A maquiagem como expressão da identidade cultural e pessoal

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - HABILITAÇÃO EM JORNALISMO

A MAQUIAGEM COMO EXPRESSÃO DE IDENTIDADE PESSOAL E CULTURAL

CARLA SCARPELLINI CAMARGO

Campo Grande NOVEMBRO / 2014


A MAQUIAGEM COMO EXPRESSÃO DE IDENTIDADE PESSOAL E CULTURAL CARLA SCARPELLINI CAMARGO

Relatório apresentado como requisito parcial para aprovação na disciplina Projetos Experimentais do Curso de Comunicação Social / Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

Orientador: Prof. Silvio da Costa Pereira

UFMS Campo Grande NOVEMBRO – 2014



SUMÁRIO

Resumo ........................................................................................3 1 - Alterações no plano de trabalho .............................................4 2 - Atividades desenvolvidas .......................................................5 3 - Suportes teóricos adotados ....................................................10 4 - Objetivos alcançados .............................................................18 5 - Dificuldades encontradas ......................................................19 6 - Despesas (orçamento) ...........................................................20 7 - Conclusões ............................................................................21 8 - Apêndices .............................................................................22


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RESUMO:

O trabalho identifica e apresenta a maquiagem como instrumento de construção e reflexo da identidade do sujeito, e seu uso específico em manifestações culturais, utilizando, para isso, a história, a vivência de quem faz uso e a experiência de profissionais da área. A reportagem e as fotos realizadas têm como suporte midiático um site criado e desenvolvido para este fim. Publicado em: www.culturademaquiagem.com.

PALAVRAS-CHAVE:

Comunicação; Jornalismo; Cultura; Maquiagem.


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1- ALTERAÇÕES NO PLANO DE TRABALHO O trabalho, originalmente, tinha o objetivo de abordar a maquiagem como identidade cultural. Para isto seriam exploradas, apenas, maquiagens que fazem parte de culturas ou etnias específicas. As maquiagens escolhidas previamente eram a árabe e a oriental utilizada pelas gueixas, isto porque tanto a comunidade árabe quanto a comunidade japonesa estão presentes no local onde o trabalho foi desenvolvido: Campo Grande-MS. Quando começaram as pesquisas de campo, a busca por fontes locais que pudessem falar sobre o assunto e soubessem fazer as maquiagens para elaboração de fotos, notou-se, então, a não existência de fontes que pudessem falar sobre a maquiagem das Gueixas. Então, adaptou-se o tema para as maquiagens utilizadas em apresentações de dança e música da comunidade japonesa presente na cidade. Mesmo com tal adaptação, o número total de fontes para o trabalho era ainda muito reduzido, visto que houve grande dificuldade de contato, principalmente com a comunidade japonesa, por se tratar de uma cultura muito fechada. Por conta disso, o tema não pôde ser explorado de maneira satisfatória, um dos apontamentos feitos pela banca de qualificação. Decidiu-se, então, pela abertura da temática, envolvendo também a história da maquiagem, a maquiagem cotidiana e a maquiagem social como construção e reflexo da identidade do indivíduo. Isto foi possível porque anteriormente já havia sido notada a ligação da origem da maquiagem com a maquiagem árabe, e o reflexo da maquiagem árabe na maquiagem social. Desta forma, as alterações feitas no cronograma original foram: a entrega do trabalho final, que constava para o mês 10, mas será feita no mês 11 – respeitando o próprio calendário de entrega estipulado pela matéria Projetos Experimentais. O levantamento bibliográfico, que continuou sendo feito nos meses 8, 9 e 10, por conta da bibliografia teórica reduzida sobre o tema. A coleta e análise de dados que se estendeu para os meses 9 e 10 pela abertura da temática.


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2- ATIVIDADES DESENVOLVIDAS Escolha do tema, pesquisa bibliográfica, inclusão do tema no contexto local, busca por fontes, entrevistas, fotos, desenvolvimento do site e construção da reportagem. Estas foram as atividades desenvolvidas para a construção e conclusão deste trabalho.

2.1. Período Preparatório:

O período de preparação teve início com a escolha do tema. A ideia inicial era a montagem de um fotolivro que apresentasse a maquiagem de maneira não convencional, afastando-a do seu vínculo mercadológico e mostrando sua importância como instrumento de identificação e manifestação cultural. A ideia inicial de produto foi mudada - de livro para site por redução de custos e acesso mais fácil ao público alvo, além da possibilidade maior de dar continuidade ao projeto após sua entrega como Trabalho de Conclusão de Curso. As pesquisas iniciais a respeito de como o tema estava inserido no local onde o trabalho seria realizado (Campo Grande – MS), apontaram perspectivas positivas para o seu bom desenvolvimento, visto que ambas as comunidades escolhidas para serem trabalhadas especificamente, são ativas na cidade e utilizam maquiagens distintas, de fácil identificação do público em geral. O tema só se mostrou um desafio, na hora de fazer contato com as comunidades, uma vez que elas são um pouco fechadas aos não membros, tendo implicado em alguns empecilhos, como a não indicação de fontes e o não interesse em abordar o tema. Nesta fase, também foram feitos contatos iniciais com possíveis fontes, bem como uma leitura mais detalhada sobre as maquiagens que iriam ser trabalhadas e a história da origem da maquiagem. Quando começou a busca por bibliografia teórica específica sobre o tema, percebeu-se que ela é inexistente ou muito rara. Não foram encontrados livros ou publicações acadêmicas que embasassem o tema da maneira como ele seria abordado, pois os livros e publicações feitas sobre maquiagens são ligadas ao ensinamento de como fazer, aproximando-se de um manual, ou são portfólios de maquiadores e artistas consagrados. Com exceção da tese de doutorado


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“Maquiagem e Pintura Corporal - Uma análise semiótica”, de Mônica Magalhães, que faz uma análise da maquiagem teatral. Com a identificação da falta de bibliografia acadêmica publicada que se encaixasse no tema escolhido - o que foi um dos maiores obstáculos –, foi preciso encontrar alternativas que pudessem dar suporte para a continuidade ao trabalho, como o recorte e adaptação de teorias que se encaixassem na temática. Por isso a utilização de pesquisa em sites especializados em maquiagem, cultura árabe e japonesa, onde foi encontrado grande parte do material utilizado inicialmente. E para o embasamento teórico construído sobre identidade cultural, utilizou-se o autor Stuart Hall. A escolha do orientador foi feita por dois motivos: o desejo de utilizar a fotografia, já que o trabalho aborda um tema muito visual, e a afinidade com o professor.

2.2. Execução:

O processo de produção começou pelas buscas por fontes locais que pudessem, soubessem e quisessem falar. As primeiras visitas feitas foram nas comunidades (sírio-libanesa e japonesa), através das associações e comércio, mas não renderam fontes concretas, apenas indicações, que viraram outras indicações. Foram duas semanas e, aproximadamente, cinquenta contatos até que se conseguisse alguma fonte. A comunidade sírio-libanesa, aparentemente, estava mais aberta e logo foi possível identificar que as fontes estariam diretamente ligadas às danças típicas, que sempre utilizam a maquiagem árabe. Na comunidade japonesa, por ser mais fechada, demandou mais tempo para que se conseguisse um contato, onde foi possível perceber que a maquiagem também estava ligada às apresentações culturais de dança e música. Em ambas as comunidades o número de fontes encontradas foi pequeno, apesar de serem fontes qualificadas. As tentativa de contatos com fontes não-locais, com comunidades maiores localizadas em outras cidades e estados, e que pudessem agregar informações ao trabalho, foram feitas através de e-mail e telefone, porém nenhum retorno positivo foi obtido.


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Paralelamente a esta busca de fontes, foi feita a pesquisa para o desenvolvimento do site. O primeiro passo foi a escolha da plataforma (Wix), por conter mais opções de layouts que se encaixassem nas proposta e por ter mais opções de personalização. O site foi construído como suporte para a reportagem e as fotos, produzidas como conteúdo. Na banca de qualificação, em decorrência dos problemas encontrados até então, algumas falhas foram apontadas, como a pouca quantidade de fontes e o aporte teórico pouco desenvolvido. Com isso, decidiu-se pela abertura da temática incluindo a maquiagem social no trabalho e a expansão da temática na web. Foram entrevistadas, então, duas mulheres que mudaram sua relação com a maquiagem, e a forma como a consumiam, a partir do contato com a temática na internet. E um maquiador profissional, que também faz uso da web para expôr o seu trabalho e ensinar técnicas. As produções das fotos das maquiagens árabe e nipônica foram feitas em momentos distintos das entrevistas, onde se fotografou a execução das maquiagens. No caso do maquiador profissional, as fotos foram feitas paralelamente à entrevista. A última sessão de fotos (maquiagem árabe) foi cancelada poucos dias antes do prazo final para a entrega deste trabalho, o que impossibilitou sua remarcação.

2.3. Revisão Bibliográfica: 2.3.1. Livros BUITONI, D. Schroeder. Fotografia e jornalismo: a informação pela imagem. São Paulo: Saraiva, 2011. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 10. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. 1. Ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. MAGALHÃES, Mônica. Maquiagem e pintura corporal: uma análise semiótica. 2010. 236 f. Tese (Doutorado) – Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, 2010. PIZA, Daniel. Jornalismo Cultural. 4. Ed. São Paulo: Contexto, 2011.


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SANTAELLA, Lúcia. Corpo e comunicação: sintoma da cultura. 2. Ed. São Paulo: Paulus, 2006. SOUSA, Jorge Pedro. Fotojornalismo: introdução à história, às técnicas e à linguagem da fotografia na imprensa. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2004. TORQUATTO, Fernando. O Boticário Maquiagem. Curitiba: Posigraf, 2011. VITA, Ana Carlota R. História da Maquiagem, da Cosmética e do Penteado: Em busca da perfeição. 1. Ed. São Paulo: Anhembi-Morumbi, 2008.

2.3.3 Redes, sites, e outros: AMARAL, Inês Albuquerque. A interactividade na esfera do Ciberjornalismo. Livro de Actas do 4º Congresso da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação - SOPCOM. Disponível em www.bocc.ubi.pt/pag/amaral-ines-interactividade-esfera-ciberjornalismo.pdf. Consultado em 31 de outubro de 2014. GADINI, Sérgio Luiz. A lógica do entretenimento no jornalismo cultural brasileiro. Revista de Economía Política de las Tecnologías de la Información y Comunicación , vol. IX, n. 1, ene.abr./2007. Disponível em http://www.eptic.com.br/arquivos/Revistas/v. IX,n. 01,2007/9 SergioGadini.pdf. Consultado em 29 de outubro de 2014. HANDA, Francisco. Kabuki. Disponível em: http://www.culturajaponesa.com.br/?page_id=461. Acesso em: 20 de agosto de 2014. HISTÓRIA da maquiagem. Disponível em: http://www.portaleducacao.com.br/estetica/artigos/27189/historia-da-maquiagem. Acesso em: 12 de setembro de 2014. KAWANAMI, Silvia. A Excêntrica Maquiagem Artística das Gueixas. Disponível em: <http://www.japaoemfoco.com/maquiagem-de-gueisha-aprenda-a-fazer/> Acesso em: 17 de dezembro de 2013. MORAES, Andréia. Maquiagem Árabe. Disponível em: http://conexaoarabe.blogspot.com/2013/06/maquiagem-arabe-para-branquinha-negras.html> Acesso em: 15 de novembro de 2013. RADI, Ranya. Maquiagem Árabe, bela e única. Disponível em: <http://dancadoventrebellymaniacas.blogspot.com/2014/03/maquiagem-arabe-bela-e-unica.html> Acesso em: 12 de agosto de 2014. SANTANA, Ana Lucia. A Arte da Maquiagem. Disponível em: <http://beleza.terra.com.br/mulher/interna/0,,OI1211690-EI7618,00.html> Acesso em 20 de agosto de 2014.


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SANTOS, Fabiana G. Históra da Maquiagem. Disponível em: <http://fabianaeaarte.blogspot.com/search?q=hist%C3%B3ria+da+maquiagem> Acesso em 17 de dezembro de 2013. SATO, Cristiane A. Gueixa. Disponível em: <http://www.culturajaponesa.com.br/?page_id=324> Acesso em: 20 de agosto de 2014. SHAZADI, Samira. Maquiagem Árabe. Disponível em: <http://cantinhodasamira.blogspot.com/2012/08/maquiagem-arabe.html> Acesso em 15 de novembro de 2013. VEIGA, Tadica. Hitória da Maquiagem. Disponível em: <http://fabianaeaarte.blogspot.com/search?q=hist%C3%B3ria+da+maquiagem> Acesso em 20 de novembro de 2013. XIVA, Kris. Maquiagem de Gueixa. Disponível em: <http://boudoirdamaquiagem.blogspot.com.br/2013/11/maquiagem-de-gueixa.html> Acesso em 21 de agosto de 2014.


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3- SUPORTES TEÓRICOS ADOTADOS

3.1 Cultura e Identidade

A palavra cultura, primariamente, é derivada da palavra cultivo. Seu significado mais amplo é o de um conjunto de características, hábitos, costumes e crenças, praticado e cultivado (permanência e repasse da cultura) por uma sociedade ou comunidade, através dos indivíduos que a compõem. Segundo Stuart Hall (2006), as culturas são compostas por instituições, símbolos e representações. Uma cultura é uma maneira de construir sentidos que influenciam e organizam ações. Qualquer cultura é um processo (nunca finalizado) com alguns sentidos e significados já construídos dentro de um determinado local (sociedade; comunidade). A aquisição e absorção de uma cultura por parte do sujeito é, concomitantemente, um processo de construção desta mesma cultura. Ambos os processos – a absorção cultural por parte do indivíduo e a construção de uma cultura – não são finitos. Uma cultura está em constante transformação e adaptação, o que é mais claramente notado com o início da pós-modernidade e da globalização, onde as culturas são mais facilmente “transportadas”, deslocando-se e afastandose do seu local de origem – que Hall chamou de deslocamento cultural, ou diáspora. O que não significa que isso resultará em sua perda. (HALL, 2006; 2009) A necessidade de pertencer a uma cultura pode ser explicada pelo aparente significado e importância que ela dá à “nossa monótona existência, conectando nossas vidas cotidianas com um destino que preexiste a nós e continua existindo após a nossa morte” (Hall, 2006, p. 52). As culturas, ao produzirem sentidos com os quais os indíviduos podem se identificar, constroem identidades. “Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas” (Hall, 2006, p. 51). O conceito de identidade aplicado a este trabalho se confunde com o conceito apresentado de cultura, porém, aplicado exclusivamente a um individuo, não a uma sociedade (comunidade; instituição). A identidade de um individuo é, simplificadamente, sua cultura particular, utilizada simultaneamente, por mais que pareça contraditório, para sua identificação e diferenciação com outros indivíduos, sejam eles da mesma cultura social ou não.


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Assim como a cultura, a identidade está em constante construção através do contato com os demais individuos, suas sociedades e comunidades, apesar de ter como referência principal sua cultural de origem, geralmente com base no núcleo familiar, onde foram fundamentados seus princípios de moral e construções de sentido. Isto porque a “identidade está profundamente envolvida no processo de representação” (Hall, 2006, p.71). Esta é a concepção de identidade do chamado sujeito sociológico. De acordo com essa visão, que se tornou a concepção sociológica clássica da questão, a identidade é formada da interação entre o eu e a sociedade. O indivíduo ainda tem um núcleo ou essência interior, que é o “eu real”, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com mundos culturais “exteriores” e as identidades que estes mundos oferecem. (HALL, 2006, p.11).

O deslocamento cultural, citado anteriormente, provoca duas reações simultâneas e inversas nas identidades culturais. Em primeiro lugar, os fluxos culturais criam possibilidades de identidades culturais partilhadas, na medida em que as culturas são expostas e recebem (mas também carregam) influências externas. O sujeito passa a ser confrontado por diferentes identidades. Assim, se torna difícil a conservação das identidades culturais únicas, intactas. Por outro lado, é possível verificar, em certos casos, o fortalecimento de algumas identidades culturais. Neste processo, os membros de uma mesma comunidade, sentindo a ameaça da perda de sua cultura de origem pela presença de outras culturas, recuam e incluem um processo de reidentificação com a sua cultura de origem, que pode culminar em comunidades mais fechadas, principalmente se elas estão fora do seu local originário.

3.2 Maquiagem: construção de uma identidade, objeto de uma cultura

Para Foucault (1993) o corpo é uma surperfície inscrita de eventos. Sendo assim, deveria ser destacada sua importância no estudo de diferentes culturas, etnias e identidades. No geral, a maquiagem é abordada no meio midiático e acadêmico de maneira simplesmente estéticocomercial. Poucas vezes nota-se sua relevância no meio das artes e sua abordagem como


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importante instrumento de construção de identidade, objeto de identificação e diferenciação cultural, é inexistente. A pouca literatura de reflexão sobre a arte da maquiagem é uma contradição em relação à demanda artística e acadêmica na área. Acredito que a Academia deva ser um local propício ao procedimento de reflexões e estudos críticos facilitadores de construções e revisões epistemológicas. [...] Apesar de um número considerável de publicações acerca das maquiagens sociais e corporais, essas publicações visam mais a um conteúdo técnico ou a coletâneas com a documentação fotográfica das obras dos artistas. As reflexões sobre as novas demandas estéticas conceituais, no âmbito da caracterização como um todo e em particular sobre a maquiagem para o teatro, ou a maquiagem corporal utilizada em performances, ou mesmo em exposições, podem efetivamente trazer uma contribuição bem-vinda ao ainda incipiente campo de estudo da maquiagem social, teatral e corporal. (MAGALHÃES, 2010, p. 31).

Desde seu início, a maquiagem é utilizada como instrumento de diferenciação, seja de classe social, etnia ou cultura. Porém, atualmente, pouco se discorre sobre isso, possivelmente um reflexo dos fluxos culturais que aconteceram com o início da globalização. Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades [ou seus objetos, como a maquiagem] se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem flutuar livremente. (HALL, 2006, p. 75).

Nas últimas décadas esta prática vem sendo reforçada pelo uso amplo e intenso da televisão e das novas tecnologias, onde a cultura, além da informação, é transportada (repassada e absorvida) sem a necessidade de contato pessoal entre os indivíduos. Num mundo que cada vez se interpenetra, em que a TV a cabo, as livrarias (reais ou virtuais), as lojas de discos, as bancas de revistas, a Internet e o cinema abrem fronteiras o tempo todo, é ingênuo imaginar que uma cultura viva isolada e assim possa se manter viva e ativa. (PIZA, 2011, p. 61).

As maquiagens que carregam significados e identidades culturais, são, antes de tudo, bens comunitários e objetos de identidades culturais. Assim como os demais bens de uma cultura, normalmente são passados entre as gerações por meio de suas comunidades, incluindo suas técnicas e materiais utilizados. Mas muitas vezes sua importância e seu significado cultural ficam em segundo plano, principalmente quando sua cultura de origem não é a mesma do local onde ela está sendo repassada. Isto porque os valores e signos estão incorporados nas culturas e sociedades, e podem ser distintos – ou mesmo não existirem – de uma para outra.


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Para Santella (2006), o corpo possuiu sentido social e cultural, construídos a partir de situações e valores relativos. Nestes casos, a maquiagem deixa de ser apenas adorno (senso comum) e passa a ser objeto importante de determinadas culturas, se destacando como instrumento de identificação que localiza o indivíduo no meio social. Isto porque o seu significado já está incorporado naquela cultura, assim como a língua (idioma; dialeto). A língua é um sistema social e não um sistema individual. Ela preexiste a nós. [...] Falar uma língua não significa apenas expressar nossos pensamentos mais interiores e originais; significa também ativar a imensa gama de significados já embutidos em nossa língua e em nossos sistemas culturais. (HALL, 2006, p. 40).

Por isso, é possível afirmar que, até mesmo a utilização da maquiagem social – que vai desde correções das imperfeições da pele até as maquiagens mais elaboradas para festas e eventos –, produz (ou reflete) um significado que se relaciona com sentidos já existentes na identidade do individuo que faz, utiliza ou observa esta maquiagem. Magalhães (2010) trabalha com o conceito de envelope corporal, que trata o corpo (a pele; rosto) como uma superfície polissensorial que recebe solicitações do mundo externo (o outro; o ambiente; a sociedade; o local) e interno (si mesmo). É através dessa superfície que se reflete a identidade (ou identidades – pois é mutável e adaptável) do indivíduo, que pode ser construída e exposta com o uso da maquiagem: Ao aplicar uma base, um corretivo, sombras, opacas ou cintilantes, ao utilizar as cores e brilhos, fazemos do nosso corpo e dos envelopes corporais superfícies de inscrição para enunciar o mundo, ou os mundos, que nos afetam e aos quais afetamos. (MAGALHÃES, 2010, p. 60).

Através da maquiagem é possível não apenas construir, mas também desconstruir o que não é desejado e está estampado através do envelope corporal do sujeito. Base e corretivo são como borracha para apagar alguns indesejáveis traços de uma história, cansaços, abatimentos, espinhas e inchaços. Pronto! Aí está uma tela preparada para enunciar novos textos, novas histórias, novas personagens. Bastam pincéis, pós, sombras, blushes e batons para darem novas cores, outras texturas, diferentes brilhos, aumentar ou diminuir profundidades e volumes e, assim, descobrir ou inventar rostos. O que quero dizer hoje? Quem eu quero mostrar? Quero me ocultar no meio da massa urbana ou quero que os outros olhos me percebam? Mais que técnicas de aplicação, mais que correções de formato de rosto, de nariz, de olhos e de bochechas, a maquiagem é um acontecimento definido no tempo e no espaço, ou seja, é uma enunciação. Ao pensar a maquiagem como um enunciado que ocorre em contextos sociais cuja apreensão se dá na multiplicidade das dimensões sociais e psicológicas, ela é, então, operada na dimensão do discurso, ou seja, de fato, pode-se afirmar que a


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maquiagem é um discurso em ato procedente de uma presença. (MAGALHÃES, 2010, p. 32).

O uso da maquiagem social, mais amplamente utilizada, não se desvincula totalmente da construção de uma identidade ou de um discurso. Porém sua intenção como tal pode passar de forma mais despercebida, até mesmo por quem a faz ou utiliza, que a maquiagem símbolo de uma cultura, a maquiagem de espetáculo ou a maquiagem conceitual1.

3.3 A origem da maquiagem e de suas funções

Vita (2008) aponta que os indícios mais antigos de existência da maquiagem datam de 3 mil anos a.C, no Egito Antigo. No início, sua função não se aproximava da estética que conhecemos atualmente. Ligada à higiene, status e proteção mística, ela era utilizada exclusivamente nos olhos, tanto por homens quanto por mulheres. Segundo a pesquisadora Isa Yasmin2, os egípcios elaboravam misturas feitas com metais pesados, principalmente o chumbo, e as usava em torno dos olhos, o que impedia a proliferação de bactérias, além de dificultar a entrada de areia e demais agressões externas pequenas, função utilizada, ainda hoje, no Oriente Médio. Como a fabricação destas misturas não era fácil, nem de baixo custo, a maquiagem era exclusividade da nobreza e logo se tornou símbolo de status, e por seu alto custo tornou-se até moeda valiosa de troca. Não demorou até que a maquiagem também fosse ligada ao misticismo, já que os egípcios acreditavam que a nobreza era benefício divino. Com o tempo foram desenvolvidas novas misturas com outras substâncias naturais - além dos metais - como flores, frutas e até mesmo insetos, para que resultassem em pigmentos coloridos, que começaram a ser utilizados já com a função estética. Depois deste período, a maquiagem foi levada para Grécia e Roma durante a Antiguidade Clássica. Ela quase deixou de ser utilizada no período da Idade Média, quando foi fortemente condenada pela Igreja Católica sob o argumento de que seu uso oferecia uma falsa beleza e 1

Comumente utilizada nas passarelas dos desfiles de moda ou em portfólios, a maquiagem conceitual reúne tendências de determinada estação, sua intenção não é ser usada pelo público geral, mas compor, apresentar e reforçar proposta do estilista ou maquiador. 2

Entrevista concedida à autora em 28/08/2014.


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levava ao pecado da luxúria. Sua utilização foi retomada com força, tornando-se novamente símbolo da nobreza e da elite, a partir do século XV, principalmente na França e na Itália, onde se localizavam os principais fabricantes. “É fato que a maquiagem em todas as civilizações teve e tem muita relevância. Seja pela crendice de seus poderes místicos e curativos, para confrontar ou camuflar o inimigo em guerras, pela arte magnífica de adornar o corpo e a face, para seduzir ou distinguir as pessoas, na caracterização de personagens e finalmente, no disfarce de imperfeições e no realce da beleza e da sedução.” (TORQUATTO, 2011, p. 23).

3.4 Abordagem jornalística

A maquiagem como tema e sua abordagem como objeto de cultura e identidade, faz uso da ideia de Daniel Piza (2011) de que cultura é a expansão de horizontes, para enxergar melhor o que está em seu entorno, e que o jornalismo cultural deve se nutrir disso. O jornalismo cultural começou a se formar no início do século XVIII, principalmente através dos ingleses Richard Steele e Josephe Addison, que tinham o objetivo de “tirar a filosofia dos gabinetes e bibliotecas, escolas e faculdades, e levar para clubes e assembleias, casas de chá e cafés”. (PIZA, 2011, p.11). Ele surgiu com o intuito de provocar o interesse de “pessoas comuns” para assuntos até então restritos aos intelectuais ou especialistas, como artes plásticas, música, teatro, dança, literatura, fotografia, cinema e, até mesmo, política. E de provocar não apenas o interesse para o consumo, mas para a discussão e reflexão destes assuntos. Atualmente os espaços reservados para o jornalismo cultural também tratam de moda, gastronomia, comportamento e games, entre outros. Segundo Sérgio Gadini, isto é uma tendência no Brasil contemporâneo e “é a gradual redução do campo cultural ao que se denomina de entretenimento”. (GADINI, 2007, p 1). Isto ocorre, principalmente, a partir da expansão do uso das novas tecnologias da comunicação. Onde cria-se a falsa sensação de vasta e acessível oferta cultural, a partir da oferta de produtos de entretenimento, que de certa forma é mais atrativa ao público, por isso „vende‟ mais. Porém “essa reconfiguração midiática do campo cultural não garante a ampliação do acesso


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aos bens e serviços culturais, até porque ela se processa numa certa redução da cultura à perspectiva do lazer e entretenimento” (GADINI, 2007, p.5). De qualquer forma, no jornalismo cultural3 o que parece atrair os leitores não são apenas os temas, mas, principalmente, a linguagem adotada. Menos formal, às vezes em tom de conversa, sendo livre a utilização de ironias, provocações e reflexões, um misto de incômodo e orientação que procura levar “novos ângulos para a mentalidade do leitor-cidadão.” (PIZA, 2011, p.116). O presente trabalho inclui, também, uma mudança no modo de consumo – tanto de conteúdo, quanto de produto - que se criou a partir da expansão de uma „comunidade virtual‟, sobre maquiagem, com a criação de blogs e canais interativos. “A criação de processos de interactividade num meio de comunicação digital articula-se através de ferramentas como o correio electrónico, listas de discussão, fóruns, chats, inquéritos, comentários aos artigos”. (AMARAL, 2005, p. 137). Nota-se, então, que a temática faz parte, atualmente, da “alteração do campo sócio-cultural e, consequentemente, comunicacional que se verifica com a introdução das novas tecnologias nas esferas pública e privada da sociedade” (AMARAL, 2005, p.135). Com isto, tornou-se importante que o produto jornalístico criado fizesse uso do suporte e das ferramentas onde a temática está incluída: a internet. A escolha pela construção de um site como suporte jornalístico visa que, a oferta do conteúdo seja direcionada ao seu público-alvo, fazendo uso de uma linguagem específica e das ferramentas com as quais este público está habituado. Lembrando que o „público‟ agora, não se restringe apenas, ao papel de receptor, mas assume, muitas vezes, o papel de produtor – ou reprogramador – do conteúdo. É claro que isso depende das possibilidades de expansão ofertadas e inclusas no conteúdo, fazendo uso, por exemplo, da hipertextualidade. “Daqui decorre que, a interactividade permitida pela narrativa hipertextual incentiva à construção de um discurso de significações, delineado através de uma rede de hiperligações. [...] O hipertexto confere um papel de produtor de significação ao leitor. A navegação está previamente programada – é essa a essência da própria máquina hipertextual, e a liberdade do receptor situa-se ao nível do

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Mesmo acolhendo as críticas de Gadini, optamos por adotar a nomenclatura adotada por Piza.


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encadeamento de conexões. No entanto, ao leitor é dada a sensação de produção dos textos”. (AMARAL, 2005, p. 137) E quando a temática oferece características imagéticas marcantes, é importante que a cobertura jornalística as explore, pois “pensar em imagem significa trabalhar com aspectos da percepção [...]. A percepção é entendida como uma atuação e uma elaboração que envolve elementos subjetivos e sociais, relacionados à memória de cada um.” (BUITONI, 2011, p.13). Esses elementos são os significados desenvolvidos e adquiridos por cada indivíduo a partir dos seus contatos e relações culturais, sociais e individuais. Como o foco do trabalho está localizado no rosto e na mensagem que é construída e transmitida pela maquiagem, o retrato como gênero fotojornalístico se encaixa perfeitamente. O conceito de retrato exposto por Jorge Pedro Sousa (2004) se aproxima muito do conceito de identidade cultural proposta para o trabalho, quando ele diz que: Retratar alguém consiste em procurar não apenas mostrar a faceta física exterior da pessoa ou do grupo em causa, mas também em evidenciar um traço de sua personalidade. A expressão facial é sempre muito importante no retrato, já que é um dos primeiros elementos da comunicação humana. (SOUSA, 2004: 97). O rosto assume papel importante na geração de significados durante as relações interpessoais. Visto que é o principal foco durante essas relações. Por onde se desenvolve a fala e expressões não orais.


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4- OBJETIVOS ALCANÇADOS O objetivo principal do trabalho é, desde o início, mostrar um viés diferente do habitual trazido pela mídia, mostrando e entendendo a maquiagem como objeto de construção e reflexo de identidade pessoal e cultural. Este objetivo foi alcançado através do conteúdo produzido, apesar das adaptações que precisaram ser feitas. O objetivo de produzir as fotografias que mostrassem as diferenças, e as especificidades de cada maquiagem abordada, também foi cumprido. Através delas foi possível mostrar seus processos de construção e os detalhes de cada uma. O objetivo da construção de um site que dê suporte à reportagem e às fotografias, sem que para isso fosse preciso o auxílio de terceiros, também foi cumprido. Isto foi possível devido às ferramentas disponíveis e o tempo dedicado para a compreensão das mesmas.


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5- DIFICULDADES ENCONTRADAS: A principal dificuldade encontrada, logo no início, foi a enorme carência bibliográfica sobre o tema. Os livros que abordam maquiagem fogem ao viés proposto e dão pouca abertura para ele. Por conta disso, o aporte teórico demorou a ser desenvolvido, o que gerou, no início, uma instabilidade na direção do trabalho. A busca pelas fontes também foi uma grande dificuldade, em especial na primeira fase do trabalho, que estava focado apenas nas maquiagens que trazem cargas culturais. Provavelmente, por serem poucas, elas não foram de fácil identificação e indicação pelas comunidades as quais pertenciam. Quando houve essa identificação, outros problemas surgiram, como o número reduzido dessas fontes e a dificuldade que elas apresentaram de entender, e expôr, suas experiências sobre o tema. Principalmente as fontes conseguidas na comunidade nipônica, que apresenta uma característica mais reservada e fechada. Por conta disso, houve a necessidade de abertura da temática, que se mostrou outro desafio, principalmente pelo pouco tempo restante para a conclusão do trabalho. O tempo gasto em todo este processo, de busca por bibliografia e fontes, e as adaptações que surgiram a partir desses problemas, refletiram no conteúdo de fato, pois se houvesse mais tempo ele poderia, com certeza, ser melhor desenvolvido.


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6- DESPESAS (ORÇAMENTO) - Deslocamento: 66,20 - Telefone: R$ 97,34 - Impressões e encadernações (qualificação e banca): R$45,00 - Hospedagem do site: R$ 252,96 - Domínio do site: RS 19,90

Gasto total: 481,40


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7- CONCLUSÕES

A disciplina de Projetos Experimentais oferece ao aluno a oportunidade de vivenciar todo o processo de planejamento e construção de um produto jornalístico, se responsabilizando por ele desde o surgimento da ideia até sua conclusão, com a entrega do produto final. Ao longo deste processo se destacam os pontos importantes da prática jornalística, como o conhecimento do tema, os contatos com as fontes, as adaptações necessárias e a forma como a publicação será recebida. O tema, normalmente escolhido por interesse pessoal, acaba mostrando que precisa ser analisado também por outros ângulos não pensados quando foi proposto. Isto força a necessidade de se distanciar da temática para sua melhor exploração. É preciso que o conhecimento seja ampliado, para que se consiga o foco ideal. A extrema importância das fontes, por vezes esquecida, para o jornalismo, mostra o quanto deve ser planejada e colocada como prioridade. A dificuldade de acesso ou mesmo de se fazer entender, pode causar a impossibilidade ou, no mínimo, muitos problemas para a continuidade do trabalho. Sobre a recepção do público, é preciso analisar o tema da visão de quem não teve todo o envolvimento do processo de criação, mas sem esquecer que determinado tipo de conteúdo atingirá determinado tipo de público. Desta forma, a linguagem e o possível conhecimento básico sobre ele é preciso ser levado em conta, inclusive no suporte midiático escolhido. A escolha pela realização de um projeto que trouxesse uma temática com um viés pouco trabalhado no âmbito acadêmico – e jornalístico –, e da opção por realizá-lo sozinha, foram escolhas feitas de forma consciente, priorizando a vivência, a experiência e o aprendizado em detrimento, talvez, da entrega de um trabalho e produto tecnicamente mais correto. Com isso, o conhecimento que nasceu desse processo, através dos erros, acertos, escolhas, adaptações, surgimento e solução de problemas, foi absorvido e trouxe considerações que, com certeza, serão refletidas, positivamente, em trabalhos e projetos futuros. Assim como o feedback do público, que trouxe grande satisfação, visto que o objetivo principal, de mudar, ao menos um pouco, o olhar sobre a maquiagem foi cumprido.


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8 - APÊNDICES A – Entrevista com a profª. de Dança do Ventre, Mayra Procópio B – Entrevista com a profª. de Danças Árabes, pesquisadora e produtora cultural, Isa Yasmin. C – Entrevista com Flávia Bottura Calvoso. D – Entrevista com Laís Manteiga. E – Reportagem F – Site


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A - Entrevista – Profª. Dança do Ventre, Mayra Procópio. Entrevista concedida no dia 18 de Agosto de 2014

Mayra: - Meu nome é Mayra Procópio. Eu sou professora de dança do ventre desde 99 [1999] e tenho descendência tanto de Grego quanto de Árabe. Minha prática corporal de utilizar a maquiagem árabe é focada nos olhos, porque no antigo Egito já se usava o que... a deusa... o Olho de Oros, que era muito marcado como domínio, né? Tanto que hoje a cultura ainda tem o hábito de gaviões, porque ele olha longe, vê longe. Então é nesse sentido do domínio eles usavam [usam], os faraós todos usavam os olhos bem marcados com Kajal. O Kajal é um tipo de lápis bem mais grosso do que usado convencionalmente na cosmética do Brasil. Ele marca a região dos olhos e é difícil de sair, tem que usar demaquilante pra...fica bem marcado o olho. Então, a gente usa muito os olhos como algo marcante. Tem uma frase em árabe que fala assim: “Os desejos dos teus olhos sejam atendidos”. Por que o que você vê é o que você deseja. É ostentação né? Aquela coisa do império egípcio, todo esse glamour né? Então a gente foca bem nos olhos. Eu, nas minhas aulas, eu me pinto com o Kajal, eu costumo marcar bem os olhos, não tão referente à maquiagem da boca, mas bem os olhos. Nas apresentações também são marcados bem, os olhos, pra dar essa ênfase de domínio. Por que a mulher ela não é assim... um objeto. Ela tem uma beleza e uma força interior marcada pelos olhos. Os olhos refletem todo esse domínio, né? Então às vezes, quando você olha uma pessoa, você olha ela nos olhos, né? Pra vê se o que ela tá falando é verdade, então isso é trazido pela cultura. Ela tem todo um significado, uma simbologia. Então não é nada que vem do nada, tudo tem uma razão, todos os movimentos da dança do ventre tem uma simbologia, um triângulo, um oito, um quadrado... e tudo tem uma geometria, tudo tem um estudo, não é uma ciência do nada, empírica, que você vê e começa a fazer. Tem toda uma nomenclatura, os termos... e a maquiagem também é a mesma coisa, tem todo um padrão.


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Aqui no Brasil, as bailarinas pintam muito a boca, fazem umas florzinhas, uns apetrechos, mas não dá aquela ênfase ao olhar. Se você olhar o desenho do Olho do Oros, você vê que ele é um olhar puxado e forte, é um olhar que chama a atenção. É isso que traz a maquiagem árabe. Carla: - Antes de eu conversar com você, eu dei uma lida em algumas coisas e eu não sei se você pode me confirmar, se você sabe de algo a respeito... Eu li que antigamente e ainda hoje em alguns países, o homem também utiliza essa maquiagem forte no olho, até o kajal como uma forma de proteção da poeira, coisas deste tipo. Tirando a estética também né, mas um pouco mais relacionado com proteção dos olhos. Você sabe algo sobre? Mayra: - Assim, eu fiz duas pós [graduação], quer dizer, o meu tcc aqui e uma pós [graduação] relacionada com a dança do ventre. E anatomicamente se você olhar os olhos dos árabes, eles tem os cílios bem compridos, que é uma defesa contra a areia. Mas relacionado a isto tem a proteção contra a luz do sol, o que é refletido é captado pelo preto, né? Então tem toda essa influência da cor na maquiagem, no sentido também de proteção. Por que o próprio olho de Oros é um amuleto né? Todo um misticismo, né? Que com o olho você capta tudo ao redor. Carla: - E qual a importância da maquiagem como identidade? Principalmente na dança, né? Que é a sua área... Qual a importância da maquiagem para a identidade das mulheres que dançam e a importância para as pessoas que veem. Mayra: - Assim, o Kajal é muito utilizado para marcar os olhos. Os olhos são bem maquiados, mas ultimamente ele vem perdendo a tradição, né? Vai colocando a sombra, o colorido, um batom - como eu falei -, um rouge, né? Mas os olhos são o enfoque da maquiagem árabe, o que predomina na maquiagem árabe são os olhos.

Carla: - Em relação aos materiais utilizados, você falou que usa o Kajal que já era utilizado antigamente... O que mudou, o que não mudou, o que você encontra aqui em Campo Grande, aqui no Brasil, o que você não consegue, o que dá pra substituir...? Mayra: - A minha avó tinha o Kajal (risos), então eu já tinha essa referência do Kajal, mas ultimamente o pessoal usa um lápis, né? Nem sabe o que é o Kajal, olha pra mim e fala “Kajal? O que é o Kajal?”. Então eu ensino para as minhas alunas que é melhor pintar os olhos com o Kajal, que ele é mais marcante, nesse sentido.


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B - Transcrição entrevista – Profa. Danças Árabe, pesquisadora e produtora cultural, Isa Yasmin. Entrevista concedida no dia 28 de Agosto de 2014 Isa: - A maquiagem, a cosmetologia, foi muito forte no Egito antigo, lá pros 5 mil anos (a.C), né? Eles usavam a maquiagem, principalmente nos olhos, porque não tinha aquela higiene, poderia ter organismos que entrassem nos olhos, então eles usavam uma mistura de chumbo e lauronita, se não me engano, é uns metais que eles misturavam com lápis lázuli, com mirra, com coisas naturais e faziam. Então eles botavam dentro dos olhos porque esse chumbo e essa lauronita eram agentes bactericidas. Então você via aqueles homens, os egípcios mesmo, a nobreza, era mais por proteção a maquiagem. Pra proteger realmente de bactérias. Porque era deserto, muito vento, poeira, aquela coisa, então eles tinham que se proteger, né? Inclusive, a maquiagem era moeda de troca. Nas construções, por exemplo, algumas pessoas trabalhavam em troca de comida, roupa e o cosmético, porque ele não era barato. Certo? Então aquela coisa de pintar o olho de preto, aquela coisa dentro dos olhos, era simplesmente para proteger mesmo, né? A maquiagem... A gente sabe que eles raspavam todos os pelos do corpo, por higiene, por isso que eles usavam aquelas perucas. Ai, lógico, a nobreza deu melhorada na maquiagem, a maquiagem nobre era mais diferente, tinha aquelas cores todas, né? Vamos dizer que a pessoa mais famosa, né? Foi a Cleópatra, né? E hoje ela é referência. Mas é engraçado que no Egito ela não é bem vista. É engraçado, tem algumas coisas dela, mas você conversa com o povo do Egito, eles não gostam dela, falam que ela era bléh! Mas a maquiagem está ligada a isso, a questão da higiene deles né? E da nobreza, né? Então tem isso também, você vê que os faraós se pintavam, os homens, as mulheres... Então é muito forte no Egito, veio do Egito toda essa ciência da cosmetologia, que tava ligado a saúde e depois a status de nobreza. Né? E o que acontece, assim, o que você vê na maquiagem árabe, né? Porque você sabe que o Egito foi invadido pelos árabes, eles pegaram essa parte cultural, né? O aculturamento todo. Então levou, a dança foi levada pro mundo árabe com a invasão, né? Quer dizer, hoje o que a gente tem na cultura da dança, da música e da cosmetologia, vamos dizer assim, é uma mistura de


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várias invasões, vários povos que passaram. O que você tem de resultado hoje na maquiagem, é uma miscelânea de invasões, de aculturamento, de tudo, né? Mas pra você entender que ainda existe, assim, no deserto, né? O povo do deserto, tem vários povos Beduínos, são vários, não dá pra citar um nome só de tribo, todos eles pintam o olho. Carla: - Inclusive os homens? Isa: - Os homens por proteção. Proteção da areia, proteção das tempestades de areia, a questão do... Tem algumas tribos que o homem pinta o olho e fecha a boca e o nariz com panos, pra ele não ser levado pelos maus espíritos. Pra eles é uma proteção espiritual, pintar os olhos. Algumas tribos, não são todas. E hoje a mistura... eles usavam antigamente era carvão, né? Eram os carvões e os chumbos, né? Mas como o chumbo é um metal pesado e ele é tóxico, né? Apesar, que eles usavam em quantidades pequenas. Hoje esse... é... é... chama Kohl, esse bastão, que passa no olho, né? Existe ainda os Kohls em carvão que você compra lá no Oriente Médio, que você pinga assim e ele já... você põe no olho e ele mesmo vai pigmentando. E tem eles em bastões, comercial já, porque isso é cosmética, né? Eu trouxe uns de lá, são realmente bem mais fortes, né? E hoje a mistura deles é outra coisa. Quando ele é artesanal, que é o carvão, que é Kohl de carvão, ele é carvão, ele é sândalo, tem outras misturas. Depois eu posso te passar por que eu não sei de cabeça. Tiraram os metais pesados por conta de toxidade. Carla: - O Kohl é diferente do... Isa: - É o mesmo princípio, é que hoje chama... é um bastãozinho. Ou era um... eles tinham uma... um negócio de madeira e lá eles faziam essa pastinha com carvão, com chumbo, eles faziam um negócio pra por no olho, isso era artesanal, não tinha em bastão... Carla: - Mas o ele é diferente do Kajal? Isa: - Seria o Kajal, só que lá chama Kohl ou Kamajal, eu acho... Carla: - Mas é a mesma coisa? Isa: - É a mesma coisa, só que chama Kohl, quando você quer comprar lá no exterior, você fala Kohl.


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Carla: - Então, essa é a uma dúvida que eu tinha, porque eu tinha lido sobre o Kohl, mas eu não sabia se era a mesma coisa que o Kajal. Isa: - É a mesma coisa, só que vamos dizer assim, lá eles usavam carvão mesmo. Eu cheguei a usar um de carvão. É carvão mesmo, você tem que pigmentar o olho. Você põe e depois ele pigmenta tudo. Entendeu? E ele é feito com coisas naturais, artesanais, só que hoje dificilmente o pessoal compra isso lá. Isso é mais o pessoal do deserto, os Beduínos, pessoal que é mais... vive nas montanhas, né? Mas nem eles, às vezes eles mesmo compram. Eu comprei vários Kohls de bastão lá, trouxe um monte, comprei assim em loja de cosmético. Eles são ligados a isso. Ai o que aconteceu... foi passando, foram pegando essa parte cultural, isso ainda existe hoje. Eu tive no Egito, na Jordânia, tive contato com Beduínos, eles pintam os olhos, os homens, até hoje, super pintados, os olhos, é só os olhos. E as mulheres pintam também, mas os homens mais, eu vi, que eles pintam mais. A questão da... proteger os olhos da poeira, do deserto, das tempestades, por higiene, né? E o que acontece? Ai tem aquela coisa “aquele olho expressivo árabe”, né? Que você fala “nossa, aquela mulher árabe, tem um olhar expressivo, é forte, elas conversam com o olho”. Por que eles desenvolveram essa linguagem? Pra você saber. Porque na cultura árabe, os homens falam, conversam. As mulheres... elas são mais... né? Qual é a forma que elas poderiam se comunicar? Com os olhos! Então, o que elas fizeram? Elas marcaram, aquele olho é marcado, é expressivo, forte. Ele diz tudo. E as muçulmanas, elas mostram só os olhos quando saem na rua. Vamos dizer que é por... eu não sei sobre o islã, sobre os muçulmanos, eu... algumas coisas eu desconheço, vamos dizer assim, as segmentações, seriam segmentações religiosas, né? Eu vi lá muitas mulheres, todas elas usam o véu, o hijab. Algumas, assim, super maquiadas, maquiadíssimas, o olho super forte. E outras com nada, nenhum pingo de maquiagem. Umas com os hijabes coloridas, outas com tudo preto. Então eu acho que é por segmentos lá, né? Mas eu percebi e, pelo que eu estudei da parte cultural, essas mulheres se comunicavam com os olhos, porque elas não podem falar, assim, com os homens. E o olho pra eles é extremamente forte, ele tá ligado na coisa da beleza também. Então, os olhos nesse sentido, vamos dizer, dessa parte cultural que eu to te contando, tá ligado à expressividade dessa mulher. Ela se expressa pelos olhos. Então ela pinta, ela carrega, esse olho tem que ser forte, ele tem que chamar atenção, que é a forma que elas se comunicam, inclusive, com as outras mulheres, né?


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Não cabe, por exemplo, você, por exemplo, chega uma muçulmana, tá andando na rua, com os olhos fechados... Ela chega em casa ela tira aquele... o, a burca, o, ela tá extremamente maquiada, perfumada cheia de ouro, com o cabelo feito, com a unha feita. Elas em casa são... Carla: - Perfeitas. Isa: - Elas se vestem para ficar em casa, não pra andar na rua. É diferente da nossa cultura, na nossa cultura a gente fica dentro de casa que nem uma mulambenta e sai de casa parece que é uma árvore de natal. Lá isso é ao contrário. Isso é cultural. Agora, existem umas que não passam nada, não podem, então sobre essa parte eu não tenho entendimento, aonde que... Carla: - Qual é a diferença. Isa: - Mas eu vi várias muçulmanas na rua assim. A gente tudo lá né, por que turista é tudo mulambento, né? E aquelas mulheres passando assim, perfumadíssimas. Com roupa assim, elas usam aquela burca, super coloridas, cheio de brilho, aqueles hijabes maravilhosos e a maquiagem assim, impecável, cheia de ouro. Assim que elas andavam, eu vi, tá? E algumas, só os olhos. Mas eu já sabia que culturalmente está ligado a isso. O olhar da mulher árabe está ligado com a sua comunicação, é como elas se comunicam. Então foi herdado essas coisas. Eu to voltando pra trás pra você ver o que foi herdado. Então se a gente vê hoje essa coisa da mulher árabe que se maquia, umas que ainda preservam isso. Elas tem os olhos sempre com preto, você já viu, né? Tá ligado à esta questão cultural, que eu to te contando. Lá trás, né? Chegou aqui assim. A coisa da mulher árabe, ela ser mais, é... Ela usar ouro é cultural. Elas ganhavam ouro no casamento, né? A coisa de muita maquiagem tá ligada com toda essa questão lá atrás no Egito: higiene, expressão de olhar, misticismo. E o que acontece? Vou voltar. Isso aqui, to falando assim, o dia-a-dia da mulher árabe. Fora que o olhar, a pigmentação da pele, eles são mais expressivos, algumas regiões, né? A mulher árabe ela tem um rosto forte, ele é muito bem desenhado e os olhos são muito fortes. Então, elas realçam isso, né? E as egípcias também, vai por ai afora, síria, tá? Ai, o que acontece? Agora eu vou entrar na dança pra você entender. Na dança árabe o que acontece, como as mulheres dançavam e tinha... vieram mulheres de várias regiões, não tem uma especificidade assim, “ah, essa é da cultura tal”, não. Então junto com toda essa história da


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maquiagem árabe elas levaram a expressão dos olhos. Algumas usavam por higiene também, isso ai também tem a ver com a parte cultural. Muitas dançarinas, bailarinas da época, sei lá de que época... os Beduínos do deserto usavam pra proteção mesmo, então, enfim, ai tinha isso. E como é uma dança muito expressiva carregada de tantos significados diferentes, eu to puxando pra você só a parte da maquiagem, né? Não to puxando a parte folclórica de nada, pra você entender. Esse olhar expressivo ele tem que estar presente. Então como é que ele vai estar presente? Com a maquiagem. E a maquiagem libanesa, vou entrar no Líbano agora, tá? Que é a parte mais forte daqui, Líbano e Sírio. É... se preza muito aquele olho preto, né? Você vê que é muito carregado, assim, o preto muito, aquelas cores bem desenhadas, são maquiagens super definidas, coloridas e bonitas, né? E a boca nude ou, então, a boca vermelha. Pode ser uma das duas, mas você vê mais a maioria das libanesas usar o olho forte e a boca nude. Por quê? É o olhar expressivo. Sempre. A força delas é o olhar. Então elas vão ter que ressaltar o olhar, né? Então, por isso que a bailarina, muitas têm a roupa tudo, é lógico, tem o figurino elegante, ele é chamativo. Não cabe você entrar pra dançar com a cara lavada, né? Mas a maquiagem libanesa ela é caracterizada pelo olhar muito forte, preto, né? O preto aparece muito, por conta disso que eu te contei, do Kohl, toda essa parte é dessa herança cultural. E lógico, elas se aperfeiçoaram na cosmetologia, né? Então... você vê maquiagens libanesas maravilhosas, egípcias lindas, aquelas nuances, paletas de cores perfeitas, aquela puxada né? Ela é puxada por conta do Egito. Se você ver nas tumbas, você vai ver, né? Egito. Que é pra cima, né? E muito forte tem que ser os olhos, por conta dessas questões. No Irã também elas... como elas ficam todas fechadas, os olhos são bem pretos, né? Fortes. Porque é a única coisa que aparece. Que é aquele quadro ali ó, dá uma olhada pra você ver. Olha naquele quadro ali. Tá vendo aquela mulher lá? Aquilo lá é uma mulher do Irã, só aparece os olhos dela. Só pra você entender o que é, que eu to te falando da questão dos olhos. Então o olhar pra elas é uma questão muito forte. Ele é proteção, ele é a comunicação, então elas conversavam com os olhos. E isso foi adquirido na dança. A bailarina ela põe essa roupa toda pra fazer a representação dessa cultura e pinta os olhos, to falando assim, do estilo tradicional, que está todo mundo acostumado a ver, que é as duas peças, né? Que a gente chama, este estilo chama estilo


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cabaré, ele foi desenvolvido na França, na época de Napoleão. Pra você ver como essa dança andou pra chegar aqui no Brasil. Que é a lantejoula, pluma, brilho, isso ai é estilo cabaré que chama, caberé no sentido que ele foi desenvolvido para a França. Antes era mais corrente, mais coisas rústicas vem da cultura, do folclore. Diferente de você dançar o folclore. No Egito, por exemplo, a, vamos dizer assim, as camponesas, vamos lá pro povo lá do deserto, eles não vão carregar na maquiagem, eles não carregam. Vão fazer o que? Vão botar o Kohl, mas não essa maquiagem de palco que a gente vê. Entendeu? Existe uma diferença. Tanto é, que quando você vai fazer uma representação, que a gente não é lá do Egito, vai dançar Baladi, por exemplo, que é uma dança de folclore, um Said, eu vou fazer um Dabke, que é libanês. Se eu quiser fazer uma representação real deles, assim, seguir a risca, a minha maquiagem vai ser suave, ela não vai puxar pra maquiagem forte, de palco. A maquiagem de bailarina tradicional, não vai, não pode. Carla: - Mas mesmo a maquiagem mais tradicional tem a coisa do olho marcado? Isa: - Tem. Sempre vai ter a coisa do olho marcado. Mas por exemplo, eu já fiquei sabendo de competições, que foram desclassificados grupos por conta da maquiagem, porque fizeram a maquiagem errada. Pra aquele estilo de dança, não existe essa maquiagem carregada, você entendeu? Então quando você entra na parte de folclore, da dança, to falando de dança agora, existe o olhar marcado, porém, não tem aquela... É o que eu te falei, eu vi o pessoal maquiado lá no deserto, mas maquiado que eu digo assim, tem o Kohl no olho e acabou. Isso não é maquiagem: sombra, blush, nada disso, e não usa. Mas eles são maquiados, entendeu? Algumas mulheres usam. Lá vende maquiagem assim, a torto e direito, em qualquer esquininha você compra quilos e toneladas de maquiagem, porque é comum, né? Então na dança, existe essa diferenciação. Você tem que saber que no tradicional, você pode carregar, você pode fazer as paletas de cores, a maioria das bailarinas usam cílios postiços, pra dar aquele carregado no olho, né? Pra aparecer mesmo, né? Pra ter aquela coisa da expressividade. Já pro folclore, você tem que tomar cuidado quando você tá dançando. Palco eu não falo nada, por que palco, a maquiagem de palco, ela é teatral, né? A partir do momento que você subiu no palco, você tem que fazer a maquiagem de teatro, que é totalmente diferente, né?


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Tem incidência de luz, incidência de público, tem outros fatores que você precisa trabalhar. Inclusive a maquiagem árabe, né? Ela é muita mais carregada. Mas a libanesa ela tá ligada a isso, que eu to te falando, na dança, inclusive, algumas mulheres libanesas usam no dia-a-dia, essa maquiagem carregada no preto, porque elas tão ressaltando a expressividade delas, entendeu? Dos olhos, porque a mulher árabe é conhecida pelo olhar, né? Se fala muito, né? “Nossa, que olhar expressivo, que olhar profundo”. Mas tá ligado a tudo isso que eu to te falando. Entendeu? Carla: - E pra elas é comum né? Já que elas não podem falar muito, elas tendem a... Isa: - Isso ai é uma coisa bem antiga, que eu to te falando. Hoje em dia, assim, no Egito não, o Egito ele é muçulmano, 90% é muçulmano. Então existe ainda essa conduta lá, as mulheres não conversam, entendeu? É só entre elas, roupas fechadas, não aparece o cabelo, tudo bonitinho. E você vê essa variação, como eu te falei, de mulher com maquiagem, sem maquiagem, só o olho, isso na cultura muçulmana, ta? Já as poucas que eu vi sem véu lá, porque tem o cristianismo lá, também têm os olhos super carregados. Mas tá ligado a isso que eu to te falando, tá ligado à saúde, à proteção, algumas pessoas acreditam nessa proteção mística, que o espírito entra pelos olhos... Carla: - A Mayra, a outra professora, estava me falando dessa ligação com o Egito e o misticismo, ligado ao olho de Horus. Isa: - É, tem, olho de Horus, tem isso também. Que eles faziam para representar esse Deus Horus, né? Que é aquele que tudo vê, né? Tem isso também. Que eu falei pra você, tem a questão mística, né? Mas é muito mais, que eu sei assim, a questão de higiene e status de nobreza, né? E também, lógico, o Egito Antigo é totalmente místico, né? Ele é totalmente poli... como é que fala? Me fugiu o nome agora... politeísta, né? Então tem a questão do olho de Horus sim, que eles pintavam o olho pra ter aquela proteção, porque os faraós eram considerados deuses, né? Então tem tudo isso também, essa questão, né? De proteção. Por isso que eu to te falando, você pode ver que toda cosmetologia dos olhos egípcios, Oriente Médio, tá ligado a que? Proteção. Seja por saúde, seja pelo misticismo, seja pelo status, né? E comunicação. Então seria proteção, são as duas palavras chaves que eu te resumiria a maquiagem: proteção e comunicação. Até na dança árabe, quando a gente dança, a gente tem que se comunicar com os olhos. Isso é uma coisa que é passada, existem algumas danças que você faz a apresentação dos olhos,


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né? Pra acompanhar a forma que você olha, tem que ser uma forma específica. Não é simplesmente “há, vou lá dançar”, não é assim. Quando você entra na parte cultural você sabe que existem formas de olhar pra público, formas de pintar seu olho, formas de olhar pro seu corpo, é tudo muito bem... Carla: - Tudo tem uma simbologia. Isa: - É, por exemplo, eu dei esse ano a dança do Irã, o Bandari, é uma dança Iraniana, né? Ninguém enxerga nada, fica só teu olho. E eu fiz elas passarem pela experiência da comunicação pelos olhos. E foi muito forte. Por quê? Porque isso não é da nossa cultura. E a gente dançava e umas paravam e falavam assim: “Nossa, a gente dançou com os olhos, eu via que você ia trocar o movimento pelos seus olhos”. Pra você vê como isso é forte pra elas. E outras mulheres passaram pela experiência do sufocamento, aquele mundo de pano, tudo coberto, só apareciam os olhinhos, “Deus me livre, cruz credo”. Tem até uma foto de uma menina, ela apaixonou, essa apaixonou. Mas teve uma aluna que não aguentou fazer, porque ela se sentiu muito sufocada com aquele mundarel de pano, aquele mundo de véu, enfim, ela tava assim, sabe? Então, deixa eu ver se eu acho a foto delas aqui pra te mostrar. Porque essa minha aluna é apaixonada por folclore, então ela bateu uma foto toda fechada, ela amou, falou “ai isso aqui sou eu”. E tem essa questão das mulheres tampadas né? Que é o Bandari. Carla: - Em relação ao uso do cosmético mesmo, material, técnica... Quando tem o estudo da dança vocês fazem um estudo disso também? Isa: - Faz, a gente faz, de maquiagem, tem que fazer. Tem que fazer porque... ó a foto... Carla: - Nossa! Só o olho mesmo. Isa: - Tá vendo? Essa dança que eu dei. Chama Bandari, e assim, muita gente se incomodou muito pra fazer, pela questão assim, elas sentiram assim, repressão. E não é. Pra elas tem um outro significado, eu conheço o significado, tanto é que pra mim, pôr, tirar, pôr, tirar, não tenho problema. Apesar que eu tive, eu passei pela experiência no Egito de não aguentar mais usar o véu na cabeça. Não aguentava, eu queria voltar e... Carla: - Calor? Isa: - Não, eu senti um sufocamento. Isso que a minha aluna teve, eu tive lá. Quando eu entrei no avião foi a primeira coisa que eu arranquei, eu falei “ai, graças a Deus”.


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Carla: - Faz tempo? Isa: - 2011. E ai, você usa, assim, por respeito, pra você não passar muito perrengue lá. Porque estrangeira lá é muito assediada, entendeu? E cabelo pra eles é extremamente sexual, uma coisa meio...e é mesmo. Eu evitava pra não tem aborrecimento, porque eles falam muita besteira, entendeu? Paqueram, se você dá uma bobiada eles beliscam seu bumbum, uma coisa meio assim lá. Não é tão... Então você andando normal, botando um véu na cabeça, ninguém nem chega perto de você, respeitam, entendeu? Então eu já usava pra não ter aborrecimento. E eu nem me maquiava lá, só à noite quando eu ia pros shows, pras festas, ai você usa, né? Só que a maquiagem deles é nossa senhora... Carla: - De outro mundo... Isa: - Você se sentia assim... A maquiagem que a gente usa aqui no Brasil pra sair à noite... Carla: - Pra eles é do dia... Isa: - Você via o pessoal maquiado a noite, você não acreditava. Você passava vergonha. Tamanho isso é importante pra eles, a maquiagem. Também, assim, pra quem não é muçulmano, assim, é sinal de status também, eles carregaram essa simbologia, entendeu? E beleza, a mulher árabe é muito conhecida pela feminilidade, tem tudo isso. Por isso que lá é muito forte a questão do cosmético... Carla: - Você falou que você trouxe coisa de lá, assim, de cosmético. Qual é a diferença, por exemplo, tem diferença de qualidade? Isa: - Tem muita diferença. A qualidade é muito boa. Até nas biboquinhas assim a qualidade... Eu achei a qualidade do que eu trouxe assim... E eu compro cosméticos bons aqui, eu não uso... Eu tenho uma coisa, cosmético pra mim tem que ser uma coisa boa, por causa da pele do rosto, né? E os que eu uso aqui perto dos que eu comprei lá, meu Deus. Só que vai muita coisa da Europa também, pra lá. Então tem isso também. Mas tem a maquiagem deles lá, muito boa. Eu não achei ruim, achei uma qualidade bem legal, eu gostei da qualidade, do que eu trouxe do Egito, né? Carla: - O que me falaram, assim, me falaram que o Kajal, ou o Kohl, né? É muito melhor que qualquer delineador, qualquer lápis...


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Isa: - Qualquer lápis, qualquer coisa. Por isso que eu trouxe um monte de bastão. Não durou nada, né? Porque eu usei assim, acabou, porque a qualidade é muito alta. Carla: - É o que todo mundo fala... Isa: - Agora você imagina, né? Uma coisa que começou no Egito antigo, imagina a tecnologia que eles têm de cosmético. O único problema é a questão financeira, então não avança, vem muita empresa de fora, vem muita coisa, né? É, mas eles tem uns produtos de qualidade, assim, uns produtos bacanas. E tem os porcarias, como em qualquer lugar, né? Eu acho que só não é melhor que muito lugar do mundo pelas questões econômicas, porque a pobreza lá, Deus me livre, é uma coisa horrorosa lá no Egito, né? Agora no Líbano já não, lá é metropolitano, outros quinhentos, né? Ai sim, tem tudo, eles tem muita influência da Europa lá. A Síria eu já num sei direito, mas o Líbano, do Egito, né? Tem muita influência da Europa, dos países assim, vai muita... Muitos produtos, cosméticos, essas coisas, você vê muita coisa européia, né? No Egito. Carla: - Com outras pessoas que eu conversei, falaram assim que com a influência de fora... Na maquiagem tradicional é aquilo que você falou, mais o olho, boca nada... E hoje em dia, tem o olho, mas tem a boca, tem a coisa do blush... Isa: - Tem tudo, é, mas o olho... Carla: - O olho não perde nunca... Isa: - O olho é o principal. Você vai ver sempre aqueles olhos hipermaquiados, com sombras hiper, ultra, megacoloridas, assim, aquelas variantes. Você fala “como é que essa mulher fez isso?”. Se tornaram exímias, né? Na maquiagem. Porque tem assim, tem... O pessoal brinca assim, as bailarinas que viajam pro exterior, falam assim “Ah, como ela tá libanesa”. Por quê? Porque a maquiagem libanesa é muito forte. As sombrancelhas são desenhadíssimas, elas, às vezes, até tiram e tatuam, pra ficar certinho. É muito forte o olho, a boca, então eles falam “fulana tá libanesa”, aquele bocão assim, sabe? Isso é cultural, dessa coisa, é muito forte. Tem que ter. Você não vê uma libanesa lá com a cara lavada. Carla: - Você sabe se tem, por exemplo, idade, questão de idade... Isa: - Olha, de idade assim, eu acho que é mais quando tá na adolescência, ela vai ficando mais mulher, né? Criança dificilmente você vê, é uma ou outra assim, a não ser que seja essas do Kohl, né?


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Carla: - Por causa da proteção, né? Isa: - Da proteção. Eu vi algumas crianças lá na Jordânia com Kohl nos olhos, nas meninas, com Kohl. Pequenas, as meninas de dez anos assim você vê. Carla: - Porque é provavelmente ligado a proteção... Isa: - É, a proteção da areia. Eu vi, né? Elas passavam. Eu vi. E... agora as libanesas, você já vê... não criança eu não falo, mas quando tá mais perto daquela coisa de se tornar mulher, né? Elas já são maquiadas, já tem os olhos pintados, né? Antigamente se casava muito cedo, né? Com doze, treze anos já tavam casando, então elas já começavam com essa questão da maquiagem, né? Muito jovem. Hoje não existe mais isso lá, não é tão assim, né? Existe ainda, mas não é do jeito que era antigamente. Lá ainda existe a coisa da preservação da castidade, isso ai no islã... na muçulmana existe até hoje, você não pode casar se não... Já nas outras questões, nos outros povos já é mais light, não tem tanto essa... né? Carla: - Você sabe se em apresentação, quando tem apresentação que o homem dança também, você sabe se ele traz essa coisa da maquiagem? Isa: - Traz. Olha, os bailarinos que dançaram na minha companhia, tem alguns bailarinos que dançam na minha companhia, né? Todos eles maquiam os olhos, eles passam o preto. E alguns professores meus de fora que vem dar curso aqui, toda vez que eles fazem show eles pintam os olhos de preto. Justamente por essa questão. Carla: - Entendi. Isa: - Cultural. Principalmente quando eles estão representando os povo egípcios, ai que eles pintam mesmo, os olhos ficam bem fortes mesmo, bem pretão. Teve até um que eu maquiei, eu tava num show fora e ele pediu pra eu maquiar ele. Ele sempre pinta os olhos de preto por dois motivos, pela questão cultural e porque eles dançam muito em palco, então não aparece nada. Eu não posso entrar com a cara lavada e uma roupa dessa. Quer dizer, é uma questão do próprio cunho artístico, né? A maioria dos bailarinos pintam os olhos, o rosto, passam tudo. Por quê? Porque não aparece nada. Então assim, os meninos que dançam comigo, quase todos se maquiam, né? Tirando um ou outro que tem aquela questão do machismo, tem “ai, que eu não vou me maquiar, não...”. E aconteceu, inclusive no camarim, de um cara falar assim “não, você tem que passar por isso, por


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isso e por isso”, e o cara é homem, casado, tem filhos, tem os escambal e sabe tem que maquiar por conta disso. Mas ele usa pra palco, ele teve no Egito comigo, lá... Mas ele não se maquiava, maquiava pros shows, só pra vc ter uma ideia, porque ele tá representando uma cultura, então a gente tem todo esse cuidado, né? Geralmente você vai ver bailarina de dança árabe de cara lavada de manhã, você não vai ver ela maquiada. Por quê? Porque ai já é uma outra questão cultural nossa, a gente vai, tem aquela coisa, maquia, maquia, maquia, ai tem uma hora que você quer que a sua pele respire, uma hora que você não aguenta mais. Apesar que eu tenho o costume, há muitos anos, de usar preto dentro dos olhos, eu gosto, isso é muito antigo já. Só que eu não to usando essas épocas, porque quando você tá de licença não quer pôr nada, né? Não quer nem pintar unha, nada, para tudo né? Mas geralmente eu to com lápis no olho. Entendeu? Carla: - Vai criando o hábito... Isa: - É hábito, entendeu? É hábito de... eu sempre gostei da expressividade do olhar. Isso, mesmo antes de saber de muita coisa, de saber dessa parte cultural, entendeu? E... mas a mulher árabe ela maquia o dia inteiro, tem umas até que fazem tatuagem nos olhos pra não ter que passar mais, muitas fazem, né? Hoje em dia muitas fazem pra não ter que ficar passando. Eu conheci uma libanesa aqui, que ela passava o Kohl de carvão. Carla: - Aqui em Campo Grande? Isa: - Aqui em Campo Grande. Ela não podia sair de casa se não... ela não conseguia, era impressionante. Ela fazendo, ela me mostrou... passava e pigmentava dentro dos olhos dela... Carla: - É um pó? Isa: - É um pó, um carvão. Você pode comprar de pózinho, são os artesanais, aquela coisa mais... Acha mas nem em todo lugar. Ainda acha esse tipo de carvão, né? Carla: - Aqui no Brasil não acha, né? Isa: - Não acha não. Muito difícil, a não ser que você vá em uma casa árabe, que o cara trouxe de lá. Ai você acha. Aqui em Campo Grande eu nunca achei, em São Paulo é mais fácil de achar, né? Geralmente, quem que traz pro Brasil? O pessoal que foi pro exterior, trouxe, ou as filhas que foram pra lá, as mães, as tias e compram lá e trazem também pro Brasil. Já trazem estoque.


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Carla: - Traz uma mala né? Isa: - É, então. Quando a gente vai pra lá a gente estoca. Vai saber lá quando que você vai voltar. Uma viagem longa, tem uma série de entremeios pra você lá, fora questão de guerra, né? Então não é sempre que vc vai poder ir pra lá, né? Então tá muito ligado, a maquiagem é isso. O que eu tenho conhecimento da parte árabe tá ligado a essas questões... E ai foi sofrendo essas influências culturais. Carla: - Que ai altera mesmo... Isa: - Altera... Altera totalmente. Se você vai pegar a raiz pra hoje, é diferente... Carla: - Mas é interessante, porque foi aquilo que eu te falei, eu conversei com muitas pessoas que me falaram: “Há, é assim, mas o porque é...”. Não sabem. Isa: - Não sabe... Mas é isso que eu to te falando, chegou num ponto... Carla: - Faz por repetição... Isa: - Faz por repetição de hábitos, repetição de hábito cultural. Não sabe porque tá fazendo, mas faz. Algumas pessoas da família sabem, mas quando você vai ver, vai estudar a parte histórica, você vai lá no local vê, você entende tudo isso, por quê? Entendeu? Ai você entende o por quê. Isso é cultural, mas isso ai é muito de cultura árabe, a cultura cigana tem essa parte dos olhos, a cultura indiana... Mas a cultura indiana tá ligada a outra parte totalmente, é, mística, totalmente da dança pelos olhos, as danças indianas tradicionais, né? Já muda todo o foco. Mas é mais ligado a... Eu resumiria tudo nessas duas frases que eu te falei, proteção e comunicação. Carla: - Obrigada Isa.


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C - Entrevista – Flávia Bottura Calvoso. Entrevista concedida no dia 18 de Outubro de 2014

Carla: Primeiro eu quero que você me conte como e por que começou o seu interesse maquiagem? Flávia: Começou muito casualmente, procurando por dicas na internet para me maquiar para uma festa. Encontrei no youtube um mundo particular que tratava especificamente disso. Mergulhei nele porque me divertia muito aprendendo técnicas novas, conhecendo produtos e não posso negar, uma curiosidade pela vida daquelas meninas que se expunham de graça na internet. Lógico que na época esse mundo não era tão monetizado quanto é hoje. Carla: Quando você "mergulhou" neste mundo você ainda não havia concluído sua formação como cientista social. Em algum momento você se pegou analisando o tema de forma mais acadêmica ou pra você era mesmo um momento mais relax? Flávia: Quando se é cientista social, "o olhar" treinado na academia acaba por transformar todas as nossas relações em "fato social", passível de estudo. Mas práticas culturais nunca foi meu objeto de estudo especificamente. No entanto, é curioso notar, que escondi por muito tempo dos meus colegas esse "amor" pela maquiagem que eu desenvolvia cada dia mais. Fiquei receosa dos julgamentos. Quero dizer, maquiagem é um braço da moda, impossível desatrelar do consumo. Além disso, eu participava de coletivos feministas, um ambiente não muito receptivo as essas praticas tratadas exclusivamente como do "universo feminino". Carla: Como essa sua relação com a maquiagem te afetou pessoalmente? E quando vc deixou de esconder isso das pessoas que estão próximas de você? Flávia: Pra mim, não é exagero dizer que mudou minha vida. Sei que a grande maioria das pessoas não tem essa relação tão intensa com a maquiagem, enquanto outras têm ainda mais. Mas eu dedico uma parte do meu dia pra isso, seja para acompanhar os blogs, seja para treinar em mim mesma as técnicas novas que aprendo por aí. Mudou tanto, que até hoje cogito dedicar minha vida profissional para isso, e abandonar as ciências sociais. Mas ao contrário do que observo nesse mundo particular que é o da maquiagem na internet, sou muito crítica com isso, herança da minha graduação. Não atrelo maquiagem a


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autoestima, como é comum se ver nos blogs dedicados a isso. Minha relação é de diversão, arte e técnica. Resolvi "sair do armário" para os meus colegas quando percebi que a maquiagem tinha se tornado uma parte indissociável de mim. E que ter essa visão crítica sobre a maquiagem "aliviava" um pouco o meu lado. Mesmo assim algumas pessoas nunca foram muito compreensivas. Por outro lado, ganhei uma certa credibilidade com algumas colegas menos radicais e principalmente com muitos colegas homens gays, que tem uma outra relação com a maquiagem. É uma indumentária, uma diversão, um mergulho num universo que eles foram privados por muito tempo. Carla: Então pra você a maquiagem relacionada a autoestima é algo negativo? Flávia: Vejo meninas nesse mundo afirmando que não vão na padaria da esquina sem se montarem todas e ao mesmo tempo discursando sobre como maquiagem É autoestima. Discordo. Nesse contexto, a maquiagem está lá pra disfarçar baixa autoestima e não celebrar a autoestima. Autoestima se trabalha nua, sem maquiagem, na frente do espelho. Há muita expectativa inalcançável nos produtos. Existem produtos dedicados ao disfarce dos poros! A intenção parece ser a de criar mulheres decorativas. E meninas dizendo que "não vive sem produto x" ou que "produto y é um tem-que-ter, um must have". É isso que o capitalismo faz, ele "cria necessidades" em cima das nossas fraquezas, que incrível - são criadas por ele mesmo. Fora isso, a busca pelo padrão é também incrustrada de racismo. "afinar o nariz" com bronzeador é uma maneira muito comum de negar a beleza de uma etnia. Na Coreia do Sul também está se tornando comum cirurgia nos olhos para a criação de um "côncavo", tentativa muito comum em orientais por meio da maquiagem. Isso é uma ocidentalização doentia. Carla: Quando comecei a minha pesquisa sobre a maquiagem e ela como construção de identidade, comecei ela justamente por maquiagens que são originais de determinadas culturas e etnias que não a ocidental. Com o passar da pesquisa foi possível notar que existe sim uma certa perda da cultura original em detrimento da cultura ocidental. Muito do que se usa na maquiagem social, por exemplo, em larga escala traz traços da cultura árabe e do início da maquiagem egípcia, mas ela foi tão incorporada pela cultura ocidental que não fazemos a ligação direta com essa cultura.


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Agora, você falando destes pontos, de busca por um ideal estético "aceitável" faço uma ligação direta com a construção de uma identidade que é totalmente desvinculada da identidade originária dessas garotas. Isso é muito comum no teatro, por exemplo, quando existe a construção de um personagem. Mas neste caso é um personagem que vai "atuar" na sociedade. Você acha que com o tempo essa atuação deixa de ser forçada e passa a ser mesmo a identidade delas ou talvez elas, neste processo, passam a se conhecer e a construir uma identidade sem tanta "atuação", mais natural? Flávia: Não acho que seja forçada. O homem, como ser social, e portanto necessariamente desenvolvendo sua identidade em interação com o meio, absorve a cultura no seu entorno muito naturalmente. Em um contexto globalizado, no entanto, é comum absorver também outras culturas, integrá-las a sua própria e isso pode ter aspectos muito positivos. Por outro lado, a busca por esse padrão (branco, magro, nariz pequeno, olhos grandes, formato do rosto longo e fino) é uma demonstração do poder econômico do ocidente e também funcionam como inibidores da construção de outras identidades culturais. As outras culturas que incorporaram a história da maquiagem na prática são reduzidas a mera técnica e pouco valorizadas na sua raiz por quem as pratica. Resgatar esse significado é valorizar culturas por vezes esquecidas, é um ato político. Carla: Você acha que sua identidade pessoal sofreu interferências e modificações a partir do seu contato com esse "mundo da maquiagem"? Flávia: Com certeza! Cada experiência que vivemos constrói a nossa identidade. Isso hoje é parte fundamental da minha personalidade, ganhei conhecimento através das pesquisas sobre o assunto (sem pretensões acadêmicas) e até mesmo desenvolvi habilidades motoras, através das técnicas que pratico. Parece bobagem e futilidade pra muitas pessoas, mas tenho muito mais firmeza e delicadeza nas mãos hoje. Enxergo paletas de cores e combinações harmoniosas com muito mais facilidade. É um tópico frequente nas minhas conversas e, portanto, nas minhas relações. Como dizer que isso não faz parte da minha identidade?


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D - Entrevista – Laís Manteiga. Entrevista concedida no dia 19 de Outubro de 2014

Carla: - Como começou seu interesse por maquiagem e qual uso você faz dela? Laís: - Acredito que tenha começado no início da adolescência, com 13 ou 14 anos. No dia-a-dia uso somente o básico: corretivo, rímel e um pouco de blush, mas esses itens pra mim são essenciais. Uso socialmente, mas não sou daquelas pessoas que depende da maquiagem, posso sair de casa de cara limpa. Carla: - Atualmente, qual é a importância que a maquiagem tem para você? Laís: - Acho importante para a autoestima, pois sinto que só um corretivo já levanta o olhar e pareço mais descansada. Uma correção aqui e uma cor ali fazem eu me sentir mais bonita e algumas vezes dá segurança. Carla: - Qual o reflexo do “boom” da maquiagem na internet no uso que você faz? Laís: - As novidades chegam mais rapidamente aos consumidores. Acompanho algumas produtoras de conteúdo para internet voltado para a beleza e confio na opinião de algumas delas. A comunicação direta entre blogueiras ou Youtubers com o consumidor passa a impressão de proximidade, como se você estivesse recebendo indicação de uma amiga. É necessário saber distinguir a pessoa que quer vender um produto porque está sendo paga para fazer propaganda daquela que realmente faz um trabalho sério, mas diversas vezes comprei/desejei produtos por indicação ou resenha de blogueiras. Hoje não compro mais revistas. Visito blogs e assisto vídeos no Youtube para me informar de novidades sobre moda e beleza. Carla: - Você acha que a maquiagem reflete a personalidade da pessoa e pode mudar conforme o que ela quer passar para os outros? Se sim, você acha que este é um processo pensado ou natural? Laís: - Com certeza. Acho que é um processo que ocorre naturalmente. A pessoa vê algo que gosta em alguém ou um produto que é usado de forma diferente e começa a usar. Até mesmo o amadurecimento muda a maneira de usar a maquiagem. Mas em algumas situações, como em uma entrevista de emprego ou no trabalho, por exemplo, é mais indicado usar algo mais sóbrio. Esses casos são pensados para dar maior credibilidade e seriedade, diferentemente de quando a


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pessoa estรก em um dia alegre, casual, e fica estimulada a usar algo mais colorido, processo que acredito que ocorra naturalmente.


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E - Reportagem

Cultura de Maquiagem Carla Scarpellini Do seu surgimento até os dias atuais, a maquiagem possuiu inúmeros signficados e ajudou a construir incontáveis discursos. Foi sinal de status e de gosto. Ajudou a construir tendências, personagens e identidades. Transformou e externou personalidades ou apenas o humor do dia. Esteve presente nos tronos, no palco, na rua. Despertou interesse e curiosidade. Tornou-se hábito. Parte ou símbolo de uma cultura. Ou quem sabe uma cultura em si. Quando a maquiagem surgiu, sua intenção pouco se aproximava da estética, mas logo se ligou a ela, principalmente como status de nobreza e poder. Ao chegar ao ocidente sua conexão com a nobreza não de desfez e só foi mal vista quando condenada pela Igreja Católica durante a idade média. A maquiagem começou a se popularizar, de fato, durante o século XX, principalmente na Europa, com o avanço da indústria química. No início da década de 20, em Paris, o batom – na forma em que é conhecido atualmente – foi produzido e comercializado em grande escala. O sucesso foi tanto que motivou, menos de dez anos depois, uma nova fase de desenvolvimento para o mercado cosmético, atingindo não só a Europa, mas também os Estados Unidos. Nesta época a maquiagem era um dos artifícios das produções cinematográficas, prinicipal aliada para caracterização e efeitos visuais ligados às personagens. A Segunda Guerra Mundial provocou uma estagnação na indústria cosmética. Mas nos anos 60, ao atingir os jovens, ela toma força e começa a aprimorar não apenas os produtos, mas também as embalagens, tornando-as mais atrativas ao novo público. Após o advento das novas tecnologias e, principalmente, da internet, a comunicação estabelecida entre a indústria e o consumidor possibilitou o desenvolvimento de produtos ainda mais específicos aos gostos de quem consome. Atualmente, a infinidade de marcas, produtos e texturas disponíveis no mercado consegue atingir os mais diversos públicos. E o fácil acesso, não apenas aos produtos mas também a informação, expandiu o mancado.


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O consumo da maquiagem e o aprendizado na web Há alguns anos a cientista social Flávia Bottura Calvoso descobriu uma nova paixão que, segundo ela, mudou sua vida. Ao procurar dicas de maquiagem para festa na internet, encontrou no YouTube um “mundo particular” que girava em torno da maquiagem. “Mergulhei nele porque me divertia muito aprendendo técnicas novas, conhecendo produtos e, não posso negar, uma curiosidade pela vida daquelas meninas que se expunham de graça na internet”. Hoje uma apaixonada confessa, ela afirma que a maquiagem faz parte do que ela é: “sei que a grande maioria das pessoas não tem essa relação tão intensa com a maquiagem, enquanto outras tem ainda mais. Mas eu dedico uma parte do meu dia pra isso, seja para acompanhar os blogs, seja para treinar em mim mesma as técnicas novas que aprendo por aí”. E até cogita dedicar sua vida profissional ao setor. Mas nem sempre foi assim. Flávia ainda estava cursando Ciências Socias quando começou a se interessar mais pelo tema e, justamente, pela formação acadêmica escolhida, escondeu por muito tempo o seu „amor‟ pelo assunto: “fiquei receosa dos julgamentos. Quero dizer, maquiagem é um braço da moda, impossível desatrelar do consumo. Além disso, eu participava de coletivos feministas, um ambiente não muito receptivo as essas praticas tratadas exclusivamente como do „universo feminino‟”. O mundo particular descoberto por ela é um nicho formado por blogs e canais no YouTube específicos sobre maquiagem, que começou a se expandir no Brasil entre os anos de 2008 e 2009. Atualmente, bastante sólido e explorado, este nicho começou com publicações caseiras e divulgação pessoal, sem intervenção de grandes marcas ou grupos midiáticos. O conteúdo é produzido integralmente por mulheres das mais diversas idades, classes socioeconomicas e padrões estéticos, e atinge outras milhões de mulheres. A comunicação entre elas se dá de forma direta e cria uma relação quase pessoal. Este modo de criar e divulgar conteúdo – que posteriormente virou uma grande comunidade virtual –, não apenas conquistou um novo público para o consumo do tema, mas também mudou a maneira pelo qual ele era consumido. A médica veterinária Laís Manteiga, 24 anos, usuária de maquiagem desde o começo da adolescencia, afirma que hoje não compra mais revistas segmentadas e opta por visitar blogs ou assistir vídeos para se informar de novidades sobre maquiagem, moda e beleza.


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Ela destaca que as novidades chegam mais rapidamente aos consumidores e a linguagem é diferente: “acompanho algumas produtoras de conteúdo para internet voltado para a beleza e confio na opinião de algumas delas. A comunicação direta entre blogueiras ou YouTubers com o consumidor passa a impressão de proximidade, como se você estivesse recebendo indicação de uma amiga. É necessário saber distinguir a pessoa que quer vender um produto porque está sendo paga para fazer propaganda, daquela que realmente faz um trabalho sério, mas diversas vezes comprei ou desejei produtos por indicação, ou resenha, de blogueiras”. O novo jeito de consumir chamou atenção do mercado publiciário e do setor de cosméticos. Atualmente muitas criadoras de conteúdo para web – tanto blogueiras quanto YouTubers – transformou o que nasceu como hobby em profissisão. Isto porque elas passaram a receber patrocínio, fizeram parcerias com marcas do setor e se tornaram garotas propaganda, além de receberem quotas da publicidade exibida em seus canais ou blogs. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, em junho de 2013, a YouTuber e blogueira Bruna Santina, dona do canal e blog NiinaSecrets, revelou que recebia mensalmente, apenas com o repasse feito pelo YouTube pelas publicidades e visualizações no canal, em torno de 5 mil dólares. Na época em que a entrevista foi concedida, Bruna tinha 230 mil inscritos e quase 26 milhões de visualizações. Hoje, o canal possui mais de 725 mil inscritos e já ultrapassou 65 milhões de visualizações, desde junho de 2010, quando foi criado. Flávia observa, que no início este meio não era tão monetizado quanto hoje e que mesmo não tendo estudado especificamente a maquiagem e as práticas socias que a envolvem, faz algumas análises sobre o assunto, pois para ela “quando se é cientista social, o olhar treinado na academia acaba por transformar todas as relações em „fato social‟, passível de estudo”. Isto foi levado em conta quando ela resolveu não mais esconder dos colegas o seu interesse: “percebi que a maquiagem tinha se tornado uma parte indissociável de mim. E que ter essa visão crítica „aliviava‟ um pouco o meu lado. [...] Minha relação é de diversão, arte e técnica”. Segundo dados do Target Group Index, do IBOPE Media, divulgados pelo IBOPE, em março de 2013, o uso de maquiagem pelas mulheres brasileiras, em todas as classes socioeconomicas e com idades entre 12 e 75 anos, aumentou em média 15% na última década. Mas os canais na web não são ocupados apenas por entusiastas Makeup Artist, Helder Marucci, trabalha com maquiagem profissional há quatro anos e, atualmente, divide sua agenda entre


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maquiagens para noivas – marcadas com até um ano de antecedência – cursos, workshops, produção de maquiagens para editoriais e eventos. Ele criou um canal no YouTube no início de 2011. Marucci é um dos profissionais que usa a comunidade da web para divulgar o seu trabalho e ao mesmo tempo explicar o passo-a-passo da produção das maquiagens através de vídeos. A produção é feita nas poucas horas vagas, onde também aproveita para testar produtos e desenvolver técnicas que serão utilizadas posteriormente. Ele afirma que o mercado de maquiagem e beleza está visivelmente em alta, e que isto não deve ser passageiro porque “nos últimos anos as mulheres tem aumentado o seu interesse com os cuidados pessoais. Isto é reflexo da expansão do mercado e das informações mais acessiveis. Sem dúvida a internet contribuiu muito para isso”. Ele conta que observou uma mudança no comportamento das mulheres que atende e que elas passaram a ter mais conhecimento sobre o tipo de pele, formato de rosto, produtos e técnicas utilizadas. E que, atualmente, difícilmente atende alguém que não tenha sugestão de cor, produto ou técnica que será utilizada. “Hoje, quando eu tenho uma cliente, normalmente ela já chega com referências bem definidas, que já pesquisou na internet, com fotos e cores. Isso facilita. É claro que às vezes é preciso adaptar, mas é mais fácil, até mesmo por conta do entendimento que ela tem do assunto”. Isto sugere que o tema deixou de ser dominado especificamente pelos profissionais. Marucci também afirma que esse interesse tem pontos positivos na autoestima. “A mulher descobre outras faces dela mesma. Ela passa a se interessar e a se cuidar mais. Não apenas a fazer uma cobertura bonita, mas a cuidar da sua pele natural. Isto é autoestima”. A opinião é compartilhada por Laís. “Acho importante para a autoestima, pois sinto que só um corretivo já levanta o olhar e pareço mais descansada. Uma correção aqui e uma cor ali fazem eu me sentir mais bonita e algumas vezes dá segurança”. Para ela a maquiagem reflete a personalidade de quem usa e é feita conforme o que essa pessoa pretende passar para os outros. Este processo pode ser natural ou programado. “Em algumas situações, como em uma entrevista de emprego ou no trabalho, por exemplo, é mais indicado usar algo mais sóbrio. Esses casos são pensados para dar maior credibilidade e seriedade, diferentemente de quando a pessoa está em um dia alegre, casual, e fica estimulada a usar algo mais colorido, processo que acredito que ocorra naturalmente”.


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Mas para Flávia é preciso ter cuidado com o bombardeio dos conteúdos e informações. Isto porque eles mexem com a imagem e a identidade de quem consome, criando padrões e uma busca por vezes inalcansável. “Vejo meninas nesse mundo afirmando que não vão à padaria da esquina sem se montarem todas e ao mesmo tempo discursando sobre como maquiagem é autoestima. Discordo. Nesse contexto, a maquiagem está lá pra disfarçar baixa autoestima e não celebrar a autoestima. [...]. A intenção parece ser a de criar mulheres decorativas. [...], a busca pelo padrão é também incrustrada de racismo. „Afinar o nariz‟ com bronzeador é uma maneira muito comum de negar a beleza de uma etnia. Na Coreia do Sul também está se tornando comum cirurgia nos olhos para a criação de um „côncavo‟, tentativa muito comum em orientais por meio da maquiagem. Isso é uma ocidentalização doentia”, alerta. Ela explica que este processo pode ser ainda mais perigoso, pois algumas vezes acontece de maneira não-consciente. “O homem, como ser social, e, portanto, necessariamente desenvolvendo sua identidade em interação com o meio, absorve a cultura no seu entorno muito naturalmente. Em um contexto globalizado, no entanto, é comum absorver também outras culturas, integrá-las a sua própria e isso pode ter aspectos muito positivos. Por outro lado, a busca por esse padrão branco, magro, nariz pequeno, olhos grandes, formato do rosto longo e fino é uma demonstração do poder econômico do ocidente e também funciona como inibidor da construção de outras identidades culturais. As outras culturas que incorporaram a história da maquiagem na prática são reduzidas a mera técnica e pouco valorizadas na sua raiz por quem as pratica. Resgatar esse significado é valorizar culturas por vezes esquecidas. É um ato politico”.

A maquiagem como construção de uma identidade No dicionário Aurélio, a palavra identidade é definida como a “circunstância de um indivíduo ser aquele que diz ser ou aquele que outro presume que ele seja”. Em outras palavras, identidade é aquilo que o indivíduo aparenta ser. Mônica Ferreira Magalhães, doutora em Estudos de Linguagens pela Universidade Federal Fluminense, diz, em sua tese, que a maquiagem é parte importante do discurso montado pelo indíviduo e apresentado para a sociedade. Ela utiliza muitos exemplos voltados ao teatro e as montagens feitas para as personagens. É possível adaptar o entendimento da maquiagem teatral para o cotidiano, para entender que a maquiagem é um recurso que pode auxiliar o indivíduo a ter a identidade que deseja. Construir e descontruir através de base, corretivo, pó, sombras e pincéis. Desta forma, dominar suas técnicas


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pode significar ter o poder de construir – ou desconstruir – a imagem de forma mais satisfatória. Segundo Mônica Magalhães, é possível que se crie, através da imagem, um discurso, onde se pretende comunicar e externar a personalidade, as ideias ou simplesmente o humor do momento. São “máscaras” que podem ser adaptadas e modificadas. Para Helder Marucci a construção ou desconstrução de identidades inviduais ou culturais através da maquiagem, não é trabalhada de forma clara nas maquiagens socais, mas existem referências. “A maquiagem surgiu no Egito, com olhos marcados e delineados. Isto é uma característica facilmente encontrada nas maquiagens mais simples e, principalmente, nas maquiagens mais elaboradas. Atualmente, está em alta. A ligação não é direta, mas a refência está presente”.

Maquiagem Étnica Alguns povos e etnias possuem a maquiagem como parte real de sua cultura, logo, como parte importante de sua identidade cultural, e fazem uso de sua simbologia e história, mesmo fora do local de origem. Isto pode acontecer através de apresentações culturais realizadas por comunidades etnicas ou mesmo no uso de técnicas ou produtos específicos. A maquiagem árabe é conhecida por olhos fortemente marcados com um delineado preto e grosso, e possui vínculo direto com o surgirmento da maquiagem. A pesquisadora e professora de danças árabes, Isa Yasmin, explica que esse tipo de maquiagem é visualmente bem próxima da utilizada pelos egípcios, o que se deve por conta do aculturamento que ocorreu quando os Árabes invadiram a região do Egito. E define a maquiagem árabe em duas palavras: proteção e comunicação. O sentido de proteção está ligado à origem da maquiagem. Foram criadas misturas que eram passadas em torno dos olhos, por homens e mulheres, e que tinham o objetivo de proteger da poeira e de bactérias que pudessem causar algum tipo infecção, já que as condições de higiene na época eram precárias. Como, no início, quem fazia uso dessas misturas eram apenas os nobres – e a nobreza era ligada ao misticismo, pois acreditava-se que esta era uma posição concedida pelos deuses – não demorou até que surgisse a ideia de que a maquiagem também era uma proteção mística. Isa conta que, ainda hoje, algumas tribos de beduinos carregam esta crença. “Tem algumas tribos em que o homem pinta o olho e fecha a boca e o nariz com panos, pra ele não ser levado pelos maus espíritos”.


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Já a comunicação está mais ligada à maquiagem utilizada pelas mulheres árabes, e tem relação com as práticas sociais dessa comunidade. As mulheres não tinham – e em muitos casos ainda não têm – a liberdade de falar e interagir como os homens, então, elas utilizam os olhos como ferramenta de comunicação e expressão. “Qual é a forma que elas poderiam se comunicar? Com os olhos! Então, o que elas fizeram? Elas marcaram, aquele olho é marcado, é expressivo, forte. Ele diz tudo”. Esta comunicação através do olhar foi incorporada pela dança e é especificamente trabalhada durante seu aprendizado. É o que explica professora de dança do ventre, Mayra Procópio, de família árabe e grega. “Ela tem todo um significado, uma simbologia. Tudo tem uma razão, todos os movimentos da dança do ventre tem uma simbologia. [...] e a maquiagem também é a mesma coisa”. Para ela, no Brasil, a maquiagem árabe, principalmente na área da dança, incorporou o uso de outros cosméticos e perdeu, de certa forma, o que deveria ser o seu foco. Ela lamenta e diz que “aqui no Brasil as bailarinas pintam muito a boca. [...]. Os olhos são bem maquiados, mas ultimamente eles vêm perdendo a tradição”. Ela conta, ainda que sua principal referência em maquiagem foi a avó, que fazia uso do Kajal – também conhecido tradicionalmente como Kohl – que é utilizado para delinear os olhos. Esse tipo de maquiagem tradicional pode ser encontrado em bastão, pasta ou pó, mas é de difícil acesso no Brasil. Apesar do fácil reconhecimento da maquiagem árabe, especialmente na dança, muito desta simbologia, e até mesmo da história, passa despercebida e às vezes é desconhecida até mesmo por quem usa. Isto ocorre, por exemplo, quando essa maquiagem é reproduzida por descendentes ou comunidades que estão em outros países. “Se você pegar a raíz pra hoje, é diferente. Chegou num ponto onde se faz por repetição. Não se sabe o porquê está fazendo, mas faz”, conclui Isa. Mas o uso da maquiagem na cultura árabe não se restringe às danças. Em uma viagem ao Oriente Médio, em 2011, Isa diz que foi possível verificar muita coisa que havia estudado aqui no Brasil. “Eu vi lá muitas mulheres, todas elas usam o véu, o hijab. Algumas, assim, super maquiadas, maquiadíssimas, o olho super forte. [...] Você via o pessoal maquiado a noite, você não acreditava. Você passava vergonha. Tamanho isso é importante pra eles. É sinal de status também, eles carregaram essa simbologia. E a mulher árabe é muito conhecida pela feminilidade, tem tudo isso. Por isso que lá é muito forte a questão do cosmético...”.


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Ela conta que o comércio de cosméticos local também é muito desenvolvido, e que a oferta por produtos e o número de lojas é grande. O Kohl – ou Kajal – encontrado lá é diferente dos lápis e delineadores encontrados no Brasil. “Eu comprei vários Kohls de bastão lá, trouxe um monte, comprei em loja de cosmético. Tem muita diferença. A qualidade é muito boa. [...] Melhor que qualquer lápis”. Outra maquiagem que traz características, técnicas e significados culturais marcantes é a maquiagem utilizada em danças e apresentações japonesas. De base branca e detalhes em preto e vermelho, ela carrega tradições centenárias, passadas apenas entre as famílias ou comunidades de origem nipônica. Saiko Gushiken mudou-se de Okinawa, no Japão, para o Brasil logo depois de se casar, em 1958. Seu contato mais direto com a dança e a maquiagem tradicional aconteceu já no Brasil. Hoje, ela é responsável por ensinar as técnicas e maquiar quem se aprensenta pela Academia Gushiken de Cultura Okinawa, fundada por ela e seu marido, Hiroshi Gushiken, em Campo Grande-MS. Saiko afirma que a maquiagem é a mesma utilizada em todas as danças e que aprenden a fazê-la quando foi se apresentar em São Paulo, junto com seu grupo, em um festival há quase quarenta anos. “Eu aprendi com as senhoras da comunidade de São Paulo, quando eu ainda era nova. É uma maquiagem simples, mas demora porque são muitas camadas”, conta em seu português ainda com forte sotaque. Diferente das maquiagens sociais e da maquiagem árabe, o processo de aplicação da maquiagem japonesa é sempre o mesmo e é seguido à risca. Miti Miyashita, aluna de Saiko que atualmente também ensina danças típicas para comunidade, explica que a maquiagem é feita com um pó compacto branco – que antigamente era feito de arroz – que umidecido com água se torna uma pasta. Ela é aplicada com uma esponja, em sete camadas. Alguns detalhes, com outra pasta de cor vermelho vivo, são feitos nas têmporas, maçãs do rosto e em volta dos olhos. Estes detalhes são feitos entre algumas camadas da base branca. Depois disso, marcam-se, com lápis preto, as sombrancelhas e os olhos. Por último, a boca é cuidadosamente desenhada, com a mesma pasta vermelha utilizada anteriormente no rosto. Uma das senhoras que participa do grupo de dança, Olívia Okumota, diz que quando estão maquiadas é difícil dizer quem é quem. “Fica todo mundo igual. A maquiagem é a mesma, o cabelo e a roupa também. Às vezes eu nem me acho”.


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Elas explicam que o branco é símbolo de beleza para os japoneses. Quanto mais clara a maquiagem, mais bonita. Os detalhes em preto e vermelho servem para dar destaque, principalmente na luz utilizada nos palcos, em apresentações. Elas dizem que essas maquiagens não são utilizadas no dia-a-dia, mas que o uso da boca vermelha é comum. A maquiagem utilizada para os espetáculos da comunidade Okinawa, muito se aproximada da, mais conhecida, maquiagem utilizada pelas Gueixas. Possívelmente porque ambas são expressões artístico-culturais derivadas do teatro de Kabuki, conhecido pela sua forte dramaticidade. Francisco Handa, pesquisador da cultura tradicional japonesa e doutor em História pela Universidade Estadual Paulista, explica, em artigo, que “o que realça a presença dos artistas kabuki é a maquiagem altamente estilizada, marcando os contornos dos olhos, os cílios e a boca”. E que as maquiagens para este fim foram criadas para se aproximarem da imagem de máscaras.


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