórico é um ensaio jornalístico intitulado A grande reportagem como forma. Neste ensaio, o autor recorre a vários pesquisadores da área do Jornalismo para debater conceitualmente sobre a grande reportagem como o gênero jornalístico mais complexo. O ensaio contém reflexões a respeito da absorção de outras áreas do conhecimento

pelo

jornalismo

na

grande

reportagem,

crítica

ao

jornalismo

convencional, as contribuições do new journalism, as características da narrativa de profundidade, os diferentes modelos de reportagem, e o livro-reportagem como espaço para o jornalista explorar seu poder de comunicação. “A grande reportagem como forma foi o primeiro passo do meu projeto experimental. Pesquisando sobre o assunto e produzindo esse ensaio, tive ideias sobre caminhos que o jornalismo impresso poderia seguir para contribuir mais com as reflexões sobre a realidade social. É uma espécie de recusa à objetividade reducionista proposta pelo newsmaking praticado na imprensa periódica atualmente, e uma aceitação do desafio de formas mais profundas de interpretação da realidade. Outros jornalistas bem que poderiam aceitar o mesmo desafio”, afirma o autor. O segundo momento do livro, o prático, intitulado A ferrovia estratégica na cidade central, é uma grande reportagem sobre a presença da estrada férrea historicamente conhecida como Noroeste do Brasil (NOB) em Campo Grande. Nesta narrativa, o autor coloca em prática conceitos que apreendeu durante o estudo teórico. Mais detalhadamente, a grande reportagem faz o exercício de recuar na história e descrever a Campo Grande do início do século vinte, quando essa cidade era um vilarejo pouco habitado, e o crescimento urbano provocado principalmente pelo elemento ferroviário que se estabeleceu na cidade, em 1914. “Durante a narrativa da grande reportagem, a vila vai crescendo, vai se urbanizando, vão aparecendo as casas


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de comércio, os jornais locais, o cinema, os novos habitantes, o trem chegando todo dia trazendo pessoas, e com as pessoas, novas ideias”, comenta. Conforme o autor, a grande reportagem que ele produziu contribui com o conhecimento do leitor sobre o espaço onde habita, a cidade de Campo Grande. “O meu interesse não é informar sobre um fato isolado, mas comunicar um entendimento sobre o que está acontecendo, sobre o contemporâneo, esse é um papel que o jornalismo tem que assumir. Se você ler A ferrovia estratégica na cidade central, vai descobrir o presente no passado que ainda continua. Vai descobrir, por exemplo, o porquê da cidade ter essa disposição de ruas e bairros, o motivo da 14 de Julho ser até hoje a rua do centro que mais concentra o comércio, a razão que explica o fato de Campo Grande ter de certa forma centralizado o progresso proporcionado pela tecnologia ferroviária em Mato Grosso do Sul, entre outras coisas”. Conforme o autor, durante a produção deste projeto experimental, o livro A ferrovia estratégica na cidade central, ele pode explorar ao máximo sua capacidade de narrar sobre a realidade. “Tive a liberdade de experimentar conceitos de apuração e de redação. Tentei colocar em prática, com as fontes pessoais, o diálogo possível da Cremilda Medina, para ter condições de inserir as pessoas, no texto, como personagens únicos, que têm suas preferências, que gesticulam, que têm um jeito de falar, que andam por aí. Fiz isso com um senhor que vive numa casinha de madeira ao lado de uma antiga estação. Eu descobri esse personagem quando fui à estação fazer a observação direta. Ali, tentei também colocar em prática a descrição impressionista que li no livro do Oswaldo Coimbra, O texto da reportagem impressa, andando pra lá e pra cá com um caderninho de anotação e uma caneta, percebendo o ambiente”.


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5. REFERÊNCIAS 5.1 Livros (base teórica) BELTRÃO, Luiz. Jornalismo interpretativo: filosofia e técnica. 2 ed. Porto Alegre, RS: Editora Sulina, 1980. 120 p. BORGES, Rogério. Jornalismo literário: teoria e análise. Florianópolis, SC: Insular, 2013. 325 p. BULHÕES, Marcelo Magalhães. Jornalismo e literatura em convergência. São Paulo: Ática, 2007. 215 p. COIMBRA, Oswaldo. O texto da reportagem impressa: um curso sobre sua estrutura. São Paulo, SP: Atica, 1993-2002. 183 p. KÜNSCH, Dimas Antônio. Maus pensamentos: os mistérios do mundo e a reportagem jornalística. São Paulo: Annablume, 2000. 298 p. LAGE, Nilson. Estrutura da notícia. 2. ed. São Paulo, SP: Atica, 1987. 64 p. LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. 3. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003. 271 p. MEDINA, Cremilda de Araújo. Entrevista: o diálogo possível. 4. ed. São Paulo, SP: Atica, 2005. 96 p. MEDINA, Cremilda de Araújo. Notícia, um produto à venda: jornalismo na sociedade urbana e industrial. 4. ed. São Paulo, SP: Summus, 1993. 188 p. NIETZSCHE, Friedrich. O livro do filósofo. 6 ed. São Paulo, SP: Centauro Editora, 2005. 111 p. ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura I. 2. ed. São Paulo, SP: Duas Cidades, Ed. 34, 2012. 174 p. PENA, Felipe. Jornalismo literário. São Paulo: Contexto, 2006. 142 p. SODRÉ, Muniz; FERRARI, Maria Helena. Técnica de redação: o texto nos meios de informação. 3. ed. Rio de Janeiro, RJ: Francisco Alves, 1982. 129 p. TALESE, Gay. Fama e anonimato: o lado culto de celebridades, a fascinante vida de pessoas desconhecidas e um inusitado perfil de Nova York, por um mestre da reportagem. 2. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2004. 535 p.


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TALESE, Gay. Vida de escritor. 1 ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2006. 509 p. WOLFE, Tom. Radical chique e o novo jornalismo. 2. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2005. 245 p. 5.2 Livros (prática) Album Graphico do Estado de Matto-Grosso. Corumba, MS: Hamburgo, 1914. 433 p. ALMEIDA, Valério de. Campo Grande de outrora. Campo Grande, MS: Letra Livre Editora Ltda, 2003. 111 p. ARRUDA, Ângelo Marcos Vieira de. Campo Grande: arquitetura, urbanismo e memória. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2006. 168 p. Ayumi: a saga da colônia japonesa em Campo Grande. Campo Grande, MS: Sampaio Barros Editora LTDA, 2005. 446 p. CONGRO, Rosário. O município de Campo Grande em 1919. 3. ed. Campo Grande, MS: Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, 2013. 191 p. CUNHA, Francisco Antônio Maia da (Coord.). Campo Grande, 100 anos de construção. Campo Grande, MS: Matriz, 1999. 418 p. LIMA, Astúrio Monteiro de. Mato Grosso de outros tempos: pioneiros e heróis. 2. ed. São Paulo, SP: Editora Soma Ltda, 1985. 200 p. NEVES, João Correia das. História da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Bauru, SP: Tipografias e Livrarias Brasil S/A, 1958. 150 p. OLIVEIRA NETO, Antônio Firmino de. A Rua e a cidade: Campo Grande e a 14 de julho. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2005. 211 p. RODRIGUES, J. Barbosa. A História de Campo Grande. São Paulo, SP: Editora Resenha Tributária Ltda, 1980. 194 p. TAUNAY, Visconde de. A Retirada da Laguna. São Paulo, SP: Editora Martin Claret, 2005. 270 p. VIANNA, Helena. Estudando o passado de Campo Grande. Campo Grande, MS: ANEMS, 1992. 63 p. VIEIRA, Valdemir. Noroeste do Brasil em trilhos e prosas. Campo Grande, MS. 2002. 154 p.


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ZARDO, Edgard. De Prosa e Segredo Campo Grande segue seu curso. Campo Grande, MS: SERGRAF, 1999. 5.3 Periódicos: Abastecimento dagua. Correio do Sul. Campo Grande, MT, p. 1, 22 jan. 1925. (Edição nº 627). ARRUDA, G. A ferrovia e o povo do sertão. Revista Arca, Campo Grande, MS, p. 9-12, ago. 1991. (Edição nº 2). Campo Grande, vai ter água. Jornal do Commercio, Campo Grande, MT, p. 1, 1 ago. 1923. (Edição nº 109). Cel. Pedro Celestino: Carinhosa homenagem ao ilustre chefe político matogrossense. Correio do Sul. Campo Grande, MT, p. 1, 26 abr. 1925. (Edição nº 650). Com o Correio: Um apelo ao Diretor Geral. Jornal do Commercio. Campo Grande, MT, p. 1, 5 dez. 1923. (Edição nº 127). Depredações praticadas por menores. Correio do Sul. Campo Grande, MT, p. 2, 15 abr. 1925. (Edição nº 647). E. F. Campo Grande a Ponta Porã: Início dos trabalhos de construção. Jornal do Commercio. Campo Grande, MT, p. 1, 5 dez. 1923. (Edição nº 127). ELDI, I.; SILVA, L. Culturas e raças interagem nesse trem. Projétil. Campo Grande, MS, p. 12-13, 1990. Força Pública Estadual. Jornal do Commercio. Campo Grande, MT, p. 1, 26 mai. 1927. (Edição nº 237). Guarda Nocturna. Jornal do Commercio, Campo Grande, MT, p. 1, 18 abr. 1927. (Edição nº 208). HIGA, C. Centenário da Imigração Japonesa em Campo Grande. O Estado. Campo Grande, MS, p. C7, 2 ago. 2014. HIGA, V. Rumo à terra da promissão. Revista Arca. Campo Grande, MS, p. ?? Agosto de 1991. (Edição nº 2). MACHADO, P. C. 14 de Julho: seus nomes, seus tipos, sua história. Revista Arca. Campo Grande, MS, p. 14-27, 1995. (Edição nº 5). NOCERA, T.; TWAF, M. Trilhos do desenvolvimento. Pardo Paranauê, Campo Grande, MS, p. 48-55, 2008. Parece. Correio do Sul. Campo Grande, MT, p. 1, 8 jan. 1925. (Edição nº 623).


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Pela cidade. Correio do Sul. Campo Grande, MT, p. 1. 5 mar. 1925. (Edição nº 635). Pelo commercio local: Os commerciantes dirigiram ao intendente municipal, por intermédio do seu advogado dr. José Pereira Teixeira Filho, o seguinte requerimento:. Correio do Sul. Campo Grande, MT, p. 2, 26 abr. 1925. (Edição nº 650). Piquenique. Correio do Sul. Campo Grande, MT, p. 1 e 2, 11 jan. 1925. (Edição nº 624). Relatório aponta fracasso na privatização. Correio do Estado, Campo Grande, MS, p. C2, 19 out. 1998. X. Z. Ecos da rua. Jornal do Commercio, Campo Grande, MT, p. 1, 18 abr. 1927. (Edição nº 208).

5.4 Dissertação de mestrado: MORATELLI, T. Os trabalhadores da Construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil: experiências operárias em um sistema de trabalho de grande empreitada (São Paulo e Mato Grosso, 1905-1914). 2009. 233 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP. 2009. 5.5 Redes, sites, e outros: GONZAGA, Renan. Para pesquisador, ferrovia Noroeste do Brasil foi fundamental para a divisão de Mato Grosso do Sul. Disponível em: <www.topmidianews.com.br/entrevistas/noticia/para-pesquisador-ferrovia-nob-foifundamental-para-divisao-do-estado>. Acesso em: 21 jun. 2016.

RICARTE, Vanessa. Estação Ferroviária de Ligação completa 100 anos em 2014 com história cercada de mistérios. Disponível em: <www.topmidianews.com.br/algomais/noticia/estacao-de-trem-completa-100-anos-com-historia-cheia-de-misterios>. Acesso em: 21 jun. 2016.


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6. APÊNDICES 6.1 Transcrições de entrevistas: As falas do entrevistador estão em negrito. As falas do entrevistado, em regular.

6.1.1 Engenheiro Celso Higa Qual é o teu tema? Meu tema, vou te explicar. É a ferrovia. Nesse meu trabalho, eu to relacionando a ferrovia com a evolução de Campo Grande, a partir do início do século 20. E aí os japoneses, eles fizeram parte disso, né? Eles construíram a ferrovia. Então, eu gostaria de entender, primeiro por que os japoneses, em especial os okinawanos, por que eles saíram do Japão? Em 1895, foi feito o tratado de amizade e comércio entre o Brasil e o Japão. Mas vamos pensar no que estava acontecendo pro lado de lá. Em 1868, entrou um imperador, Mutsuhito Tenno, que era conhecido como Meiji. E o que aconteceu em 1868?: A coisa não foi assim tão pacífica. Houve um período que foi de 1868 até 1869, dois anos que passou da era do Japão feudal dos Samurais, que era da dinastia Tokugawa, ela passou para o Japão, retornando poder ao imperador. E entrou esse imperador, que foi o início da Era Meiji. Quando um imperador assume o poder até a sua morte, é um período. Então esse foi o período dele, que foi de 1868 a 1912, período da Era Meiji. E nessa transição, houve uma batalha daqueles que ainda resistia entregar o poder ao imperador. Essa guerra, essa batalha, ficou chamada como Guerra do Boshin. É onde você vê no filme O último samurai, você assistiu? Você vê no filme Samurai ao entardecer. Você vê em outros filmes aí essa transição. E essa transição, se você for ver no mapa do Japão, a ilha, aquela mais ao norte, a grande ilha de Hokkaido, né? Foi nessa ilha que ocorreu a Batalha de Hakodate. Que foi aí que realmente a era do samurai acabou. E aí o Meiji pode então reinar, quer dizer, o imperador começou a ter o mando de poder. E, nessa época, o Japão começa a ter sua fase do militarismo. Porque era um país que era expansionista, queria dominar as outras áreas ali do lado, né? Então, em 1879, toma Okinawa, que era um reino independente. Okinawa não era Japão, era Reino das Ilhas Ryukyu, que hoje chama-se Okinawa. Que era disputado entre a China e o Japão. Ficava ali ao sul. E também até com algumas participações de coreanos. Era muito mais próximo da Coreia, sabe? Okinawa foi um ponto, um entreposto de vários povos ali do lado, que depois foi dominado e anexado ao Japão em 1879. Taiwan, aquelas partes ali. O Japão, depois que começou a parte do militarismo, ele começou a se expandir, começou a invadir outros povos, queria ter mais terras anexadas. E aí, em 1894 a 1895, ele guerreia com a China. Ele saiu vitorioso. E ao dominar aquela região de Nanquim, o Japão foi vitorioso e foi [?]. E o que acontece é que ele foi se expandindo, foi crescendo. Em 1868, depois que o imperador entrou, a grande preocupação era essa nova


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fronteira, que era Hokkaido, a ilha mais ao norte. Que maneira que a gente vai incentivar? Porque é uma terra praticamente despovoada. Como que eu vou incentivar? Começou a incentivar as pessoas a irem pra lá, dando, assim, terras devolutas pra eles se instalarem, benefícios. E aí foi um monte de gente lá pra cima, pra Hokkaido. Até inclusive Hokkaido ficou como um ponto de formar fazendeiros, de mexer com a terra. Porque já tinha aquela preocupação do Japão se expandir. Mas, sempre tem um problema de uma guerra atrás você ter uma despesa muito grande pro país. E, logo em seguida ao tratado de 1895, que o Brasil já começou a fazer com outros povos do exterior... Havia uma preocupação da questão: o que fazer com o povo? Quando entrou esse imperador, ele sobretaxou demais o agricultor. Porque ele queria sair da sua estrutura feudal-agrária, pra uma estrutura de início da fase industrial, capitalista. Então, algumas pessoas que já tinham alguma estrutura, grupos, você pode ver ali, nessa fase já no final do século 20 [Celso Higa provavelmente confundiu a data], grupos foram prestigiados... Mitsubishi... Começou a surgir tudo por aí. E aí, começou a sobretaxar e incentivar na indústria. Se não tinha esse capital, começou a sobretaxar a população, e o pessoal do campo inclusive, pagar impostos altos, e o pessoal não tinha condições. Começou a [?] para sua a fase germinal do industrialismo, ela começou a se concentrar nas cidades, e o campo começou a ficar despovoado, porque era sobretaxado e as pessoas procuravam oportunidades nas cidades maiores. E aquilo começou a inchar, começou a dar problema de convulsão social. O imperador, com essa batata quente na mão, ele começou a incentivar então a saída dos compatriotas. Aí começou a fazer tratado de amizade com vários povos e começou a mandar gente. Em 1895, é feito o tratado de amizade com Brasil e Japão. Foi feito em Paris. E, logo em seguida, ali na região de [?], umas ilhas pequenas que tinha perto das Filipinas, por ali, ele começou também a incentivar o pessoal a trabalhar por ali. Depois foi pro Hawaii, no Pacífico, que depois virou uma possessão americana, virou Estados Unidos. E, logo em seguida, em 1904-1905, começou a guerrear com a Rússia. Depois de duas guerras, ele ficou endividado, o país. Tem muitas despesas e empréstimos também, né? Financiamentos internacionais. Mesmo assim, ficou numa recessão. E aí sim que começou a incentivar mais e mais o pessoal a sair. Tanto que a imigração japonesa na América do Sul começa no Peru, em 1899. Nesse período, de 1905 a 1908, já estava no governo o Afonso Pena, presidente do Brasil. Foi nessa época que veio então o primeiro navio, trazendo, em 1908, 18 de junho, que chega o primeiro navio, que é o Kasato Maru, que traz os primeiros 781 imigrantes de massa, da imigração de massa. Era interessante colocar, ter ciência, André, que em 1906, chega um japonês aqui, mas por imigração espontânea, que sabia das oportunidades que os brasileiros estavam oferecendo, principalmente para substituir a mão de obra escrava, né? E começou a se trazer imigrantes. Esses imigrantes que vieram para cá, alguns vieram incentivados, tanto que a primeira colônia japonesa que teve aqui no Brasil foi em Macaé, no estado do Rio de Janeiro. As pessoas não sabem. Em 1907 que chegam esses japoneses, eles chegam com os amigos. Ela nasce de 1908 a 1912, essa colônia, e não deu certo, porque foi [?] governo do estado do Rio de Janeiro. Um camarada que intermediava também a imigração, no Brasil, que é o [?], esse convidou o Sr. [?]. Vai sair no jornal isso aí. Sem ser esse sábado agora...


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No O Estado, né? No O Estado. Eu fiz essa matéria e não foi publicado. Então, como tem alternância de matérias com a Academia Sul Mato Grossense de Letras. Um sábado sim, um sábado não. No sábado passado saiu sobre uma matéria do Instituto [Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul], mas era com outras coisas. Então esse sábado agora sai a página da Academia e no outro, alternado, sai essa matéria da primeira colônia japonesa no Brasil. E quinze dias depois vai sair sobre o primeiro japonês que pisou aqui em Campo Grande. Pra você seria interessante ter esses dois jornais... Que pisou? Eu conheço o nome de um japonês que foi o primeiro que se fixou aqui em Campo Grande... É o Yamaki. Sim. Mas quando ele chegou aqui já tinha outro. Ah, tá... Esse outro é... Que pisou que eu digo assim... Ficou quase um ano e pouco aqui... E a história dele é interessante. Você vai ver que está bem sintetizado. Se chama Ishibashi [?]. Ele era veterinário. Ele veio a convite desse pessoal que chegou antes, no Rio de Janeiro. E como ele era veterinário e veio pra cá, o Brasil precisava de veterinários também. Ele começa a trabalhar no Ministério da Agricultura em 1913. Ele trabalhou quinze anos no Ministério da Agricultura. Quando ele entra no Ministério da Agricultura, o Governo Federal manda ele pra Campo Grande. Algum problema de doença animal aqui. Em outro ano, quando chega o que fixou, eles ficaram conhecendo, até comprou terra dele. Esse Ishibashi tinha as terras dele, pra ficar ali plantando, cuidando das coisas que ele sabia. Ele vendeu as terras pro Yamaki. Mas depois foi embora, porque, como era empregado do MAPA, que seria o Ministério da Agricultura e Pecuária, ele resolveu o problema dele e, ao mando do Ministério, foi pra outros lugares. Aí vai pra Goiás, Minas... Lá [publicado no jornal] vai ter essa história... Então... Foi por isso que vieram... Fui falando coisas aí que... Porque que vieram... Pelo problema da situação econômica que estava feia no Japão. A população estava altamente desempregada. Ainda estava no início de sua fase industrial. O que fazer com esse contingente em excesso? Você tinha que [?]. Incentivar eles trabalharem lá fora e trazer dinheiro pro país. Os caras vão lá pra juntar dinheiro e voltar. Era essa ideia, no início. Eles não queriam trabalhar, faziam uma propaganda de que aqui no Brasil tinha uma árvore que dava frutos de ouro. Na realidade, isso é um eufemismo, era o café. Estava exportando e dava dinheiro pro Brasil. Então, eles vieram participar nessa leva. É interessante que, eles vieram, e, no início, não queriam os japoneses pra vir pra cá. Eles tinham o problema da barreira. A questão da xenofobia. É uma raça diferente, o pessoal fala “exótica”, porque não tinha... era de olhos puxados... era diferente do que vinha. Os primeiros que vieram pra cá, logo após a escravidão, vieram italianos pra trabalhar, espanhóis, e outros também que vieram, né? Mas foi uma proibição, em 1903, do trabalho que era muito puxado, que era quase que desumano, as fazendas cobravam muito através dos seus capatazes, de certa forma até quase


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que maltratando, a Itália não quis mais mandar compatriotas. E os fazendeiros paulistas que sentiram que então não ia produzir. Falou “o que a gente vai fazer?” Começou ver o cenário, o que eles tinham de contato, porque eles queriam trazer europeus, manter... O Brasil, como tinha também recém-libertado os escravos, também não queria parecer ao mundo que era um país só de pessoas da pele negra. Queria fazer o embranquecimento da raça. Mas como não arranjaram em contingentes suficientes de trabalhadores, partiram pra opção... para o plano B. E quem que havia aqui? Têm japoneses, quer vir? E foi assim que vieram para trabalhar. Então, em suma é isso, porque que vieram trabalhar. E desses 781 imigrantes que vieram no primeiro navio, o Kasato Maru, 325 eram de Okinawa, quase 42 por cento. Porque Okinawa tinha sido anexada pelo Japão, começou a fazer parte do Japão, tinha um número considerável de pessoas sem o que fazer. Foi por isso também que veio expressivamente encaixado o pessoal de Okinawa. E eles vinham constituídos como se fossem famílias. Alguns até pra encaixar. Faziam casamentos no papel. Imaginava que se separaria porque no Japão era fácil lá a questão do divórcio, e aqui não era ainda. Então teve que se sujeitar a ficar, adotar um nome familiar, e até que ficar junto, as mulheres que fizeram esse arranjo patrimonial. Veio muita gente assim. Mas por esse motivo: questão econômica do Japão. Você foi na Associação Nipo-Brasileira ou não? Não... Saiu um livro chamado Kasato Maru: a viagem de esperança. Mostra o destino de todos os imigrantes. Tá a venda lá. Ou você pode ir lá pra consultar. Eu comprei esse livro e estou lendo ainda. Mas lá tem. Lê pra consulta.Fala que está fazendo esse trabalho, sobre esse pessoal que vieram no Kasato. Como curiosidade, pra você compor o material da sua monografia. Tá... Então nós temos os japoneses que vieram para trabalhar com o café, em São Paulo; e você também mencionou uns que foram para o Peru. Esse é antes. Esse era independente da imigração do Brasil. Uhum... E tem a questão da ferrovia. Ela, aqui no estrado [MS], a gente fala de Itapura à Corumbá, ela veio construindo de um lado e de outro. Os japoneses trabalharam– Nas duas frentes. Nas duas frentes! Vou assim dizer... Na realidade, eram oito fazendas paulistas. Eles começaram a trabalhar e... Onde que tá o pessoal que vieram de Okinawa também, né? Eles começaram a distribuir conforme o camarada de [?] regiões... Então os de Okinawa praticamente ficaram em duas fazendas, que é a Floresta e Canaã, lá no estado de São Paulo. Mas eles começaram a perceber que aquela ideia de plantar um ano, dois anos, depois colher... Vamos supor... Em quatro anos eles tinham feito colheita suficiente para que eles tivesse remuneração e voltar ao país de origem, né? E lá comprar alguma coisa, voltar numa situação, eles imaginavam, até melhor do que os que ficaram. E essa situação... Eles perceberam aqui que eles já chegaram numa época de fim de colheita, então teria que começar um outro processo novamente, e eles perceberam que não era aquilo. Os caras ficaram na mão também da administração, e eles


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tinham que ter outro tipo de alimentação. Chegavam aqui, os caras iam comer como? Sal ou açúcar, o que vai colocar na comida?... Comeu um negócio que tinha uma... Era pele de porco, sabe? Estavam comendo e tinha até pelo naquilo. Faltava limpar. E ficava o arroz... Feijão eles não conheciam essa forma de comer como se fosse uma feijoada. Eles lá tratavam o feijão como se fosse soja, né? Você esmagava, fazia o tofu, fazia o missô, fazia o shoyu... Dessas sementes que trouxeram desde os primeiros navios. Vai trazendo um pouquinho pra plantar das coisas que eles tinham. E quando chegava na mão da administração lá da fazenda, você tinha que pegar coisa pra comer, e quando cobravam o preço era o dobro, o triplo. Então, quer dizer, você ia ficando na mão. E você acabava mais devendo do que recebendo, vamos dizer assim, no frigir dos ovos. E isso aí fez com que eles começassem a analisar que eles nunca mais voltariam. Era uma forma escrava. Começaram a fugir das fazendas de noite. Na calada da noite, começaram a fugir. Pra onde tem uma cidade grande aí? A mais próxima é em tal lugar. Iam pra essas cidades em busca de serviços. Aí foram pra São Paulo, alguns foram pra Santos, alguns tentavam voltar, mas na realidade não... Mas como?... Tinha que entrar na parte dos serviços. Aí começaram... Empregados de hotéis, de serviços gerais... Alguns começaram a pedir serviço como barbeiro, porque não é um serviço que... Às vezes os caras cortavam só pela simetria de como é que estava a cabeça do cara. E cortavam o cabelo. As mulheres também como se fossem empregadas. Foram fugindo pras cidades. Foi quando ouviram que estava se construindo uma estrada na região sul de Mato Grosso. Começaram a procurar essas empresas que estavam contratando trabalhadores. Essa empresa, ela começou a contratar e eles vinham pra Santos. E chegaram lá em Santos. Começou a vir uma turma que ia começar pela frente oeste, que foi em Porto Esperança. Ainda não tinha chegado em Corumbá. Ela começou antes de Corumbá. Um pouco pra cá. No lado de cá do Rio Paraguai. É. Só quando essa turma chegou... E foi passando na Argentina... Porque o navio tinha que vir por baixo. Por baixo. Pelo Estuário do Prata e tal. Ali na boca do Paraná, quando desce e encontra o mar. E na Argentina também sabiam que estavam construindo. Alguns japoneses do Kasato foram para a Argentina também. Vieram no mesmo navio. Uns resolveram ir pra Argentina. Chegavam lá, conheciam, vamos trabalhar lá pra cima? Tem! Paga bem! Um salário cinco vezes mais que um professor médio no Japão. E professor era bem considerado, era elite, no Japão. Então vamos! Mas não conheciam malária, nada disso. E foram. Esse grupo que foi pro Porto Esperança. Quando chegou em Porto Esperança, eles viram outro grupo de japoneses. Mas qual grupo era esse, se eles achavam que eles eram... Eram os que tinham vindo do Peru. Um grupo que veio do Peru. A maioria do pessoal de Okinawa que veio... Tinha um grupo já do Peru... Eles ficaram alegres, porque o idioma era de Okinawa. Tinha de outros também, sabe? Mas os mais representativos eram esses de Okinawa. Eles vieram, ficaram todos alegres porque encontraram pessoas da mesma terra, e idioma, todos alegres. Ah, sim... O que uma vez eu tentei... Pesquisei no cartório de Corumbá... Mas por que Corumbá? Porque Porto Esperança estava ligado à Corumbá. Fui lá e não achei nada sobre os japoneses mortos. Como cadastro de Porto Esperança, para o cartório de Corumbá, só fui ver lá nos anos cinquenta, parece que estragou um negócio de pescaria, na região, morreram por lá...


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Aí eu fui em Miranda. Miranda eu achei falecimento através dos anos vinte. Mas daquela época antiga, o período da construção, que foi de 1908 até 1914, não achei nada, não, sabe? Até porque assim, André, vamos considerar que os funcionários eram peões, enterravam ali [Higa aponta para o chão], registro de nomes, esses negócios... não... Eu li alguma coisa a respeito da construção que começou especificamente em Porto Esperança, que os japoneses que trabalharam ali, nesse trecho, eles tinham o hábito de queimar o corpo dos japoneses que faleceram pra tentar em outro lugar... Isso é bem possível mesmo, porque os japoneses preservam muito a questão das missas, sabe? E muitos deles... O meu tio-avô, quando faleceu, a minha tia-avó, que era casada com ele, eles não tiveram filhos, e tanto que quando ela quis voltar pra morrer no Japão, ela quis levar as cinzas do marido. Então nós tiramos os ossos, queimamos, trituramos, colocamos num pote e ela levou. Então isso é costume também, sabe? De levar. É muito forte essa questão de antepassados, principalmente se era cônjuge, você levar de volta. E assim foi feito. Minha tia-avó depois faleceu... Minha mãe até foi ao Japão e encontrou minha tia-avó num asilo já bem velhinha... Nunca ia imaginar que um dia ia encontrar, sabe?, depois que saiu daqui. Tinha isso, mas assim, talvez pode ser até por isso que não se sabe dos registros ou local de sepultamento. Porque a ideia seria isso, você não sepultar porque era peão. Pras empresas? Vai ficar carregando corpo pra lá e pra cá? E, por outro lado, a outra turma que saiu de Itapura, daqueles que estavam descontentes, das fazendas do interior de São Paulo, começavam a fazer o grupo da outra frente. O ponto imaginado, seria o ponto equidistante nesses distâncias que seria Campo Grande. Mas a frente que veio de Porto Esperança chegou primeiro. Chegou aqui em 28 de maio de 1914. Chegou, não achou, foi indo. Foi achar quase 30 quilômetros daqui pra frente. Lá em Ligação. Deram esse nome porque foi o encontro das duas frentes. Eu conheço aquela estação. Eu visitei recentemente. Passou lá? Fotografou? Fotografei. Tá bem acabado, né? Tá. Telhado está aberto. Tá bem acabado... Você reparou naqueles trilhos? Onde que tem [?] poste? Como se fosse pra telégrafo, alguma coisinha, poste pra passar uns fios que ficariam ligados lá dentro. Aqueles postes são de mil novecentos e pouco, 1907, 1908... Eu olhei nos postes, raspei pra ver... Mas você não deve ter... Não percebi. Eu tenho pedaço aí, de 1907, que era um trilho belga. Foi usado na construção. Os trilhos foram franco-belga, né? Franceses e belgas que produziam esses trilhos pra Noroeste.


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Então ele chegou aqui, não achou, e foi em frente. E, no final de agosto, foi o fato da ligação. Depois você me deixa o teu e-mail, se você for precisar de algumas fotos, eu tenho foto do início da construção em Porto Esperança, e tenho foto do último trilho sendo colocado. É aquela foto que está todo mundo assim em volta do trilho, e tem um rapaz pisando em cima do trilho? É uma foto conhecida que eu vi várias vezes, que é a da Ligação, mas não sei se é essa que você tem. É essa aí. O último trilho sendo colocado. Eu tenho essa imagem. Você tem, né? Uhum. Aquela foto eu consegui distribuir nos meios aí. Consegui a foto, a cópia, e revelei, e depois eu fui divulgando... Então deve ser por isso que eu encontrei com facilidade... Veio da Estação de Bauru. Então! Acho que foi em agosto, dia 31, ou 30?... 31, eu acho. 31 de agosto foi a data da ligação. Mas não foi da inauguração. Da inauguração foi um mês e meio após, que foi aqui em Campo Grande. Por que você iria inaugurar num lugar que não tinha ninguém? Você tinha que ter público. Então foi feito aquele… em Campo Grande. E aí veio até correspondentes internacionais… Porque na época era a maior obra que estava sendo construída na América do Sul. Era a ferrovia, sabe? E, acabando a obra, muita gente voltou, outros foram embora pra São Paulo, outros resolveram se fixar na Argentina, um grupo de japoneses, e alguns resolveram voltar pro Japão, viu que a coisa ia ficar feia mesmo. Aí começou a crescer a parte do café e houve muita propaganda. E começaram a vir os outros navios pra cá. Foi o início dessa questão. Em síntese seria isso. Mais alguma dúvida? Sim. Eu li um texto, talvez de alguma parente sua, que se chama Vera Higa, que está na Revista Arca número 2, de 1991. Lá ela fala que os japoneses vieram porque acreditaram que aqui era uma espécie de “terra da promissão”. O que eles encontraram, durante o trabalho, pelo menos no trecho que começou em Itapura [na verdade, Porto Esperança], era insalubre. Eles se decepcionaram? Muitos conseguiram terminar? Porque muita gente morria naquele trecho… Quais dificuldades eles passaram durante a construção? Na construção, eles ficaram em grupos. Até pela comunicação. Tinha que saber falar o japonês ou o uchinaaguchi, que é a língua, o dialeto, de Okinawa. Tinham o grupo de japoneses que iam abrir a estrada, fazer o serviço até pra ajudar também a parte da alimentação. Talvez lá do [?] que fazia a parte da cozinha. Os grupos, né? Catar galho e


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árvores mortas pra fazer lenha. Outros iam pra questão de fazer a parte de colocar dormentes. E depois a parte de fixação, não sei se eram outras equipes que faziam. Mas eles faziam as frentes também. Encontrar uma região como o Pantanal e outra lá perto do Rio Paraná, a região de Itapura ali pra cá, não havia controle mesmo, porque a malária era brava. Então pegava essas doenças e ia morrendo gente pelo caminho. E isso era uma barreira que só foram conhecendo na empreitada, na execução dos serviços. Mas a “terra da promissão” é isso. A questão que a Vera citou eu conheço. Não é parente, não. É esposa de um médico ortopedista. Eles vieram da região de Prudente, Presidente Prudente. Ela embasou muito no livro de Tomoo Handa chamado O Imigrante Japonês. Ele conta uma passagem daqui. Mas o Tomoo Handa nunca veio pra cá, ele soube de pessoas que trabalhavam aqui. Então o que era a “terra da promissão”? É isso: essa questão do Japão ter lá… Estar plantando uma árvore que dá frutos de ouro, que era o café. Isso é um eufemismo, né? Não dá, na realidade dava dinheiro pra exportação. E as pessoas ficavam ricas com isso. Essa colocação ela é muito assim. A “terra da promissão”. Vamos lá que em pouco tempo a gente trabalha, ganha dinheiro e volta rico. Essa é a ideia da “terra da promissão”. [?] doenças e o dia a dia. A assimilação dos costumes daqui, que eles não conheciam. Tentou-se fazer uma colônia perto de Cuiabá. Colônia Capem [?]. Eles não sabiam, eles iam na caça até pra fazer um monte de coisa. Caça aí! Os caras caçavam macaco para comer. Isso é de uns conhecidos que os pais foram para essa Colônia Capem. E não deu certo. E desse grupo… são fatos das dificuldades isso, né?... foi pra Bolívia, em Santa Cruz, e outros vieram pra região de Campo Grande, pra se misturar com todos colonos que já existia aqui. Isso aí não naquela época inicial. Eles fizeram nos anos 30. Isso é uma fase com a ferrovia consolidada. Mas a questão da “terra da promissão” é isso. A propaganda que se fez no Japão de que aqui era uma terra que você vinha trabalhar, ganhava dinheiro e daria para eles voltarem. Na verdade foi uma propaganda enganosa, de que havia conluio das duas partes interessadas. O governo brasileiro, através do Estado de São Paulo, e o Japão queria mandar gente. E a respeito da participação dos japoneses no desenvolvimento de Campo Grande? Depois de 1914, houve a ligação e a ferrovia começou a funcionar. Alguns japoneses ficaram em Campo Grande, se estabeleceram aqui, e foram importantes para o nascimento da cidade a partir do começo do século 20. Na realidade, era assim. A cidade, ela cresceu mesmo com a implantação da ferrovia, a mudança dos quarteis, que veio para Campo Grande, que construiu de 21 a 22. Com os quarteis vindo pra cá, deslocavam as pessoas… gaúchas, geralmente militares também, muitos gaúchos, alguns do interior de São Paulo, dos grandes centros… começaram a vir pra cá até pra cuidar dos destacamentos, com comandantes e com soldados de guarda. Essa vinda começou a vir os serviços. Correios ficaram mais acentuados… Até em questão de moda… Uma vez, uma amiga minha, a Nisolete [?], não sei se você chegou a entrevistá-la, a Nisolete, ela coloca muito bem essa questão do desenvolvimento de Campo Grande. Ela coloca até a questão da… as mulheres daqui iam à estação ferroviária pra ver qual é a moda, como que as mulheres voltavam vestidas dos grandes centros. Já viam mais ou menos e conversavam com as costureiras, porque você não tinha lojas, boutiques, coisas desse tipo. Era tudo manual. Era feita roupa de alfaiate… Eu vi muita propaganda de atelier nos jornais daquela época…


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Sim. Corte e costura. Cursos de corte e costura para incentivar as pessoas ao ofício, saber costurar, né? E tinha um modo de costurar, um modelo toutemode, que era italiano, que as pessoas faziam. Vinha muito pela questão da ferrovia. Vinha trazendo as coisas novas. Jornais, revistas, que chegavam também. O trem. Você já tinha mais acesso à leitura, comunicação. Mas, no começo, praticamente, eles estavam nessa parte de agricultura e outros serviços. Barbeiros, na parte de tintureiros, que era a [?] de serviço. Agricultores. Tanto que da região que você tem… Se fixavam primeiramente na região do Córrego Segredo, da Antônio Maria Coelho até o São Francisco. Era conhecido como a região do Chacrinha. Chacrinha por que? Era cheio de chácaras que os japoneses se fixavam. Tinham regos d’água que caiam todos no Córrego Segredo. E faziam desses regos um desvio para um poço, depois voltando a água pra lá, pro curso, onde muitos das [?] antigas de japonesas, elas lavavam roupas. Para restaurantes aqui da cidade, casas de fazendeiros ricos. Elas faziam esse tipo de serviço. E também tinha o que os maridos plantavam, e elas ajudavam nas plantações, e ofereciam a questão das verduras e leguminosas para o povo, que não conhecia. Na época, não tinha muito adubo, não. O pessoal fazia artesanalmente as coisas, pelo próprio conhecimento que eles trouxeram de lá, do Japão, principalmente da ilha de Hokkaido, onde formou-se núcleos de o que era ser agricultor, né? Desde a época eles faziam. Aqui não. Aqui era carne assada e mandioca e sei lá… arroz… não sei se arroz era tão divulgado. Mas era essa a comida daqui. Aí começou aparecer a questão das verduras, que foram uma forma de divulgação dos japoneses, até pra começar a vender os produtos que eles plantavam. Então os japoneses, eles interferiram no costume da alimentação das pessoas, em Campo Grande? Da alimentação. É. Eles começaram também a plantar e fazer os shoyus, nas suas chacrinhas, nas suas sedes das chacrinhas. O shoyu tem um processo artesanal de se pegar… E se não tivesse soja, era feijão mesmo… Plantavam, pegavam os grãos, amassavam, misturavam com sal, colocavam num saco, iam torcendo, iam colocando APA [?] pra deixar a umidade… é o processo de fermentação. E aquilo, com o tempo, você jogava e colhia aquele líquido. Aquele líquido não sei se era feito com 60 dias ou pra cima disso, começava a sair um líquido escuro. Esse líquido escuro é o shoyu. E a massa é o missô, uma pasta de soja. Aproveitava os dois. Aproveitava. E isso pra eles. A alimentação bem parca, não tinha nutrição. Eles eram pobres e tomava-se mais chazinho. Pra tomar um leite era difícil. Mas sabiam que era nutritivo. Tinha que comprar. Num vizinho, num fazendeiro, comprar uma garrafa de leite. Eles quase não tomavam. A região que eu soube da história, da Colônia Capinzal, é uma colônia muito pouco divulgada, que ficava ali da 26 de agosto até quase ali a Salgado Filho, mais pra frente do Horto Florestal. Ali tinha um núcleo. Que era terra do Baís, família antiga daqui, que arrendou para um grupo de japoneses, que ficou conhecida como Colônia Capinzal. Peguei depoimentos de pessoas que moravam nessa colônia, e elas colocavam que era difícil, era uma região barrenta, plantavam-se algumas frutas, batatas, mandioca, e legumes, pra vender. Eles vendiam, levavam as carroças para vender no Mercadão. Quer dizer, a importância é assim, difusão de verduras e legumes, numa cidade que ainda não conhecia. Na parte primária. Na parte de outros tipos de serviços… Porque eles não


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tinham dinheiro para investir, não eram empresários, vieram como necessitados, como é imigrante quando chega, é sempre assim difícil. E uma coisa que eles faziam: era o mutirão entre eles. Vamos agora reunir para construir a casa de tal pessoa. Todos eram unidos. Depois começaram a ganhar dinheiro. E esse sentido de solidariedade foi se acabando com o tempo. Mas eles eram assim. Fim de semana era para construir, as mulheres preparavam comida, os homens iam lá preparava a casa, se era de pau-a-pique, ou o que fosse, ou de já material de construção, de madeira. Depois, serviço de barbeiro, de carpinteiros… Alguns foram construir a parte dos quarteis. De 21 a 23. Levavam comida, levavam capim pros cavalos que tinha, cortavam o capim, acredita? Quer dizer, iam ocupando pra ter espaço. E nisso eles sempre colocavam o não esquecimento dos filhos, na parte do ensino. Tanto que criou uma escola de língua japonesa pra não perder o costume. Queriam voltar. Aí, com o tempo, foi ficando, eles não foram voltando, estourou a guerra, aí que não dava pra voltar mesmo. A situação estava difícil e eles ficaram por aqui. Tem gente que plantou café. Teve um senhor chamado Gunshiro Nakao [?]. Ele é um senhor que, pra mim, daquela primeira fase, pra mim foi o maior imigrante japonês que deu certo como empresário. Ele chegou a ter até edifício. Edifício Nakao em Campo Grande, Edifício Nakao em São Paulo, Edifício Nakao no Rio de Janeiro. Tudo fruto do café que ele plantou lá na Colônia do Segredo. Depois ele veio plantar aqui na saída da UCDB, Rincão, teve núcleo de japoneses ali também. Minha mãe nasceu ali na região do Rincão. E quando ele conseguiu uma boa grana com a empreitada que deu certo na Colônia do Segredo, ele foi pro Japão, quis casar, ele arranjou uma esposa lá, uma pretendente, que ele casou, que era uma professora, que serviu muito para ele crescer. Ele convidou algumas pessoas, conterrâneos, de uma região lá, pra vir trabalhar com ele. Ele pegou alguns casados, alguns solteiros e arranjou quatro noivas pros que já estavam aqui. Isso, em japonês, tem o nome de miyagi. É o casamento arranjado. Antigamente era assim, não era só japonês, não. Mas em japonês tinha o nome de miyagi. Tanto pros Estados Unidos, eles mandavam as fotos. Lá tem o nome de… que casavam com alguns japoneses que foram para os Estados Unidos… eles se conheciam através das comunicações dos correios, por encomendas com fotos de pretendentes dos dois lados. As moças tinham o nome de… como que era… picture brides… que seria noivas por fotografias. Nessa leva aí, esse senhor convidou o meu avô, o pai da minha mãe. Ele veio nessa leva como casado e minha vó ficou lá em Okinawa, com duas filhas nascidas e uma esperando, quando ele veio. Aí ele veio pra cá. Seis anos depois, a minha avó chega. Já estava estabilizado. Ela chega, já vem com as duas filhas e outra que minha vó estava esperando. E logo que ela chegou aqui, depois passou um ano, e já nasceu a minha mãe. Nasceram outros filhos aqui… Então sua mãe é brasileira. Minha mãe é nascida aqui. Na região perto de Rochedinho que chama Rincão. E aí esse núcleo cresceu. Ele era um senhor muito justo. Pra todos que trabalhavam com ele, ele deu essa… incentivou a ter seu próprio negócio, a sua chácara, sua propriedade. Meu vô tinha uma, antes de chegar Terenos, ali na região de Jaraguá, onde tinha uma estação. Quando você faz uma curva, antes de chegar Terenos, tinha uma Estação Jaraguá, era ali aos fundos, que era a Colônia Jaraguá de japoneses, que na realidade era três, quatro colonos,


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dentre eles meu avô que era o líder da região. Chegou a trabalhar com esse senhor que o trouxe de Okinawa. O pessoal foi crescendo nesse aspecto. E esse senhor virou um grande empresário, sabe?, depois que ele começou… Sabe a microempresa deles o que era? Não só desse senhor, mas em Campo Grande chegou a ter umas oito ou nove fábricas de pinga de japoneses. Ah, é? Interessante... Eu tenho. Isso aí eu tirei tudo cópia pra você. Coloco tudo ali, tá? Aí você leva pra compor. Se tiver algumas dúvidas também. Depois você me passa teu e-mail pra eu poder te adiantar algumas coisas pra você encaixar. Eu tinha mais dúvidas, mas não a respeito da imigração. Eu li um artigo seu no livro de personalidades a respeito de Emílio Schnoor. Aí eu tenho algumas dúvidas a respeito dele. Não sei se você se importa em responder… Não. Posso. No fundo é a mesma coisa. O Schnoor é o engenheiro que é meu patrono no Instituto Histórico e Geográfico. Você foi lá, você falou com a Madalena, né? Eu tô lá por causa do Schnoor. Eu estou na cadeira dele, vamos assim dizer. Tem a cadeira Emílio Schnoor. Antes de mim, quem era o que cuidava essa cadeira… Como se fosse uma academia de letras. Morre um, chama um outro pra substituir que tenha produtos comuns de pesquisa. Vão [?] na comunidade quem mexe com isso. E chamam, e convidam. E eu fui lá por causa do Schnoor. Quem me antecedeu era o dono do Correio do Estado, professor J. Barbosa Rodrigues. Ah! O livro dele eu já li. História de Campo Grande! Você leu esse livro? Eu emprestei esse livro numa biblioteca e tô com ele ainda. Lá tem ele citando sobre Schnoor, né? Uhum. Eu substitui o Barbosa Rodrigues por cuidar do Schnoor. Seria isso. Mas qual que era sua dúvida? A respeito do projeto dele publicado em 1903, que tem aquele nome grande, eu não vou lembrar agora… Projeto… não sei se é… de uma estrada de ferro… Itapura… … São Paulo dos Agudos… … São Paulo dos Agudos, Itapura à Corumbá. Nunca achei esse livro. Ele é sempre citado nas referências. Tanto que eu fui no Clube de Engenharia, no Rio de Janeiro, pra saber se eles tinham lá. Não tinha. Familiares me ligaram… se eu tinha esse livro… mas eu não tinha e não tinha mesmo. Mas a gente sabe que foi um trabalho publicado pelo Jornal do Commercio, a tipografia, em 1903. E esse trabalho é que foi levado pro estudo, para o Ministério… E o Clube de Engenharia tinha voz naquela


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época, era um órgão muito consultivo, né? E dava parecer que, às vezes, influenciava muito a questão nacional, questão de infraestrutura e projeto para o Brasil todo. Mais ou menos como se fosse a OAB hoje? Teria uma força comparada com a da OAB. Hoje não tem mais, a engenharia. Mas ele foi feito até pelo José Carlos Rodrigues, que era o dono do Jornal do Commercio, que era muito lido no Rio de Janeiro. Ele influenciou. Olha, aquele livro é interessante. Tem essa alternativa daqui. Porque a estrada de ferro, do lado sul do antigo Mato Grosso, teria a mesma autoria… quem estaria tocando era o que fez no estado de São Paulo, o paulista lá, me foge o nome agora, to com ele na cabeça, mas… me foge o nome. E já estava construindo o caminho que ia subir pelo estado de São Paulo, ia chegar lá em cima, na região da fronteira dos três estados, não no Rio Paraná, mas pelo Rio Grande. Faria uma travessia mais curta. E seguiria dali, onde pegaria a região de Paranaíba, Costa Rica que tá hoje, Baús, passava por Baús, queria que chegasse até Coxim, de Coxim subia até Cuiabá. Esse era o projeto antigo, da parte do então Mato Grosso. Mas como vingou a questão da preocupação das fonteiras, da soberania nacional, voltou [?] no governo de Afonso Pena, pelo seu ministro de obras, que na época chamavam ministro de viação, que era o Miguel Calmon Du Pin e Almeida, que era o nome do ministro, conhecido como Miguel Calmon. A alternativa do Schnoor é melhor. Parou aquela obra e veio a questão de se fazer esse projeto mais pro sul. Aí foi em outubro de 1907, Schnoor veio com a comissão dele aqui. E começou a fazer o trajeto. Uma coisa é você fazer no papel, outra coisa é você ver as dificuldades in loco. Talvez tenha sido o primeiro engenheiro que tenha pisado em Campo Grande, o Schnoor. Já vi isso de algumas teorias de amigos, que são urbanistas… Você conversou com o Ângelo Arruda?... Com o Arruda ainda não. Mas vou entrar em contato com ele. Ele é um bom cara pra você conversar. Muito sério nessa questão. Preocupado. Nós fizemos juntos uma ONG de manter os trilhos, sabe? Ele era o presidente. Mas é bom você conversar com ele. A questão importante do Schnoor foi isso. Passou por aqui, fez o trajeto. Ele nunca morou em Campo Grande. Na realidade ele era francês de nascimento, mas de sobrenome alemão, Schnoor é alemão. Mas ele é importante por causa disso. A importância da linha férrea para Campo Grande é primordial. Quem eram as cidades importantes da região de Mato Grosso?: Eram Corumbá e Cuiabá. Mas pela via fluvial. Você tinha que descer lá por baixo. E essa questão de você passar por rios que cruzava outros países, ou estava delimitando, ou passando por dentro de outros países, dava um problema de diplomacia. Nem sempre o pessoal tava com humor de deixar passar. Problema de guerras. Se viesse uma outra guerra, como ficaria pra chegar em Corumbá? Se passando ali por dentro de outros países que poderiam ser inimigos. Por essa questão se pensou nessa ferrovia chegar até lá. E, na realidade, chegando até a Bolívia. Porque, se você for ver, a Bolívia perdeu terras na questão do Acre. Não sei se por causa disso houve compensação. Que ela… as exigências dela… a ferrovia chegasse pra lá. Essas questões diplomáticas e relações exteriores têm influenciado também…


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E também tem até um cara interessante. Um empresário chamado… Farquhar. Ele era um camarada que era ligado a minérios, ferrovias, um americano. O sobrenome parece meio que árabe, né? Ele tava por trás disso também. Ele tava na questão da Bolívia, da questão da Madeira-Mamoré, a ferrovia que ia levar borracha, ia levar não sei o quê, lá pra cima, e não deu certo. E ter uma ferrovia pra transportar as coisas que ele gostava. Ele gostava de minérios. Corumbá tinha minérios. Então pra transportar ali. E fazendo o encadeamento de produtos a serem transportados. Ele tinha também o que?: Ele tinha, aqui na região de Rio Pardo, pra frente, até próximo de Campo Grande, tinha um empreendimento que era ligado com pecuária, bois, pra ele transportar também. Você vê que tudo é encaixado, né? De interesses empresarias. Esse cara fez uma empresa chamada Itabira Iron, que era da parte de ferro. E depois ela foi nacionalizada com o nome de Vale do Rio Doce. Você vê que são os gigantes do poder que estavam por trás disso também. Mas o Schnoor, ele foi um engenheiro muito competente, sabe? Ele fez mais de mil e duzentos quilômetros só na Argentina. Eu conversei, uma vez, com uma arquiteta. Ela queria saber onde que ele tinha nascido, onde que ele tinha formado. Eu peguei muita informação com a família, que me passou. Fiz contato com a Ângela Schnoor, bisneta do Schnoor. E eles tinham as informações fáceis. E as fotografias que tem hoje de Campo Grande é mandado por essa [?]. Eu passei pro Arca. Por isso que tem fotografia do Schnoor em Campo Grande. As pessoas não conheciam. Uma última dúvida. Você menciona, no seu artigo, aquela Avenida Schnoor, que fica no Tiradentes, né? Isso. Eu fui lá, eu conheço, tem aquele colégio, mas lá é uma ruazinha pequena. De um lado está escrito o nome Schnoor errado e do outro está escrito certo. Eles acertaram num poste e no outro poste colocaram errado. Você menciona que antes era em outro lugar a Avenida Schnoor… A Schnoor é hoje a João Rosa Pires. Sabe onde é a João Rosa Pires? Não sei. Tem o Mercadão? Uhum. Não tem o estacionamento do Mercadão? Sim. Você não passa do lado do Colégio Osvaldo Cruz? Ah… Aquela que vira e cai na Praça das Araras. Essa é a antiga Avenida Schnoor. Só que as pessoas chamavam “Chinôr”. Não sabiam, né?


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Você vê… A coisa é tão misteriosa. Você vê o sotaque. Tinha gente que me perguntava se era japonês. Não! Esse Chinôr na realidade é Schnoor. e é um sobrenome alemão. Esses Schnoor vieram da região de Bremen, na Alemanha. Depois foram saindo. Foram pra França… E você vê. Tiraram daqui pra jogar lá. Por que? Consta que a comissão Schnoor, que era a equipe de engenheiro, geólogos, tudo pararam ali no… Eles tinham várias frentes, né? Mas o [?], que estava aqui no perímetro urbano, era no estacionamento do Mercadão. Então, ali na frente, [?] que se homenageou Schnoor. Que foi no lado dos trilhos, onde a comissão estava ali instalada, que foi homenageada a rua. Aí botaram uma que não tem nada a ver com... Você sabe falar assim de cabeça quando é que alteraram o nome Avenida Schnoor de lugar? Naquela Personalidade tem, no final, que foi o decreto municipal que mudou. Quando começou a mudar nome pra prestigiar pessoas daqui. E aí ficou João Rosa Pires, que era um médico, né?, que fez grandes serviços aqui pra comunidade. Conheço até parentes dele. A questão que é a dúvida: por que não poderia trazer de volta? Mas o problema não é simples assim. Quantos comércios não tem por ali? Todos eles tem nota fiscal com nome da rua. E de repente, você mudar, vai ter que tirar tudo aquilo, mudar, e dá um trabalho, né? E já foi homenageada a família do outro aí. Teria que ter um nome melhor com o vínculo histórico da ferrovia. Esse que é o sentido da coisa.

6.1.2 Sociólogo Paulo Cabral Acho que pra gente entender a ferrovia e Campo Grande é preciso, antes, a gente situar Mato Grosso do Sul. Mato Grosso do Sul ou Mato Grosso, capitania do Mato Grosso, ela não era parte do Brasil. Tá? Então a gente já vai ter uma incorporação tardia desse território do centro-oeste ao território brasileiro, que originalmente, por Tordesilhas, vinha de Belém à Laguna. Então, essa parte, ela vai ser incorporada efetivamente na penetração do século dezessete, e a incorporação, século dezoito. Então você vê que o centro-oeste, o norte, ele vai ser incorporado tardiamente, dois séculos depois. E não tinha tido, também, a penetração espanhola suficiente. Por que? Porque aqui tá muito no coração do continente, distante do mar, seja do Atlântico, seja do Pacífico, e, portanto, esse miolo da América do Sul fica meio preservado da ocupação europeia. Claro que há incursão, buscam-se as minas de prata que acabam sendo descobertas em Potosí, na Bolívia, mas forante explorações pontuais, você não tem a ocupação europeia. Século dezessete, com as entradas de bandeiras, você tem o caminho monsoeiro [?], que passa pelo sul do Mato Grosso, seja por uma rota que desce o Paraná, e vem pelo Amambai, pega o Miranda, e daí o Paraguai; seja a rota mais usual, que vem pelo Tietê, sobe pelo Sucuriú ou Pardo, enfim, até Camapuã, fura o Varadouro, e desce o Coxim, Taquari, São Lourenço, Cuiabá. Esse caminho monsoeiro, ele vai ser ocupado de meados do dezessete até meados do dezoito, quando (acho que é 1734) é construída uma estrada ligando Cuiabá à Goiás Velho. Por que? Porque havia a violência contra indígenas aqui. Nessa região do Bolsão era uma ocupação de Caiapó que acaba sendo expulso, mas os Paiaguá [?] eles não dão conta. E tem o


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domínio do território pantaneiro. Então, ainda na Expedição Langsdorff (que é 1827) existe aí a morte do Adriano Taunay, numa situação de conflito com índios. Então você vê que quando se abre essa estrada de Cuiabá para Goiás, esse sul do Mato Grosso fica meio desinteressante, aqui não tem nada que seja conveniente. Por que o sul do Mato Grosso fica desinteressante? Você tem um grande obstáculo à navegação, que são as Sete Quedas, onde hoje está a Itaipú. Tanto que Portugal e Espanha disputam muito territórios abaixo das Sete Quedas. Não sei se você sabe, mas Londrina foi uma cidade espanhola chamada Vila Real. Tá? Então, quer dizer, já antes disso, ainda no dezesseis, Portugal funda São Paulo, que é de 1554, e Assunção acho que é um pouco antes, 1550? Enfim, tem uma diferença de menos de dez anos entre a fundação de Assunção e a de São Paulo. E por que essas duas cabeças de ponte [?]: pra favorecer a penetração. E aí vem todo aquele sul do Brasil e todo aquele território abaixo do Chaco paraguaio até o Estuário do Prata, é objeto de muita disputa. Aqui não. E eu entendo que o obstáculo constituído pelas Sete Quedas foi um dos fatores que preservou aqui esse território. Bem... E assim ficou até o século dezenove com a Guerra da Tríplice Aliança... ... Guerra do Paraguai, né? Guerra do Paraguai. Muito bem... Na Guerra do Paraguai, nós temos um episódio que, no meu entendimento, é decisivo para a identidade de Mato Grosso do Sul, que foi a derrota do Exército Brasileiro na Retirada da Laguna. Tá? O Brasil é vitorioso. O Brasil, claro, aliado com Argentina e Uruguai. (De 65 a 67 é a tríplice aliança. De 67 a 70 é Brasil-Paraguai). Mas, de todo modo, no sul as campanhas sempre foram muito tranquilas. Quando chega aqui nesse flanco mato-grossense, tá desguarnecido, o Exército Brasileiro sofre uma derrota importantíssima que é a Retirada da Laguna. O episódio conhecido que, na realidade, retirada ou a fuga da Laguna, o nome que se dê, o fato é que você tem uma mortandade provocada pelo [?], pela miséria, pelo desgaste. E o que restou daquela coluna brasileira teve que bater em retirada. Bem... Então você tem, em 1870, a vitória do Brasil sobre o Paraguai, mas fica a memória desse flanco desguarnecido. Aquela zona neutra, que é essa fronteira que vem de Mundo Novo até Bela Vista, e até propriamente Dourados, era um território que não tinha sido ocupado nem pelo Brasil nem pelo Paraguai, e que por isso chamava zona neutra, e que basicamente é um território guarani. Hoje é objeto de muita disputa, etc, etc... Muito bem... Quando você tem, então, o final da guerra, você vai ter... A primeira medida do governo central é a concessão dos ervais para exploração, para o Thomaz Larangeira. Por que? Porque aí era uma forma de se jogar uma atividade econômica que poderia favorecer a ocupação dessa zona neutra. Logo em seguida, de 72 a 82, Thomaz Larangeira; de 82 a 92, entra a Companhia Matte Larangeira; e aí, na terceira, que é 1902, se não me engano, já entra o Banco Rio Matto Grosso, que tem o Joaquim Murtinho, capitais ingleses, e aí o negócio fica multinacional. E a atividade ervateira responde por 95% da receita do tesouro de Mato Grosso. Paralelamente a essa situação, você vai ter uma situação nova, que é divisão territorial. Pouco antes da guerra, todo o sul do Mato Grosso correspondia ao município de Corumbá. Mato Grosso do Sul era do tamanho de Corumbá. Aí, em 1856, você tem o desmembramento do [?] de Miranda, que sai de Corumbá, e Paranaíba, que é criada também em 1856, como cidade...


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Santana do Paranaíba? Santana do Paranaíba, que já tinha uma paróquia anterior, etc, mas ela é elevada à condição de cidade em 1856. Olha bem: desmembra Paranaíba primeiro, e, uns três meses depois, Miranda. Com o fim da guerra, você vai ter o desmembramento de Nioaque, em 1870. Então Campo Grande integrava o município de Nioaque. Era como um distrito de Nioaque... Exato. Quer dizer, na realidade, não era nem distrito porque não existia. Vai passar a existir em 1872, que começa uma ocupação mais efetiva de Campo Grande. Então você vê que a guerra termina e, na sequencia, desmembra Nioaque, que tinha sido um dos lugares que tem um episodia da Retirada da Laguna, que explode a igreja de Nioaque, os paraguaios deixam lá uma armadilhas, e os brasileiros entram, e aí é um regaço total. Quer dizer, já existia a vilinha. Então você percebe que a elevação de Nioaque à condição de cidade era uma maneira de o governo central estar preocupado com o guarnecimento desse vazio aqui, que tinha permitido a vitória dos paraguaios, no episódio da Retirada da Laguna. Tem a ver, professor, com o fato de que era difícil para o Exército Brasileiro vir para o Mato Grosso do Sul também? Veja: o Exército manda gente de Minas, vem uma coluna de Minas... Porque aqui não tinha nada! Uma coluna de Minas e outra de Cuiabá, que se encontram em Coxim, e aí descem de Coxim até Aquidauana, no Porto Canuto, e daí, de Aquidauana, eles seguem para Bela Vista, que é aonde acontece o episódio da Retirada, e aí eles vão sendo expulsos. E os paraguaios chegaram até Coxim também, na incursão. Eles vêm para Corumbá e depois sobem até Coxim, que era um entreposto importante. Então, o Exército Brasileiro não tinha nada aqui. Aliás, não era o Exército. Aqui era um território muito pouco... com uma reduzidíssima presença do governo central, com exceção de Corumbá, que mesmo assim não era uma... tinha o Forte de Coímbra, que aí eram os portugueses que já haviam construído, e depois o governo brasileiro meio que deixa isso daqui esquecido. Era um sertão. Era um mato grosso. O nome já, né?, indica isso daí. Muito bem... Aí você tem a vinda de mineiros que já tinha começado, pouco antes de 1850... Aquela região de Minas e São Paulo já tava meio que no limite da fronteira... Então a expansão veio pra cá. E você tem essa entrada de mineiros, vão para Maracajú, outros vêm pra cá. E aí você tem a fundação do arraial de Campo Grande, em 1872. Vai adensando, mas há uma indução desse adensamento, também, tanto que em 1899, você tem um segundo movimento de divisão territorial. Então você tem: 56, Paranaíba e Miranda, que tinha lá o presídio, a igreja, não sei mais o quê. 70, Nioaque sozinho. 99, Coxim, que também desmembra de Corumbá, e Campo Grande, que desmembra de Nioaque. E o tamanho de Campo Grande... Campo Grande vem da barranca do Rio Paraná até Camapuã, do sul ao norte. Mais ou menos Aquidauana, por aí, até Ribas do Rio Pardo. Isso tudo é Campo Grande, quase cem mil quilômetros quadrados. Aí você vai ter o primeiro desmembramento em 28, que é Rio Brilhante, e aí então toda essa parte de Anhanduí pra baixo, já deixa de ser Campo Grande e reduz bastante. Depois você vai ter: 43, Ribas do Rio Pardo, também essa parte já desmembra. E, depois, acho que é 52, se eu estiver enganado, que sai Terenos, Jaraguarí... Tem mais alguma coisa? É, acho que é isso. Aí você, a partir de 52, você fica com


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o território atual. Isso aí também é interessante de você ter em mente, quer dizer, quando a ferrovia vem pra cá, você tem esse território, Campo Grande tem Ribas do Rio Pardo até Terenos, que é o percurso da ferrovia, ainda dentro do município de Campo Grande, no momento da implantação da ferrovia. Aí, com o desmembramento, fica menor. Mas para você seria interessante. Eu não sei como é que você está fazendo uma pesquisa pra fazer uma matéria, uma reportagem?... Seria interessante, então, você mostrar que, no momento da... Você está fazendo sobre Campo Grande?... Que no momento da inauguração da ferrovia, ela tem, sei lá, tantos quilômetros que vêm de Ribas do Rio Pardo até Terenos. É tudo Campo Grande. E Água Clara, então... Água Clara eu não sei. Água Clara eu acho que desmembra de Ribas também... Aí você precisaria ir ao IBGE para ver. Mas é 1943 e 1952. Aí você pegando o mapa, o que desmembrou, fica até interessante você mostrar a evolução histórica do território de Campo Grande. Já que você está mexendo só com Campo Grande, tá? Bem, aí a gente vai ter umas coisas assim muito curiosas. O comando militar... A sede do Exército de cada Estado brasileiro, ela é sempre na Capital. Mato Grosso é o único Estado cuja sede do Exército não era em Cuiabá, era em Corumbá. Isso por uma razão óbvia, quer dizer, para guarnecer a fronteira. Se você estudar as ferrovias... Tem um trabalho até interessante do... acho que é Warren Ginn, um brasilianista que trabalhou as ferrovias paulistas... Seria interessante você estudar um pouco isso porque a malha ferroviária brasileira ela é até uma adoção bem rápida, que dizer, a primeira estrada de ferro, na Inglaterra, é de 1814, e já em 1860 o Mauá fazia uma pequena estrada de ferro, no Rio, e, em 1865, você já tem o primeiro trecho da Santos-Jundiaí, que vai de Santos, São Paulo, no porto de Santos, até a cidade de Jundiaí, um pouco antes de Campinas. Engenharia inglesa que vem e constrói para escoamento do café. Aí depois você tem a marcha do café viabilizada pela expansão ferroviária. Aí você tem, em 1870 ou 72, você tem o primeiro trecho da Paulista, que vai de Jundiaí à Campinas. Aí depois, em 1876, se eu não estiver enganado, você tem o primeiro trecho da Mogiana, que sai de Campinas e vai praquele noroeste de São Paulo e pro sul de Minas, pra região de Mogi Mirim, Mogi Guaçu. Aí depois você tem a Sorocabana, que é... Enfim, a malha ferroviária paulista, ela vai se constituir em função dos interesses cafeeiros, pra viabilizar a produção. E aí tem outras estradas de ferro... A Sorocabana, por exemplo, ela tem um pouco a questão do café, mas ela tem a preocupação ligar com o Paraná, o norte do Paraná, e depois com uma ferrovia que sai de Curitiba e vai até o Rio Grande do Sul, enfim. Mas essa malha ferroviária toda, ela é constituída em razão de interesses econômicos. A Noroeste, ela tem uma característica muito particular, sobretudo no trecho ItapuraCorumbá. Porque ela tem, você já deve ter visto, uma primeira parte, que é uma ferrovia, se não privada completamente, mas com capitais privados, de Bauru até Itapura. De Itapura a Corumbá é só dinheiro público porque não há interesse... ou melhor, não é que não há interesse, não há atividade econômica que justifique a ferrovia. Que é um elemento de extrema modernidade, que é outra coisa que fica complicado a gente compreender hoje. Porque você vê bem: a Inglaterra faz em 1814 a primeira ferrovia, um século depois a gente já tem a ferrovia aqui no sertão do Mato Grosso, quer dizer, é bastante rápida essa evolução, se a gente pensar que esse território foi incorporado dois séculos depois, você tem que trabalhar com todas essas dimensões de temporalidade.


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Aí você tem, então, essa modernidade, porque o trem, pra você ter uma ideia, a ligação de Campo Grande com São Paulo por outro meio que não a ferrovia, cavalo, tropa de carros de boi, esse tipo de coisa, levava cerca de um mês, trinta dias, se o tempo estivesse em ordem, podia até levar mais, se pegasse um período de águas ou coisa que o valha. Pra você ter uma ideia, a ligação de Campo Grande e Coxim, em meados dos anos cinquenta, podia levar de cinco dias a uma semana, no período de verão. Aí você tem uma distância que leva quase um mês pra ser percorrida convertida em três dias e três noites. Isso significa um negócio assim quase que revolucionário. Porque a gente hoje fala da ferrovia, você não tem a percepção do quanto ela é revolucionária em termos de comunicação, quer dizer, ela reduz extraordinariamente o tempo necessário pra ligar São Paulo, que já é a Capital econômica do Brasil, à Campo Grande. É essa velocidade, é essa rapidez que vai determinar a transferência do pólo comercial de Corumbá para Campo Grande, porque você pode justamente ir a São Paulo, se abastecer tanto dos produtos nacionais, São Paulo é o principal parque fabril, naquele momento, quanto dos artigos importados que chegam ao porto de Santos. Então você tem um custo menor de frete do que o anterior, que tinha que descer até o estuário do Prata e subir o Rio Paraguai. Você vê o quanto aumentava a distância nesse trajeto, né? E com frete mais caro, etc, etc... Dependia de acordo com os outros países... Nesse caso não havia problema porque a Inglaterra era o principal fornecedor de manufaturas, né? E ela tinha o domínio de toda a região. Então essa questão diplomática estava garantida pela hegemonia inglesa. Isso aí não tinha problema. Mas tinha a questão do custo, quer dizer, no momento em que você tem a ferrovia ligando São Paulo a Campo Grande, você reduz extraordinariamente o tempo necessário para trazer essa mercadoria, barateando o frete, mesmo considerando que o frete marítimo e fluvial fosse menos caro, mas você tem um tempo muito maior. Então acaba que o frete ferroviário sai bem mais econômico. E isso determina então o deslocamento. Agora, essa ferrovia, por que ela vai ter Campo Grande como o seu grande nó?: Porque ela não é construída por questões econômicas e nem por razão política, porque Cuiabá tinha a expectativa que a ferrovia ligasse Bauru a Cuiabá. Só que Cuiabá já estava decadente. O ciclo do ouro já tinha se esgotado. E desde então nunca mais o norte tinha tido uma atividade econômica que justificasse um investimento dessa monta. O sul também não tinha uma atividade econômica que justificasse, mas tinha uma razão estratégico-militar, que é o determina o traçado da ferrovia. Então ela chega em Campo Grande, tem um braço para Corumbá, que vai fazer o guarnecimento com a Bolívia; e, nos anos quarenta, você faz o braço pra Ponta Porã, pra fazer o guarnecimento com a fronteira do Paraguai. E ai o comando do Exército, que estava em Corumbá, não vai para Cuiabá, como em todos os outros estados, que o comando do Exército se sedia na Capital, e vem para Campo Grande. Por que?: Porque com esse elemento de modernidade que é a ferrovia, num curto espaço de tempo, oito horas em média, e isso é pouco para a época, de Campo Grande você poderia atingir tanto a fronteira da Bolívia quanto a fronteira do Paraguai. Então você vê que essa ferrovia, ela tem uma razão muito nítida que é o guarnecimento das fronteiras. E, por conta de ter vindo pra cá, ela vai ter como consequência o deslocamento do centro comercial de Corumbá para Campo Grande. Um outro advento paralelo é Campo Grande ter se constituído, já desde o princípio, num centro educacional, porque área de


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humanas era coberta pelo clero e área de exatas pelos militares do Exército que vieram pra cá. Então Campo Grande tinha quadros para a docência. E é o que explica ela ter se constituído numa cidade universitária posteriormente. Então você não tem como compreender o desenvolvimento de Campo Grande sem o advento da ferrovia. Quer dizer, da mesma forma que o fracasso da Retirada da Laguna é decisivo para a constituição da nossa identidade, porque é a partir dessa derrota que o governo central percebe a necessidade de guarnecer aquele flanco e não correr novos riscos, isso vai vir até a ferrovia, que se constitui num elemento de segurança nacional da maior importância. E, embora a razão tenha sido estratégico-militar, ela acaba tendo consequências econômico-sociais por decorrência do sentido revolucionário que esse meio de transporte carrega. Ele não transporta só gente, ele não transporta só mercadoria, ele transporta também informação. Pra você ter uma noção, quando houve a Proclamação da República foi 15 de novembro. O imperador, se eu não me engano, ele fazia aniversário no dia 3 de dezembro, o D. Pedro II. Em Cuiabá se comemorou o aniversário do imperador. Ele já estava a caminho de Paris e foi comemorado porque ainda não tinha chegado a notícia. Então você pensa, você lê o Estadão, que era o grande informativo da época só com três dias de atraso. Você estava informadíssimo! E aí, dez anos depois, você tem o rádio que chega em 24, aqui em Campo Grande, e aí então mais imediatamente informado você fica. Então Campo Grande vai se constituindo... E Campo Grande também tem uma condição muito curiosa – que até eu levantei no artigo que escrevi no cem anos de construção. Depois, se você quiser, dá uma lida pra entender a coisa. Eu trabalho só a questão demográfica, mas linkando com outras coisas – Campo Grande, desde o censo, acho que de 1940... 20 eu não tenho certeza, mas 40 com certeza... Em 1940, a população brasileira vivia dois terços no campo e um terço na cidade. Campo Grande dois terços já tinha dois terços na cidade e um terço no campo. É uma coisa muito curiosa de Campo Grande essa vocação urbana precoce. Mesmo você considerando que aí entram os núcleos e distritos, que ainda tinha Ribas, que era de Campo Grande, os outros... Ainda assim você tem dois terços da população em zona urbana e apenas um terço na zona rural, que é uma relação inversa do contexto nacional. Então esse também é um dado, não sei se você vai linkar com a questão da comunicação, mas acho que é interessante você ter presente. Quer dizer, a ferrovia, ela é um elemento que favorece a maior comunicação e Campo Grande vai ser assim o grande privilegiado desse projeto porque justamente aqui é que vai se fazer a bifurcação pra guarnecer as fronteiras internacionais. Tem uma característica de Campo Grande que eu vejo que acontece muito diferente de outras grandes cidades. A maioria das cidades importantes, que se desenvolveram primeiro, se desenvolveram por estarem geograficamente posicionadas perto do mar ou perto de um rio. E Campo Grande, ela tem, me parece, pelas minhas pesquisas, o fato dela estar equidistante aqui no estado, centralizada, ela tem se beneficiado por esse fato, porque tinham as rotas comerciais que passavam por aqui, que iam pra Minas, que iam pro sul... O que o senhor tem a dizer a respeito? É, a localização geográfica foi justamente... A geografia é determinante, quer dizer... Mesmo antes da ferrovia, ela ficava a meio caminho do Rio Paraná e de Cuiabá, que era a Capital. Ela fica a meio caminho de Minas, Paranaíba, quando se subia. Então ela tem uma posição geográfica interior...


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História da colonização! A grande maioria das cidades que se fundam no século dezesseis e dezessete, com exceção de São Paulo, são todas litorâneas. E São Paulo é fundada justamente nesse contexto de disputa das potências ibéricas, Portugal e Espanha. Espanha funda Asuncion. Portugal funda São Paulo. E por que São Paulo? Pra facilitar a penetração no planalto, porque a escarpa da saída do mar era um puta obstáculo. Sem uma base no planalto ficava complicado. Aí você tem São Paulo, 1554, e depois você só vai ter novas cidades surgindo, no século dezessete, no caminho das entradas de bandeiras. Quando se descobre ouro, Minas, Goiás e Mato Grosso, você vai ter aí o surgimento de cidades, a grande maioria como pouso de tropeiros. Então você tem trajetos que variam de quarenta, cinquenta quilômetros, que era o que uma tropa de mulas dava conta de percorrer. Se muito íngreme, quarenta. Se plano, cinquenta quilômetros. Mas em média é isso. Tanto que quando você sai do interior de São Paulo, naquela região da Serra da Mantiqueira, e vai para Minas, você pode notar que a cada quarenta, cinquenta quilômetros você tem uma cidadezinha. Não por acaso, porque era o tempo que dava pra uma tropa de mula percorrer. E aí era preciso ferreiro, estalagem para as pessoas comerem, descansarem, um bordel, enfim... Era isso que havia nesses pousos de tropeiros. E Campo Grande era uma paragem– Não, não! Mas Campo Grande não está nesse contexto. Eu estou falando ainda de período colonial, ciclo do ouro. Então você tem essas cidades e você tem outras cidade que vão surgir como entreposto comercial. Uma delas é Sorocaba, em São Paulo, que recebe o gado que vem dos pampas do sul, pára em São Paulo, e aí vêm os comerciantes de Minas, e vão para Sorocaba, e Sorocaba nasce como um grande entreposto comercial, da mesma forma que Ponta Grossa, que também tem essa função de entreposto comercial, ligando a região mineira com [?]. Feira de Santana também tem essa função, trazendo o gado do nordeste pra região de Minas. E aí você vai ter esses grandes movimentos. E aí já no século dezenove e vinte, você vai ter a expansão... as cidades que nascem em razão da cafeicultura, que vão ocupar o estado de São Paulo propriamente inteiro, com exceção do Vale da Ribeira. Acho que o restante de São Paulo inteiro teve cafeicultura. O norte do Paraná. Sul de Minas, as cidades que tem e que já são do século dezenove, são em razão do café. Aí você tem, no sul, as cidades que nascem dos programas de colonização europeia. Agora, aqui, em Campo Grande, ela ainda é aquela formação decorrente da ação dos pioneiros desbravadores que vêm em busca de terra. Basicamente é por aí. E, embora a lei de terras fosse de 1850, ainda estava muito recente, então dava pra chegar, se abeirar, e tentar, enfim, se fixar e se tornar posseiro de uma terra pra poder... Inicialmente, aqui, é a pecuária, quer dizer, seria como tantas outras cidades que nascem em razão da atividade pecuária que não teria lá um grande desenvolvimento. O que confere à Campo Grande a natureza que ela tem hoje e que vai garantir a expansão econômica, e por conta dela o poder político e etcetera, etcetera, é a ferrovia, sem dúvida alguma. E aí, mais uma vez, é o governo central quem determina a divisão, embora tenha tido a liga mato-grossense, embora houvesse um desejo pela divisão, e tivesse havido o movimento divisionista, a gente não deve ser ingênuo e é preciso compreender que Golbery do Couto e Silva, que era o grande estrategista que lidava com a geopolítica, é ele quem concebe o projeta e implementa o projeto que deságua na edição da lei complementar número 31, de 11 de outubro de 77, que cria o Estado de Mato Grosso do Sul. Então você vê que Mato Grosso do


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Sul esteve sempre sujeito à ação do poder central. Porque as forças políticas internas não teriam sido suficientes pra garantir a emancipação do Estado. Entendi. Mas o senhor considera importante a posição geográfica central aqui de Campo Grande? Vamos pensar. A ferrovia, ela é construída em função dos interesses estratégicos e militares para assegurar a defesa nacional. Nioaque era uma cidade maior que Campo Grande quando o projeto foi concebido, lá no início do século, na primeira década do século. Então, teria, se a gente pensar em termos de proximidade, Nioaque estaria mais perto de Ponta Porã e também mais perto de Corumbá, porque você faria um desviozinho de Nioaque pra Aquidauana, você faria lá uma barriguinha de todo modo, e estaria mais próximo. Por que Campo Grande, então?: Porque você precisa pensar que, se eu estou tentando guarnecer, eu preciso também me garantir na retaguarda. Porque eu tenho o risco de eu ser invadido. Se eu for invadido e estiver muito próximo da fronteira e não tiver força suficiente, como é que eu vou me defender? Então, eu preciso assegurar que eu tenha reforços à retaguarda, e Campo Grande, nesse aspecto, fica exatamente na metade entre as fronteiras e o Rio Paraná, que me permitiria trazer recursos de São Paulo e de Minas para Campo Grande. É a posição geográfica, mas é essa posição geográfica associada a essa razão estratégico-militar. Entendi. Era preciso, pra se defender, ficar nem muito perto e nem muito longe da fronteira. Você não podia ficar tão próximo, que ficasse distante de recursos que pudessem vir à retaguarda. Por que?: Porque a experiência da Retirada da Laguna foi traumática. É uma coisa que eu ainda não escrevi a respeito e eu preciso escrever. Porque eu tive essa sacação preparando uma fala... Preparando essa coisa que eu saquei. A Retirada da Laguna, ela tá na gênese da nossa identidade. Quer dizer, Mato Grosso do Sul se constitui autonomamente em razão de um fracasso militar. Então, professor. Eu pediria pra gente focar um pouco, agora, em Campo Grande do começo do século vinte, porque eu tenho algumas perguntas específicas a respeito desse período. Vamos ver se eu... Fala aí... Em 1905, Campo Grande tem o primeiro código de posturas. E nesse código de posturas dá pra notar já uma preocupação de instaurar um modo de vida urbano aqui em Campo Grande. O que o senhor pode dizer sobre isso? É aquilo que eu já te falei. Campo Grande tem uma vocação urbana muito precoce. Agora, os códigos de postura, todas as cidades deveriam ter. É como hoje, não tem um plano diretor obrigatório? Então na época você tinha código de postura que era uma forma de você buscar harmonizar a vida num espaço tão exíguo, como é o espaço urbano quando comparado com o espaço rural. Porque, veja bem, no meio rural você tem uma população extremamente raleada. A densidade demográfica, ela é muito baixa porque as propriedades são grandes, as pessoas se espalham nelas. Na cidade, por menor que seja, por maiores que sejam os lotes, e tudo o mais, existe um adensamento, e o adensamento pode trazer, ensejar o conflito. Então, as cidades elas tinham que ter um código de posturas justamente para permitir um adequando funcionamento e uma adequada convivência. Agora, de todo modo, o código de posturas, ele é uma indicação, não obrigatoriamente uma realidade. O código de posturas, é importante você ter claro, que ele é um indicativo que não significa que necessariamente todos observavam.


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Mas, de todo modo, é importante que tenha pra poder sinalizar como que deve ser a convivência, quais os limites das pessoas. O senhor já falou um pouquinho sobre essa mudança de pensamento que ocorreu com os campo-grandenses quando a ferrovia– Ah! Quando a ferrovia chega é inevitável, né? Porque chegam as notícias, chegam as novidades, chega a informação. Ela não transporta só pessoas e mercadorias. As próprias mercadorias muitas vezes se convertem em novidades, carregam uma informação nova. A ferrovia é muito impactante. Se você pensar o contexto da época, de repente forasteiros chegando... Os sertanejos que viviam aqui em Campo Grande, eles olharam um pouco com desconfiança todo esse progresso? Porque era uma concentração de sertanejos aqui... E de sertanejos vinculados à atividade pastoril. De repente começa a chegar um outro povo. Não só o forasteiro. É o comerciante que sai de Corumbá e vem se estabelecer aqui. Tanto que você tem, nesse momento, muitas famílias, especialmente de árabes, que eram responsáveis pelo comércio, que chegam de fora, quer dizer, já impactam aquele equilíbrio, aquele conjunto de forças que havia. Aí você tem os japoneses que permanecem, que vêm com a construção da ferrovia e permanecem na cidade. Então, essa população de sertanejos, ela acaba meio que se diluindo nesse contexto novo. Tanto que se falava – quando eu cheguei aqui se ouvia muito isso – que Campo Grande era uma ilha de turcos cercada de japoneses de todos os lados. E por que isso?: Porque os turcos estavam na área central. E por que se falava “turcos”?: Porque todos os imigrantes árabes, nesse momento, por conta do domínio do Império Otomano, depois Turquia, eles saíam com passaporte da Turquia, fossem sírios, libaneses, tudo com passaporte turco. Para os outros, eram turcos. A gente não diferenciava essas distintas nacionalidades. E os japoneses ficaram em todos os quadrantes, onde tinha cabeceira de córrego, tinha possibilidade de água, para eles praticarem a lavoura de horta e fruticultura, enfim, atividades que eles se dedicaram de quanto vieram até os anos setenta. Aí quando a segunda geração já vai pra universidade, já vai pra outras atividades, ganham uma melhor condição, esses antigos imigrantes já vão abandonando essa atividade de lavoura, e as antigas chácaras vão ser loteadas, enfim, onde hoje é o Parque das Nações Indígena eram chácaras de japoneses, tinha granja de ovo, etc, porque era na cabeceira do Prosa. Na Mata do Segredo você também tinha... enfim... Por isso que se falava que era uma ilha de turcos cercada de japoneses por todos os lados. E obviamente que isso impactou a organização primitiva daquele povo mais simples, até porque eles [os de fora] vinham com informação. E no caso hoje os turcos, até pela atividade comercial, eles saíam e vinham, não é? Foram grandes empreendedores. Quando você pensa na figura do José Abrão. Ele tinha comércios diversificados, ele tinha hotel. Você pega as atividades econômicas desse princípio de... a primeira metade do século vinte... a colônia árabe é responsável seguramente eu acredito que 80% das atividades econômicas na cidade. Você tinha o Banco do Povo, que era da família Nasser e Neder. A família Neder tinha a distribuidora da GM. Foi a família Neder quem trouxe a primeira telefonia. A companhia telefônica, não me recordo o nome, ligando Corumbá à Campo Grande. A Clínica Campo Grande, que era um hospital moderníssimo para a época, com projeto do Jorge Wilheim, também era da família Neder. Enfim, o [?] foi um empreendedor muito importante, chegou pobre e tal e ganhou dinheiro e empreendeu muito aqui. Você tem um rol famílias, os Nassif [?], eles vêm de


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Corumbá pra cá, também são dedicados ao comércio. É complicado você citar nome porque você acaba esquecendo, né? Mas o Seu Zé Mansur, não sei se ele veio de outra parte ou se veio direto pra cá. Os Salibas [?] que mexiam com secos e molhados. E essa gente toda ia se abastecer em São Paulo. Então por força da atividade que eles exerciam, eles tinham que viajar pra fazer compra. E ao viajarem, eles se comunicavam com o mundo exterior. E essas famílias também mandaram os filhos estudarem fora, ou São Paulo ou Rio. E aí esses jovens também vinham e incrementavam esses aportes de informação e de modernidade e por aí vai. No final, Campo Grande, nos anos cinquenta já era a Capital econômica do estado. Já tinha passado Cuiabá. O norte estava estagnado e aqui uma dinâmica muito forte, porque aí também você tem a construção da Colônia Agrícola Federal de Dourados, que vai incrementar o sul do estado, isso nos anos quarenta. Nos anos cinquenta, você tem os programas particulares de imigração. Família Moura Andrade [?] vem pra Nova Andradina. O Jan Antonín Bat’a também é um colonizador daquela região Bataiporã, Bataguassu. Nos anos sessenta, um outro projeto do governo, o Incra, que faz o projeto Sete Quedas, porque ainda tinha lá uma questão de fronteira. E havia o propósito de Itaipu, já tinha o projeto, então era preciso guarnecer aquela fronteira com o Paraguai, é quando vai ter Mundo Novo, Sete Quedas, Paranhos, Tacuru, Eldorado, Iguatemi, todas essas cidades que surgem do projeto de colonização de Sete Quedas. Isso tudo no sul, tendo Campo Grande como a Capital econômica, uma forte referência. Então aqui uma dinâmica muito forte, enquanto que o norte estava meio que estagnado. Isso tudo porque, nos anos sessenta, a fronteira, você tem que olhar o todo, a fronteira agrícola ela se desloca, porque Paraná, São Paulo, Minas, já estão saturados. Então, anos sessenta você tem a concepção da Embrapa, a pesquisa vai se desenvolver muitíssimo. É quando se descobre que o cerrado, que era um solo pobre, se calcariado devidamente pode ser muito fértil. E aí é quando essas terras nossas são incorporadas à fronteira agrícola. Aí tem todo esse movimento e Campo Grande, embora seja um estado agrário, agropastoril, pararã pararã, Campo Grande é a Capital econômica e vai se beneficiar e vai ser o grande pólo financeiro de toda essa atividade. A população do século dezenove para o século vinte ela acabou sendo minoria... Ela acaba se diluindo. Campo Grande é uma cidade que se constitui de sucessivas levas migratórias. Tem a concentração operária dos ferroviários que chegaram aqui... É um seguimento, mas basicamente você tem ondas migratórias muito fortes. E tudo no setor terciário. Você tem comércio, que se desenvolve muitíssimo porque abastece a região. Porque veja: Campo Grande tem a ferrovia, no começo do século. Só que, quando chega nos anos sessenta, vai ter a rodovia asfaltada ligando São Paulo e Cuiabá. Então ela tá no ponto de intersecção tanto da ligação leste-oeste por ferrovia, quanto sul-norte pela rodovia. E ela na metade desse caminho aí. Com a rodovia, há novo incremento para esse comércio que já estava constituído e que pode crescer. E, ao lado disso, você tem as repartições públicas que se sediam aqui. E com a instalação do Estado, ai obviamente que essa máquina pública cresce vertiginosamente e traz mais gente pra cá. Campo Grande, de quarenta pra cinquenta, não experimenta um crescimento muito grande, não. Até porque ela perde Ribas do Rio Pardo. Só que depois de cinquenta até noventa, o crescimento vem vertiginoso, exponencial, praticamente ela dobra a cada década. E de noventa pra frente aí já adquire um ritmo de estabilidade e passa a ter um crescimento mais do vegetativo com pequeno impacto de migração. Isso daí, se você quiser, está bem detalhado nesse texto meu do cem anos de construção.


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Tá naquele livrão? É, naquele livrão. Então eu encontro. Talvez eu já tenha até lido...

6.1.3 Euclides Pereira Vamos ficar aqui pra sombra. Eu tenho problema de pele, pênfigo foliáceo, eu não posso pegar muito o calor do sol, nem do fogo. Ah, entendi. Por isso que eu ando com a toalhinha na cabeça pra limpar... Isso aqui tudo é pênfigo [mostrando as feridas no rosto]. Tem aquela doença, a hanseníase, né? Isso aqui não é hanseníase, é pênfigo foliáceo. Tomo remédio pra pele, comprimido pra limpar o sangue e o creme pra passar na pele... Ó, vamos sentar ali... Pois é, Seu Pereira. Qual é o seu nome completo? Euclides Sampaio. Euclides Sampaio...? É... Pereira... Quantos anos o senhor tem? Sessenta. A sua profissão, o senhor falou, é cozinheiro. Cozinheiro profissional. Primeiro emprego meu foi ali no, talvez você não chegou a conhecer, Hotel Campo Grande. Fechou há muito tempo. Que era dos Lúdio Coelho. Foi meus patrões. Trabalhei quatro anos. Mas agora o senhor aposentou? Não. Eu não to aposentado. Já brigamos para aposentar, até agora... E está cada vez pior para aposentar... Agora ta complicação aí, meu Deus! Pelo tempo de carteira que eu tenho... Minha nora é contadora lá em Jardim. Meu filho tem escritório lá. Já foram lá no INSS, somou minha carteira tudo, diz que ainda falta três anos pra mim. E eu tenho seis anos de exército. E mesmo contando seis anos de exército, ainda falta três anos. Falei “meu Deus do céu!”. Eu sem condições de trabalhar. Voltar pro mercado de trabalho não tem condições. Não tem. Vejo no restaurante o chefe trabalhando na cozinha, aquela movimentação, falei “puta merda, tudo isso eu já fiz!”. Tenho só saudade, mas não posso mais fazer. Não agüento...


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E também emprego hoje está mais difícil. Meu Deus do céu! Meu Deus do céu! Quem me dá a maior força aqui é meu filho, todo mês. Minha esposa ainda ganha um pouquinho aqui, pouco mais de um salário mínimo. É o que ajuda. E ainda bem que a gente não tem criança pequena mais. Não tem problema de alimentação, escola, essas coisas. Estão tudo casado, criado, tem suas famílias lá. Mas não é fácil, não. Você recordar o que você fazia, o que você sabe fazer, e não poder fazer. Não me bate o desespero porque eu tenho a cabeça no lugar e muita fé em Deus. Mas não é fácil, não... Seu Pereira, o que o senhor pode dizer sobre como é viver aqui em Ligação, num lugar afastado de Campo Grande... Olha, pra te dizer bem a verdade, pra mim morar aqui, igual eu to hoje, graças a Deus foi uma benção, porque onde eu tava, na cidade, acho que eu não tava mais aqui contando essa história, já tinha me enterrado. Eu não tava vivendo mais, eu tava inchado, parado, sem movimentar, sem fazer nada. Aqui não tem muita coisa, não faço nada, mas você tá varrendo o quintal, se movimentando, né? Você distrai a mente. Você vai ali no rio, volta. Quando o trem estava passando, você fica aí. Atendia o pessoal [funcionários da ALL], dava uma água, um cafezinho. Tudo gente conhecida, que fizemos amizade, que a gente conhece. E dizer: gosto muito daqui. Pra me tirar daqui, acho que só Deus. Ele tá vendo a minha necessidade, e o que eu faço. Tem mês que pra mim comprar meus remédios é difícil. É difícil... Se não é meu filho dar uma força, não tava fácil, não. E o que o senhor vê de positivo, o que o senhor gosta mais aqui? A tranquilidade. Você vê, na cidade, hoje, vocês, que são jovens, estão trabalhando, estão estudando, você vê como que é a correria, o desespero. A gente vê na televisão. Esse pessoal fazendo faculdade, aquela correria. Sai da faculdade, vai pro serviço, vai correndo pra faculdade, chega em casa, toma banho, troca de roupa e já sai de novo, correndo, naquela loucura do dia a dia. Deus me livre! E aqui é tranquilo... Graças a Deus. Aqui não é, mas estou no paraíso! É um paraíso aqui. Aqui é o silêncio... Como dizem: o silêncio é tudo. Às vezes, você pode estar sem nada, mas só de você ter a paz de espírito, a tranquilidade, já é tudo. Mas o senhor não acha que aqui é um pouco... O senhor não se sente um pouco intranquilo porque aqui é meio afastado? Não acha perigoso? De ser perigoso, isso é em todo lugar. Você fala: “ah, vou pra tal lugar porque ali não tem perigo, não tem problema de assalto, não tem bandido, não tem nada”. Todo lugar tem. Todo lugar tem. Mas o que livra mesmo a gente é Deus, né? E é o que eu te falo: gosto muito daqui. Nunca teve nenhum problema? Não, não. Graças a Deus, não. Espero a Deus que nunca há de ter. E lá na cidade...


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Lá você está correndo risco a todo momento. Todo momento. Que tipo de atividade o senhor faz aqui em Ligação? Como o senhor faz pra passar o tempo, passar os dias? É o que eu to te falando. Aqui é no quintal, no rio, às vezes uma caminhada lá, volto aqui, passo aqui. Agora o pessoal que plantou a lavoura fez a estrada em volta tudinho da plantação, porque na época da colheita entra as carretas. Ficou bom pra gente caminhar. Vai aqui, sai lá na beira do corgo, sobe, faz isso aqui. Dá uns três quilômetros pra você fazer isso aqui, ó: rodar e chegar aqui de novo [apontando os lugares]. Sai por aqui, cruza aqui, pega a estradinha, vai embora, devagarzinho, não precisa correr, vai lá perto da chácara do vizinho, Seu Dino. Seu Dino é bisneto do João Antônio Pereira, o fundador de Campo Grande. Tanto é que, quando ele me liga, ou eu ligo pra ele, ele me chama de “parente”, porque eu sou Pereira também. “Ô, parente, tá em casa?”. “To”. “Vou aí te levar um queijo”. E vem aqui me dar um queijo, um leite. A gente tem boa amizade. Criação o senhor tem aí? Tenho dois... três... quatro porquinhos. Tem galinha. É pra sustento de casa, né? Pessoal vem e “não tem pra vender?”. Falei “quando tem a gente vende”. Quando não tem, eu prefiro mais comer. Você viu o preço da carne na cidade? Você chega no açougue, vai comprar um quilo de carne, se você for com cinquenta reais, você tem que ver o que vai comprar. Hoje em dia, com cinquenta reais, você vai ao mercado e sai quase sem nada. Você sai com duas sacolinhas na mão. Duas sacolinhas! Esses dias eu estava falando pra minha mãe, lá em Coxim. Ontem eu falei com ela. Tinha falado pra ela que passei no mercado pra comprar feijão, mas não comprei o feijão. Doze e noventa e nove, treze reais aqui na Rede Econômica! Falei “não, não vou comprar”. E quando foi terça-feira passada agora, passei no Fort e comprei feijão preto. Sete reais, seis e noventa e nove. Poxa, eu gosto tanto de feijão preto, comi feijão preto no exército por seis anos. Depois de seis anos que começou a aparecer pra nós, lá no quartel, o feijão carioquinha. Mas era só feijão preto direto. Era pra todo mundo: soldado, sargento, oficiais, todo mundo feijão preto. E agora minha mãe falou “rapaz, você falou aquele dia do preço do feijão aí”... (a minha afilhada trabalha no supermercado, lá em Coxim... tava seis e... quase sete, semana passada). Ela ontem falou “ta onze reais”. Falei “mãe do céu!”. Mas a gente substitui por alguma coisa. Você faz um picadinho, inventa alguma coisa, lá um dia você cozinha o feijão, não vai deixar de comer. Mas pra você comprar que nem estava comprando já pesou. E agora você imagina quantos aposentados só recebe o mínimo mesmo, oitocentos e oitenta. Tem uns que gasta mais da metade com remédio. Outros pagam aluguel, que às vezes não têm casa própria. Água, luz, telefone. Não sobra nada! Estão sobrevivendo. Mas, enquanto estivermos sobrevivendo, está bom. Esse córrego que o senhor falou que tem aí é o... como se chama? Botas. Ah, o Botas... É...


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... porque o rapaz lá [outro entrevistado] falou pra mim que tinha um Córrego Taveira. Taveira? Bom, se tiver aí na região, por perto, eu não conheço. Tem o corguinho aqui que cai no Botas, mas tenho ele por nome de Jerivá. Agora, aqui pra frente, pro lado de outras estações, pode ter outros corgos, mas não conheço. Não, mas eu falei com o rapaz que trabalhou aqui, entrevistei ele, ele falou “Córrego Taveira” pra mim... Mas não é esse nome, não. Esse que tem aqui é Jerivá. Até quem falou pra nós “Jerivá” é que o capataz da outra fazenda, da Farroupinha, o Tim [nome incerto]. Por isso que eu falo Jerivá. Eu não saio também assim. Eu vou no rio ali, às vezes, pescar, alguma coisa, e só vou num lugar, não fico andando pra lá e pra cá. Os caras encontram sucuri, falei “Vocês tá é louco!”. “Nós vamos pro rio já quase escurecendo”. Falei “não!”. Dá pra pescar ali? Volta e meia a gente vai lá. Às vezes pega um piauzinho, alguma coisa, mas não dá nada, não. O trem parou de passar aqui, né? Parou. A última vez que passou foi aquela da última vez que eu vim aqui, então? Não, já passou mais depois. E isso aqui não vai parar, não. Não vai fechar, não. O rapaz [funcionário da ALL] me falou que está consertando os trilhos pra lá, né? Estão trabalhando lá pro lado de Ribas de Rio Pardo. Não sei se termina essa semana. A semana que vem, o pessoal daqui acho que vai vir pra cá. E já tem parece que um novo supervisor que andou aqui ontem, antes de ontem. Não sei se é ele que vai ficar de chefe aqui, com o pessoal. Aí ele passou aqui, é Ismael, falei “não, o Edmilson está com a turma dele trabalhando lá em Ribas do Rio Pardo. Hora que terminar o serviço lá, eles vêm pra cá”. Entendi. E como o senhor faz aqui pra ter água em casa? Água vai daqui, do poço artesiano. Não usa mais essa... [caixa d’água]? Não, não. Usa só aquelas mangueiras que você viu no chão lá, que vai pro chiqueiro dos porco, só pra criação, e uma pia lá fora da cozinha, pra lavar louça. Hoje o João [um vizinho] trocou o cano dessa caixa aqui. Ele tirou um cano grosso e colocou um mais fino lá, pra subir água. Mas é mais para molhar o quintal. Funciona ainda? Funciona. Tá subindo água.


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E a água dela vem de... ... Vem da mina. Depois daquela crua [?] de mato lá. Daqui lá vai dar uns mil e quinhentos metros, mais ou menos. Funciona à gravidade? É, na gravidade. Ih, rapaz, quando foi feito isso aqui, foi no muque mesmo, porque hoje tudo é facilidade, né? Abrir vala com trator, pra fazer cerca agora tudo tem aquele trado de furar, pôr o poste, tem tudo isso. E comida tem que ir lá na cidade comprar? Quando meu filho vem, todo mês ele vem, pra comprar meus remédios, a gente passa no mercado, no Atacadão, e faz a comprinha de casa, e ele traz. Traz, às vezes, milho pras galinhas... Essa semana ele já trouxe milho... E agora to de olho no milho do vizinho, vou ver se compro deles. “Já avisa o pessoal aí, na colheita, aí eu venho, compro e nós dá um jeito de armazenar aqui pra não ficar sem tratar as galinha. O senhor sabe se essa caixa d’água foi feita junto com a estação, em 1914? É, ela é dessa época. Ó o armazém [edifício da estação]: está caindo aos pedaços, mas é de 1914. Isso já tem, o que?, cento e um ano. Só que ela [a caixa d’água] está funcionando ainda porque vocês fazem manutenção... Está funcionando porque eu moro aqui e não deixo... Semana passada mesmo fomos com o João [o vizinho] lá na mina. A mangueira passa por dentro do corgo, por baixo do asfalto [da BR 262], e desce aqui. E aí a nossa água tava fraquinha, fraquinha. Falei “João, tem alguma coisa errada”. Nós foi lá e limpou. A água continuou fraca. E isso já estava de tardezinha, escurecendo (no feriado passado, que foi na segunda-feira). E aí passamos na beira da cerca, naquele mato lá, ó [apontando o lugar]. Falei “peraí”. Vi um poste lá. “Parece que tá minando água aqui, João”. Cheguei perto assim, falei “João, o defeito tá aqui, ó, a água flutuando aqui, ó”. “Ah, rapaz”. Vim aqui pegar uma enxada. Cavando eu vi vazando. Falei “ê, rapaz”. Isso na segunda-feira. Ele [João] tava aqui, que era feriado. “Amanhã eu venho aqui devagarzinho e vou ver o que faço aqui”. Aí meu filho veio de Jardim, o Junior. Aí fui lá com ele, mostrei e falei “ó, Junior, vamos ter que cavoucar isso aqui, porque acho que o negócio está aqui”. Aí cavouquemo lá e encontremo. Eles faziam a cerca, a peça cortou a mangueira, nuns quatro lugar. A água passava por que?: ela tava enterrada, e o pouquinho que estava passando estava chegando aqui devagarzinho, pouquinho. . Amarrei lá. E mais pra cima fizemos o mesmo processo. Outro corte na mangueira. Dois pontos que nós achou. E nós quase sem água aqui. Aí fizemos, lá na beira daquele mato, subindo... Agora tá boa a água. Mas várias vezes vocês fizeram a manutenção... Vish. Manutenção eu faço desde que eu to aqui, desde 2004. O pai do João morreu em 2006, Seu Ivaldo [nome incerto], mora naquela casa azul, a maior, a de lá, essa aqui é do João. Eu e ele que ia lá fazer limpeza na caixa d’água, lá em cima, eu e Seu Ivaldo.


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Manutenção tinha que ser lá... Manutenção lá nas caixas. Cai muita folha e lá é destampado. O cano é dessa grossura aqui [mostrou, fazendo um gesto com as mãos]. Tem que tirar tudo as folhas, desviar o canal da água, limpar, tirar aquela lama, tirar pra fora, limpar, voltar de novo e aí soltar. Aí que ela manda água pra cá. Tudo é trabalhoso. E o pessoal que é arranjado aqui, antes de fazer esse alojamento [alojamento dos funcionários da ALL], eles eram alojados aqui, naqueles vagão de conteiner. Tudo nós usava água da mina aqui. Era pra comer, tomar banho, pra tudo. Aí depois que fez a construção [do alojamento], que foi feito o poço artesiano, eu pedi pra pôr uma mangueira d’água pra casa. Aqui deu 98% mineral essa água. 80 metros de poço. Bom, hein? Foi bom. Não é justo eu estou aqui junto e continuar bebendo água da mina, com tanta água em abundância aqui [no poço]. Aí me cederam água. Vai daqui pra lá. Enterraram o cano no meio da linha [férrea] e vai lá em casa. E aquele cemitério ali, Seu Pereira? É cemitério mesmo? Tem muito... Tem. Olha, eu te digo assim por boca dos outros, que a gente ficou sabendo. Um dos donos que era dessa fazenda aqui, que morreu, foi enterrado aqui. Mas como era de São Paulo, interior, não sei, tiraram os restos mortais e levaram pra São Paulo. Mas aqui diz que foi enterrado muita criança... Criança? É, que morria aqui mesmo, aqui em volta, na região, essas fazendas, então, como tinha esse cemiteriozinho, vinham enterrar aqui. Não sei te falar quantos, mas... Aí foi acabando, foi destruindo, foi passando de um pra outro, de um pra outro... Tem só parece que um pedaço e meio de uma parede, que é de tijolinho, onde era a capelinha. Está tudo destruído. Aquele mato grande, em volta, é que está dentro do cemitério. Por fora, ele [dono do pasto onde o cemitério está] mandou cercar, passar o arame, pra bicho não ficar pisando. Então, aquele ali é o cemiteriozinho. Mas ali já é a Fazenda São Geraldo, que é da cerca pra lá. Então ele [o cemitério] faz parte de uma fazenda? É, ele está dentro da fazenda. Ele não é dentro da propriedade da União, da ferrovia. Porque dessa cerca aqui pra lá já é a fazenda, a lavoura de soja. Eles arrendaram. Não tem conexão com a estação... Não, não... Bom, pode ter assim, no caso de muitos que já morou aqui, que morreu, foi enterrado ali. Mas não sei quem, da onde, quem, né? É o que a gente sabe isso. E foi enterrado assim mais criança.


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Entendi. Eu nunca andei por perto lá pra observar se tem alguma cruz. Deve ter de ferro, porque de madeira não deve ter mais. Muitos anos, né? E aqui também tem muito cupim. Cupim é uma praga. Come tudo. Pode olhar naquelas mangueiras ali, ó, você vê tudo cheio de casinhas de cupim, aqueles tunelzinho. Até no chão. Tem lugar que tu vai ver, tunelzinho de cupim. Mas muito cupim. Cupim demais... Como o senhor se sente em morar aqui e assistir uma estação dessa se destruir, acabando, sem poder fazer nada... É uma das coisas que a gente vê aqui acabando. Eu to aqui há doze anos. Você vê acabando, caindo telha, apodrecendo e você sem poder fazer nada. Uma que você não tem capital, não tem condições, e não tem autoridade, permissão pra mexer. Isso aí é um patrimônio da União. E desde que o senhor está aqui, [a estação] só piora. Só piora. E não caiu tudo ainda nem sei como, porque no lado de lá, se você observar, a parte da cozinha lá, chega estar afundada. Está assim [mostrou com as mãos]. Deus me livre se subir alguém pra mexer lá e vuup o cara cair e morrer aí dentro. Nem eu subo, nem tenho coragem de mandar ninguém subir. É uma coisa que a gente não pode mexer. E desde que o senhor veio, o telhado já estava caído de um lado... Já, já... Desde que eu to aqui. ... E aquele buraco do outro lado do telhado... Pra você ver, ó. Não cai fácil, não. E olha que aqui venta, hein? Rapaz, aqui é vento que eu vou te contar. Por isso que eu deixei tudo essas árvores perto de casa, mangueira, tudo, da dona do Seu Neri. Ela falou “mas Seu Pereira, o senhor deixa tanta goiabeira...”. Falei “é, Sueli, porque você não mora em definitivo aqui. Se você ver o tanto de vento que isso aqui venta. Isso aqui ajuda a amparar o vento na casa”. Rapaz, quando passa temporal aqui, ó. Essa mangueira, você vê a altura dela. Ela faz ooooooooh parece que está despencando em cima da casinha, ali onde eu to. Falei “meu Deus do céu”. E se o vento vem de lá pra cá, pega aquelas árvores de lá, aquela vegetação, chega em casa já quebra um pouco a força. Falei “não, não corto, não”. Pra mim cortar, só se morrer, tiver seco, aí vou cortar. Tem pezinho de goiaba ali que é formado, eu cheguei aqui era desse tamanhozinho. Tá alto, com o tronco dessa grossura. Falei “não, deixa aí”. Serve de comida pros passarinhos, tem tudo.

6.1.4 Ex ferroviário Willian Álvaro Monteiro O frio ali é de lascar. Quando faz frio normalmente geia em Ligação [a estação]. Dá geada. É um lugar bem frio. Aí quando você trabalhava passava frio um pouco?...


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Eu trabalhava nas estações, e a gente atendia em turnos, e o funcionamento era vinte e quatro horas. Vinte e quatro horas passava trem. Então a gente atendia os trens... Porque, naquela época, o sistema de comunicação era o sistema antigo. Era por sistema de staff. Então você tinha que ficar ali pra trocar o staff com os trens. Na verdade, você passava para o trem a licença da estação seguinte. Era um sistema bem antigo, né? que se usou para manter a segurança do tráfego. A gente cuidava dos trens que passavam e fazia os cruzamentos quando não dava, quando tinha que cruzar os trens, às vezes um parava e o outro passava. Por isso que lá em Ligação tem três linhas na frente... Além da terceira linha, tinha um triângulo. Lá você virava as locomotivas. Tinha uma locomotiva de frente para Bauru, se quisesse virar ela para ficar de frente para Campo Grande, você entrava no triângulo e ela saia de frente para Campo Grande. Esse triângulo eu não vi lá. Tinha um triângulo e tinha um embarcador de gado também. Em noventa e seis, eu fiz o último carregamento de gado ali. Carregamos dezesseis gaiolas de gado. A ferrovia, naquela época, carregava gado também. Tenho outras perguntas anotadas para te fazer... Então a estação foi desativada em noventa e seis, né? Noventa e seis para noventa e sete. Não sei te dizer bem o certo. Mas acho que foi em noventa e seis... ... pelo que eu pesquisei, em noventa e seis foi quando parou de funcionar o trem de passageiros, né? Eu trabalhei no trem de passageiros também, até noventa e dois. Deixa eu ver aqui. [conferindo as datas num arquivo de texto aberto no computador]. Em noventa e seis iniciou a Rede Ferroviária Novoeste, né? Uhum... Não sei te dizer exatamente se foi em noventa e seis ou noventa e sete, mas foi nesse período a desativação da maioria das estações. As estações que não estão dentro de alguma cidade... As estações do interior. Para a gente entender melhor, a gente precisa ver. O sistema ferroviário, ele funcionou basicamente numa premissa muito interessante. Do maior espaço entre uma estação e outra, com capacidade para fazer cruzamento. Por isso que, antigamente, o volume de trens era muito grande. Houve época que a gente assistia até dez trens por dia. E no período anterior você atendia muito mais trens. Então as estações, elas facilitavam o cruzamento dos trens. Além disso, existiam, nas estações, turmas. Eram casas construídas pela rede ferroviária, nos trechos que ficavam entre uma estação e outra, e nessas casas moravam trabalhadores da via. Esses trabalhadores da via eram distribuídos ao longo da linha para eles fiscalizarem a condição da linha e fazer qualquer reparo que precisasse.


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Quando foi privatizado, esse pessoal que privatizou tentou implantar uma nova tecnologia. E essa nova tecnologia veio depois de desmontar todos os processos arcaicos. Primeiro, desativaram as estações, diminuíram o número de trabalhadores que acompanhava a linha, diminuíram uma série de situações e mandaram embora muita gente. Desestruturaram a ferrovia como um todo. Com a desculpa de que iriam introduzir novas tecnologias. Só que essa nova tecnologia nunca chegou. Na verdade, quando você tem o processo de privatização, não foi só o patrimônio público que foi embora, mas a tecnologia. Falam “ah, mas é uma tecnologia arcaica”. Era arcaica, mas era com essa tecnologia que funcionava a ferrovia, e que funcionou por muitos anos, mais de cinquenta anos. E produzindo, e transportando, e circulando a sessenta, setenta por hora. Quando chegou a iniciativa privada para tomar conta da ferrovia e introduzir novas tecnologias foi que houve o grande problema. Em vez de melhorar a ferrovia, acabou piorando cada vez mais. Exatamente quando eu fui lá [em Ligação], no sábado, passou um trem. E o Seu Pereira me falou que passa um em cada mês... Porque já acabou a ferrovia. Mas passa de vez em quando. Agora está muito difícil passar. Ficou muito complicado mesmo. Entendi. Achei estranho que muitas estações foram demolidas e lá ainda está de pé. Ainda está de pé. Na verdade, a Estação de Ligação é um marco, né? Foi ali que ligaram a ferrovia. As duas frentes de trabalho, né? As duas frentes de trabalho. Existe até uma lenda de que foram pregados os trilhos ali com pregos de ouro e tal. É mesmo. Eu ouvi falar. Então! Mas é um lugar muito bom ali. Eu, inclusive, tenho a foto de 1914, quando estavam terminando de fixar ali os últimos dormentes e trilhos. Por que será que um lugar tão importante para a história do Estado fica daquele jeito. No telhado tem um buraco no meio... ... Tudo caindo... E parece que não teve nenhuma tentativa de preservar. Não há tentativa de preservar nada. Na verdade, existe muita hipocrisia no Estado, com relação à ferrovia. Quando você olha a estação daqui [Estação Campo Grande], você vê ali uma tentativa de preservar, mas, na verdade, não está se preservando nada! Tudo aquilo que se torna obsoleto vai para o museu. E aquilo que vai para o museu está prestes a desaparecer. Na verdade, essa discussão da ferrovia vem há poucos anos atrás, e nós fizemos uma disputa muito grande aqui no estado, principalmente na cidade [Campo Grande], com relação à


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retirada dos trilhos. Você lembra que o prefeito retirou os trilhos da cidade e tal. Quando inaugurou, quando tiraram os trilhos, veio até um senhor historiador famoso, ele disse assim: “poderiam colocar aqui o barulho, uma gravação de uma ferrovia chegando aqui, como se tivesse chegando a locomotiva”. Quer dizer... Isso é um tapa na cara das pessoas que acreditaram na ferrovia! Porque a melhor forma de você manter e de você preservar é manter a estação com suas caract ̶ para que serve uma estação onde não chega trem? Não serve para mais nada, não é verdade? Se falou muito da ferrovia, muitos dizem que ela faz parte da cultura, da música, do estado e tal, mas, na verdade, nunca ninguém se manifestou para preservar, para segurar, para não deixar perder. Os trens de passageiros, pra você ter uma ideia, aos poucos foram tirando, tirando, até que acabou a ferrovia. Não foi por falta de passageiros, não! O argumento que usaram para tirar o trem de passageiros foi esse. Era porque tinham poucos passageiros. Sabe o que eles fizeram, na época? Eu trabalhava no trem. Começaram a mudar os horários do trem, para o trem chegar aqui [Campo Grande] onze e meia, meia-noite. Fizeram uma série de coisas. Aumentaram o preço da passagem. Uma série de coisas para justificar a extinção do trem. Agora, por exemplo, se você sabe, a ferrovia oficialmente ela praticamente deixou de existir. Foi desmontada, os vagões não estão mais aqui, não está circulando mais trens. Nós fizemos uma série de reportagens para a TV Campo Grande, mas ninguém fez mais nada do que isso. O governo do Estado teve algumas reuniões pra voltar e não sei o quê, que não ia deixar parar nunca, que tarará, mas não fez nada. Eu vi na TV o [atual governador de MS] Azambuja falando que ia cobrar a empresa que tem a concessão... A gente fez um discurso, a gente fez várias notas à imprensa, a gente tem uma discussão muito clara, que isso é uma questão de cumprimento de contrato. As empresas que pegaram a concessão têm a obrigação de manter a ferrovia do jeito que ela era, de manter o patrimônio público. Você falou da Estação de Ligação. É muito importante que as pessoas preservassem aquilo, não é verdade? Só que aquilo foi largado. Não tem valor nenhum para ninguém! E quem é o responsável por cuidar daquilo? Segundo eu vi na estação, tem uma placa na parede da frente dizendo assim: “bem desvinculado da ALL”, quer dizer, a ALL não considera... Sim. Aquilo lá agora está na mão do DNIT, o Departamento Nacional de... Sabe, né? Sei. Porque aquilo lá está distante de menos de seis metros da linha. Então isso fica com o DNIT. Esse imóvel já esteve alienado ao SPU, que é a Secretaria de Patrimônio da União. É um patrimônio histórico?


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Ele é patrimônio. Histórico, não tem essa característica, porque ninguém atribuiu isso ainda. Históricos são esses predinhos que tem aqui. Me parece que tem alguma coisa a nível estadual falando das estações, mas não sei até que ponto isso é verdadeiro. Depois, se você pesquisar, talvez você descubra alguma coisa. Mas ali, não. Tanto que alguém pegou. O menino está lá, fica lá, mas não tem obrigação nenhuma. Se ele quiser, é dele. Pode comprar. Talvez não possa mais porque agora está com o DNIT, entendeu? Mas aquilo lá é uma coisa que não tem esse apelo histórico porque as pessoas não têm interesse. Existe uma conversa, muita gente escreve livro e tal, mas efetivamente ninguém nunca se engajou pra defender a ferrovia, está entendendo? O pessoal gosta de cantar música do Trem do Pantanal, mas quando o Trem do Pantanal acabou... [pausa indicando que nada foi feito]. No dia que inauguraram a estação [Estação Campo Grande] depois de terem retirado os trilhos, vieram os cantores da nossa tradição fazer um show ali e tal. Totalmente desvinculado de qualquer discussão política da preservação da ferrovia, preservação histórica dos trilhos. Arrancaram os trilhos dizendo que os trilhos representavam perigo para a cidade, mas não era verdade. O que representava perigo para a cidade eram as cargas que circulavam. Não vai botar no meio da cidade circulando uma composição de combustível. O que você tinha que fazer? Pegar o depósito de combustível e tirar para fora da cidade. Tirava as cargas e permaneciam os trilhos. Você poderia colocar um bonde de superfície ou algum apelo histórico para ter um atrativo a mais para a cidade. Poderia circular um bonde de superfície que circulasse lá da Estação [Manoel] Brandão e fosse para [Estação] Indubrasil. A ferrovia passa pelos trinta e três maiores bairros da cidade [Campo Grande]. Tinha a possibilidade de usar isso como metrô de superfície, alguma coisa nesse sentido. Estava tudo ali, né? Mas ninguém tinha interesse. As pessoas e o próprio prefeito, na época, ficou muito mais interessado em fazer a especulação imobiliária que a retirada dos trilhos certamente que a retirada dos trilhos certamente trouxe. Um aumento substancial no valor dos terrenos onde passariam as novas avenidas. As Orlas... [Orlas Morena e Ferroviária] Exatamente. E aquilo que sempre se faz no Brasil, e eu acho que talvez seja a coisa mais vergonhosa em termos de obra em qualquer lugar do mundo, que é fazer trilhos que contornem a cidade. Você não tira os trilhos do centro da cidade, porque a cidade vai lá depois, e daqui um pouco aquilo lá vai ser centro. Então é uma das coisas mais vergonhosas que pode existir. Na época se estimou que com trinta por cento do dinheiro você faria viadutos. Ou o trem passava por debaixo, ou passava por cima. Com trinta por cento com o valor dessa obra, você teria feito isso. Mas os políticos precisam de grandes obras, que envolvam muito dinheiro, e que depois resultem em investigações por superfaturamento, esse tipo de coisa. Não fugiu o caso daqui. Foi o que aconteceu. Até hoje circulam processos com relação ao superfaturamento dessas obras. Então a gente olha essas coisas e vê com muita tristeza, porque a gente, na época, fez um trabalho muito sério pra discutir isso. Tentou envolver o maior número de pessoas da sociedade, mas as pessoas não estão interessados, infelizmente.


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Hoje, por exemplo, pouca gente sabe que o trem acabou, parou de existir. Daqui a pouco estão sumindo os trilhos. A empresa que ficou, ela tem a obrigação de cuidar do patrimônio público. Mas se ela não conseguiu deixar funcionando os trilhos, por que ela agora vai cuidar? Essa que é a grande dificuldade que a gente tem. Não se tem memória histórica, não se tem nada. Um local daquele lá [Ligação] tinha que ser preservado, tinha que ter... sabe?... alguém para cuidar daquilo, alguém público, pra falar “isso aqui é um ponto estratégico”. Mas infelizmente a gente não tem isso. Pois é. Mas falando um pouquinho sobre o seu trabalho, em Ligação. Quando você começou a trabalhar lá? O tempo que você fic ̶ Olha, eu fiquei lá em Ligação desde noventa e um, justamente porque quando os trens de passageiros deixaram de correr, numa primeira pegada, eles diminuíram drasticamente. Como eu trabalhava e era agente de trem, eu já saí dos trens. Eu cheguei até pedir demissão pra ir embora, porque eu não queria saber de outra coisa que não fosse... eu fiz concurso pra trabalhar no trem. Mas na época a minha esposa ficou grávida, e aí eu abri mão de sair e preferi ficar. Fui lá para a Estação de Ligação, se não me engano, em noventa e um, maio ou junho de noventa e um. Permaneci lá até noventa e sete. É mais ou menos esse período. Até noventa e sete fiquei lá. E qual era a sua função? Eu era agente de estação. Era encarregado de fazer o licenciamento, de fazer a formação do trem, fazer cruzamento, desmembrar trem, quando tinha que fazer esse tipo de coisa. Trabalhava exatamente no controle, no acompanhamento dos trens que circulavam ali. Vai passar um e tem que saber... ... licenciar ele com outro, pra dar tempo, ter o espaço certinho. Eram turnos de oito horas. Fiquei um bom tempo lá. Era bom trabalhar lá? Rapaz, não era muito bom porque era meio solitário, principalmente à noite. Às vezes, duas horas da madrugada, chuva, frio, e você fazendo troca de staff, atendendo... Mas era gostoso porque era a ferrovia. Você trabalhava numa comunidade de pessoas, de colegas de trabalho bem grande. Muita gente trabalhava lá? Muita gente trabalhava lá e você estava em contato com todo mundo. Até Bauru você falava. Tinha sistema de comunicação que você estava ligado com quase todo mundo. Quantas pessoas trabalhavam lá? Na estação [Ligação]? Pra você ter uma ideia. A gente fazia oito horas. Eram quatro agentes e três, quatro manobradores. Sete, oito pessoas naquela estação.


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Tenho uma dúvida. Eu fui lá [em Ligação] e é meio isolado de Campo Grande. E era uma estação de passageiros e tinha passageiros subindo e descendo. Mas de onde eles vinham? É que você não viu. Mas ali atrás tem a Fazenda Estrela, tem chácaras. E era uma estação pra atender passageiros, mas não era de grande densidade. Em cada lugar tinha uma estaçãozinha, mas era de passageiros porque passava trem de passageiros, então a pessoa tinha a opção de ficar lá, descer lá. Era muito pouco, claro, mas tinha a opção, entendeu? Era a opção que se era oferecida, não tanto o fluxo de passageiros. Mas tinham fazendas que iam ali pegar o trem. Gado embarcavam bastante ali? Ali, para você ter uma ideia, no fundo da estação, era um corredor de gado. Era um corredor boiadeiro. A estrada também funcionou por ali por muito tempo. Depois que asfaltou que fizeram ela ali por cima [BR 262]. Mas a estrada era ali pelo fundo. Naquela estradinha que vai saindo lá, sabe? É. Eu cheguei ali por baixo mesmo. Uhum. Ali tinha uns corredores de gado. Então era uma demanda bem interessante. No começo, eu imaginei que ali seria só para embarcar gado, porque é distante da cidade. Não entendi como poderia chegar passageiros ali. Tinha. E antigamente tinha uma demanda maior ainda. Tinha muito mais gente trabalhando ali. É que o auge da ferrovia foi antes dos anos noventa... É, foi antes. Nos anos noventa já foi o finalzinho. Nunca teve reforma enquanto você trabalhou ali? Está do mesmo jeito desde quando inaugurou o prédio? A estação? Não. Está vendo esse prédio aqui? [O edifício onde fica o Sindicato dos Ferroviários, em Campo Grande, na Rua Dr. Temístocles, nº 64] Nele já foi feito vários remendos. Mas você percebe que ele está se deteriorando porque faz muito tempo. Com o tempo vai acabando. Então substituiu uma coisa, ia arrumando outra. Aquilo é resultado de vinte, trinta anos sem manutenção. Vinte, trinta anos sem manutenção lá... É muita coisa. Você vindo de lá [Ligação] para cá [Campo Grande], do lado de cá tem uma ponte onde tem o córrego. Na entrada da estação, do lado de cá, indo daqui pra lá, tem o córrego. Do lado direito tinha um cercado que tinha uns cinco ou seis pés de mixirica. Todo ano a gente arrancava e saia com sacolas de mixirica dali. Foi acabando, as formigas foram comendo, foi pegando e tal, e acabou quase tudo. Mas ali tinha criação de porco, tinha tudo. O pessoal da estação sempre tinha essas coisas. Entendi.


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Você viu aquela casa do meio que é mais bonita, né? Na época que eu fui pra lá, eu queria ter pego uma casa, mas não tinha mais casa. Então eu ficava num vagão e ficava mais pra cá [Campo Grande], porque minha família não chegou a se mudar pra lá [Ligação]. Eu ia lá e voltava quase todos os plantões que eu fazia... De trem mesmo? Não, de ônibus. Você ia e voltava de ônibus? De ônibus. Eu ia na estrada e pegava carona. Ia de carona. Você trabalhava mais no turno da noite? O que a gente fazia?: Tinha três, quatro pessoas lá, e a gente trocava os plantões. Tirava de dois, três caras, ficava lá um dia, por exemplo, e vinha pra cá. Aí o cara tirava o meu... E assim você ficava. Tirava três plantões, quatro plantões, vinha pra cá [Campo Grande] e depois voltava. Era proibido, mas você sabe como é o proibido, né? Quando tinha uma fiscalização mais séria, todo mundo ia pra lá, ficava lá. Sobre os outros funcionários: quais outras funções eram... Lá, o que tinha, na minha época, era o pessoal da estação e os manobradores. Os manobradores eram os que faziam efetivamente as manobras. Desengatavam, engatavam, davam entrada no trem, fazia os cruzamentos. Nesse período, a gente já enfrentou uma situação diferenciada, porque foram diminuindo o número de manobradores. Inicialmente, era um manobrador para cada agente. Depois foi diminuindo. Ficou um, dois. Às vezes, à noite, ficava sozinho e tinha que fazer os cruzamentos, tinha que acumular essa função também. Mas eram os agentes, os manobradores e o pessoal da via que ficava ali em frente, quando vinha. Mas, na época, não tinha via ali. A via ficava na próxima estação, que é a Alegre. Mas era basicamente isso. Agora você fica aqui no sindicato? Na verdade, eu saí da ferrovia há muito tempo. Antes de sair, eu fui diretor do sindicato. Fui diretor do sindicato até 2004. Em 2004, saí da ferrovia, me desvinculei do sindicato e fui embora. Depois, em 2008, o pessoal me convidou para trabalhar no sindicato. Eu sou funcionário daqui. Como eu posso falar a sua função aqui no sindicato? Sou assistente administrativo. Qual é meu trabalho aqui?: Não é mais um trabalho político. Mas é um trabalho, por exemplo, de assistência, encaminhamento, resolução de problema dos trabalhadores, fazer homologações, correr atrás de direitos, contatar advogados, essas coisas todas que envolvem os processos trabalhistas dos trabalhadores daqui. É um trabalho mais burocrático. Por exemplo: quando precisa fazer assembleias, a gente vai no trecho, vai fazer as assembleias, reúne os trabalhadores, mostra a situação que tem, entendeu? É um trabalho bem legal.


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É claro que a gente olha com bastante tristeza porque é um mundo muito grande. Pra você ter uma ideia, quando eu comecei a trabalhar, no meu setor tinham oitenta pessoas, oitenta e seis pessoas, e é um setor que simplesmente deixou de existir, com quatro anos. Éramos agentes de trem. Com quatro anos, deixou de existir. Depois eu fui pras estações. Era um universo grande também, o universo dos agentes de trem [correção: agentes de estação]. Você imaginar que... são quantas estações daqui [Campo Grande] pra lá?... Manoel Brandão, Lagoa Rica, Ligação, Alegre, Bálsamo, Ribas do Rio Pardo, Mantena, Luiz Gama, Formoso, Arlindo Luz, Atoladeira e Água Clara. São várias estações. De lá para Três Lagoas... De lá para Três Lagoas. Você imagina. Eu falei pelo menos onze estações. Multiplica por... quantos eu falei? Sete, oito? Imagina quantos funcionários. Isso só nesse pedacinho ali. Aí daqui [Campo Grande] para o lado de cá, tinha para o ramal [extensão da estrada férrea conecta Campo Grande a Ponta Porã]. Tinha o ramal, tinha o que vai para Corumbá... Exatamente. Dois mil funcionários que ficaram em setecentos, oitocentos, quando foi privatizado. A Rede Ferroviária fez uma parte, mandaram muita gente embora. E quando eles vieram [a Noroeste é privatizada e muda o nome para Novoeste], fizeram outro processo de demissão também. Muita gente. E o Trem do Pantanal. Acabou também... Pelo seguinte: as pessoas, na época que se fez essa discussão, se criou uma ideia de que isso traria uma série de situações. Os deputados disseram que isso ia atrair novamente o comércio ao longo da linha, que muita gente ficou órfã, na época que acabou o trem. Só que era um trem de turismo, com um valor mais caros, com outras condições, e sem condições de via-permanente. Na época, até se fez uma reforma da linha. Nós denunciamos, inclusive, que era uma reforma muito mal feita, sem condições para trafegar o trem de passageiros. E acabou que esse trem começou a funcionar, mas funcionava a vinte, vinte e cinco por hora. A vinte por hora, ninguém gosta de andar. Se você andar num trem a vinte por hora, na próxima estação você quer descer. Tem que ter uma coisa muito interessante no trem pra você não querer descer. Conhecido alguém para você não querer descer. E daqui [o Trem do Pantanal saia de Indubrasil] até Miranda não tem muitos atrativos. A não ser a Serra de Maracajú, em Piraputanga. Aquele pedaço é bonito. Mas o resto não é o Pantanal. Pantanal é de Miranda para lá. Saia esse trem daqui às seis da manhã e chegava às seis da tarde em Miranda. Só até Miranda demorava tudo isso? Porque era muito devagar. Parava em Aquidauana, almoçava, não sei o quê e tal. Demorava muito. Não era uma coisa assim, você está entendendo? O trem de passageiros, eu trabalhei no trem de passageiros, tinha uma vantagem muito grande, porque era um trem de uso. As pessoas viajavam pra usar o trem para trabalhar, muitos


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para passear. Quando passava Miranda para lá, você fala assim: “mas tinha umas estaçõeszinhas tão pequenininhas, quem subia lá?”. Vinha gente das fazendas e subia ali. Três, quatro passageiros numa estaçãozinha lá no meio do Pantanal. Então você tinha uma mistura de pessoas. Gente da Holanda, gente de não sei da onde, sentado ao lado do pessoal das fazendas. Isso é turismo. Mas fazer um trem especificamente só para pessoas turistas não tem muito futuro. A grandiosidade da ferrovia é porque era democrática. Ela trazia essa carga subsidiada, que o governo subsidiava. Mas atendia todo mundo. Se você quisesse, por exemplo, ir lá em Ligação. Você estava lá na fazenda. “quero levar minha mudança para Campo Grande porque eu estou mudando da fazenda”. Você pegava as suas coisas e deixava no armazém que tinha ali do lado, a gente relacionava, pesava tudo, o trem parava lá, pegava a mudança e ia embora. Podia mandar qualquer coisa. “Quero mandar uma bicicleta pro meu primo que está lá em Corumbá”. Você vinha aqui na estação e mandava. A grande perda que se teve com a privatização foi exatamente isso. É que as empresas que vieram, vieram para transportar aquilo que elas querem. Transportar produtos de baixo valor agregado. Funcionar em função da soja, ou em função do minério, ou em função de alguma coisa, mas não atendendo a população como um todo. Deixou de se atender a população. Deixou de ter esse aspecto social que tinha a ferrovia, de atender a todo mundo. Muitas pessoas não conseguem perceber isso, e não conseguem perceber qual a perda que se teve quando a ferrovia se perdeu. Não foi apenas o fantástico patrimônio que se jogou fora. Também essas questões da população se perdeu. Poderia ter fortalecido o turismo, poderia ter fortalecido comunidades, poderia ter fortalecido uma série de coisas que hoje nós não temos. O estado [MS] não tem muitos atrativos. Campo Grande não tem atrativo nenhum. Se tivesse, por exemplo, um bondinho que circulasse da Indubrasil com algumas paradas em locais específicos, com atrativos da terra, seria alguma coisa. Hoje, o turista chega ali no aeroporto, pega van e vai para Bonito. Outro grande problema dos ferroviários: se colocar novamente no mercado de trabalho. Eles sabiam ser ferroviários, e depois... Não tem qualificação. Bons maquinistas, bons no que fazem, mas desempregou, vai trabalhar no que? Levaram a vida toda trabalhando na ferrovia... E a ferrovia era um mundo, era um universo, pra você ter uma ideia. A ferrovia, ela mexia com tudo. A Noroeste do Brasil, ela era tudo. Está vendo esse móvel aqui? [Duas batidas com os nós dos dedos na escrivaninha, indicando que se tratava dela]. É fabricado na ferrovia. Não fazia só trilho e trem não. Tinha marcenaria para fazer isso aqui [escrivaninha]. Eu tenho uma cantoneira, uma cadeira giratória, eu tenho dois fichários modelo antigo, madeira trançada, não era pregada. A marcenaria era uma tradição dentro da ferrovia. Está vendo esses armários aqui, ó? [Aponta para os armários com uma caneta]. A Rede Ferroviária que fazia. Aquele armário que está com a perna quebrada, a Rede Ferroviária que fez. Tudo feito na ferrovia. Os prédios, os símbolos da NOB


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de bronze, sistema de comunicação por rádio, prato, talher, tudo com logotipo, lençol, cama, rouparia, tudo que você imaginar.

6.1.5 Arquiteto e Urbanista Ângelo Arruda Professor, a primeira pergunta é a respeito da tipologia arquitetônica das primeiras estações. Recentemente eu estive numa estação que me interessou particularmente, que é Ligação. Eu visitei a estação. Eu percebi que a tipologia arquitetônica dela é bem semelhante às outras estações construídas no mesmo período, estações do interior. O que pode ser dito a respeito disso, a respeito da arquitetura das estações. Olha só: a arquitetura ferroviária não era uma arquitetura de invenção, ela era uma arquitetura de indústria. Então ninguém se propunha a fazer nenhuma inovação em função de uma probabilidade de que a implantação dessas estruturas não desse certo em função das distâncias, da mão de obra e da tecnologia. Então a gente tem um período antes do século vinte e um período depois do século vinte, no Brasil, separados em três períodos depois do século vinte. Mato Grosso do Sul tem os três. Então quando a gente recebeu a ferrovia, em 1914, essas estações que você vê hoje, não são as estações que foram construídas em 1914. Todas elas foram substituídas pelas estações ou do ecletismo, que é o caso de Ligação, ou pelas estações um pouco mais da década de trinta, trinta e cinco, que a gente vai ver no trecho Miranda pra cima. Miranda e Porto Esperança, especialmente. Então assim: este primeiro período que vai de 1870 a 1910, eles usavam um vagão de trem como estação. O provisório acabava ficando de certa forma até definitivo. A gente tinha estações muito simples, com duas águas e cobertura e um piso. Por que? Porque era o novo que tava entrando. E esse novo que tava entrando, ele tinha uma lógica... A ferrovia não foi montada pra transportar pessoas, a ferrovia foi montada pra integrar a América. Este era o princípio do Schnoor. Interligar o Atlântico ao Pacífico. Ainda que até hoje isso não tivesse acontecido. Então a tipologia arquitetônica das estações do padrão Ligação. Ligação até Água Clara era um padrão. São Igualzinhas, com detalhes sutis de diferenças. Elas são todas de 1920, 22, 23, 24, 25, 26... E elas representam uma organização de projeto de arquitetura que foi pensado fora do Brasil. A nossa ferrovia é anglo-francesa ou anglo-belga. A gente tem os dois [?]. Havia um engenheiro francês que ficava posicionado em Aquidauana. E havia um outro engenheiro inglês que ficava posicionado em Três Lagoas. Eles comandavam as ferrovias. A ferrovia, você sabe, ela se encontrou em Campo Grande. Elas começaram na barranca do Rio Paraguai, lá em Porto Esperança, e aqui em Três Lagoas. Elas vieram vindo. Então essa tipologia é uma tipologia standard para enfrentar a multiplicidade e a repetição como forma de sair mais rápido, sair mais barato, e a lógica construtiva ser a predominante. Eu achei que aquela estação tinha sido construída em 14, mas não foi... Não, as de 14 todas desapareceram. Não existem. Entendi. E a respeito da Esplanada Ferroviária. Eu tenho até um artigo que eu acredito que é seu, que eu encontrei na internet. Não é esse daqui, não. Esse aqui é do Armazém. É esse daqui.


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Esse é meu. Está aqui, ó. [Arruda mostra o nome do autor no papel]. É interessante porque aqui você lista todos os edifícios da esplanada. Faz um levantamento. Todos eles foram construídos nos anos 30 pelo mesmo engenheiro, o Ibiapina. Isso, isso. O Aurélio Ibiapina. Todos os edifícios ferroviários dali foram pensados por ele? Estações, edificações... bom, “pensados por ele” também é uma hipótese, entendeu? Porque depois que eu escrevi esse artigo, isso já tem quase 20 anos, pra cá, outras pesquisas apareceram. Mas nenhuma delas ainda diz assim: “esse conjunto de projetos arquitetônicos foi feito pelo engenheiro fulano de tal”. A ferrovia não tinha essa tradição. Exemplo: a casa nossa daqui da NOB, esta casa da frente da ferrovia, a mais bonita, a da esquina da Calógeras, etc, etc, ela tinha uma igualzinha em Araçatuba! A mesma casa, entendeu? Mostrando que havia um único projeto e que ele foi repetido. A estação ferroviária de 34, de Campo Grande, de 33, 34, ela é a mesma de Itu. Eu estive lá em Itu, tirei foto. Com o mesmo relógio, com o mesmo ornamento de frontón. Inclusive eu tirei a foto porque na entrada da nossa estação foi substituída a marquise. Era uma marquise de vidro, com ferro, tem até fotos na internet, se você procurar. Você vai ver a estação original, que tem uma charrete na frente, numa foto de 1939. O Aurélio Ibiapina era o engenheiro, tá certo?, que coordenou esse período todo de obras mais intensas que teve em Campo Grande. Então raciocine comigo: 14 o trem chegou, a estação de Campo Grande era uma minúscula estação, foi feito uma segunda, e foi feita essa que tá hoje. Então, na realidade, são três estações de Campo Grande. Tem uma da inauguração. Tem outra de 1915, 16, por aí assim. E tem essa que tá em vigor. Muito bem. Essa que está em vigor, ela é o período rico do processo. É a 2ª Guerra Mundial. Mato Grosso começa a exportar charque pra dedéu pra Europa. Há uma riqueza fodida de bens e serviços econômicos. E isto capitaliza a Noroeste. A Noroeste vai e investe em Campo Grande, fazendo a desapropriação da Esplanada, entendeu?, a compra de áreas, aonde hoje tudo é... quer dizer... a Vila dos Ferroviários, na Rua dos Ferroviários, as de madeira. A Vila dos Ferroviários, na Rua Dr. Ferreira, do lado esquerdo. Que a do lado direito foi feita vinte anos depois. Do lado esquerdo... Do lado esquerdo, entrando na rua dos ferroviários, na Dr. Ferreira. As casas mais antigas estão à esquerda, e as mais novas estão à direita. Entrando pela 14? Entrando pela Temístocles. Entrando pela Temístocles, entendeu? Entrou pela Temístocles, do lado esquerdo, fundo da feira, mil novecentos e trinta e alguma coisa. Lado direito, cinquenta e alguma coisa. [Arruda provavelmente confundiu o nome das ruas. Não é possível ter acesso à Rua Dr. Ferreira pela Dr. Temístocles, e sim pela General Mello. No momento da entrevista, tive dúvidas, mas nada disse. Percebi o erro durante a transcrição (e tive certeza depois de consultar o mapa). Entretanto, isso não invalida o ponto central que Arruda quis me fazer entender: o lado em que as residências mais antigas se encontram na Rua Dr. Ferreira].


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E aí vai tudo. Vai estação. Vai armazém. Armazém é o auge. Quer dizer, o armazém de Campo Grande ficava do lado da estação. Era pequeninho, o armazém. Se você olhar a estação de frente. Olha ela ali, a amarela, foi eu que pintei. [Arruda aponta para algumas imagens fixadas na parede]. Aqui a direita dela era o armazém, que onde hoje tem um auditório, que a prefeitura fez o restauro. E do lado direito, embarque e desembarque. Esse armazém, que hoje é o Armazém Cultural, ele foi feito graças a esse input econômico de exportação, de importação... ninguém faz um galpão... e depois a rotunda... ninguém faz uma rotunda daquela... Só tem aquela rotunda em Três Lagoas e Aquidauana. Então a rotunda era a oficina das máquinas. Como é que eu vou colocar uma oficina de máquina num lugar que era ponto de passagem? Três Lagoas... zzzzzzzzzup... Aquidauana... parou... Não, Campo Grande merece e tal. Não era a capital, não era absolutamente nada. Entendi. E uma coisa que eu acho interessante a respeito daquela vila dos ferroviários é que o asfalto não é asfalto, é paralelepípedo. E é engraçado que na maioria das cidades... acho que é um senso comum até... que as ruas de paralelepípedo são as mais antigas, só que aquela Vila dos Ferroviários, ela está além do projeto inicial do Nilo Javari Barém, das primeiras ruas de Campo Grande. Sim, sim. Ela foi feita dentro do projeto ferroviário, entendeu? Quer dizer, Bairro [?] do Carioca pra trás, Escolinha do Batatinha pra baixo, tudo aquilo ali foi comprado. Era uma chácara. Um pedaço dos irmãos Tomé, outro pedaço do Arlindo de Andrade, que ficava no fundo, que é onde ele fazia a chácara dele, pra plantar as árvores, entendeu? Foram comprando. A Noroeste era uma empresa pública. E lá o chão é de paralelepípedo, mas não são as ruas mais antigas da cidade... Exatamente. Tudo da década de 30. Se você tirar o pavimento asfáltico da Rua 14 de Julho, você vai achar o paralelepípedo embaixo. Ahhhhhh! Não sabia dessa informação. E como você diria que é a importância da ferrovia e dos edifícios ferroviários pra urbanização de Campo Grande, pro crescimento da cidade mesmo. Bom, a ferrovia mudou a rota prevista pelo plano do Barém. O plano do Barém, o traçado do plano do Barém totalmente romano, leste-oeste, a Avenida Marechal Hermes, hoje Afonso Pena, foi projetada como avenida principal. Isso é visível na planta. Tem um pedaço da cidade pro norte e um pedaço da cidade pro sul. Pro oeste ela acabava na Calógeras e pro leste ela acabava no Rádio Clube. A cidade tinha como rua principal a Avenida Afonso Pena, no plano do Barém. Quem que vai alterar isso? A chegada do traçado ferroviário a Campo Grande. Que também foi alterado! Essa é uma provocação que eu faço o tempo inteiro, que o projeto original, que está na Biblioteca Nacional, do traçado ferroviário feito para atender o levantamento do Schnoor, feito em 1904, 1905, 1906... Aqui em Campo Grande, em 1907. Exatamente. E ele esteve em Campo Grande, em 1907. Era entrando pela Afonso Pena, pelo desbarrancado. Vinha pela saída de Três Lagoas, entrava beirando o hoje Parque dos Poderes, Rincão da Afonso Pena, que passava pela Afonso Pena, e ia embora para o


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aeroporto. Este era o traçado original. E esse traçado original, ele foi alterado por força do Bernardo Franco Baís. Passou em frente ali da... Da casa dele! E pra poder isto acontecer, a engenharia ferroviária teve que criar um conjunto de voltas, porque isso era trem a vapor. Pra subir alguém tinha que estar empurrando, e o empurrar não era por força, era hidráulico. Então eu tinha que pegar o embalo pra subir, depois descer, subir, depois descer. Então a alteração do traçado tira da Afonso Pena este papel que ela tinha. Eu não digo isto simplesmente por dizer. Existe uma planta, de 1910, feita pelo Temístocles que tá escrito: praça da estação em cima da Praça do Rádio. É a ferrovia quem vai alterar a lógica de desenvolvimento de Campo Grande que era lesteoeste. Nós não tínhamos nada pro norte. E o sul tinha um córrego instransponível. O Córrego Prosa foi instransponível durante décadas. O nosso horizonte era leste-oeste. A ferrovia vem, coloca a estação no norte, então agora eu tive que mudar a lógica da cidade inteirinha. Essa lógica se alterou, os equipamentos arquitetônicos também contribuíram pra trazer um novo construtivo pra cidade, usando uma empresa construtora, usando engenheiros, usando... A gente tinha mestres, ninguém tinha engenheiro aqui. Na década de 30, tinha um engenheiro na cidade. A ferrovia vai e traz dez, doze, quinze, tá certo? Cem pessoas pra construir, trezentas pessoas pra fazer. Então era um outro padrão. Esse padrão alterou o modo de viver da cidade. Você vai encontrar filhotes das casas ferroviárias espalhadas pela Cabreúva, espalhadas pelo Amambaí, espalhadas pelo Planalto. Depois, [anos] 40, 50. Você vai encontrar. O cara ia lá e reproduzia o mesmo edifício. Edifício com varandinha lateral, duas águas. Inclusive tem uma rua que foi prevista pela planta do Barém, acho que era Inhanduí, que ela nem chegou a existir porque o trilho passou justamente por cima. Isso indica que ela era prevista diferente. E tem uma importância fundamental na figura no Bernardo. Ele era o comerciante mais importante, o homem mais rico da cidade. O cara que foi escolhido pra ser prefeito, e só não foi porque ele era italiano. Se você disser assim: “Quem mandava em Campo Grande?” Bernardo Franco Baís. Pegou seu cavalo, junto com o seu capataz e saiu daqui pra Três Lagoas, pra falar com o engenheiro. Esse diálogo existe nos livros da Noroeste. O diálogo de Bernardo com o engenheiro da Noroeste que ficava em Três Lagoas está, eu achei esse diálogo, num livro lá em Três Lagoas. Porque ficou uma lenda, entendeu? Ah, o cara morreu de trem. Ele ficou cego. O trem atropelou ele. Aconteceu isso, né? Aí eu fui atrás, quando eu tava pesquisando pra valer, a fundo. E tem lá. Tem os livros de ata, né? “Recebemos hoje o cidadão fulano”. Tinha o livro de ata, o livro de visitas. Esse livro não existe mais. Não existe mais? Não. Porque quando o André era governador e o Girotto, secretário, eles levaram tudo pra Bauru. E lá em Bauru, com a questão da massa falida, isso foi pra Biblioteca Nacional. E na Biblioteca Nacional, eu não sei o que ficou de acervo e o que foi descartado. Mas que pena! Também acho. Também acho. Como as pessoas não têm a preocupação de manter essas coisas?...


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A História é terrível. Eu estive na comunidade que fica próximo de Amambai, que era uma fazenda da Mate Laranjeira, onde era a sede da fazenda Mate Laranjeira. O livro de visitas tinha o D. Pedro, D. Pedro II. Ele não era mais imperador, mas ele foi recebido na fazenda. “O ex imperador D. Pedro II visitou aqui ontem e tal, veio acompanhado de sua esposa, de dois filhos, não sei quem e tal”. E isso em 1899, por aí. Então esses livros existiam. Livros grandes. Recebiam uma visita e eram obrigados [Arruda faz um gesto com a mão, escrevendo no ar com uma pena imaginária]. Eu não conhecia esse tipo de coisa... Professor, e qual é a sua opinião da retirada dos trilhos do perímetro urbano de Campo Grande, e da construção das avenidas novas, das orlas... Esse foi um dos momentos mais duros da minha vida porque eu juntei um monte de intelectuais e artistas e ativistas e ferroviários e criei uma ONG chamada Ferroviva, em 97, e essa ONG nasceu com a finalidade de preservar. E nós chegamos a fazer a restauração da estação de Campo Grande, a restauração da estação de Ribas [do Rio Pardo], a restauração da estação de Miranda, todas patrocinadas pela Ibratin [?], que fornecia tintas, todas amarelinhas, que foi a cor que a gente identificou como sendo, não a original, mas a cor predominante durante mais tempo. A gente fez entrevistas e as pessoas lembravam sempre do amarelo. Ela foi pintada de branco originalmente. Mas quando apareceu a cor na tinta, a primeira cor que pintaram todas as estações foi amarelo. E ela ficou 40 anos amarelo, depois ficou cinza, depois ficou enfim... Então foi um choque pra mim. Um choque. Um choque por que? Porque nós estávamos dialogando com a prefeitura, trabalhando a seguinte tese. “Legal, vocês conseguiram o que ninguém conseguiram, tirar o trem de carga”. O trem de carga passa por fora. Ele é o trem que mata, porque ele cruza cruzamentos urbanos muito delicados, como a Afonso Pena. Então beleza. “Prefeito de Campo Grande, dez pra você!” Agora o trilho não tem nada a ver. O trem tem, o trilho não precisa, o trilho a gente pode projetar uma alternativa de transporte de turismo, de cultura. Fizemos esses projetos, mostramos pra ele, mas, indelicadamente, ele tirou proveito de um acidente que tinha tido aqui próximo da universidade, e começou a jogar uns petardos na imprensa, teve até o apoio do Instituto Histórico [e Geográfico de MS], na época. O professor Campestrini gravou um depoimento, o que me deixou mais chocado ainda, porque eu era, eu era não, eu sou membro ainda do Instituto Histórico e Geográfico, entendeu? Eu fiquei chocado com isso. Uma cumplicidade ali em torno de um assunto tão delicado. Então assim, a cidade perdeu. Perdeu porque há um traçado no leito ferroviário que ficou consolidado dentro da cidade, nas laterais. Ou seja, ninguém podia construir a quinze metros de distância do trilho, então ficava sempre um vazio. E esse vazio hoje foi colocado uma avenida. E essa avenida, ela não tem o mesmo charme, nem a mesma cultura, e a gente perdeu com esta retirada, porque a gente podia ter estudado o leito ferroviário com ciclovia, com transporte de massa, não pra 1999, não cabia, mas pra 2019 já cabe, vinte anos depois. Então hoje, beirando um milhão de habitantes, daqui a sete anos, a gente vai precisar de um modal de transporte diferente desse modal de ônibus que a gente tem ali ainda. E esse leito ferroviário seria fundamental pra gente buscar novas alternativas, entendeu? O trilho em si, com os dormentes, tinha que ser substituído. Não era isso. A gente não poderia perder a oportunidade da mobilidade do transporte, que é o que a gente acabou perdendo. E junto com isso foi a história, foi a memória, foi a cultura, foi tudo junto, né? Professor, tenho duas perguntas, só que elas são um pouquinho mais subjetivas. Pensando na arquitetura ferroviária enquanto... se bem que o senhor disse que é mais


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uma questão industrial do que estética... mas pensando no impacto visual dos edifícios ferroviários, que sensação que te provoca, que pode provocar nas pessoas, ou em ti mesmo? O prédio ferroviário, ele é lido como um prédio ferroviário, ele não é lido como uma maternidade, nem como um clube. Acho que a grande característica do edifício ferroviário, é que ele transmite, pela imagem, pelo simbólico, as características mentais que a gente guarda nas nossas caixinhas, seja de criança, de jovem, de adolescente, como sendo edifício ferroviário, ou seja, ele passa pra gente essa imagem. E isto se deu graças a essa repetição, essa mesma estética predominante no Brasil, e eu to falando agora, de Brasil não, agora eu to falando de Latin’América, porque eu vi uma estação ferroviária em Buenos Aires igualzinha a uma estação de Sidrolândia. Pra você ter uma ideia. Era o modus operandi. O modus operandi é: o trem é uma linha, vagão e máquina, é uma linha, então eu não posso fazer uma estação ferroviária que não seja uma linha. Ela pode começar pequenininha, mas ao longo do tempo, ela vai ter que crescer. Ela não cresce no sentido perpendicular. Então todas as estações ferroviárias são longelíneas. E são longelíneas para receber o trem, não é pra receber uma festa. Então essa linguagem é apropriada. Depois, a vila não pode ser há dez quilômetros de distância, porque as pessoas trabalhavam 24 horas. 24 horas por dia um ferroviário estava ligado à ferrovia, seja pra abrir, pra fechar, pra impedir, pra consertar, pra lavar, pra limpar, pra tirar, quer dizer, é um aeroporto. Você pode conceber uma lojinha que aluga carro pro aeroporto ficar há dez quilômetros de distância do aeroporto? Não! Tem que estar ali, tudo junto, o setor de carga, o setor de manutenção, o setor de enfim... Não é saudosismo arquitetônico, mas ele me traz exatamente essa memória. É bacana isso. Eu ir pra Recife, olhar a estação, e lembrar de uma outra estação que eu vi até na Europa, até na Europa! O trabalho de pesquisa que eu fiz, que é esse que tá na capa vermelha aqui, ó [Arruda mostra novamente as imagens que estão na parede] “Nos trilhos da história”. Ele está lá na Uniderp. É o maior levantamento. Esses fragmentos que você viu aí [no artigo] são decorrentes desse trabalho aí. Eu apresento o inicio da ferrovia na Inglaterra, em 1901. A primeira estação ferroviária, a segunda, depois Estados Unidos, depois quando ela vem pra Argentina, a mesma empresa da Argentina faz Brasil, e essas que vieram pra Mato Grosso do Sul, a Noroeste. Interessante como a Noroeste foi construída só uns cem anos depois que a ferrovia foi inventada, né? Acho isso muito interessante assim, porque geralmente as coisas demorariam numa região que nem era incorporada ao Brasil... Mas era a visão estratégica. Eu acho que o que tem na ferrovia, mais do que qualquer coisa, é a visão estratégica. Hoje, com pouco dinheiro, muito dinheiro, zero dinheiro, o Brasil não tem uma visão estratégica do seu desenvolvimento. Visão estratégica é: “vou investir num lugar que não tem ninguém”. Ninguém faz isso hoje mais. Já se fez. Já se fez rodovias assim. Já se fez ferrovias assim. E essa visão estratégica coincidiu com um processo de pulsante de migração pro oeste e isso alavancou. Cara, pode escrever isso: não haveria capital, Campo Grande, se não houvesse Noroeste do Brasil. Não haveria! “Ah, mas os militares!” Pô, beleza, perfeito, os militares deram uma enorme contribuição porque trouxeram, tá certo?, mão de obra, trouxeram tecnologia, mas eles não transportavam nada. Quem transportava a riqueza e as pessoas era a ferrovia. Graças à ela. Tanto é verdade, que você vai pegar o senso de 1950, Campo Grande já tem mais renda, mais riqueza, mais arrecadação, e mais gente do que Cuiabá.


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