A representação do erro médico na imprensa sul - matogrossense

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL CENTRODE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - HABILITAÇÃO EM JORNALISMO

A REPRESENTAÇÃO DO ERRO MÉDICO NA IMPRENSA SULMATOGROSSENSE: VISÃO NORMATIVA VERSUS VISÃO CRÍTICA

Maressa Mendonça dos Santos

Campo Grande, MS Novembro, 2013


Maressa Mendonça dos Santos

A REPRESENTAÇÃO DO ERRO MÉDICO NA IMPRENSA SULMATO-GROSSENSE: VISÃO NORMATIVA VERSUS VISÃO CRÍTICA

Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, sob orientação do Prof. Dr. Marcos Paulo da Silva.

Campo Grande, MS Novembro, 2013


MARESSA MENDONÇA DOS SANTOS A REPRESENTAÇÃO DO ERRO MÉDICO NA IMPRENSA SUL-MATOGROSSENSE: VISÃO NORMATIVA VERSUS VISÃO CRÍTICA

Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, sob orientação do Prof. Dr. Marcos Paulo da Silva.

Campo Grande, 28 de novembro de 2013 COMISSÃO EXAMINADORA ________________________________________ Prof. Dr. Marcos Paulo da Silva Universidade Federal de Mato Grosso do Sul ________________________________________ Prof. Dr. Mario Luiz Fernandes Universidade Federal de Mato Grosso do Sul ________________________________________ Editora Executiva Sandra Luz Jornal o Estado


DEDICATÓRIA À minha mãe, Fatima Maria Vargas de Mendonça responsável por ensinar a beleza da misericórdia na prática.


AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Deus altíssimo que por mim tudo executa. Aos meus pais, Joel Francisco dos Santos e Fatima Maria Vargas de Mendonça, pelos ensinamentos, incentivos e confiança em relação ao trabalho e escolha profissional. Ao meu irmão “gêmeo” por opção, Marcus Paulo Mendonça dos Santos, por me escutar falando do tema “erro médico” um milhão de vezes e ainda ouvir como se estivesse interessado. Ao médico Gustavo Ribeiro Falcão pela pergunta e recomendação que deram origem a esta Monografia. Especialmente ao orientador e amigo, Marcos Paulo da Silva, pela paciência, dedicação, profissionalismo, correções, sobretudo, pela confiança em mim depositada. Uma monografia inteira seria insuficiente para externar toda ajuda que recebi durante a pesquisa. O obrigado se estende também à professora Greicy Mara França pela amizade e apoio que foram fundamentais para o término da monografia. À amiga Fabiane Neiva pela parceria durante os trabalhos que realizamos juntas e apoio quando decidi fazer uma monografia sozinha, sobretudo pela alegria proporcionada por meio da mensagem: “Vai dar certo, eu confio no seu trabalho”. Aos amigos de profissão Kharina Prado e Alex Barbosa, bem como aos calouros que sempre questionavam sobre o andamento do trabalho. À equipe do arquivo do Jornal O Estado MS pela receptividade e paciência, bem como ao departamento de Recursos Humanos do Correio do Estado. Por fim, minha gratidão se estende a todos os professores da UFMS, por cada ensinamento durante o período de graduação.


RESUMO SANTOS, Maressa Medonça. A representação do erro médico na imprensa sulmatogrossense: visão normativa versus visão crítica. 2013. Monografia (Graduação em Comunicação Social – Jornalismo). Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campo Grande-MS, Setembro de 2013.

Esta monografia tem como objetivo avaliar como o tema erro médico é abordado na imprensa campo-grandense por meio da seleção de casos amplamente divulgados nos jornais Correio do Estado e O Estado MS. Ao optar pelo estudo comparativo, a monografia visa compreender as especificidades da abordagem de cada jornal, para posteriormente realizar uma análise crítica, sob os parâmetros de uma visão normativa, a respeito da publicação de informações quando em pauta está o erro dos profissionais de saúde. Uma divisão metodológica foi realizada a partir da seleção de três casos veiculados entre os anos de 2002 e 2013, com a temática do erro médico – desde as denúncias às cassações dos registros profissionais dos médicos. A pesquisa questiona o tratamento estereotipado dado pela imprensa em casos de erro dos profissionais da saúde e o pré-julgamento da opinião pública, antes da sentença judicial, e apresenta parâmetros considerados ideais para cobertura jornalística, confrontando com o jornalismo “real”, no contexto da imprensa de Campo Grande-MS. A análise mostra que muitas vezes os jornalistas não estão preparados para lidar com a complexidade do tema “erro médico”, mas explica também algumas peculiaridades das rotinas jornalísticas que podem contribuir para que a cobertura ideal não seja realizada. Palavras-Chaves: Comunicação; Jornalismo; Erro Médico.


ABSTRACT SANTOS, Maressa Medonรงa. The representation of medical error on the press from Mato Grosso do Sul: normative vision versus critical view, 2013. Monograph (Graduation in Communication - Journalism ) . Federal University of Mato Grosso do Sul (UFMS), Campo Grande - MS, September 2013. This monograph aims to assess how the topic is addressed in the medical malpractice press from Campo Grande through the selection of cases widely reported in the newspapers Correio do Estado and O Estado MS. By opting for the comparative study, the monograph aims to understand the specificities of the approach of every newspaper, later to conduct a critical analysis under the parameters of a normative view, regarding the publication of information when the error is on the agenda of health professionals. A methodological division considered a selection of four cases carried between 2002 and 2013, with the theme of medical error. The research challenges the stereotypical treatment given by the press about cases of errors of health professionals and pre-judgment of public opinion before the court decision, and presents parameters considered ideal for the coverage, confronting a "real" journalism in the context of press from Campo Grande. The analysis shows that journalists are not prepared to deal with the complexity of the topic "medical error" , but also explains some peculiarities of journalistic routines that can contribute to optimal coverage is not performed. Key Words: Communication, Journalism, Medical Error.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1.

Etapas de identificação de um erro médico .............................. 32

Figura 2.

Modelo hierárquico de influências sobre o conteúdo noticioso segundo

Shoemaker e Reese.......................................................................................61


LISTA DE TABELAS

Tabela1.

Referências aos casos Rondon, Maksoud e Alexsandro Souza no jornal

Correio do Estado entre 2002 e 2013............................................................ 46 Tabela 2.

Referências aos casos Rondon, Maksoud e Alexsandro de Souza no

jornal O Estado MS entre 2002 e 2013.......................................................... 48 Tabela 3.

Evolução do número de denúncias no CRM-MS entre 2003 e

2013................................................................................................................ 56 Tabela 4.

Critérios noticiosos utilizados pelos jornais Correio do Estado e o

Estado MS na cobertura dos casos Maksoud e Alexsandro de Souza.......... 66 Tabela 5.

Parâmetros ideais versus parâmetros existentes na cobertura de casos

de erro médico............................................................................................... 75


“O erro é o preço que os seres humanos pagam pela habilidade de pensar e agir intuitivamente” (James Reason)


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................... 11 1. DEFINIÇÃO DE ERRO MÉDICO ......................................................... 1.1 O código que determina o erro ……...................................... 1.2 O erro médico sob a perspectiva dos conselhos .................. 1.2.1 A imperícia, a imprudência e a negligência .................... 1.3 O erro segundo os códigos jurídicos .................................... 1.3.1 As obrigações do médico perante a lei ............................. 1.3.2 O julgamento ..................................................................... 1.3.3 As esferas jurídicas do erro ............................................... 1.3.4 O âmbito civil ..................................................................... 1.3.5 O âmbito criminal ............................................................... 1.3.6 O âmbito administrativo...................................................... 1.3.7 A perícia jurídica..................................................................

15 15 18 19 24 24 26 27 27 28 29 29

2. A REPRESENTAÇÃO DO ERRO MÉDICO NA IMPRENSA CAMPOGRANDENSE ............................................................................................ 33 2.1 Casos significativos ................................................................ 34 2.2 Como ocorre a cobertura: análise descritiva ….....….............. 35 2.2.1 Caso Rondon ....................................................................... 36 2.2.2 Caso Maksoud ..................................................................... 42 2.2.3 Caso Alexsandro de Souza ................................................. 44 3. PARÂMETROS IDEAIS VERSUS PARÂMETROS EXISTENTES ..... 3.1 Parâmetros reais ..................................................................... 3.1.1 A formação do jornalista ..................................................... 3.1.2 A perspectiva de temporalidade ......................................... 3.1.3 Critérios de noticiabilidade na abordagem de erros médicos ......................................................................................................... 3.2 Parâmetros ideais ...................................................................

50 50 50 52 55 67

CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................... 76 REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS .......................................................... 83 ANEXOS .................................................................................................... 85


INTRODUÇÃO A imprensa se desenvolveu na Europa nos séculos XVIII e XIX a partir de um modelo substancialmente opinativo, ou seja, naquele período cada órgão jornalístico representava uma determinada perspectiva no debate público. Nesse cenário, não era aventada com tanta ênfase a defesa da pluralidade e da isenção ideológica no discurso dos jornais. Pelo contrário, era exatamente a diversidade de opiniões lançadas no debate público pela diversidade de periódicos que garantia o discurso de legitimação da atividade jornalística a partir do interesse público (GOMES, 2009). De acordo com Wilson Gomes, com os processos de industrialização e mercantilização da imprensa, o jornalismo se consolidou como uma atividade profissional estabelecida a partir de princípios como a isenção de posições ideológicas, a pluralidade interna, a objetividade e a imparcialidade. A ideia de interesse público, nesse contexto, passou a vincular-se à responsabilidade jornalística de denunciar fatos que rompem com a regularidade cotidiana, acontecimentos que fogem das normas sociais. Ainda segundo Gomes, nesse sentido, a prática jornalística passou a ser frequentemente cobrada e responsabilizada apenas sob a ótica do chamado “compromisso social”, o que representa um equívoco, visto que tal atividade é também comercial, lucrativa e sujeita a regras específicas para sua manutenção no mercado. Muitas das críticas diretas destinadas à imprensa, portanto, revelam que existem falhas na estrutura jornalística atual, mas, por outro lado, demonstram também um desconhecimento acerca da profissão de jornalista, bem como das rotinas compartilhadas nesse campo profissional. Quando em pauta está a divulgação do erro médico – tema desta monografia –, não poderia ser diferente.

A imprensa é constantemente apontada pelos

profissionais da área da saúde como ardilosa, manipuladora, sensacionalista e leiga. Tanto nas obras de Irany Novah Moraes, quanto de Júlio Cézar Meirelles Gomes & Genival Veloso de França, o jornalista, não raro, é tratado como um ser astucioso, capaz de esboçar as informações segundo os próprios interesses – e assim, responsável por divulgar notícias que apelam para as emoções e sem conhecimento em áreas específicas.


Na outra face da questão, encontram-se os profissionais de comunicação que censuram o “corporativismo” dos médicos quando esses não se mostram dispostos a explicitar seus métodos de trabalho e são amparados pelos colegas de profissão. Denunciam os erros cometidos tanto pelos profissionais quanto pelas instituições de saúde a que estão vinculados, cobram “ética” e ainda criticam a atuação dos conselhos de Medicina, órgãos tidos como “protecionistas” e carentes de um caráter punitivo. Esta pesquisa trabalha com o conceito de presunção de inocência, previsto na Constituição Federal e replicado no Código de Ética dos Jornalistas – isto é, define que todos os cidadãos são considerados inocentes até a sentença final de um julgamento. Tal concepção se faz presente na monografia quando se busca isentar conceitualmente tanto o jornalista da acusação de sensacionalista e manipulador quanto o médico da avaliação de corporativista e da condição de soberano. Sem valer-se de generalizações ou particularizações, demonstra-se que essa isenção de culpa só é justificável em alguns casos. É evidente que existem jornalistas despreparados ética e tecnicamente, profissionais que não se preocupam com a apuração exata e apelam para fatos que visam essencialmente despertar emoções no público, menosprezando a importância de documentos oficiais que comprovam as denúncias. Mas existem os profissionais de comunicação que tentam seguir os princípios clássicos e normativos de um “jornalismo normativo” – caracterizado, entre outras coisas, como um jornalismo objetivo, imparcial, pautado pela responsabilidade e pela veracidade dos fatos – e ainda assim são submetidos a rotinas que colocam esse modelo em xeque, como a busca constante pelo “furo jornalístico”, a concorrência com outros veículos, o espaço delimitado nos periódicos e, principalmente os deadlines. A ideia para formulação desta pesquisa surgiu após uma experiência profissional da autora durante a elaboração de uma notícia que denunciava um suposto caso de negligência médica em uma clínica particular de Campo Grande. As primeiras informações sobre o caso foram obtidas por meio de um boletim de ocorrência registrado na Polícia Civil. Posteriormente, apurou-se o caso com familiares da vítima e com a clínica envolvida. Por fim, um médico foi consultado para explicar um termo técnico que constava no registro policial, visto que o “caráter extraordinário” do fato era baseado em apenas um vocábulo. O médico – especialista na área e que não possuía ligação com a denúncia – explicou de


maneira didática a expressão utilizada, confrontando a suspeita e revelando que o caso poderia não ser tão “extraordinário”, mas um caso comum. O especialista ainda alertou sobre os inconvenientes da elaboração e divulgação de uma notícia sem acesso a laudos médicos. A partir daquele momento, começou-se a avaliar – de maneira informal – como a imprensa campo-grandense noticiava assuntos com os quais não estava familiarizada, especialmente aqueles relacionados ao erro médico. Em seguida, foi realizado um levantamento de alguns casos de repercussão na mídia local, tomando-se a decisão de redigir um livro-reportagem sobre o tema. Porém, frente às dificuldades de encontrar profissionais da área envolvidos em processos de erro médico e dispostos a falar sobre a questão (servindo de personagens para o livro), optou-se pela elaboração de uma pesquisa acadêmica – uma monografia sobre a cobertura da imprensa em casos de erros médicos em Campo Grande, mais especificamente sobre a cobertura dos jornais impressos O Correio do Estado e O Estado MS. Ao optar pela análise comparativa dos jornais, a pesquisa busca avaliar como o tema é abordado nos diferentes veículos, desde as fontes escolhidas até os critérios de noticiabilidade empregados, assunto que será tratado no decorrer do trabalho. Intrínseca à comparação da abordagem da imprensa está a necessidade de expor a rotina jornalística e os problemas enfrentados pelos profissionais da área durante a elaboração das notícias – enfoque que não deve servir de justificativa para os possíveis abusos da imprensa, mas, em uma perspectiva ampliada, para problematizar a discussão. Será proposto um paralelo entre algumas das principais dificuldades estruturais ligadas às rotinas jornalísticas e aquelas apresentadas como argumentos em publicações médicas para defender a categoria: baixa remuneração, estrutura precária dos hospitais, expectativa dos pacientes e falta de conhecimento técnico da imprensa e até mesmos dos juristas para tratar dos procedimentos médicos. O que se pretende, por conseguinte, é mostrar o envolvimento da imprensa – a compreensão do tema, a apuração das informações e a construção da matéria jornalística – na cobertura de casos de erro médico no contexto de Campo Grande (MS), de modo revelar de maneira didática a complexidade da questão. A pesquisa aspira também confrontar, por meio da análise em profundidade das matérias jornalísticas escolhidas como corpus de pesquisa, o distanciamento entre o


pragmatismo das rotinas jornalísticas e a compreensão de como seria uma “cobertura normativa” na perspectiva dos manuais de redação, bem como de autores consagrados no meio jornalístico, cujas obras são adotadas durante a formação acadêmica dos estudantes de graduação. A monografia está estruturada em três partes principais. No primeiro capítulo, por meio de consultas ao Código de Ética Médica e a autores da área que explicam o tema, apresenta-se a definição de erro médico sob as perspectivas da própria classe profissional. Da mesma forma, procura-se mostrar todo o percurso que é realizado para a comprovação da falha do profissional de saúde, desde a denúncia feita junto aos conselhos de Medicina até as sentenças anunciadas pelos tribunais. Em seguida, são apresentados casos que foram amplamente divulgados pela mídia diária campo-grandense, especialmente pelos periódicos Correio do Estado e O Estado MS. Nesse capítulo, a monografia avalia como as informações foram construídas e divulgadas, as fontes utilizadas, o espaço destinado aos fatos e as eventuais opiniões embutidas nas entrelinhas e que não se fazem expressamente claras aos leitores. No terceiro capítulo, a monografia discute algumas premissas clássicas e normativas de um „jornalismo normativo‟ – parâmetros que são repassados aos jornalistas durante a formação acadêmica – e compara com o que efetivamente é realizado pelos profissionais de comunicação inseridos nas redações. Por fim, serão sistematizadas algumas considerações sobre a atuação da mídia na cobertura de casos de erro médico, levando-se em conta as dificuldades enfrentadas pelos profissionais da área e apresentando algumas contribuições para o exercício da atividade jornalística.


1. DEFINIÇÃO DE ERRO MÉDICO Este capítulo tem por objetivo definir o conceito de erro médico sob as perspectivas da legislação brasileira, dos Conselhos de Medicina e do Código de Ética que rege os profissionais da área da saúde de modo a criar a base teórica que sustenta a monografia e evitar interpretações equivocadas do conceito.

1.1.

O código que determina o erro

O Código de Ética Médica foi atualizado pela última vez em 2009. Dividido em 14 capítulos, o documento é constituído de princípios que regem a profissão, bem como dos direitos, das obrigações profissionais e de algumas disposições gerais. Com base no código, a utilização do vocábulo “erro” para definir possíveis falhas dos profissionais da Medicina é considerada um equívoco para a classe por ferir o princípio de presunção de inocência da Constituição Federal – ou seja, o princípio que considera todos inocentes até que a sentença de um possível julgamento seja finalizada. Por esse motivo, a terminologia não é utilizada no documento. Porém, como os equívocos são inerentes aos seres humanos, o artigo 1º do capítulo que trata sobre a responsabilidade civil do médico define: “É vedado ao médico: causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência” (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2009). Tais conceitos não estão explícitos no documento, mas podem ser inferidos de vários artigos do referido código. Isto é, o ato de infringir algumas normas previstas no documento terá como resultado, em última instância, o “erro médico”. Entre todas as falhas que podem ser atribuídas ao médico, a negligência aparece com maior frequência no Código de Ética Médica, principalmente os artigos 32, 33 e 36 que tratam da relação com pacientes e familiares:

Art. 32. Deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente. Art.33. Deixar de atender paciente que procure seus cuidados profissionais em casos de urgência ou emergência, quando não haja outro médico ou serviço médico em condições de fazê-lo. Art. 36. Abandonar paciente sob seus cuidados. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2009).

À exceção do erro causado por negligência, a definição das falhas ocasionadas por imperícia são menos recorrentes no código. Essa falta exprime o


entendimento da classe de que todos os profissionais são peritos na área em que atuam. Da mesma forma, no ponto de vista dos preceitos médicos, a infração especialmente por imperícia corresponde a um caso excepcional e não regular. Especificamente sobre a imperícia médica, uma das causas para que o profissional atue em uma área que desconhece pode ser o interesse financeiro, atitude que contraria um dos princípios fundamentais da Medicina, conforme o artigo IX: “A Medicina não pode, em nenhuma circunstância ou forma, ser exercida como comércio” (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2009). O contraste entre a visão mercantilista de um suposto médico infrator e a própria natureza da Medicina coloca o erro por imperícia na esfera do crime, portanto não está previsto no código. Nesse caso, o profissional deixa de responder apenas administrativamente para os conselhos da categoria e é investigado na área civil ou penal. Para exemplificar a imprudência – que ocorre quando o médico não toma as precauções necessárias para evitar o dano ao paciente – adota-se no interior do código o princípio fundamental de número XII, que apesar de tratar de uma prática voltada ao ambiente de trabalho, mostra a responsabilidade do profissional em relação à observação de perigos ou ameaças à saúde: “O médico empenhar-se-á pela melhor adequação do trabalho ao ser humano, pela eliminação e pelo controle dos riscos à saúde inerentes às atividades laborais” (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2009). O Código de Ética Médica contem poucas referências às falhas médicas, mas cita constantemente os deveres dos profissionais da área. Na prática, infringir um código previsto dentro do âmbito da responsabilidade médica é considerado erro, uma vez que a ação é caracterizada por imperícia, negligência ou imprudência. Mas o médico pode causar dano ao paciente, sem necessariamente ter cometido um erro, apenas uma infração ao código.

Nesse contexto, é possível compreender

porque o vocábulo “erro” não consta no código. No âmbito da medicina, tal palavra corresponde a uma ação finalizada e está prevista na esfera da responsabilidade profissional, quando algo foi feito e deve ser retratado. Vale ressaltar que a classe julga as falhas dos médicos sob a perspectiva da culpa e não do dolo, conforme explica Irany Novah Moraes (1995):

É absolutamente inadmissível que em sã consciência um médico venha a cometer voluntariamente um erro. Considere-se que tudo que


ele faz para prepara-se adequadamente para o exercício profissional. Assim não seria concebível falar-se de erro deliberado – erro doloso (MORAES, 1995, p. 222).

Em outras palavras, o médico pode causar dano ao paciente sem necessariamente ter cometido um “erro”. Nesse caso, do ponto de vista técnico, o que ocorre são infrações aos deveres de conduta, que também são passíveis de punição, de acordo com a definição de Júlio Cézar Meirelles Gomes e Genival Veloso de França (1999). Entende-se por responsabilidade a obrigação de reparar prejuízo decorrente de uma ação onde se é culpado. E por dever de conduta, no exercício da medicina, um elenco de obrigações a que está sujeito o médico, e cujo não cumprimento pode leva-lo a sofrer as consequências previstas normativamente. Desse modo, responsabilidade é o conhecimento do que é justo e necessário por imposição de um sistema de obrigações e deveres em virtude de dano causado a outrem (GOMES & FRANÇA, 1999, p. 149).

Na perspectiva dos autores, o dano pode ser definido como qualquer prejuízo causado ao paciente, seja de ordem física ou emocional por uma ação ou inação do médico, tendo como origem uma inobservância ao Código de Ética Médica, uma falha de conduta. Em linhas gerais, as normas que determinam a conduta médica adequada preveem que o médico tem o dever de se informar, atualizar e de agir com cautela e diligência. Esses preceitos são avaliados durante o processo de julgamento ético de um médico. Ainda que esse tipo de desvio não caracterize o erro, as falhas por imperícia, imprudência e negligência sempre têm relação com alguma inobservância aos deveres de conduta, em especial aos princípios V e XIX do código, considerados fundamentais para o exercício da Medicina, bem como os artigos 47, 53, 54 e 56, onde se lê: V – Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente. (...). XIX – O médico se responsabilizará, em caráter pessoal e nunca presumido, pelos seus atos profissionais, resultantes de relação particular de confiança e executados com diligência, competência e prudência. Art. 47. Utilizar sua posição hierárquica para impedir, por motivo de crença religiosa, convicção filosófica, política, interesse econômico ou qualquer outro, que não técnico-científico ou ético, que as instalações e os demais recursos da instituição sob sua direção sejam utilizados por outros médicos no exercício da profissão, particularmente se forem os únicos existentes no local. (...) Art. 53. Deixar de encaminhar o paciente que lhe foi enviado para procedimento especializado de volta ao médico assistente e, na ocasião, fornecer-lhe as devidas informações sobre o ocorrido no período em que por ele se responsabilizou. (...) Art. 54.


Deixar de fornecer a outro médico informações sobre o quadro clínico de paciente, desde que autorizado por este ou por seu representante legal. Art. 55. Deixar de informar ao substituto o quadro clínico dos pacientes sob sua responsabilidade ao ser substituído ao fim do seu turno de trabalho. Art.56. Utilizar sua posição hierárquica para impedir que seus subordinados atuem dentro dos princípios éticos. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2009).

Nessa conjuntura, profissionais que cometem infrações ao código, causando prejuízos irreparáveis aos pacientes, podem ter seus registros suspensos ou até perdê-los, após julgamento do Conselho Federal de Medicina. Contudo, antes os médicos são julgados pelos Conselhos Regionais de Medicina.

1.2. O erro médico sob a perspectiva dos conselhos O Conselho Federal de Medicina é uma autarquia federal criada em 1952 para normatizar a profissão e fiscalizar os médicos. Subordinados a essa instituição nacional, mas com as mesmas atribuições e objetivos, existem os conselhos regionais, que trabalham em nível estadual. Em de Mato Grosso do Sul, a fundação do Conselho Regional de Medicina data de 11 de janeiro de 1979, onze dias após a criação oficial do estado. Conforme o assessor jurídico do CRM-MS, André Borges Netto, as instituições criadas pela própria classe não possuem, primordialmente, um caráter repressor e sim educativo. Em outras palavras, preferem ressaltar os bons resultados, a conduta ética e humanitária dos médicos. Em tese, do ponto de vista das punições, as instituições adotam para o erro médico as mesmas definições acima citadas: Erro médico é o dano, o agravo à saúde do paciente provocado pela ação ou inação do médico no exercício da profissão e sem a intenção de cometê-lo. (...) Erro médico é a conduta profissional inadequada que supõe uma inobservância técnica capaz de produzir um dano à vida ou à saúde de outrem, caracterizado por imperícia, imprudência ou negligência. (GOMES & FRANÇA,1999, p. 25-65)

No entanto, conforme explicam os autores Júlio Cézar Meirelles Gomes e Genival Veloso de França (1999, p.33), “a punição, às vezes, tem mais valor pela distinção excludente dos que atuam corretamente do que pela maldição que recai sobre o infrator, sem que isso venha a ser feito de forma ostensiva e promocional”.


1.2.1 A imperícia, a imprudência e a negligência A imperícia é caracterizada pela falta de habilidade ou de conhecimentos específicos para realização de determinada ação. Em outras palavras, trata-se de “fazer mal o que deveria ser feito bem” (GOMES & FRANÇA. 1999, p.95). Para a compreensão mais aprofundada do termo, faz-se necessário explicitar como ocorre a formação do médico. Conforme informações de Irany Novah Moraes, o curso superior de Medicina tem duração média de seis anos. Após esse período, os acadêmicos estão aptos a atuar como clínicos gerais. Existe, contudo, o curso de especialização médica – também conhecido como residência médica – que não é obrigatório. A especialização médica, como o próprio nome sugere, forma profissionais em áreas específicas como a ortopedia, a obstetrícia e a cirurgia plástica. Como um curso de pós-graduação, a residência médica fornece ao profissional o título de especialista, ou seja, de perito em determinado campo de atuação. Nesse cenário, o médico que falha em uma área que não é a sua especialidade, comete erro por imperícia – isto é, o conselho entende que o profissional não é apto para realizar o procedimento. Nos termos de Moraes (1995, p. 241), “imperícia é deficiência de preparo ou de habilitação, desconhecimento adequado da conduta, falta de habilidade técnica para realização do procedimento escolhido, incompetência”. Por outro lado, a formação superior em Medicina exige conhecimentos gerais de qualquer profissional, sobretudo durante os exames clínicos, como explica o mesmo autor: O fundamental em todo o exercício da profissão é o exame clínico bem feito. Ele deve ser completo e de maneira sistemática e com conhecimento. A não observação desses três aspectos é frequente causa de erro. É preciso lembrar que o doente é um todo: logo, mesmo um especialista deve fazer o exame completo e, se não for sistematizado, ele se perderá, não registrando alguma informação que muitas vezes pode ser essencial para o diagnóstico. (...) É mister salientar que a cultura médica geral é obrigação de todo o médico, mesmo dos especialistas, pois antes de mais nada ele é médico. (MORAES, 1995, p.107)

A classe médica avalia a inabilidade técnica como a mais difícil de ser de diagnosticada,

uma

vez

que

exige

conhecimentos

específicos

para

sua

determinação. A imperícia é classificada como uma falha de comissão, pois está relacionada a uma atitude efetiva do médico.


Já a falta de precaução ou cuidado dos profissionais é enquadrada na definição de imprudência. “Ocorre a imprudência quando o profissional procede sem cautela. Trata-se de precipitação ou afoiteza” (MORAES. 1995, p.240). Dentre as características que definem o erro médico, a imprudência apresenta menor número de definições ou exemplos, mas, por meio da definição de CorreiaLima, o termo é facilmente assimilado: “a imprudência aparece quando o médico por ação ou omissão, assume procedimento de risco para o paciente sem respaldo científico ou esclarecimento à parte interessada” (CORREIA-LIMA.2012, p.29). Para exemplificar o a questão, vale-se ainda da discussão de alguns casos: Serve como exemplo o cirurgião que opera sem o diagnóstico correto e sem o preparo adequado do paciente, como no caso do que opera o fumante sem suspender o fumo antecipadamente, ou que opera na vigência de gripe ou resfriado, radiografa mulher grávida (....). Está aqui enquadrado o quadro em que o cirurgião opera aflito, preocupado com o tempo. (MORAES. 1995, p, 240.)

Em suma, erra por imprudência o médico que realiza procedimentos desnecessários, ou ainda o profissional que não toma as devidas precauções antes de realizar determinada ação. De maneira mais simplificada, a imprudência é atribuída ao médico que erra por agir sem pensar. Tanto a imperícia quanto a negligência são relacionadas a uma ação efetiva do médico. O mesmo não ocorre, porém, com o erro por negligência caracterizado principalmente por uma falta: “é quando o médico deixa de fazer o que deveria ser feito” (GOMES, 1999, p. 65). Essa modalidade de erro é a que ocorre com maior frequência nos sistemas públicos de saúde, relacionada inclusive a um aspecto de comportamento emocional do profissional, quando prevê a condenação pela insensibilidade do médico, conforme divulgação dos profissionais da área: A negligência, forma mais frequente de erro médico no serviço público, decorre do tratamento com descaso, do pouco interesse para com os deveres e compromissos éticos para com o paciente e a instituição. É a ausência de precaução ou a indiferença em relação ao ato realizado. O abandono ao doente, o abandono de plantão, o diagnóstico sem exame cuidadoso do paciente, a medicação por telefone e o esquecimento de corpos estranhos (gases, compressas e pinças) no corpo do paciente são exemplos relacionados com esta falha (CORREIA-LIMA, 2012).

Outros aspectos também devem ser considerados para a determinação do erro médico: o dano, a culpa, a responsabilidade do profissional e o nexo de causalidade. O prejuízo sofrido pela vítima, que pode ser de ordem moral ou


patrimonial, é judicialmente denominado como dano. A compreensão desse conceito é necessária no decorrer do processo judicial, pois por esse aspecto são tratadas as possíveis indenizações – quando no âmbito civil – ou as punições mais severas – quando na esfera penal. Na concepção de erro médico estabelecida pela própria classe, o profissional pode causar dano ao paciente sem ter a intenção de fazê-lo – o erro culposo –, ou ainda infringir alguma norma do Código de Ética Médica sem necessariamente causar dano ao paciente. Em todos os julgamentos realizados pelos conselhos de Medicina, a presunção de culpa é presente, o que leva o médico a ser punido apenas administrativamente. O mesmo não ocorre na esfera jurídica que trabalha também com a ideia de dolo. Nesse contexto, as próprias concepções de dano são tratadas de maneira diferente pelas duas esferas, como se observa: Não há, juridicamente, erro médico sem dano ou agravo à saúde de terceiro. A falta do dano, que é da essência e um dos pressupostos básicos do erro médico, descaracteriza o erro, inviabiliza o seu ressarcimento e desconfigura a responsabilidade civil. Se pode haver responsabilidade sem culpa lato sensu, não poderá haver responsabilidade sem dano. (CORREIA-LIMA. 2012, p. 21).

No entanto, a justiça prevê o risco das atividades médicas e compreende que alguns procedimentos podem gerar lesões aos pacientes, como amputações ou até o óbito, sem que necessariamente se configure um erro médico: Será caracterizado como erro profissional, ou erro técnico, aquele decorrente de um acidente imprevisível ou de resultado incontrolável, de curso inexorável, onde não existe a responsabilidade do profissional e que seria diferenciado, fundamentalmente, do erro culposo ou erro médico que envolve a culpa do profissional e que seria diferenciado, fundamentalmente, do erro culposo ou erro médico que envolve a culpa do profissional, ensejando a responsabilidade civil e a reparação. (CORREIA-LIMA. 2012, p. 22).

Os danos podem ser de ordem material ou de ordem moral. Na perspectiva da falha médica que causou prejuízos ao patrimônio da vítima, a justiça trata das indenizações tendo em vista o tempo em que a vítima ficou impossibilitada de trabalhar. Em linhas gerais, essa esfera judicial trata das perdas e danos sob a ótica do erro médico. A justiça prevê ainda a esfera dos danos morais, que longe de tratar das perdas de valores econômicos, lida com perdas emocionais, como prejuízos estéticos e outras privações decorrentes das lesões. As indenizações por dano moral possuem caráter educativo mais do que punitivo:


Em paralelo, convém lembrar que a responsabilidade civil não procura fazer esquecer o sofrimento, fato quase sempre impossível, mas apenas oferecer à vítima uma compensação, que pode ser pecuniária, e também uma satisfação moral (reparação simbólica, publicação da sentença, como exemplos), que seria mais adequada ao tipo de dano. Outrossim, apoia-se na função repressiva e preventiva da responsabilidade civil, traduzindo-se numa penalização que além de sanção ao responsável, serviria de exemplo à própria sociedade. (CORREIA-LIMA. 2012, p. 25).

Outro aspecto que deve ser explicado para compreensão da definição do erro médico é a perspectiva da culpa, onde estão previstas as atitudes de imperícia, negligência e imprudência. Quando existe a suspeita de que a ato do profissional que gerou dano foi intencional ou poderia ter sido evitado, a avaliação da responsabilidade médica segue os mesmos critérios de julgamento de um cidadão comum, um civil. Abaixo, apresenta-se a definição da responsabilidade do profissional da área da saúde, nas mais diferentes esferas: O paciente, vítima de erro médico, pode acionar o profissional diante de quatro esferas distintas e com regras procedimentais bem específicas: esfera civil, penal, administrativa e disciplinar. O erro médico, fundamentado no contrato entre o paciente e o médico, estaria adstrito à jurisdição civil, enquanto os atos ilícitos dolosos – como a omissão de socorro -, à jurisdição penal. A ação administrativa relaciona-se aos médicos ligados a hospitais que poderiam, em primeira instância, serem vítimas de processos administrativos em hospitais públicos e, por último, a instância disciplinar que diz respeito às infrações do Código de Ética Médica – de responsabilidade dos conselhos de medicina. (CORREIALIMA.2012, p. 37).

Depois de avaliados os tipos de infrações que levam ao dano, bem como os tipos de processo e investigações aos quais o médico pode ser submetido, é necessário explicitar a concepção de nexo de causalidade. Em outras palavras, trata-se de relacionar diretamente o dano sofrido pela vítima a uma atitude médica. Esse é o ponto que mais permite divergências entre as opiniões dos profissionais e das vítimas envolvidas no processo de apuração do erro médico. A confusão nesse aspecto pode ter relação com a visão divergente do médico em relação aos procedimentos, o que não condiz com outras opiniões e visões não relacionadas a especialistas. Existe a perspectiva do acidente imprevisível, os fatores que fogem ao controle humano.


Situação comum durante o processo de apuração do erro ocorre quando o médico afirma que realizou todos os procedimentos necessários para resguardar a vida ou o bem estar do paciente, mas é acusado pelas vítimas, familiares, associações de vítimas e até pela imprensa que consideram apenas os resultados. Em suma, para se caracterizar o erro é necessário relacionar o dano ao ato profissional, conforme a observação: O nexo de causalidade é a relação de causa e efeito entre a ação ou omissão do agente e o dano verificado. O erro deve ser a origem do dano. Esta relação entre o erro e o dano deve ser estabelecida. Não há que se observar a mera superveniência cronológica, mas sim um nexo lógico de causalidade. (CORREIA-LIMA.2012, p. 29)

Distante de uma definição única, o nexo de causalidade é compreendido por pelo menos três óticas pela Justiça. Conforme as definições de Correia-Lima, existem as teorias “da equivalência das condições causais”, “da causalidade adequada” e “da causa própria”. Mas para os objetivos deste trabalho, apenas a compreensão de que o nexo de causalidade segue a lógica da relação do dano em consequência da falha humana é suficiente e que as definições são variáveis também no meio jurídico: Não ocorre, na abordagem jurídica do erro médico, a adoção obrigatória de uma dessas teorias, mas consideram-se todos os fatores que podem ligar a ilicitude de conduta ao resultado produzido. Em muitos casos, só se poderá compor o fato típico se emergirem do laudo pericial as provas do nexo etiológico gerador do resultado. O erro médico, como crime culposo, não prescinde, pois, de nexo etiológico gerador de um resultado, ainda que a reprovação incida sobre a própria conduta. (CORREIA-LIMA. 2012, p, 30)

Fato é que para a definição do erro médico, é necessário se considerar também o nexo de causalidade, bem como a natureza do dano, a culpa e as esferas da responsabilidade médica, que podem ser éticas, administrativas ou jurídicas. 1.3.

O erro segundo os códigos jurídicos

Sob a perspectiva jurídica, Irany Novah Moraes define o erro dos profissionais de saúde como “a falha do médico no exercício da profissão” (MORAES, 1995 p.220). Em princípio, a definição simplista pode dar margem à interpretação errônea de que todo o médico que não consegue curar ou prevenir as doenças dos seus pacientes cometeu, em última análise, um erro. Mas a lei prevê também as


condições adversas existentes dentro da Medicina e que não estão simplesmente sob o poderio dos médicos – como os acidentes, por exemplo. Segundo informações de Irany Novah Moraes, para os conselhos de Medicina não existe erro médico intencional. A suspeita de que um profissional de saúde agiu de má-fé o extingue do julgamento apenas sob a esfera médica. Em casos de crimes contra a vida, como o aborto e a eutanásia, os médicos são investigados também na esfera criminal. As falhas mais brandas são julgadas com a presunção de ato infracional culposo, onde não há intenção de gerar danos. 1.3.1 As obrigações do médico perante a lei Se a definição jurídica de erro médico estabelece que as falhas ocorrem quando o profissional não cumpre com suas obrigações, faz-se necessário esclarecer quais são os deveres inerentes ao cumprimento da Medicina, ou seja, a responsabilidade

do médico, conforme explica Fernando Gomes Correia Lima

(2012, p.38): A obrigação médica é, em geral, de meio e não de resultado ou seja, implica no dever de prudência e diligência no exercício de sua arte, utilizando os melhores meios disponíveis para tentar a cura do paciente sem entretanto, prometer ou garantir o resultado esperado.

A problemática da obrigação do médico é tratada da mesma forma por Júlio Cézar Meirelles Gomes e Genival Veloso de Franco (1999, p. 146): Assim, admite-se, como regra geral, que a obrigação do médico é de meios porque o objeto do seu contrato é a própria assistência ao paciente, quando se compromete empregar todos os recursos ao seu alcance, sem no entanto poder garantir sempre um sucesso. Não poderá ser culpado se chegar-se a uma conclusão de que todo o empenho foi inútil face a inexorabilidade do caso, quando o profissional agiu de acordo com a “lei da arte”, ou seja, quando os meios empregados eram de uso habitual e sem contraindicações. Punir-se em tais circunstâncias, alegando-se obstinadamente uma “obrigação de resultado”, não seria apenas um exagero. Seria uma injustiça.

Dentro da perspectiva de “obrigação médica”, existem ainda alguns deveres que devem ser seguidos pelos profissionais: da informação, de atualização, de vigilância e abstenção de abuso. O médico tem o dever de informar ao paciente sobre o estado de saúde, sem exageros, para evitar o pessimismo ou o otimismo em relação ao quadro clínico do doente. Do mesmo modo, o profissional deve denunciar


as más condições de trabalho, a falta de infraestrutura aos órgãos competentes, bem como detalhar os procedimentos adotados no prontuário do paciente e sobretudo informar a outros médicos sobre o estado de saúde da vítima. Da mesma forma, o profissional da área da saúde é obrigado a manter-se atualizado sobre os temas de sua área de atuação e sobre os avanços da medicina. Gomes e Franco (1999) explicam que apenas o diploma universitário não é suficiente para a qualificação do médico. É necessário buscar novas formas de conhecimento e substituir conceitos antigos por novos sempre que necessário. Ainda segundo as normas que regem a medicina, cumpre com seu dever de vigilância o profissional que não é omisso. “O ato médico quando avaliado na sua integridade e licitude, deve estar isento de qualquer tipo de omissão que venha ser caracterizada por inércia, passividade ou descaso”. (GOMES & FRANÇA, 1999, p. 156). Em outras palavras, o médico não pode compactuar com erros de outros profissionais, tampouco pode deixar de prestar socorro aos pacientes por motivos torpes. O médico que não age com cautela fere o dever de abstenção de abuso, conforme explicam Gomes & França (1999, p. 159): Falta com o dever de abstenção de abuso o médico que opera pelo relógio, que dispensa a devida participação do anestesista ou que delega certas práticas médicas a pessoal técnico ou a estudantes de medicina, sem sua supervisão e instrução.

Tais normas servem como parâmetro para os conselhos de Medicina julgarem os erros dos profissionais na esfera médica.

1.3.2. O Julgamento A avaliação do erro médico tem início com um processo de sindicância, um levantamento de provas e testemunhas acerca da denúncia de infração ao Código de Ética Médica. A sindicância é aberta após uma denúncia que pode ser protocolada junto aos conselhos médicos tanto pela vítima, quanto por parentes ou até por outros profissionais da área da saúde. Após a sindicância, um relatório é elaborado e divulgado nos conselhos, no prazo de 60 dias. Esse período, no entanto, pode ser prolongado de acordo com uma necessidade prevista pelo presidente do conselho que rege os médicos.


Denúncias que não envolvem lesões corporais ou óbitos permitem uma audiência de conciliação, sessão esta que é realizada com a presença do denunciante, de um conselheiro e do médico investigado. Essas reuniões são previstas apenas em casos de inobservâncias médicas quanto às normas éticas que normatizam a conduta profissional. Qualquer infração ao código de ética gera dano ao paciente, mas os erros médicos propriamente ditos, caracterizados por imperícia, imprudência e negligência, geram prejuízos que não podem ser resolvidos em uma audiência de conciliação. Durante a audiência as partes envolvidas podem entrar em acordo. Neste caso, o médico se retrata com a vítima e a denúncia é arquivada. Quando não há acordo entre o denunciante e o médico, o processo segue, a partir da instauração de um processo ético-profissional. A partir da abertura desse tipo de processo, a denúncia não pode mais ser arquivada. O levantamento de testemunhas e provas continua nesse período, até que as testemunhas de defesa e acusação, bem como o denunciante e o médico são convocados para o julgamento. O número de conselheiros presentes durante o julgamento é variável. Todos são ouvidos e a sentença é anunciada na mesma reunião, como resultado da votação dos conselheiros do conselho regional de medicina. Após o anúncio da sentença, a parte que teve resultado desfavorável tem o prazo de 30 dias para recorrer da decisão. O pedido de revogação da sentença é enviado através de um documento para o Conselho Federal de Medicina, que passa então a avaliar o caso. As decisões dos conselhos de medicina variam desde a interdição cautelar, até a suspensão por 30 dias e a cassação do registro profissional e são publicadas no Diário Oficial do Estado, bem como em jornais de grande circulação. Após oito anos da punição, os médicos podem entrar com um processo de requerimento da reabilitação. O benefício, no entanto não atende médicos que tiveram seus registros cassados, a pena máxima prevista pelo código médico.

1.3.3 As esferas jurídicas do erro Os conselhos de medicina julgam os médicos na esfera disciplinar quanto a falhas de diagnóstico ou de conduta. Os erros de conduta acontecem quando os profissionais infringem as normas que regem a profissão, quando descumprem com o dever da informação, atualização, vigilância ou abstenção de abuso. Os erros de


diagnóstico, no entanto, tem relação com os exames clínicos realizados pelos médicos. Além do julgamento administrativo, os médicos que infringem o código que rege a profissão podem ser submetidos a processos na esfera civil, criminal e administrativa.

1.3.4 O âmbito civil O direito civil avalia os danos sofridos pela vítima, em consequência de uma falha médica, e determina ações para reparação ao dano. “A responsabilidade civil caracteriza-se pela infração de uma norma de natureza privada, obrigando o agente a reparar o dano ocasionado à vítima” (CORREIA-LIMA, 1999, p. 33). Entende-se por dano qualquer prejuízo causado ao paciente, seja de ordem moral ou patrimonial. Mas para caracterizar o dano, faz-se necessário comprovar a relação de causa com a ação do profissional de saúde, conforme distinguem Júlio Cézar Meirelles Gomes e Genival Veloso de França (1999, p. 25): Cabe diferenciar erro médico de acidente imprevisível e resultado incontrolável. Acidente imprevisível é o resultado lesivo, caso fortuito ou força maior, incapaz de ser previsto ou evitado, qualquer que seja o autor nas mesmas circunstâncias. Por outro lado, o resultado incontrolável é aquele decorrente de situação incontornável, de curso inexorável e próprio da evolução do caso, quando a ciência e a competência profissional não dispõe de solução, até o momento da ocorrência.

O erro médico no âmbito civil se distingue conceitualmente daquele verificado sob a esfera criminal. 1.3.5 O âmbito criminal O profissional pode ainda ser investigado sob as normas que regem o direito criminal. “A responsabilidade penal caracteriza-se pela infração a uma norma de direito público, lesando o interesse da sociedade e sujeitando o autor, a uma sanção do Estado” (CORREIA-LIMA, 2012, p. 33). O direito penal difere-se do civil pois não trata apenas da relação entre particulares, mas normatiza a relação entre o indivíduo e as regras sociais que regem à Nação. Nesse aspecto, são previstos principalmente os crimes que atentam contra a vida. Se tratado do campo da medicina podemos exemplificar com os casos de lesão corporal e homicídios. Vale ressaltar que os médicos investigados na área criminal podem responder judicialmente com a presunção de “dolo”, quando há


consciência do erro. Tal pressuposto representa um antagonismo quanto à visão disciplinar

dos

conselhos

de

Medicina:

“erro

doloso

é

aquele

cometido

voluntariamente, tratando-se, portanto de crime” (MORAES. 1995, p. 222). Partindo desse pressuposto, Moraes (1995) explica ainda que os conselhos avaliam a conduta dos médicos com presunção de culpa para todas as falhas: Todos os casos em que o médico foi condenado, seja pelos conselhos de medicina ou pela justiça, foram enquadrados como erro culposo. Este é o cometido por ação ou omissão e trata-se de uma violação ou inobservância de uma regra de conduta que produz lesão ou dano ao paciente. (MORAES, 1995, p.222)

Há ainda a avaliação dos casos sob a perspectiva administrativa.

1.3.6 O âmbito administrativo Por fim, os profissionais de saúde ligados a fundações públicas podem ser avaliados e punidos administrativamente. A responsabilidade administrativa trata da conduta médica do profissional enquanto servidor de um hospital público. Em suma, as infrações da conduta profissional previstas no código que normatiza e regulamenta a profissão levam ao erro. Nesse contexto, falha o médico que não divulga informações ao paciente ou a outros profissionais da área sobre o estado de saúde do mesmo. Da mesma forma, o médico que não renova os conhecimentos adquiridos durante a formação em unidade superior de ensino está sujeito ao erro. Os profissionais que se omitem em relação aos equívocos de outros, ou às más condições de trabalho, bem como o profissional que não é cauteloso.

1.3.7 A perícia jurídica Enquanto os conselhos de medicina julgam os profissionais sob as penalidades previstas no Código de Ética – sob a perspectiva de presunção de culpa e não de dolo –, na esfera judicial os médicos são tratados como qualquer cidadão, ou seja, sem regras específicas. Por meio das sentenças judiciais é que são determinas as indenizações às vítimas e possíveis condenações criminais aos acusados. Para avaliar o erro médico e anunciar a sentença, o juiz pode nomear um especialista de confiança, um profissional médico que não tenha ligações com o


Conselho de Medicina da região. Nesse contexto, a perícia médica existe para auxiliar os juízes a chegar à conclusão de um fato por meio dos resultados dos exames técnicos realizados por especialistas no assunto. Vale ressaltar que a presença do trabalho do perito durante o processo de apuração do erro médico junto à justiça, apesar de frequente, não é obrigatória. Apesar de sua importância ser reconhecida e incentivada por profissionais da área, o que se observa é que: O erro médico e a consequente responsabilidade civil do profissional de medicina traz dificuldades para a jurisdição, pois envolve aspectos realmente particulares, algumas vezes restritos a especialistas. Os operadores jurisdicionais e, de modo especial, os aplicadores do Direito, enfrentam dificuldades extraordinárias no tocante à verificação do erro médico. Para apreciar o comportamento médico, o Judiciário deveria, sempre, decidir com a prova pericial. (CORREIA-LIMA, 2012, p.16)

O laudo pericial pode ser solicitado pelo médico denunciado ou pela vítima. Nesse caso, o responsável pelo pedido deve arcar com as despesas do trabalho do perito. A perícia realizada a partir de uma suspeita de dano por erro médico obedece alguns critérios padrões e tem por objetivo avaliar os prejuízos sofridos pela vítima de uma maneira qualitativa e quantitativa. Os testes são realizados de acordo com a finalidade proposta pela Justiça e esses objetivos específicos decorrem da origem do dano, seja ele moral ou patrimonial. Os testes são realizados sob a perspectiva de um questionário-padrão que podem ser de natureza penal, civil ou administrativa. Conforme as definições de Júlio Cézar Meirelles Gomes e Genival Veloso de França (1999), tendo em vista as avaliações ligadas à esfera penal, avalia-se o corpo da vítima, o meio ou a ação que produziu o dano e ainda outros elementos secundários que configuram o prejuízo. Os exames que atendem a área criminal respondem aos critérios mencionados a seguir:

Resultou em incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 dias? Resultou em perigo de vida? Resultou em debilidade permanente de membro? Resultou em aceleração de parto? Resultou em incapacidade permanente para trabalho?


Resultou em enfermidade incurável? Resultou em perda ou inutilização do membro? Resultou em deformidade permanente? Resultou em aborto? (GOMES & FRANÇA, 1999)

Se a natureza do dano está na esfera civil, os testes são realizados de maneira a elucidar as seguintes questões:

Resultou em incapacidade temporária? Resultou em incapacidade permanente? Resultou em prejuízo estético? Resultou em prejuízo de afirmação pessoal? Resultou em “quantum doloris”? (GOMES & FRANÇA, 1999) Faz-se necessária a definição da última questão, o “quantum doloris”, conforme se lê: Durante o período de incapacidade temporária é importante que se determine o tempo da dor física resultante das lesões e de suas consequências, assim como o sofrimento moral traduzido pela angústia, ansiedade e abatimento, face o risco da morte, a expectativa dos resultados e os danos psicológicos ante as intervenções e o destino dos negócios da vítima. Esta avaliação é iminentemente subjetiva, mas pode ser motivo da apreciação pericial e ser quantificada em níveis pouco moderado, importante e muito importante. Ou ser calculado numa escala de valores que varia de 1 a 5. (GOMES & FRANÇA.1999, p, 166).

Para avaliação do erro na esfera administrativa, sob as perspectivas do Código de Ética Médica, os testes são realizados para avaliar desvios de conduta, tendo em vista:

Os deveres de informação; Os deveres de atualização; Os deveres de abstenção de abuso;


Os deveres de vigilância. Finalmente, como forma de sistematização, o diagrama abaixo – elaborado exclusivamente para as finalidades desta monografia – exemplifica de maneira didática como ocorre a definição de erro médico:

Figura 1 – Etapas de identificação de um erro médico

Denúncia

Determinação do nexo de causa, do ato médico

Apuração da responsabilidade na esfera administrativa (Conselhos)

Apuração da responsabilidade na esfera jurídica

Caracterização do erro: imperícia, negligência ou imprudência

(Fonte: Diagrama elaborado pela autora exclusivamente para as finalidades desta monografia)


2. A representação do erro médico na imprensa campograndense A

escolha

do

tema

“erro

médico”

não

é

aleatória.

Como justificado anteriormente, tal opção decorre de uma experiência pessoal e profissional da autora em um portal jornalístico online durante a cobertura de um caso dessa natureza. Todavia, embora o estímulo inicial tenha surgido de uma experiência de apuração jornalística para um veículo de internet, optou-se na realização desta monografia pela abordagem de casos de erro médico em jornais impressos. Tal seleção também não se deu de forma eventual, uma vez que possui relação com o próprio sistema de divulgação de irregularidades feita pelo Conselho Nacional de Medicina. De acordo com o artigo 43, parágrafo primeiro, do Código de Processo Ético Profissional dos Médicos: As penas públicas serão publicadas no Diário Oficial do Estado ou Distrito Federal, em jornal de grande circulação do local onde o médico exerce suas funções e nos jornais ou boletins dos Conselhos. (CÓDIGO DE PROCESSO ÉTICO PROFISSIONAL DOS PROFISSIONAIS DE MEDICINA, 2013, grifos nossos)

O propósito deste capítulo é apresentar o corpus da pesquisa. Com base nas técnicas de seleção da pesquisa quantitativa, construiu-se um recorte empírico a partir de matérias jornalísticas sobre denúncias de erros de profissionais da Medicina e as consequentes cassações de registros no âmbito de Mato Grosso do Sul. Na prática, recorreu-se às notícias sobre o assunto “erro médico” veiculadas entre janeiro de 2002 e março de 2013 nos jornais Correio do Estado e O Estado MS, veículos diários de maior circulação na capital sul-mato-grossense. A escolha do intervalo se justifica por uma questão técnica de disponibilidade dos acervos. Isto é, o primeiro parâmetro para a constituição do corpus comparativo diz respeito ao próprio período de circulação dos jornais. Nesse sentido, deve-se levar em consideração que o veículo O Estado MS foi fundado em 2002, cerca de cinco décadas após o lançamento do periódico Correio do Estado, datado de 1954. Além disso, as edições deste segundo publicadas até o final da década de 1990 ainda não estão digitalizadas, o que compromete a busca por meio de bancos de dados.


Do ponto de vista da captação de dados, ressalta-se que o arquivo digitalizado do Correio do Estado localiza-se disponível para consulta na sede da empresa. Dessa forma, para a realização da seleção das notícias foram elencadas palavras-chaves estratégicas. São elas: os nomes dos referidos médicos, os nomes das vítimas e os vocábulos e/ou expressões “negligência médica”, “erro médico”, “CRM-MS” e “cassação”. Por sua vez, a pesquisa realizada no jornal O Estado MS sustentou-se na consulta aos livros de arquivo das edições diárias publicadas desde a fundação do periódico, em dezembro de 2002 – compilações que estão distribuídas cronologicamente em diversos volumes anuais. Ao todo, foram consultados 59 livros. Por fim, como amparo teórico-metodológico, a análise descritiva das matérias sustenta-se na categorização realizada por Leon Sigal (1973) em seu estudo clássico sobre os procedimentos operacionais compartilhados pelos jornalistas no processo de captação das notícias. Somado a isso, inspira-se nas categorias de notícias aplicadas por Pamela Shoemaker e Akiba Cohen (2006) em estudo comparativo sobre o conteúdo noticioso em dez países de diferentes continentes.

2.1 Casos significativos Na prática, foram selecionados três casos específicos a partir das características trabalhadas no capítulo anterior e na repercussão midiática regional por eles recebida – a saber: o caso Rondon (Alberto Rondon, iniciado a partir de denúncia em 1999 e com repercussões a partir de 2002 com a cassação do registro profissional do médico e com a negação na justiça de um perdido de habeas corpus), o caso Alexandre de Souza (iniciado a partir de denúncia em 2008) e o caso Maksoud (César Roberto Maksoud Cabral, protagonizado a partir de 2006). Ocorrência de repercussão mais longínqua, o caso do cirurgião Alberto Rondon frequenta as páginas da mídia sul-mato-grossense desde o ano final da década de 1990. O médico foi acusado de negligência e imprudência médica pela mutilação de pacientes durante cirurgias plásticas. Como punição, teve o registro cassado pelo Conselho Regional (CRM) e pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) nos anos 2001 e 2002, respectivamente. Rondon ainda foi investigado nas esferas cível e criminal, condenado posteriormente a cumprir pena em regime fechado e a indenizar as vítimas. Portanto, embora o caso já estivesse em andamento no período que antecede o corpus da pesquisa, a análise não se prende


à denúncia contra o médico, mas debruça-se sobre um processo que já estava em curso no âmbito judicial. Assim como Rondon, o médico Alexandre de Souza foi acusado pela justiça de mutilar mulheres durante cirurgias plásticas em 2008. O cirurgião também foi responsabilizado pela morte de uma mulher de 24 anos após um procedimento de lipoaspiração – ocorridos que receberam atenção da imprensa regional. Finalmente, em fevereiro de 2006 ganhou proeminência o caso de César Roberto Maksoud Cabral. A ocorrência recebeu destaque midiático quando um programa televisivo de abrangência nacional denunciou a venda de falsos tratamentos com células-tronco que supostamente seria feita pelo médico registrado em Mato Grosso do Sul. A denúncia repercutiu pelos jornais campo-grandenses e, apesar de não se configurar propriamente imperícia, imprudência ou negligência nos moldes estritos da definição trabalhada no primeiro capítulo, também servirá como material de análise para o presente estudo. A escolha se justifica pela configuração de um delito de ordem ética e pela diferença nos resultados dos julgamentos nas diferentes instâncias dos conselhos profissionais – isto é, Maksoud foi condenado pelo Conselho Regional, mas posteriormente absolvido pelo Conselho Federal de Medicina. Pretende-se, assim, analisar a maneira como a imprensa acompanhou o desenvolvimento do caso. Entretanto, antes de uma análise mais aprofundada na questão das divergências e das similaridades entre os parâmetros ideais e as características reais das referidas coberturas noticiosas – aspecto que pautará o debate do próximo capítulo – volta-se agora a um levantamento eminentemente descritivo do corpus de estudo.

2.2 Como ocorre a cobertura: análise descritiva A análise propriamente dita dos casos de erro médico na imprensa campograndense apresenta como base 46 textos a respeito dos três casos mencionados – entre matérias, notas e chamadas de capa – publicados entre 2002 e 2013 nos dois periódicos.

Inicialmente,

todos

os

itens

noticiosos

serão

organizados

cronologicamente e classificados de acordo com suas posições hierárquicas nos mesmos parâmetros metodológicos trabalhados por Shoemaker & Cohen (2006): a) a distinção entre “capa”, “primeira página de caderno” ou “demais páginas internas”; e b) a distinção entre a “fração superior” e a “fração inferior” da página.


Além disso, na medida do possível, serão também adaptadas algumas das categorias elaboradas por Leon Sigal (1973) para os canais de informação e para as fontes de apuração. Por canais de informação, podem-se entender os meios pelos quais as informações chegam até os jornalistas, a saber: canais de rotina (trâmites oficiais de processos, leis e informações públicas; boletins de ocorrência, pressreleases; conferências de imprensa; cerimônias e outros eventos programados), canais informais (vazamentos de informação em off; denúncias; trâmites não-oficiais de informações; relatórios e dossiês não-oficiais) e canais da própria empresa jornalística (entrevistas exclusivas; furos jornalísticos a partir de acontecimentos nãoplanejados; pesquisas e análises dos próprios jornalistas). Por seu turno, considerase na classificação das fontes de apuração as seguintes categorias: fontes oficiais, fontes não-oficiais e fontes especializadas (SIGAL, 1973). No contexto desta monografia, entende-se como fontes oficiais a Associação de Vítimas de Erros Médicos, o Conselho Regional de Medicina (CRM), o Conselho Federal de Medicina (CFM) e os representantes de órgãos estatais (incluindo policiais e membros do Judiciário). Já por fontes não-oficiais são compreendidos os próprios envolvidos: os médicos, as vítimas, as famílias e os advogados das vítima, as famílias e os advogados dos médicos, entre outros.

2.2.1 Caso Rondon A primeira ocorrência sobre o médico Alberto Rondon no jornal Correio do Estado dentro do período analisado data de 8 de maio de 2002. A capa do jornal traz uma chamada na metade inferior da página onde se lê “Justiça nega liberdade a Alberto Rondon”, precedida de uma nota explicativa redigida com extensão de sete linhas. Na página 12-A do caderno geral, o jornal publica uma nota sobre a decisão do Tribunal de Justiça a respeito da negação do pedido de Habeas Corpus do cirurgião, informação que foi anunciada na capa sob o título: “TJ nega liberdade ao médico Rondon”. A matéria situa-se na metade inferior da página, redigida em duas colunas com 16 linhas. Não há imagens para ilustrar a notícia e não são utilizados recursos de boxes ou intertítulos. Infere-se pela leitura do texto que o jornalista baseou-se em informações oficiais de um documento publicado pelo Tribunal de Justiça e entrevistou ainda o advogado da vítima. Já na quinta-feira, 30 de maio de 2002, a notícia aparece localizada na metade superior do jornal com a chamada “Conselho Federal cassa registro do


médico Rondon”. Dessa vez, o jornal optou pelo recurso da fotografia, exibindo o médico com documento em mãos, com legenda: “Alberto Rondon foi denunciado em 1995 por ter mutilado vários pacientes em cirurgias plásticas”. As informações estão dispostas em cinco colunas e 57 linhas. Nova decisão sobre o caso leva o Correio do Estado a publicar no dia 19 de novembro de 2002 um texto sob o título “Juiz defere no caso Rondon”. Para divulgação da notícia foram utilizadas três colunas e 35 linhas do jornal. Situada na metade inferior da página, o texto foi elaborado sem imagens. Aparentemente os personagens envolvidos na matéria não foram ouvidos, pois não há aspas para os entrevistados. Infere-se portanto que a notícia foi elaborada com base na observação direta do jornalista durante uma reunião. Outras implicações dobre a decisão judicial são repercutidas no dia 20 de novembro do mesmo ano, quando na página 13 do caderno geral é possível se ler: “CRM pode ter que indenizar vítimas do caso Rondon”. A publicação encontra-se em três colunas e 104 linhas, na metade superior da página. Não há ilustração relacionada à informação, mas o comentário de um procurador do Ministério Público Federal recebe destaque por meio de uma janela1, onde se lê: “Queremos que o CRM responda termo jurídico solidariamente como o médico. Sendo os dois responsabilizados”. A última notícia relacionada ao médico Rondon naquele ano é publicada na metade inferior da página 16 do Caderno Geral. Com o título “Vítimas de Rondon fazem protesto para conseguir cirurgia”, o Correio do Estado informa sobre um mutirão realizado para correção dos danos causados pelo médico durante as cirurgias plásticas. Cinco colunas do jornal são destinadas a publicação desta notícia, duas para imagem e as demais para o texto propriamente dito. A fotografia mostra os profissionais responsáveis pelas cirurgias com a legenda “Médicos da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica estão na capital para operar vítimas de Rondon”. Duas vítimas da imperícia de Rondon foram entrevistadas para elaboração da notícia, bem como o coordenador do projeto, a presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica e o secretário de Saúde de Mato Grosso do Sul. Em 7 de julho de 2003, o Correio do Estado destina outra página com informações sobre Rondon. Na metade superior da página pode se ler:

1

Termo técnico para frase em destaque no interior do conteúdo jornalístico.


“Corporativismo impede punição a erros médicos”. A informação ocupa quatro colunas e 99 linhas do jornal e divide o espaço com uma fotografia de uma das vítimas, com a legenda: “O médico tratou José de Almeida, 68 anos, como se tivesse uma ferida na perna, quando, na verdade tinha câncer”. As fontes consultadas para elaboração da notícia foram o presidente da Associação de Vítimas de Erros Médicos de Mato Grosso do Sul e o presidente do Conselho Regional de Medicina. Ainda na página 13 do caderno geral, o Correio do Estado publica: “Só 48% das denúncias viram processo”, uma notícia redigida também em quatro colunas, mas com 78 linhas. Outra foto esta relacionada à informação do advogado que representa o CRM-MS, com a legenda: “O assessor do CRM, André Borges, afirma que 33% das punições são confidenciais”. Como esperado, a fonte utilizada para redação da notícia é o assessor do conselho de medicina. Por fim, na metade inferior do jornal é possível ler: “Comerciário teve de amputar a perna”, uma nota de quatro colunas e 73 linhas, mas sem o recurso da fotografia. A notícia foi redigida a partir do relato de duas vítimas e do filho de uma delas. Infere-se também que o jornalista responsável consultou o Código de Ética Médica.

O caso Rondon só retorna às páginas do jornal no final daquele ano, quando no dia 21 de novembro o Correio do Estado publica na oitava página do caderno Geral: “Tribunal de Justiça mantém condenação do médico Rondon”. A nota de seis colunas e 50 linhas foi posicionada na metade inferior da página. A notícia não contou com o apoio de recursos gráficos. Parte das informações publicadas foram obtidas por meio de assessoria de imprensa e o advogado do médico também foi entrevistado. Como dito anteriormente, o levantamento do Correio do Estado é realizado por meio de busca por palavras-chaves em arquivo digital. Além das notícias já mencionadas, a pesquisa apresentou a metade inferior da capa do Caderno B do dia 29 de Março de 2007, onde se lê: “Jornalista conta o caso Rondon em livro”. Com uma breve apresentação de abertura, o jornal convida para o lançamento da obra. Outra nota que cita o cirurgião, mas não se trata exatamente do caso, foi divulgada no dia 31 de maio de 2008. A matéria aborda a cassação do registro médico de uma profissional campo-grandense que realizava abortos e cita outras ocorrências de cassação no Mato Grosso do Sul, dentre elas a do médico Rondon. A nota é


redigida em seis colunas e 98 linhas, sem o recurso de imagens. No dia 23 de setembro de 2009, o caso volta a ocupar as páginas do Correio do Estado. Sob título “Polícia Federal prende Rondon em Bonito”, apresenta-se uma notícia de seis colunas e 134 linhas, sem auxílio de fotos, mas com recursos dos intertítulos: “Justiça”, “Defesa” e “Crimes”. Por meio da leitura da nota, infere-se que as fontes utilizadas foram o advogado da vítima, bem como a Polícia Federal, mas não fica evidenciado qual fonte da instituição foi entrevistada. No dia 24 de setembro de 2009 outra informação é publicada: “Defesa diz que Rondon não estava foragido”. A nota está localizada na metade superior da página 12 do caderno Cidades, redigida em seis colunas e 81 linhas, sem o recurso de imagens. O advogado do médico foi a única fonte consultada para elaboração da notícia. No dia 26 de setembro de 2009, o jornal dá continuidade ao assunto abordado dois dias antes e traz a notícia: “Delegado diz por que PC não deteve Rondon”. Desta vez, a nota foi redigida em duas colunas e 61 linhas, posicionada na metade inferior da página 10 do caderno que trata sobre os assuntos locais. Em 28 de outubro de 2009, o jornal publica: “Rondon consegue licença para sair da CPA e fazer tratamento de saúde”. Redigido em três colunas e 46 linhas, não conta com o apoio de recursos gráficos e utiliza como fonte o advogado do médico cassado. A única nota sobre Rondon divulgada pelo Correio do Estado em 2010 data de 13 de janeiro: “Justiça concede prisão domiciliar para Rondon”. As informações foram organizadas em apenas uma coluna do jornal, com 30 linhas e sem recursos gráficos. A fonte consultada pelo jornalista responsável pela notícia mais uma vez foi o advogado do médico. Já em 2011, no dia 11 de maio, a capa do jornal traz a chamada “Por mutilar 11 mulheres, Rondon pega 42 anos de prisão”, além de uma nota que remete ao título redigida em nove linhas, correspondentes ao lead jornalístico. Já na página 13 do caderno Cidades do mesmo dia, é possível ler: “Rondon é condenado a 42 anos de prisão”. A informação se localiza na metade superior da página e encontra-se distribuída em seis colunas e 74 linhas. Não fica explicito quais fontes foram entrevistadas para a elaboração da notícia. Infere-se, então, que o jornalista consultou notas de assessoria de imprensa.

Apesar

de

destacar-se

na

primeira página do Correio do Estado por duas vezes, o caso Rondon não ocupou


as capas de caderno do periódico sequer uma vez. Existe apenas uma menção ao nome do médico na capa da editoria de cidades no dia 31de maio de 2008, mas a notícia trata da cassação de registro de outro profissional. As últimas informações sobre Alberto Rondon no Correio do Estado são as do ano de 2012, quando no dia 31 de julho o jornal publica: “TRF manda Rondon indenizar 175 vítimas das cirurgias em MS”. A notícia localiza-se na metade inferior da página 9 do caderno Correio +, redigida em três colunas e 80 linhas. Outra parte do espaço da cobertura é destinada a um box do tipo “saiba mais”. Uma nota divulgada pelo Tribunal Regional Federal serve como base para elaboração da notícia, bem como as informações do advogado do médico Alberto Rondon. Por fim, a notícia que encerra o período analisado é publicada no dia 21 de agosto daquele ano, onde se lê: “Conselho pune médico com censura pública”, uma informação que não trata de Rondon, mas o cita como exemplo de médico que teve o registro profissional cassado. As notícias estão dispostas em duas colunas e 94 linhas, localizadas na metade inferior da página 15 do caderno Cidades. Neste contexto, observa-se que entre os anos de 2002 e 2013, o Correio do Estado publicou dez notícias sobre o caso Rondon e citou o médico em outras duas notas. Como já mencionado, a inauguração do jornal O Estado MS deu-se em dezembro de 2002, três anos após as primeira denúncias do caso Rondon. A primeira notícia sobre o caso é publicada já no dia 7 do referido mês, sob o título “Vítimas de Alberto Rondon foram operadas ontem”, localizada na página 7 do caderno de cidades, além de uma menção na capa do jornal. A nota ocupa cinco colunas – sendo três dessas destinadas a uma fotografia – e 79 linhas. Para elaboração do texto, apenas uma fonte foi consultada: o presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. A notícia ocupa um espaço privilegiado na página: a metade superior. O Estado MS não fez mais menções ao médico naquele mês. A capa do jornal do dia 23 de setembro de 2009 estampa a informação: “Alberto Rondon é preso em Bonito”, com uma nota explicativa redigida em duas colunas e 34 linhas. O texto apresenta a informação que será abordada em detalhes na página 13 do caderno Cidades. A Polícia Federal foi consultada para a elaboração da notícia. A menção está localizada na parte superior da página e o espaço destinado à notícia propriamente dita é de cinco colunas e 109 linhas relatando a prisão de Alberto Rondon.


Em 25 de setembro de 2009, O Estado informa que “Ministério Público Federal procura vítimas de Rondon”. A notícia encontra-se na página 12 do caderno Cidades, distribuída em quatro colunas e 96 linhas. O texto é baseado em uma nota oficial do Ministério Público. No dia 12 de agosto de 2010, Alberto Rondon é novamente citado na capa da editora Cidades. A matéria trata do erro de outro cirurgião. Para relembrar o caso, o jornal destina duas colunas ao assunto. O advogado do médico cassado foi a fonte da notícia. No dia 11 de maio de 2011, O Estado MS divulga a punição do médico em uma nota de uma coluna e 38 linhas situada na metade inferior do caderno Cidades. Não há recuso de fotografias ou chamada de capa. A matéria explica a sentença anunciada em uma audiência judicial. Lê-se: “Falso cirurgião plástico é condenado a 42 anos de prisão”. Em 12 de Julho de 2011 encontra-se uma nota na metade inferior do caderno Cidades do jornal: “Mais vítimas do ex-médico Rondon são ouvidas na justiça”. Organizada em duas colunas e 36 linhas, a nota foi redigida com base na observação direta do repórter durante uma audiência realizada em um Fórum da cidade. A fonte escolhida pelo jornalista para elaboração do texto é uma das vítimas que estava no local. O Estado MS traz ainda no dia 30 de novembro de 2011 uma reportagem com o título “À espera de perícia, ex-paciente de Rondon acredita na justiça”. A matéria de quatro colunas e 98 linhas se destaca na metade superior do jornal e apresenta uma foto da vítima, que serviu como fonte para a elaboração da notícia. Na metade inferior da página observa-se uma nota de três colunas e 39 linhas ligada ao tema. Sob o título “Depressão e problemas de saúde garantem decisão de prisão domiciliar do médico”, o texto é redigido com base em informações do advogado de Rondon. Em 31 de julho de 2012, O Estado MS publica a seguinte chamada: “Rondon e CRM condenados a pagar indenização a 175 mulheres”. O texto é seguido por um lead redigido em dez linhas. A notícia anunciada na capa do jornal encontra-se na metade superior da página B7 de Cidades. Para explicar o tema ao leitor, foram utilizadas cinco colunas e 169 linhas, separadas também por meio de um intertítulo: “Réu agiu com imperícia, diz Procuradoria Regional da República”. O texto conta ainda com a uma imagem fotográfica de uma vítima.


2.2.2 Caso Maksoud Sete anos após as primeiras denúncias contra Alberto Rondon, a imprensa volta-se para os indícios de que um médico campo-grandense estaria vendendo tratamentos falsos com células-tronco em pó. A infração de Cézar Roberto Maksoud Cabral é exibida por um programa televisivo em 2006, mas somente é repercutida nos jornais da cidade dois anos depois. Em 12 de julho de 2008, O Estado MS publica a chamada “Conselho dá parecer a favor do médico Cézar Maksoud”. Sobre o tema, o Correio do Estado publica duas notas, nenhuma delas com destaque ou chamada na principal página do jornal. A primeira notícia foi divulgada na página 6 do caderno Geral, de 17 de março de 2007, com o título “CRM cassa registro de médico que vendia células-troco em pó”. A notícia encontra-se estruturada em três colunas e 80 linhas. Uma imagem do médico aparece ao lado do texto com a legenda “Cézar Maksoud teve registo cassado por unanimidade em julgamento realizado anteontem à noite”. Para elaboração da notícia foi entrevistado o advogado de defesa do médico, bem como utilizados dados divulgados pela assessoria jurídica do Conselho Regional de Medicina. Infere-se que o jornal teve acesso a informações oficiais do CRM-MS. O caso só retoma as páginas do mencionado jornal em 12 de julho de 2008, quando na página 12 do caderno Cidades lê-se: “CFM suspende cassação de César Maksoud”. A estrutura da notícia assemelha-se daquela outrora utilizada para divulgação da primeira informação. Dessa vez, são utilizadas quatro colunas e 58 linhas. Uma nova imagem do médico aparece para ilustrar a informação com a legenda: “Maksoud foi suspenso por oferecer tratamentos com células-tronco”. As informações divulgadas nesse texto tiveram como origem uma nota oficial divulgada pelo CFM. Também foram ouvidos os advogados de defesa do médico, bem como o presidente do Conselho Regional de Medicina.

Em O Estado MS o caso recebe uma atenção maior no período analisado. Ao todo foram contabilizadas quatro notas sobre o tema. A maioria delas publicadas em março de 2007. No dia 3, a notícia aparece na metade superior da página 5 do caderno Cidades com o título “Médico será julgado pelo CRM no dia 15”. As informações foram organizadas em cinco colunas e 119 linhas, contando com o apoio gráfico de uma fotografia do médico. Três fontes foram consultados para


elaboração da nota: o presidente do Conselho, uma das vítimas envolvidas no processo e o advogado do médico. Treze dias depois, O Estado MS traz uma nova nota sobre o médico com o título “CRM julga suspeitos de vender falsos remédios”. O texto é redigido em 40 linhas e duas colunas e trata do tema com base em informações do Conselho e dos advogados de defesa de Maksoud. O jornal volta a divulgar novidades sobre o caso no dia 17, quando se lê: “Conselho cassa diploma de médico”. A informação foi divulgada na página 15 do caderno Cidades, localizada na metade superior da página. Sobre o espaço ocupado pela nota, observa-se 6 colunas, sendo duas delas destinadas a imagem do advogado e as outras ao texto propriamente dito, totalizando 12 linhas. Foram mencionados como fontes: o advogado do médico, uma das vítimas e o presidente do Conselho Regional de Medicina, André Borges Neto.

Em 12 de julho de 2008,

O Estado MS publica na capa o texto “Conselho dá parecer a favor do médico César Maksoud”, assunto que será descrito com mais detalhes na página B6 do caderno Cidades. A informação encontra-se na metade superior da folha sob o título “Conselho atenua pena de Maksoud”. A matéria foi estruturada em cinco colunas e 150 linhas. Um dos canais de informação utilizados pela elaboração da notícia foi a assessoria de imprensa do Conselho Federal de Medicina. O advogado do médico e uma das vítimas também foram consultados.

2.2.3 Caso Alexsandro de Souza Em 2010, outro caso semelhante ao do médico Alberto Rondon recebe atenção da mídia: o cirurgião Alexsandro de Souza é acusado de realizar procedimentos estéticos sem a devida especialidade e é suspeito de mutilar mulheres em Mato Grosso do Sul. No dia 12 de abril, o Correio do Estado anuncia na primeira página: “Médico é denunciado por morte depois de lipoaspiração”, nota redigida em duas colunas e 17 linhas. O texto é uma forma de chamar a atenção do leitor para a notícia que encontra-se na página 13-A do caderno Cidades: “Médico vai responder por homicídio culposo”. As informações foram dispostas em seis colunas e 70 linhas. As fontes consultadas para a elaboração da nota são: um advogado ligado à Associação de Vítimas de Erro Médico e duas vítimas do médico.


Um dia após a divulgação da primeira notícia, o jornal retoma o caso com o título “Julgamento de médico pode ser sexta-feira”. Dessa vez, as informações aparecem dispostas em quatro colunas e 89 linhas na metade superior da página 10 do caderno de cidades. O consultor jurídico do CRM foi consultado durante a elaboração da notícia, bem como o promotor de justiça responsável pelo caso. Já em agosto, um mês após as primeira delações contra Alexandro de Souza, o Conselho Regional de Medicina decide tornar público a interdição do profissional, proibindo-o de atuar na área. O tema repercute mais uma vez no periódico que traz como manchete do dia 12 de agosto: “Cirurgião plástico é acusado de mutilar mais de cem mulheres”. Ainda na primeira página, o jornal apresenta uma nota explicativa de 31 linhas.

A continuidade da informação, se dá na página 12 do caderno

Cidades sob o título “Médico acusado de mutilar 100 mulheres ignora punição”. O texto foi organizado em seis colunas e 141 linhas, com informações do assessor jurídico do CRM, do presidente da Associação de vítimas de erro médico e duas vítimas do médico cassado. A notícia apresenta ainda a fotografia de uma mulher que teve sequelas após passar por uma cirurgia plástica feita por Alexsandro de Souza, cuja legenda da imagem diz: “Mulher de 50 anos ficou com várias sequelas depois de operação”. No dia 13 de agosto, o tema ocupa metade da página 11 do caderno Cidades, dividindo espaço apenas com uma publicidade. Na parte superior da página se lê: “Médico recorre à justiça para tentar voltar ao trabalho”. Em três colunas e 95 linhas, o jornalista apresenta a informação do advogado de Alexsandro de Souza sobre o caso. Outra nota aparece na parte inferior do jornal, sob o título “Cirurgião cobrava preços inferiores”. Apenas uma coluna da página foi utilizada e o texto é composto de 54 linhas. Uma imagem também é utilizada para composição da notícia, que conta com informações da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, do presidente do CRM e do relator de uma das vítimas. Em 14 de agosto, o tema é abordado mais uma vez na editoria Cidades do Correio do Estado. Na metade inferior da capa do caderno é possível ler: “Advogado de médico diz que sequelas aconteceram no pós-operatório”. A notícia foi estruturada em seis colunas e 69 linhas. Como o próprio título sugere, a fonte para elaboração da notícia é o advogado do médico. Em 20 de Março de 2012, o destaque para o caso se deve à cassação do registro profissional de Alexandro de Souza. A informação aparece na capa da


editoria do caderno Cidades sob o título “CRM cassa diploma de médico que mutila mulheres em MS”. O texto está localizado na metade inferior da página, estruturado em três colunas e 76 linhas. Infere-se que o jornalista consultou uma nota oficial do CRM e também entrevistou o presidente da Associação de Vítimas de Erros Médicos. Por fim, o Correio do Estado traz no dia 21 de março de 2013 a informação: “Médico que mutilou mulheres é proibido de exercer profissão”. A nota aparece estruturada em quatro colunas e 69 linhas sem o recurso de imagem. A informação teve como origem um edital divulgado pelo CRM. As fontes consultadas foram o assessor jurídico do Conselho e o presidente da Associação de Vítimas de Erros Médicos. Não foi utilizada nenhuma fotografia ou recurso gráfico na elaboração da notícia. Após a pesquisa no jornal Correio do Estado, foi realizado um levantamento similar de notícias no veículo O Estado MS. Como base de seleção, recorreu-se aos mesmos períodos de publicação do jornal concorrente.

A pesquisa retornou dois

textos publicados em março de 2007. No dia 20 de março, o periódico estampa em sua capa a seguinte informação: “Conselho cassa diploma de cirurgião plástico acusado de mutilar mulheres”. Sob o título há uma nota de 16 linhas, organizada em duas colunas em que o jornal apresenta o lead da matéria. Os detalhes da informação anunciada na primeira página do jornal daquele dia são encontrados na única notícia da capa do caderno Cidades: “Cassado cirurgião plástico que mutilou mulheres em MS”. Localizada na metade superior da página, a nota estrutura-se em quatro colunas e 98 linhas, sem o auxílio de imagens ou gráficos. A assessoria de imprensa do CRM foi o principal canal de informação adotado pelo jornalista que assinou a matéria e não há aspas específicas de entrevistados. Como forma de sistematizar a análise, os textos selecionados nos periódicos foram tabelados em ordem cronológica e dispostos nos quadros a seguir: Tabela 1 – Referências aos casos Rondon, Maksoud e Alexsandro de Souza no jornal Correio do Estado entre 2002 e 2013 Data 8 de maio de 2002 8 de maio de 2002

Título da Matéria Página Justiça nega liberdade a Capa Alberto Rondon TJ nega liberdade ao 12A – Cidades médico Rondon

Caso Alberto Rondon Alberto Rondon


30 de maio de 2002

19 de novembro de 2002 20 de novembro de 2002 7 de dezembro de 2002 7 de julho de 2003 7 de julho de 2003 7 de julho de 2003 21 de novembro de 2003 29 de março 2007 23 de setembro 2009 24 de setembro 2009 26 de setembro 2009 28 de outubro 2009

de de de de de

13 de janeiro de 2010 11 de maio de 2011

11 de maio de 2011 31 de julho de 2012

21 de agosto de 2012 12 de abril de 2010

12 de abril de 2010

Conselho Federal cassa registro do médico Rondon Juiz defere no caso Rondon CRM pode ter que indenizar vítimas do caso Rondon Vítimas de Rondon fazem protesto para conseguir cirurgia Corporativismo impede punição a erros médicos Só 48% das denúncias viram protesto Comerciário teve de amputar a perna Tribunal de justiça mantem condenação do médico Rondon Jornalista conta o caso Rondon em livro Polícia Federal prende Rondon em Bonito Defesa diz que Rondon não estava foragido Delegado diz por que PC não deteve Rondon Rondon consegue licença para sair da CPA e fazer tratamento de saúde Justiça concede prisão domiciliar para Rondon Por mutilar 11 mulheres, Rondon pega 42 anos de prisão Rondon é condenado a 42 anos de prisão TRF manda Rondon indenizar 175 vítimas das cirurgias em MS Conselho pune médico com censura pública Médico é denunciado por morte depois de lipoaspiração Médico vai responder por homicídio culposo

12A – Geral

Alberto Rondon

12A – Geral

Alberto Rondon Alberto Rondon

13A – Geral 16 – Geral

Alberto Rondon

13 – Geral

Alberto Rondon Alberto Rondon Alberto Rondon Alberto Rondon

13 – Geral 13 – Geral 8 – Geral Capa – Caderno B 10 – Cidades 12 – Cidades 10 – Cidades 12A - Cidades

11A – Cidades Capa 13 – Cidades 9 – Correio + 15 – Cidades Capa 13A – Cidades

Alberto Rondon Alberto Rondon Alberto Rondon Alberto Rondon Alberto Rondon

Alberto Rondon Alberto Rondon Alberto Rondon Alberto Rondon Alberto Rondon Alexsandro de Souza Alexsandro de Souza


13 de abril de 2010 12 de agosto de 2010 12 de agosto de 2010 13 de agosto de 2010 14 de agosto 2010

20 de março 2012

de

21 de março 2013

de

17 de março 2007

de

12 de junho de 2008

Julgamento de médico pode ser sexta-feira Cirurgião plástico é acusado de mutilar mais de 100 mulheres Cirurgião plástico é acusado de mutilar mais de 100 mulheres Médico recorre à justiça para tentar voltar ao trabalho Advogado de médico diz que sequelas aconteceram no pósoperatório CRM cassa diploma de médico que mutilou mulheres em MS Médico que mutilou mulheres é proibido de exercer profissão CRM cassa registro de médico que vendia célula-tronco em pó CFM suspende cassação de César Maksoud

10 – Cidades

Alexsandro de Souza Alexsandro de Souza

Capa 12A – Cidades

Alexsandro de Souza

11A – Cidades

Alexsandro de Souza

Capa Cidades

– Alexsandro de Souza

Capa Cidades

– Alexsandro de Souza

15 – Cidades

Alexsandro de Souza

6A – Geral

César Maksoud

12A – Cidades

César Maksoud

Tabela 2 – Referências aos casos Rondon, Maksoud e Alexsandro de Souza no jornal O Estado MS entre 2002 e 2013 Data Título da Matéria 7 de dezembro de Vítimas de Alberto 2002 Rondon foram operadas ontem 23 de setembro de Alberto Rondon é preso 2009 em Bonito 23 de setembro Rondon é preso após 5 anos foragido 25 de setembro de Ministério Público 2009 procura vítimas de Rondon 11 de maio de 2011 Falso cirurgião plástico é condenado a 42 anos prisão 12 de julho de 2011 Mais vítimas do exmédico Rondon são ouvidas na justiça 30 de novembro de “À espera de perícia,

Página 7 – Cidades

Caso Alberto Rondon

Capa

Alberto Rondon Alberto Rondon Alberto Rondon

Capa 12A Cidades

B4 – Cidades

Alberto Rondon

Alberto Rondon

B7 – Cidades

Alberto

12A Cidades


2011

ex-paciente de Rondon acredita na justiça” 31 de julho de 2012 Rondon e CRM são condenados a pagar indenização a 175 mulheres 31 de julho de 2012 Tribunal condena Alberto Rondon e Conselho a indenizar 175 vítimas de erro em cirurgia 20 de março de Conselho cassa diploma 2007 de cirurgião plástico acusado de mutilar mulheres 20 de março de Cassado cirurgião 2007 plástico que mutilou mulheres em MS 3 de março de 2007 Médico será julgado pelo CRM no dia 15 16 de março de CRM julga suspeitos de 2007 vender falsos remédios 17 de março de Conselho cassa diploma 2007 de médico 12 de julho de 2008 Conselho atenua pena de Maksoud

Rondon Capa

Alberto Rondon

B7 – Cidades

Alberto Rondon

Capa

Capa Cidades

Alexsandro de Souza –

5 – Cidades 5 – Brasil / Cidades 15 – Cidades B6 – Cidades

Alexsandro de Souza César Maksoud César Maksoud César Maksoud César Maksoud


3. Parâmetros existentes versus parâmetros normativos Este capítulo volta-se à análise interpretativa propriamente dita da cobertura da imprensa campo-grandense de casos de erros médicos. Para tanto, serão combinadas duas perspectivas analíticas – uma visão crítica sobre o tratamento noticioso dado aos casos selecionados (Capítulo 2) e uma visão normativa que propicie parâmetros considerados ideais para essa modalidade de cobertura a partir do conceito de erro médico nas esferas ético-profissional e jurídica (Capítulo 1). Esboça-se aqui possíveis respostas a questionamentos incitados na introdução da monografia, notadamente: 1) a preparação do jornalista profissional para a abordagem de temas com os quais não está familiarizado; 2) as diferentes noções de “tempo” nas perspectivas profissionais jurídica e jornalística; e 3) as similaridades e distanciamentos entre os critérios de noticiabilidade e os critérios jurídicos para avaliação de um caso erro médico. Sem a intenção de realizar juízos prévios e reducionistas – sejam eles positivos ou negativos –, será também apresentada uma reflexão a respeito da própria natureza da prática noticiosa diária: são os profissionais jornalistas responsáveis por mero sensacionalismo ou desinformação nesse tipo de abordagem – como não raramente são julgados pelo crivo crítico dos profissionais de saúde? Ou, por outro lado, eles também consistem em vítimas de uma formação descontextualizada e de rotinas profissionais que estão cada vez mais prezas ao imediatismo da informação em detrimento da apuração em profundidade. Sabe-se desde já que não existe resposta possível para esse questionamento se considerado um cenário dicotômico. Vítimas pelos olhos de alguns, culpados pelo ponto de vista de outros, os jornalistas representam uma profissão cuja complexidade de sua demanda social ultrapassa as respostas prontas e deterministas.

3.1 Parâmetros reais

3.1.1 A formação do jornalista Não cabe aos objetivos deste estudo o aprofundamento da temática da formação profissional dos jornalistas – tema que merece uma reflexão verticalizada a partir da sua multiplicidade de aspectos. Contudo, procura-se neste ponto situar


minimamente a especificidade da formação jornalística como atividade social voltada à transmissão de informações e de conhecimento. O processo de formação universitária dos jornalistas tem duração média de quatro anos, período que compreende diferentes núcleos de disciplinas. Dois núcleos temáticos são mais comuns nos cursos brasileiros: um núcleo básico, com disciplinas que possibilitam um conhecimento contextual em ciências humanas (como Antropologia, Filosofia e Sociologia e Psicologia), e um núcleo específico, com lições práticas que envolvem redação jornalística, ética profissional e atividades laboratoriais. De uma maneira geral, as disciplinas ofertadas pelas universidades habilitam os profissionais a buscar informações, entrevistar pessoas e apurar os fatos. Se não cabe à formação universitária em jornalismo o aprofundamento de estudos em áreas específicas – como a Medicina – e em seus respectivos temas pontuais – como o “erro médico” – oferece-se, de outra parte, a aprendizagem para a busca de conhecimentos técnicos a partir de profissionais aptos a tratar de tais questões. Como profissional, o jornalista é responsável por interpretar os fatos e levá-los ao público de uma maneira compreensível. Seguindo essa perspectiva, o repórter é muitas vezes – e exageradamente – mitificado como um „ser superior‟, „onipotente‟, sempre presente no local dos acontecimentos, com permissão e capacidade de explicar o sentido dos fatos. Tal ideia, ligada ao conhecimento de senso comum sobre ofício de noticiar, imputa aos profissionais de jornalismo uma responsabilidade social que muitas vezes não condiz com seu estatuto profissional real, já que ao mesmo tempo os jornalistas têm seu campo de atuação limitado por tensionamentos práticos

(deadlines,

concorrência

pela

informação

em

primeira

mão,

disponibilidade/indisponibilidade de fontes, etc.) e mercadológicos (linha editorial e comercial da empresa jornalística, pressões externas ao campo jornalístico, etc.). Essa sobreposição ocorre principalmente porque a atividade trabalha em aior intensidade com uma espécie de obrigação pela busca da „verdade dos fatos‟, o que atribui aos profissionais um capital simbólico diferenciado de outros campos de atuação. De acordo com Gomes (2009, p.11), “o jornalismo não apenas assume com o consumidor de notícias a obrigação de ser veraz, mas também o compromisso de usar de todos os recursos possíveis para evitar o engano e o erro”. Por ora, não se tem por objetivo entrar no mérito do conceito de “verdade” em sua matriz filosófica. Entretanto, algumas características específicas assumidas pela


profissão – como a citada necessidade da busca incessante pela “verdade” – servem de munição para as críticas de outros campos profissionais.

3.1.2 A perspectiva de temporalidade Enquanto a população em geral costuma julgar os jornalistas sob os aspectos da responsabilidade social e do compromisso com a verdade, as redações também cobram dos profissionais o domínio de uma noção específica de “tempo” – o chamado tempo da notícia. Os prazos impostos dentro da perspectiva jornalística diferem das demais profissões e são aqui apontados como um dos principais fatores que induzem ao erro de apuração e ao afastamento da objetividade jornalística. É também por meio da perspectiva de tempo que se emancipam inúmeros entraves de relacionamento entre os profissionais da área da saúde, da justiça e os jornalistas, visto que a ideia de temporalidade se difere nas três esferas. Por um lado, se a formação do jornalista oferece uma visão ampla dos problemas sociais, dentro das redações outra competência é considerada: a capacidade de lidar com prazos. De acordo com Nelson Traquina, A ênfase na ação está no centro do profissionalismo, reside no controle da ação e não em ser vitimado pela cadência. Devido ao fato de as organizações jornalísticas funcionarem dentro de um ciclo estruturado em função de marcos temporais, não é de se estranhar que o verdadeiro teste de competência profissional resida na capacidade de o jornalista deixar de ser vitimado pela cadência frenética imposta pelas horas de fechamento e passar a controlar o tempo (TRAQUINA, 2008, p. 41).

A questão da temporalidade jornalística é também abordada por Sylvia Moretzsohn (2002) a partir da crítica que a autora estabelece a respeito da dinâmica de “fetichização da velocidade”:

Essa “forma de conhecimento” [o conhecimento disseminado pelo jornalismo] é afetada pela competição entre os jornais na busca da “notícia em primeira mão”. É em torno dessa ideia de dinamismo que a imagem da atividade jornalística se constrói: meninos jornaleiros saem às ruas apregoando edições extras, efeitos sonoros vibrantes despertam o ouvinte para notícias curtas e rápidas, vinhetas alertam o espectador para o bombardeio de imagens. Notícias de última hora: tudo é urgência. É a ideologia da velocidade e do progresso (MORETZSOHN, 2002. p. 46).

Nesse sentido, o jornalista é colocado na posição de vítima de um sistema que enaltece o compromisso com a „verdade‟ ao mesmo passo em que espera que


essa mesma „verdade‟ seja divulgada de forma ágil. Nota-se, assim, a necessidade de determinação ao jornalismo de um limite entre a divulgação de informações verossímeis e objetivas e a rapidez com a qual essas mesmas informações devem ser divulgadas, pois a própria luta pelo furo jornalístico já pode ser interpretada como uma incoerência:

A imprensa convive, como atividade industrial, com uma contradição intrínseca ao seu lema tradicional, e certamente mistificador, de dar a “verdade em primeira mão”. Mistificador porque fala em verdade genericamente, quando se trata de entendê-la no sentido estrito de informação verdadeira, relativa a fatos que realmente ocorreram - e que comportam interpretações diversas; mistificação necessária, porém, para a sedimentação de outro mito, o da imparcialidade, que garante à imprensa o seu lugar de autoridade. De qualquer forma, a verdade, ao contrário do que afirma o lema, costuma ficar submetida à necessidade da veiculação de notícias em primeira mão (dadas as imposições da concorrência), trazendo como resultado, frequente, a divulgação de informações falsas ou apenas parcialmente verdadeiras, com consequências às vezes catastróficas (MORETZSOHN, 2002, p. 11).

Os profissionais da comunicação ao mesmo tempo em que são enaltecidos pela capacidade de lidar com o tempo, são obrigados a trabalhar com informações taxadas de exatas, tarefa na qual ainda dependem geralmente da informação oriunda de terceiros para divulgar uma notícia. Nesse panorama, a cobertura de assuntos polêmicos, como os casos de erro médico, tema desta monografia, se torna um suplício adicional para os jornalistas. Trata-se de uma informação que – num cenário ideal – precisa ser divulgada com base no relato de fontes técnicas, que, por seu turno, muitas vezes não querem se pronunciar prontamente para não incorrer no risco de inexatidão. Estabelece-se, por um lado, uma espécie de círculo vicioso pautado pelo tempo da notícia. Por outro lado, o relato jornalístico precisa ser redigido em conformidade com a realidade, uma norma fundamental da profissão. O jornalismo não apenas assume com o consumidor de notícias a obrigação de ser veraz, mas também o compromisso de usar de todos os recursos para evitar o engano e o erro. (...) O jornalismo não se compromete apenas, em outras palavras, a ser honesto e sincero, mas a trabalhar objetiva e metodicamente para se afastar do que diz o risco do engano ou do erro (GOMES, 2009. p. 11).

Ressalta-se, nesse cenário, que as noções de temporalidade diferem-se nas perspectivas do judiciário, da medicina e do jornalismo. Isto é, se considerado o


caso específico do “erro médico”, enquanto os jornalistas trabalham para publicar o fato numa temporalidade que ainda o coloca sob a caracterização da “novidade”, a medicina vale-se de um prazo ampliado para a averiguação e a determinação do erro, o que difere ainda do tempo da justiça. Para exemplificar a questão, toma-se como base a denúncia de um possível erro médico em um boletim de ocorrência da Polícia Civil. Ocasionalmente, os jornalistas têm acesso à informação e a publicam como „suspeita de erro‟. O vocábulo escolhido denota a alternativa utilizada pelos veículos de comunicação para não acusar diretamente os envolvidos. Nesse caso, as informações são atribuídas às fontes oficiais (no caso do exemplo adotado, à polícia). Ao mesmo tempo em que a imprensa divulga a informação com o caráter de novidade, peritos realizam exames para comprovação do erro, com prazo mínimo para realização e conclusão dos laudos de dez dias. Dificilmente os profissionais da comunicação têm acesso aos procedimentos em tempo real e, em caso de divulgação de outras informações, leva-se sempre em consideração os dados oriundos de fontes também tidas como oficiais (boletins de ocorrência, notas elaboradas à imprensa, declarações do delegado responsável pelo caso, etc). O que muitas vezes não fica claro ao leitor é que todas essas informações constituem versões (a versão dada pelo suposto prejudicado e registrada no boletim de ocorrência, por exemplo) de um caso ainda sob averiguação – e que até a finalização do caso nas instâncias judiciais mais amplas, os suspeitos são protegidos pela concepção jurídica de “presunção da inocência”. Por fim, a noção de tempo para a justiça contrapõe-se – muitas vezes radicalmente – ao imediatismo da apuração jornalística. Isso explica porque os casos aparecem sob diferentes enfoques nas páginas dos periódicos em um período relativamente grande e contesta, em partes, a crítica dos profissionais de saúde quanto à superexposição das histórias de erros. Com base no levantamento das notícias a respeito do cirurgião Alberto Rondon (Capítulo 2), observa-se, por exemplo, que os jornais abordaram o assunto em diferentes momentos e a partir de diversas perspectivas. Dentre outras notícias, de acordo com as mudanças no decorrer do processo, o foco esteve presente sobre: 1) a decisão do CRM de cassar o registro do médico; 2) a resposta do Tribunal de Justiça quanto a cassação do registro; e 3) as cirurgias de reparação às quais as vítimas foram posteriormente submetidas.


A desigualdade entre as perspectivas de tempo também justifica, em parte, o volume das informações divulgadas pela imprensa e permite uma relativização da crítica dos profissionais da saúde quanto à exploração noticiosa demasiada em casos de erros médicos, visto que o jornalista tem a obrigação de informar. Nesse contexto, observa-se que algumas informações são priorizadas em detrimento de outras. Faz-se necessário, então, compreender os critérios utilizados para divulgação das notícias de erro médico na imprensa campo-grandense.

3.1.3 Critérios de noticiabilidade na abordagem de erros médicos Como apresentado no Capítulo 2, o levantamento quantitativo das notícias nos dois veículos constituintes do corpus (Correio do Estado e O Estado MS) no período avaliado (2002 a 2013) forneceu um material para análise baseado em 42 textos. O caso Rondon aparece no jornal Correio do Estado distribuído em 12 notícias enquanto as informações sobre o caso Alexsandro de Souza estão inseridas em sete textos. Finalmente, o caso Maksoud é citado em duas matérias. Em relação ao jornal O Estado MS, 11 textos selecionados no período fazem referência ao caso Rondon, três matérias abordam o caso Alexsandro de Souza e cinco dizem respeito ao caso Maksoud. Embora a classe médica considere em suas publicações que a abordagem da imprensa em relação aos erros dos profissionais da área da saúde seja excessiva (CORREIA-LIMA, 2012; GOMES & FRANÇA, 1999; MORAES, 1995), observa-se que o volume de denúncias registrados no Conselho Regional de Medicina de Mato Grosso do Sul é superior ao número de publicações jornalísticas sobre os casos. A tabela abaixo mostra o número de denúncias registradas no CRM-MS entre 2003 e 2013:

Tabela 3 – Evolução do número de denúncias no Conselho Regional de Medicina-MS entre 2003 e 2013 Ano Casos

2003 2004 92

111

2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 133

130

150

181

(Fonte: CRM-MS)

176

209

224

161

194


É salutar a posição demarcada em livros técnicos da área médica que relacionam o aumento no número de denúncias nos conselhos regionais de medicina na última década ao incentivo da mídia em fazer denúncias:

Questiona-se, inicialmente, se há um real aumento do erro médico ou se o fato reflete, apenas, um aumento de registro, fruto da maior conscientização dos cidadãos em relação aos seus direitos, ajudada, ainda, pela maciça exposição da classe médica na mídia que explora e hipertrofia suas falhas. (CORREIA-LIMA, 2012, p.15)

O comentário dos profissionais de saúde não é incorreto quando relaciona a conscientização dos cidadãos a um dos papéis da imprensa. Como mencionado anteriormente, um dos preceitos para o cumprimento da função dos jornalistas é o compromisso em divulgar com veracidade a realidade para o público. Porém, se aplicada aos casos cobertos pela imprensa campo-grandense, a acusação de „maciça exposição‟ também incorre em exagero. Para o estabelecimento de parâmetros comparativos, além do levantamento de notícias sobre os casos Rondon, Alexsandro de Souza e Maksoud, que constituem o corpus central da pesquisa, foram também observadas matérias relacionadas à área de saúde publicadas no jornal O Estado MS entre 2009 e 2011. A proposição desse novo recorte empírico visa exclusivamente avaliar a ocorrência mais ampla do tema “erro médico” nas páginas do periódico. Cabe ressaltar que a escolha pelo veículo O Estado MS para a constituição desse novo agrupamento de exemplos está exclusivamente relacionada a questões técnicas, uma vez que, como explicitado no capítulo anterior, a pesquisa na sede da empresa é realizada por meio de arquivos impressos, permitindo que o pesquisador tenha acesso a todas as notícias do período – o que difere do modo de operação da pesquisa digital no Correio do Estado, que depende palavras-chave. Em 2009, quando o CRM registrou 176 denúncias, O Estado MS divulgou apenas três denúncias de suspeitas de erro médico – a morte de um bebê com meningite e o esquecimento de cateteres no corpo de dois pacientes. No mesmo ano, foram também divulgadas notícias sobre a cassação de uma médica que cometia aborto e atualizações de informações sobre Alberto Rondon. Em 2010, o número de casos analisados no Conselho Regional de Medicina sobe para 209. O periódico, por sua vez, publica apenas duas notícias sobre suspeitas de erro médico, apresentando novos dados sobre a cassação do registro da médica acusada de


cometer aborto e informações sobre a cassação de um profissional acusado de abusar sexualmente de pacientes. Em 2011, enquanto o CRM trabalha com 224 denúncias, O Estado MS divulga três novos casos. No mesmo ano, o jornal publica outras informações sobre os casos Rondon e Alexsandro Souza. Faz-se necessário destacar que, por opção metodológica, os números citados como denúncias no veículo jornalístico não consideram as diferentes repercussões de cada assunto, que ocorreram poucas vezes, mas representam o volume total de denúncias sem repetições. Da mesma forma, é importante salientar que os números de denúncias investigadas pelo CRM-MS não necessariamente se resumem a casos de “erro médico”. Por questões internas, o órgão não divulga o teor das denúncias, mas explica que a maioria delas está relacionada a erros de profissionais. Em resposta por e-mail, a instituição posiciona-se: “Não há estatística sobre o assunto, mas grande parte dos processos são instaurados por infração ao art. 1º do Código de Ética Médica”2. O referido artigo, por seu turno, refere-se a possíveis danos causados por profissionais da medicina: “É vedado ao médico causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência” (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2009). É possível concluir por meio da observação e da comparação da cobertura jornalística das referidas denúncias que o tema não é maciçamente explorado pela mídia como argumenta uma parte significativa dos livros técnicos sobre erro médico. Todavia, faz-se também pertinente uma avaliação crítica do motivo pelo qual alguns assuntos são valorizados pela imprensa e outros não – questionamento que envolve os chamados critérios de noticiabilidade. Conforme problematiza Nelson Traquina (2008, p. 94), os valores noticiosos constituem “um elemento básico da cultura jornalística que os membros desta comunidade interpretativa partilham, servem de “óculos” para ver o mundo e para o construir”. A problemática da cobertura jornalística de temas relacionados a erros médicos, entretanto, não se resume ao aspecto da super-exposição midiática. Além da acusação de divulgar maciçamente os casos, os profissionais da imprensa também são acusados muitas vezes de leigos, o que não necessariamente se configura um atributo pejorativo à classe profissional (se considerado o pressuposto de que o termo “leigo” diz respeito àquele que não possui conhecimentos

2

E-mail enviado à autora no dia 2 de outubro de 2013.


específicos de outra área, a categoria se aplica aos jornalistas que não conseguem – e nem poderiam – dominar todos os assuntos). Esse tipo de agravo ao trabalho dos profissionais de comunicação pode ser observado, por exemplo, na obra de Júlio Cézar Meirelles Gomes e de Genival Veloso de França: Essa visão social distorcida é muitas vezes estimulada pela imprensa (leiga) no seu afã de julgamento sumário e linchamento moral apressado, enquanto a sociedade age por sua vez como herdeira de medonhas tradições (GOMES & FRANÇA, 1999, p.34).

Não há indícios de termos utilizados de maneira indevida pelo Correio do Estado na cobertura do caso Macksoud. Durante o período em que foram divulgadas informações sobre Rondon no periódico, também não há registros de má utilização de expressões. Percebe-se apenas que os conceitos que definem o “erro médico” foram utilizados sem uma definição precisa ao leitor, conforme se lê no primeiro parágrafo da notícia divulgada no dia 30 de maio de 2002: “O Conselho Federal de Medicina confirmou a cassação do registro profissional de Jorge Alberto Rondon por imperícia e negligência”. Os termos mencionados não foram definidos ao longo do texto; ainda assim não foram utilizados de maneira indevida. Já os vocábulos utilizados durante a abordagem da história de Alexsandro de Souza sofrem uma pequena alteração no período estudado. Em 13 de abril de 2010, o jornal publica que o médico foi acusado de imperícia, omissão e negligência, termos que não foram utilizados numa perspectiva literal. No dia 20 de março de 2012, o jornal divulga que o cirurgião cassado é investigado apenas por imperícia e negligência, conforme se observa: “O médico está sendo investigado por conduta culposa no crime por omissão de socorro e negligência” (Correio do Estado, 13 de abril de 2010). “As decisões são resultado de processo aberto contra o médico, em consequência da denúncia de paciente dele que também foi operada, na clínica de Fátima do Sul, no qual Souza foi considerado pelos conselheiros do CRM, negligente e imprudente no ato da cirurgia” (Correio do Estado, 20 de março de 2012).

Percebe-se que o jornalista não compreende tecnicamente os termos quando utiliza na mesma oração a expressão “omissão de socorro” e o termo “negligência”, que na perspectiva médica tratam do mesmo ato: “A negligência ocorre sempre por


omissão. É dita de caráter omissivo, enquanto a imprudência e a imperícia ocorrem por comissão” (GOMES & FRANÇA,1999. p. 65). De uma maneira geral, o Correio do Estado privilegia a utilização de termos técnicos durante a cobertura ao passo em que O Estado MS substitui as concepções da área médica por terminologias como „ilegal‟ e „mutilação‟ – seja no caso Rondon ou no caso Alexsandro de Souza. Os jornalistas possuem critérios pessoais e específicos para redigir e publicar uma notícia, normas de procedimento assimiladas durante a carreira, conhecidas como “valores”, que tratam da seleção e da construção dos textos. Com o volume incomensurável de informações disponíveis em um mundo globalizado, os profissionais de comunicação precisam de regras para decidir o que deve ou não ser publicado (TRAQUINA, 2008; BOURDIEU, 1997; SILVA, 2013). Tal preferência jornalística por alguns temas é reiterada não apenas pelos profissionais da área, mas por todos os consumidores de notícias. A saúde é um dos temas que recebe destaque na imprensa, pois, em linhas gerais, interessa à sociedade como um todo. O assunto não é excludente, visto que todos os indivíduos necessitam de bem-estar para exercer suas atividades cotidianas. Assim como a dicotomia saúde-doença é tema de interesse na mídia, outros assuntos que vão ao encontro ao bem-estar social também recebem destaque. De acordo com Traquina (2008, p.96), “o mundo jornalístico pressupõe uma referência a uma noção de „normalidade‟ como ponto de referência fundamental. Assim, a ruptura da „normalidade‟ consegue lugar de referência no mundo das notícias”. Na perspectiva da procuradoria jurídica do CRM-MS, quando se trata especificamente de erro médico o interesse da mídia relaciona-se com o próprio objetivo de trabalho dos profissionais de saúde: a vida humana. De acordo com o órgão, posição geralmente compartilhada pelos médicos, “não existe outra classe profissional que trabalhe com uma questão tão fundamental, quanto à saúde. (...) Por isso, a medicina tem tanto destaque na mídia quando ocorre uma falha” 3. A afirmação da assessoria jurídica do CRM-MS é um sintoma de que os valores jornalísticos são percebidos pela sociedade em geral, mesmo quando não definidos nos moldes e categorias das teorias jornalísticas. De maneira reducionista, 3

Entrevista com o assessor jurídico do CRM-MS, André Borges Netto, concedida à autora em 7 de agosto de 2013.


as publicações médicas advogam, não raramente, que o tema “erro médico” recebe atenção da mídia apenas por tratar de uma questão fundamental para a profissão: a vida. Contudo, o processo de seleção de temas noticiáveis e as decisões que envolvem desde o destaque que o assunto receberá nas páginas até o espaço delimitado para abordagem das informações não se resumem simplesmente ao que é “essencial” à carreira dos médicos. Pelo contrário, há complexidade por trás dos tensionamentos próprios do campo jornalístico (TRAQUINA, 2008; SILVA, 2013). Diversos critérios noticiosos utilizados no dia-a-dia do jornalismo não são sequer compreendidos pelos próprios profissionais de comunicação, apesar de serem assimilados como elementos essenciais para o exercício rotineiro do oficio de noticiar. Diz Nelson Traquina: Diversos estudos sobre o jornalismo demonstram que os jornalistas têm uma enorme dificuldade em explicar o que é notícia, de explicitar quais são seus critérios de noticiabilidade, para além de respostas vagas do tipo “o que é importante” e\ou “que interessa ao público” (TRAQUINA, 2008. p.62).

Para o autor, os critérios noticiosos não são estanques, porém mutáveis em diferentes épocas históricas e recortes culturais e geográficos: Os valores-notícia não são imutáveis, com mudanças de uma época histórica para outra, com sensibilidades diversas de uma localidade para outra, com destaques diversos de uma empresa jornalística para outra, tendo em conta as políticas editoriais. As definições do que é notícia estão inseridas historicamente e a definição da noticiabilidade de um acontecimento ou de um assunto implica um esboço da compreensão contemporânea do significado dos acontecimentos como regras de comportamento (TRAQUINA, Nelson, 2008. p, 95).

Os critérios de noticiabilidade sofrem também influências – mais ou menos determinantes – da opinião pessoal do jornalista ou da editoria na qual está inserido. O diagrama a seguir, adaptado por Marcos Paulo da Silva (2013) da obra de Pamela Shoemaker e Stephen Resse (1996) ilustra os diferentes níveis de influência inseridos no processo de construção noticiosa:

Figura 2 – Modelo hierárquico de influências sobre o conteúdo noticioso segundo Shoemaker & Reese


(Fonte: Modelo adaptado de SHOEMAKER & REESE, 1996, p. 64 por SILVA, 2013, p. 52)

Para os fins de análise desta monografia foram adotados alguns critérios mencionados por Nelson Traquina (2008) inspirados na obra de Mauro Wolf (2003). Intenciona-se assim avaliar as possíveis motivações intrínsecas na seleção e na redação das notícias que compõe o corpus de estudo. São eles: a notoriedade, a morte, a proximidade, a relevância, a novidade, o tempo, a notabilidade, o inesperado, o conflito, a infração e o escândalo. A notoriedade como valor noticioso trata da proeminência social dos personagens ligados ao evento, conforme explica o próprio Traquina (2008, p.79): “a importância hierárquica dos indivíduos envolvidos no acontecimento tem valor como notícia”. Nesse sentido, observa-se na cobertura dos dois periódicos (Correio do Estado e O Estado MS) que o caso Rondon recebe destaque superior ao caso Alexsandro de Souza, embora tratem do mesmo tipo de ocorrência. Enquanto na divulgação das notícias sobre Alberto Rondon os jornais optam por colocar o nome do profissional cassado no próprio título das notícias, no caso de Alexsandro de Souza, os veículos preferem utilizar o termo „médico‟. Os títulos abaixo, extraídos dos jornais, exemplificam a questão: “Rondon é preso após cinco anos foragido” (O Estado MS, 21 de setembro de 2009).


“Polícia Federal prende Rondon em Bonito” (Correio do Estado, 21 de setembro de 2009). “Cassado cirurgião plástico que mutilou mulheres no sul de MS” (O Estado MS, 20 de março de 2012). “Cirurgião plástico é acusado de mutilar mais de cem mulheres” (Correio do Estado, 12 de agosto de 2010)

A “morte” também é um dos parâmetros adotados pelos jornalistas no processo de seleção das notícias. Conforme sintetiza Traquina (2008, p. 79), “onde há morte, há jornalistas”. A diferença de espaço reservado e da estrutura disposta nos periódicos ao tratamento do tema geralmente varia de acordo com a notoriedade dos envolvidos na questão. Outro critério adotado para a escolha das informações que devem ser apuradas tem relação com a proximidade – geográfica ou cultural – entre os fatos e o consumidor das notícias. O conceito é definido por meio de um exemplo prático:

Um acidente de viação com duas vítimas mortais em Cascais poderá ser notícia num jornal de Lisboa, e possivelmente, mas com maior dificuldade, num jornal do Porto, mas dificilmente num país estrangeiro (TRAQUINA, Nelson. 2008, p. 80).

Como é facilmente verificado a partir do recorte empírico estabelecido, todos os casos que compõe o corpus de análise desta monografia obedecem ao critério de proximidade, já que os três médicos atuavam em Mato Grosso do Sul. Por outro lado, a cobertura da imprensa em casos de “erro médico” pode ser também avaliada sob a perspectiva da relevância, ou seja, da importância do tema para os leitores. Complementa Traquina (2008): “a lógica é a seguinte, quanto mais „sentido‟ a notícia dá ao acontecimento, mais hipótese a notícia tem de ser notada”. Nesse aspecto, os casos foram repercutidos sob um viés de denúncia, o que pode remeter a uma sensação de alívio aos leitores alertados a respeito da „armadilha‟ de que supostamente poderiam ser vítimas. A seleção de notícias segue ainda parâmetros da novidade, o que pode coincidir com a ideia do “furo” jornalístico – isto é, as primeiras informações sobre o assunto dadas por um determinado jornalista. Como se lê:

Outro conceito fundamental no jornalismo é a novidade. Para os jornalistas, uma questão central é precisamente o que há de novo. [...]


geralmente tem que haver algo de novo para poder voltar a falar do assunto. Devido à importância deste valor-notícia, o mundo jornalístico interessa-se muito pela primeira vez (TRAQUINA, 2008. p, 81).

Ou, como problematiza o sociólogo francês Pierre Bourdieu: O extra-ordinário é também e sobretudo o que não é ordinário com relação aos outros jornais. É o que é diferente do ordinário e o que é diferente do que os outros jornais dizem do ordinário, ou dizem ordinariamente. É uma limitação terrível: a que impõe a perseguição do furo. Para ser o primeiro a ver e a fazer alguma coisa, está-se disposto a quase tudo, e como se copia mutuamente visando a deixar os outros para trás, fazer antes dos outros, acaba-se por fazerem todos a mesma coisa. (BOURDIEU, 1997, p. 26-27).

O jornalismo trabalha ainda com o valor-notícia do tempo, parâmetro que pode ser compreendido como a “atualidade dos fatos”. É por meio desse critério noticioso que os profissionais da comunicação retomam assuntos relacionados a uma informação já divulgada, mas recuperada por algum elemento recente – ação conhecida nas redações como “gancho” jornalístico. Define Nelson Traquina: A existência de um acontecimento na atualidade já transformada em notícia pode servir de “news peg”, ou gancho (literalmente “cabide” para pendurar a notícia) para outro acontecimento ligado a esse assunto. Segundo, o próprio tempo (a data específica) pode servir como um “news peg” e justificar a noticiabilidade de um acontecimento que já teve lugar no passado, mas nesse mesmo dia (TRAQUINA, 2008, p. 81).

Os parâmetros acima descritos ilustram em parte a forma como o jornalismo está estruturado atualmente. No entanto, existem outros fatores que poderiam ser adotados segundo uma visão normativa de jornalismo, ou seja, para a consolidação de um modelo considerado „ideal‟ a partir de critérios que muitas vezes escapam aos tensionamentos práticos da rotina noticiosa no plano real. Nesse contexto, pode-se afirmar que os profissionais da comunicação submetem suas informações ao filtro da “notabilidade”. Em outras palavras, trata-se do caráter do que é tangível. Por meio dessa característica jornalística, percebe-se que os profissionais realizam suas coberturas a partir de fatos pontuais e não de problemáticas mais amplas. No caso das coberturas de “erros médicos”, esse valornotícia ganha proeminência de abordagem ao passo que as condições de trabalho dos médicos muitas vezes são desconsideradas. Trata-se de uma reclamação recorrente na literatura técnica da área:


O erro médico tem sido mal focado pela mídia que busca apenas, no rol dos eventos sociais, a exceção, a ocorrência extravagante com forte fascínio e apelo comercial; a mídia que vai em busca da versão factual da atitude humana com o duplo interesse da denúncia e da promoção de venda da notícia. Despreza, em regra, as causas concorrentes mais expressivas, como má formação, o ambiente adverso ao ato médico, a demanda assustadora aos órgãos de assistência médica, os baixos e tenebrosos padrões de saúde pública, etc. (GOMES & FRANÇA, 1999, p. 127).

A ênfase dada pelos jornalistas aos acontecimentos ditos “notáveis” e a suposta superficialidade que se vincula a esse tipo de tratamento noticioso constituem motivos de crítica não somente para as categorias profissionais que se sentem prejudicadas pela abordagem midiática (caso da classe médica nos casos que envolvem imprudência e negligência), mas também dos próprios pesquisadores da área jornalística: Outro valor-notícia fundamental para a comunidade jornalística é a notabilidade, isto é, a qualidade de ser visível, de ser tangível. [...] O valor-notícia da notabilidade alerta-nos para a forma como o campo jornalístico está mais virado para a cobertura de acontecimentos e não problemáticas. (TRAQUINA, 2008. P. 82).

Ainda de acordo com o quadro de referência dos chamados valores-notícia, os acontecimentos noticiosos são selecionadas pelo caráter de “inesperado”; isto é, por aquilo que “irrompe e que surpreende a expectativa da comunidade jornalística” (TRAQUINA, 2008).

A quebra da rotina social por meio do “conflito” ou da

“controvérsia” – em seus sentidos conotativos ou denotativos – também recebe atenção dos jornalistas durante o processo de seleção das notícias. Esses atributos podem ser decorrentes tanto de atos de violência física quanto simbólica, sobretudo se envolverem pessoas que possuem notoriedade na sociedade. Argumenta Traquina (2008):

A violência também pode representar a ruptura. Representa assim uma ruptura fundamental na ordem social. O uso de violência marca a distinção entre os que são fundamentalmente da sociedade e os que estão fora dela (TRAQUINA, 2008, p. 85).

Além disso, a ideia de “infração” – que se refere, sobretudo, à “violação e transgressão de regras” (TRAQUINA, 2008) – também costuma despertar o interesse dos jornalistas, sendo adotada como outro critério para a seleção do que deve ser informado ou não. Quando levados em conta os casos de erro de


profissionais da área da saúde, a “infração” configura um dos principais valoresnotícia que norteiam o processo de apuração. Ou seja, os médicos que foram investigados e tiveram suas histórias divulgadas pela imprensa foram responsáveis por infringir os códigos que regem a profissão, causando danos aos pacientes – daí o interesse do repórteres de inseri-los como personagens das matérias. Finalmente, os jornalistas costumam se interessar pelos fatos que quebram as concepções morais estabelecidas socialmente. São os casos conhecidos como “escândalos”. Esse valor-notícia é sobressaltado principalmente quando envolve as mais diferentes instituições de interesse público numa sociedade democrática. À despeito da concepção estrita de “escândalo”, no entanto, observa-se de uma maneira geral a atenção cotidiana dos profissionais da área da comunicação em relação à atuação dessas instituições. Na cobertura do caso Rondon, por exemplo, a atuação do Conselho Regional de Medicina foi posta em cheque. O órgão foi acusado de se omitir em relação aos erros do médico cassado, assunto que foi abordado pelos dois periódicos pesquisados. A tabela abaixo sintetiza a ocorrência dos valores-notícia utilizados durante a cobertura dos casos Rondon, Maksoud e Alexsandro de Souza.

Tabela 4 – Critérios noticiosos utilizados pelos jornais Correio do Estado e O Estado MS na cobertura dos casos Maksoud e Alexsandro de Souza4 Rondon Sim Não Notoriedade X Morte X Proximidade X Relevância X Novidade X Tempo X Notabilidad X e Inesperado X Conflito X Infração X Escândalo X

Maksoud Sim Não X X X X X X X X X X X

Alexsandro Sim Não X X X X X X X X X X X

(Fonte: tabela elaborada pela autora para as finalidades desta monografia)

4

Critérios de noticiabilidade elencados de acordo com a classificação de Nelson Traquina (2008) e Mauro Wolf (2003)


Debatidos alguns dos principais parâmetros que caracterizam a cobertura jornalística cotidiana de casos de “erro médico” e expostos, ainda que sumariamente, os critérios noticiosos utilizados na abordagem dos casos específicos que compõem o corpus deste estudo, parte-se agora para a etapa final da análise, momento em que serão apresentados alguns parâmetros considerados ideais para o tratamento de casos dessa natureza.

3.2 Os parâmetros normativos Como já foi descrito no início deste capítulo, objetiva-se exemplificar aqui, a partir de uma perspectiva normativa, os critérios que poderiam ser adotados para efetivação de um jornalismo caracterizado como „ideal‟ – isto é, para a efetivação de um modelo de abordagem noticiosa que esteja em conformidade com o princípio da “presunção de inocência” constante no Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros e na própria Constituição Federal. Tal princípio advoga que todos os cidadãos brasileiros são considerados inocentes até que seja dada a sentença penal condenatória prevista. O terceiro capítulo do código de ética dos jornalistas é claro ao pontuar as responsabilidades sociais da profissão: Capítulo III – Da responsabilidade profissional do jornalista Art. 8º O jornalista é responsável por toda a informação que divulga, desde que seu trabalho não tenha sido alterado por terceiros, caso em que a responsabilidade pela alteração será de seu autor. Art 9º A presunção de inocência é um dos fundamentos da atividade jornalística. Art. 10. A opinião manifestada em meios de informação deve ser exercida com responsabilidade. Art. 11. O jornalista não pode divulgar informações: I – visando o interesse pessoal ou buscando vantagem econômica; II – de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes; III – obtidas de maneira inadequada, por exemplo, com o uso de identidades falsas, câmeras escondidas ou microfones ocultos, salvo em casos de incontestável interesse público e quando esgotadas todas as outras possibilidades de apuração; Art. 12. O jornalista deve: I – ressalvadas as especificidades da assessoria de imprensa, ouvir sempre, antes da divulgação dos fatos, o maior número de pessoas e instituições envolvidas em uma cobertura jornalística, principalmente


aquelas que são objeto de acusações não suficientemente demonstradas ou verificadas; II – buscar provas que fundamentem as informações de interesse público; III – tratar com respeito todas as pessoas mencionadas nas informações que divulgar; IV – informar claramente à sociedade quando suas matérias tiverem caráter publicitário ou decorrerem de patrocínios ou promoções; V – rejeitar alterações nas imagens captadas que deturpem a realidade, sempre informando ao público o eventual uso de recursos de fotomontagem, edição de imagem, reconstituição de áudio ou quaisquer outras manipulações; VI – promover a retificação das informações que se revelem falsas ou inexatas e defender o direito de resposta às pessoas ou organizações envolvidas ou mencionadas em matérias de sua autoria ou por cuja publicação foi o responsável; VII – defender a soberania nacional em seus aspectos político, econômico, social e cultural; VIII – preservar a língua e a cultura do Brasil, respeitando a diversidade e as identidades culturais; IX – manter relações de respeito e solidariedade no ambiente de trabalho; X – prestar solidariedade aos colegas que sofrem perseguição ou agressão em consequência de sua atividade profissional. (CÓDIGO DE ÉTICA DOS JORNALISTAS BRASILEIROS, 2007, grifos nossos).

Ressalta-se, porém, que não existe uma regra única capaz de comportar a complexidade da concepção de “presunção da inocência”. Conforme argumenta Wilson Gomes (2009, p. 85), “o bom senso nos leva a admitir com tranquilidade que não pode haver um princípio único e absoluto a orientar todo o jornalismo”. Nesse cenário, cabe salientar que regras normativas aqui demonstradas não levam em consideração algumas das características intrínsecas do jornalismo entendido como atividade mercantil e industrial: a competição com outros veículos, as pressões extra-organizacionais, a busca incessante pelo “furo jornalístico” e os deadlines para o fechamento das edições. A primeira crítica à estrutura atual do jornalismo relaciona-se com os próprios valores-notícia e com a impressão equivocada muitas vezes transmitida pela mídia de que todos os acontecimentos noticiados são, de fato, noticiáveis de acordo com critérios sólidos e irrefutáveis. Problematiza Ignácio Ramonet: A informação está longe de ser clara. Ela está viciada pela ideia de que, se há um acontecimento, é preciso mostra-lo. E chega-se ao ponto de fazer crer que não pode haver acontecimento que não seja registrado e que não se possa acompanhar (RAMONET, 1999. p. 47).

Em outras palavras, como parâmetro de um jornalismo ideal, toda e qualquer abordagem noticiosa deveria levar em conta informações baseadas no conceito de


“interesse público”. Todavia, com as modificações históricas na prática jornalística, ocorre uma espécie de deformação da própria noção de “público”. O discurso de autolegitimação do jornalismo, nesse cenário, deixa para trás o parâmetro do “interesse público” para se pautar pelo “interesse do público-leitor” (GOMES, 2009). Considerada a abordagem de casos de erro médico, por exemplo, o critério histórico de interesse público – noção determinante para a democracia – dever-se-ia sempre se sobrepor a outros interesses quaisquer, mesmo que tais interesses se vinculem a um público-alvo específico de um determinado veículo. Em outras palavras, cabe ao jornalista seguir seu código de ética profissional e a própria constituição federal, informando com base nas prerrogativas do direito instituído e do bem-estar social geral ao invés de pautar-se pela simples preferência dos consumidores das notícias. Nesse contexto, o erro médico merece ser noticiado desde que comprovado, enquanto a história de vida das vítimas pode ser preservada da exploração maciça do assunto. Da mesma forma, com base no princípio da “presunção de inocência”, o chamado “tribunal da opinião pública” deve ser evitado, não cabendo à imprensa expor no espaço público a identidade do médico suspeito antes que seu erro seja julgado nas últimas instâncias. Adotando o princípio de “presunção de inocência” como fundamento de análise, critica-se, então, as notícias que se apoiam exclusivamente na existência de um boletim de ocorrência e ainda se valem de terminologias como “suspeito” ou “sob investigação” para amenizar as acusações. De tal prática questiona-se a existência de dois problemas: 1) a fundamentação do jornalismo em versões que são meramente atributivas e distantes do acontecimento no plano fenomênico; e 2) a supervalorização de um documento que, em última análise, não passa de registro inicial, um relato já repleto de interpretações subjetivas. A utilização de boletins de ocorrência como fonte exclusiva de repórteres é criticada por Alex Ribeiro ao se referir ao famoso caso “Escola Base”: De fato, juridicamente, um inquérito policial significa quase nada. Tratase de uma peça informativa que pode, ou não, fundamentar uma denúncia de um promotor de justiça. Só com uma sentença transitada e julgada, pode-se considerar alguém definitivamente culpado. Enfim, trata-se de um documento com tamanha precariedade que não deveria merecer nem mesmo notas de rodapé. Quando usado com estardalhaço, sua importância acaba ampliada (RIBEIRO, 1995, p.158).


Dessa maneira, num modelo de jornalismo considerado ideal, os registros policiais não deveriam ser adotados como fonte de informação para divulgação na íntegra, mas como a mera narração de um fato – uma versão ou um relato – que deve ser apurado com minúcia e responsabilidade, não sob a pressão de tempo – o deadline estreito – que o jornalista normalmente trabalha, visto que mudanças podem ocorrer durante o inquérito policial, inclusive relacionadas ao envolvimento das pessoas ali mencionadas. A imprensa, nesses casos, costuma lavar as mãos: dá a notícia e o público interpreta como convém. Pelos usos e costumes do jornalismo, o repórter não leva nenhuma culpa se o povo acha que uma investigação é motivo para depredação e linchamento. (RIBEIRO, 1995, p. 159).

Há uma alternativa proposta por Alex Ribeiro e adotada como parâmetro normativo no contexto das informações oriundas de boletim de ocorrência – ainda assim, trata-se de um argumento questionável sob o vértice da “presunção de inocência”: Existe uma opção intermediária: divulgar os nomes apenas de pessoas investigadas em situações que envolvem interesse público, como falcatruas com o dinheiro do contribuinte (RIBEIRO, 1995, p. 159).

O exame crítico em relação à utilização dos boletins de ocorrência como “fonte oficial” para a divulgação de informação decorre do fato de que as retratações muitas vezes não são suficientes para reparar os danos causados por uma informação infundada.

Nem todos os pedidos de desculpa serão suficientes para reparar os danos causados (...). E é justamente sobre esse fato que os jornalistas, em seu cotidiano, devem sempre ponderar (RIBEIRO, 1995, p. 152).

Outro questionamento crítico implícito no emprego de documentos redigidos por policiais – ou por outros terceiros – localiza-se no demasiado afastamento do jornalista do fato original e na possível reconstrução desse em um novo enquadramento da realidade, uma vez que as notícias trabalham com uma dupla possibilidade – a produção inevitável de efeitos de sentido (a representação da realidade a partir da narração do fato) e a produção de novos efeitos de realidade (a alteração no curso dos acontecimentos a partir da publicação jornalística de uma nova informação):


A notícia tem essa capacidade de ser reversível, no sentido de que pode ela mesma tornar-se fato tanto quanto o fato de que ela fala. Mas, evidentemente, ao tornar-se fato ela se transforma, tornando-se como os outros elementos do fato. O que não significa que ela perca alguma coisa; ela continua sendo expressiva e, se adquire uma função pragmática, é justamente por causa da sua função expressiva. Certamente, porém, não é a mesma coisa produzir sentido (ser expressivo) e produzir efeitos na realidade (ser pragmático) (GOMES, 2009, p.33).

Esses “novos efeitos de realidade” podem ter diferentes naturezas: um aspecto positivo, por exemplo, a partir de um novo curso que uma investigação pode tomar a partir de um novo elemento descoberto por um jornalista; mas também um aspecto extremamente negativo, como o linchamento social irrecuperável que um suspeito pode sofrer, mesmo que ele seja inocentado no futuro com a finalização das investigações ou com o julgamento em última instância. Em outras palavras, pode haver um desvio na interpretação do fato original a partir do momento em que ele é retratado pelos jornalistas. Isto é, enquanto o fato original produz “efeitos de realidade” no plano dos fenômenos, a notícia produz “efeitos de sentido”, construindo uma nova realidade – um novo enquadramento – a partir da sua publicação. Essa relação se radicaliza principalmente porque os consumidores de notícia não raramente partem do pressuposto de que o jornalismo possui a capacidade de espelhar a realidade. A manutenção desse status pelos jornalistas é ratificada pela atribuição das informações às versões de suas fontes, isentando os mesmos da responsabilidade da fala. Nesse contexto, segundo argumenta Wilson Gomes (2009), as notícias podem ser paradoxalmente “verdadeiras” mesmo se as informações presentes nelas forem “falsas”, uma vez que as narrativas jornalística reproduzem versões de pessoas ou de instituições. Tome-se o exemplo hipotético de manchete: “Aluna de escola pública foi estuprada, diz polícia”. Nesse caso, mesmo se a estudante não tenha recebido abuso sexual qualquer, o repórter não estará mentindo, pois a informação de estupro consta no boletim de ocorrência. Não se trata, portanto, da “verdade do fato”, mas da “verdade da versão” (GOMES, 2009) – o que resguarda o jornalista de sua responsabilidade jurídica, mas não de sua responsabilidade social. No caso do recorte empírico deste estudo, o exemplo mais recorrente de utilização irrestrita de informações provenientes exclusivamente de versões das fontes ocorre na exposição do cirurgião Alexsandro de Souza, ocasião na qual existe


a suspeita de que o médico tenha causado danos em mais de uma centena de pacientes – informação que decorre de uma versão do presidente de Associação de Vítimas de Erros Médicos (AVEM-MS). Em contrapartida, o Conselho Regional de Medicina trabalha com investigação de três casos suspeitos envolvendo o cirurgião. Até o final das investigações, o número de denúncias nunca chega a cem, mas os periódicos transmitem a informação atribuindo-a à Associação de Vítimas. Do exemplo, observa-se que a imprensa não mente, visto que o presidente da AVEMMS de fato declara que o número de pacientes mutiladas por Alexsandro de Souza ultrapassa uma centena. Por outro lado, os jornais podem ter cometido um erro de responsabilidade social (e de presunção de inocência), já que a informação não procede e o nome do médico é exposto por eles no espaço público como responsável por mutilar um número não confirmado de pacientes. A proposta normativa de jornalismo adotada nesta monografia segue na contramão da utilização dessas versões, ao menos que sejam exaustivamente checadas e contrastadas, pois parte do pressuposto de que a fonte consultada é inapta para abordar tecnicamente a questão. O fato configura também uma espécie de contradição dos jornalistas, profissionais que via de regra criticam a “imperícia” dos médicos quando tratam da cobertura do erro médico. Se a fonte não é especialista no assunto, deve haver parcimônia na utilização de suas declarações – caso contrário, sua publicação é também configurará uma modalidade de imperícia. Não se propõe deixar de averiguar ou entrevistar todos os envolvidos na questão, mas deve sempre haver a confrontação das versões existentes com os documentos oficiais oriundos das investigações. Nesse caso, o leitor pode interpretar os fatos sob as diferentes perspectivas das pessoas que o vivenciaram de uma maneira efetiva. “Ouvir os dois lados” é um das doutrinas citadas com mais frequência durante o processo de formação dos jornalistas. Muitas vezes, porém, as questões são complexas e não se limitam a meros “dois lados”, mas a uma multiplicidade de pontos de vista. Cabe ao jornalista se aproximar da pluralidade de perspectivas. Constata-se ainda que a ausência de relatos fundamentais por parte dos envolvidos não impede que as informações sejam divulgadas na imprensa. Nesse contexto, a alternativa encontrada pelos jornalistas é geralmente informar sobre a tentativa de um contato sem obtenção de resposta. O próprio código de ética é dúbio nesse sentido ao tratar do esgotamento “de todas as outras possibilidades de


apuração” – questão extremamente subjetiva (pois, qual o parâmetro limite que diz que “todas as possibilidades” foram esgotadas?). Nesse panorama, entende-se que um ponto primordial determina a presença ou não de réplicas dos envolvidos aos questionamentos dos jornalistas: a noção de temporalidade, que segue parâmetros distintos nos campos da justiça, da medicina e da produção noticiosa diária. Os prazos impostos pela necessidade de fechamento das páginas dos jornais costuma impedir que os profissionais aguardem por respostas. Assim, na perspectiva hipotética de um jornalismo comprometido às última consequência com o princípio da presunção a inocência, o valor-notícia “tempo” tem sua importância reduzida em detrimento da divulgação de matérias com as versões de todos os envolvidos – isto é, a justificativa de tentativa de contato com a fonte sem a obtenção de resposta deixaria de existir. É problemática também a divulgação de notícias antes dos resultados judiciais ou dos laudos periciais. Essa dinâmica é motivada mais uma vez pelo fator “tempo” que restringe a apuração às informações disponíveis até o fechamento da edição. Num vértice normativo, propõe-se uma vez mais a aproximação do tempo dos jornalistas ao tempo da justiça e da medicina para evitar a divulgação de informações baseadas simplesmente em versões atributivas e/ou informações preliminares. A disparidade entre as informações divulgadas pela imprensa antes e depois dos julgamentos nas diversas instâncias judiciais também é alvo de críticas. No contexto das coberturas sobre “erro médico”, de uma maneira geral, observa-se um degrau entre o espaço destinado à primeira denúncia e à retratação midiática quando o caso se mostra infundado. Um modelo de jornalismo ideal trabalha com o mesmo espaço para a suspeição e a absolvição dos acusados. Com base no corpus de estudo que compõe a pesquisa, essa questão não pôde ser averiguada em detalhes, visto que houve a revogação da cassação do registro médico apenas no caso Maksoud. Nesse caso específico, o espaço destinado à informação de cassação do registro do médico foi semelhante ao espaço jornalístico destinado à decisão do Conselho Federal de Medicina de revogar a medida e de amenizar a pena do profissional, embora seu nome já estivesse sendo “julgado” pela opinião pública desde a publicação da notícia inicial. Outra crítica pertinente em relação à cobertura da imprensa trata da semelhança de enfoques, de fontes e até da estrutura dos textos nos periódicos


concorrentes. Além disso, observa-se uma tendência da imprensa em “moldar” os discursos, validando as informações por meio de um processo de repetição de modelos. A respeito dessa sistemática, argumenta Ramonet (2004): “Doravante, eles estão conectados uns aos outros, funcionam em cadeia, uns repetindo os outros, uns imitando os outros”. Segundo o jornalista franco-espanhol, a repetição de informações tem efeitos drásticos sobre o consumidor de notícias: Se, a propósito de um acontecimento, a imprensa, o rádio e a televisão dizem que alguma coisa é verdadeira, será estabelecido que aquilo é verdadeiro. Mesmo que seja falso. Porque a partir de agora é verdadeiro o que o conjunto da mídia acredita como tal. (...) Ora, o único meio de que dispõe um cidadão para verificar se uma informação é verdadeira é confrontar os discursos dos diferentes meios de comunicação. Então, se todos afirmam a mesma coisa, não resta mais que admitir esse discurso único (RAMONET, 2004, p. 45).

Por fim, para evitar a repetição, propõe-se um jornalismo baseado na interpretação dos fatos e não na mera exposição dos acontecimentos. Nesse contexto, a redundância de informações nos mais variados veículos seria mínima, visto que cada meio carregaria sua própria perspectiva interpretativa sobre a realidade. Propõe-se ainda, como parâmetro ideal, a reflexão por parte dos jornalistas a respeito da reparação dos danos cometidos pelo não cumprimento do princípio da “presunção de inocência”.

Nesse sentido, observa-se que as

retratações são insuficientes para eliminar os efeitos drásticos causados pela mácobertura ou acusação indevida. A Tabela abaixo apresenta uma tentativa de comparação entre os parâmetros ideias e os parâmetros reais da cobertura jornalística sobre erros médicos debatida nesta monografia: Tabela 5 – Parâmetros normativos versus parâmetros existentes na cobertura de casos de erro médico Parâmetros existentes Parâmetros ideais Priorização do interesse do público- Priorização do interesse público. leitor. Divulgação do nome de todos os Não-divulgação do nome e da envolvidos desde o início da cobertura. identidade dos „suspeitos‟ até o final das investigações e do julgamento em última instância. Construção da notícia com base na Não-construção da notícia com base versão instituída no Boletim de exclusiva na versão do Boletim de


Ocorrência. Construção das notícias com base exclusiva em versões. Justificação da falta de declaração do envolvido pelo tempo de fechamento da edição. Divulgação de informações preliminares

Ocorrência. Confrontação das versões das fontes com dados oficiais. Aguardo da declaração dos envolvidos.

Aguardo do resultado de laudos periciais. Espaço pautado exclusivamente pelo Destinação do mesmo espaço para teor de “novidade” da notícia. retratações. Priorização do factual. Priorização da interpretação dos temas. Priorização do imediatismo. Aproximação da perspectiva de tempo em conformidade com as temporalidades da justiça e da medicina. (Fonte: tabela elaborada pela autora para as finalidades desta monografia)

Com base no exposto, espera-se que de alguma maneira as reflexões presentes nessa sistematização contribua para o comprometimento dos profissionais jornalistas para a elaboração de coberturas noticiosas mais responsáveis e alinhadas ao código de ética da profissão e à própria legislação brasileira.


4. Considerações Finais A análise da cobertura jornalística de casos de erro médico feita a partir do levantamento de notícias nos principais jornais impressos de Campo Grande – Correio do Estado e O Estado MS – possibilita uma série de constatações que podem contribuir para outras pesquisas acadêmicas na área da Comunicação e para o próprio aprimoramento desse tipo de abordagem noticiosa no mercado jornalístico regional. Em primeiro lugar, o levantamento de notícias foi pautado por um recorte metodológico que privilegiou ambos os jornais pesquisados – visto que a inauguração do veículo O Estado MS ocorreu ao final de 2002, ano que abre o recorte empírico da pesquisa. Portanto foram selecionados três casos com repercussão na mídia entre 2002 e 2013. A análise privilegiou tanto os aspectos quantitativos quanto os qualitativos do corpus e inspirou-se, em princípio, no modelo metodológico proposto por Shoemaker & Cohen (2006), no qual se avalia a posição hierárquica e a localização das notícias nas páginas dos periódicos. A escolha pelos autores citados foi realizada de modo a observar, com base em literatura técnica, a importância dada pelos jornais ao tema “erro médico” e ao posicionamento das informações referentes ao assunto no conjunto hierárquico relacionado às outras notícias. A caracterização do conteúdo noticioso que compõem o corpus e a posterior investigação teórica sobre o tópico abordado favoreceu a análise dos casos sob um ponto de vista crítico e, ao mesmo passo, normativo (um modelo “ideal”) para o jornalismo diário. Desse modo, compreendeuse com mais profundidade o questionamento central que desde o início serviu de parâmetro para a pesquisa: o jornalista está apto para lidar com temas com os quais não está habituado? Ainda no interior da questão metodológica, optou-se pela proposta de análise cunhada por Leon Sigal (1973), autor norte-americano que voltou-se a compreender desde a década de 1970 a maneira como as fontes e os canais de informação são selecionados para elaboração das notícias. As fontes de apuração são classificadas por Sigal como oficiais e não-oficiais ao passo em que os canais de informação adotados pelos jornalistas são nomeados de rotina, informais ou empresariais. Essa etapa exigiu, além de uma interpretação das matérias publicadas pelos periódicos,


entrevistas informais com profissionais da área que relataram as experiências que tiveram antes de redigir textos sobre o tema “erro médico”. Em especial, procurou-se averiguar quais foram as fontes e os canais de origem utilizados para a construção do conteúdo noticioso no contexto de Mato Grosso do Sul. Em linhas gerais, as matérias sobre eventuais erros da classe médica não foram elevadas de maneira recorrente à posição de manchete. Tal constatação, como não era esperado, contrariou uma hipótese inicial elaborada a partir das críticas dos profissionais da área da saúde de que as denúncias de “erro médico” sempre recebem destaque na imprensa. Na prática, porém, o tema foi mencionado nas capas dos periódicos por meio de chamadas e pequenas notas.

Ainda sobre

a posição hierárquica das notícias nos jornais analisados, observou-se que as matérias ocuparam as capas de determinados cadernos editoriais em alguns momentos da cobertura. Nesse sentido, infere-se que vez ou outra as informações foram consideradas prioritárias pelos editores.

O maior volume de textos sobre o

tema, contudo, foi encontrado em outras páginas internas dos jornais. Após a análise, concluiu-se também que as matérias foram abordadas majoritariamente no caderno de “Cidades‟ de ambos os veículos, aparecendo ocasionalmente na editoria “Geral” no caso do Correio do Estado (com exceção de apenas uma matéria presente no caderno “Correio +”).

A

pesquisa

avaliou

ainda

o

posicionamento hierárquico das informações nos periódicos em relação à área das páginas – quando na fração superior ou na fração inferior. Nesse quesito, conclui-se que a maioria das notícias foi posicionada na parte superior, mais valorizada editorialmente, especialmente na cobertura do caso do cirurgião Alberto Rondon. No Correio do Estado, 70% das matérias a respeito do médico cassado foram posicionadas na parte superior das páginas. A ocorrência do nome de Rondon na metade superior das páginas do O Estado MS ainda aparece em maior proporção: 77% contra 23% de notícias posicionadas na fração inferior do jornal. Quando em pauta está o caso do médico Alexsandro Souza, a ocorrência de notícias no topo das páginas no Correio do Estado é de 57% enquanto em O Estado MS todos os textos do período analisado aparecem na metade superior. As duas notas publicadas pelo Correio do Estado a respeito do médico Cézar Maksoud foram posicionadas na porção inferior das páginas. Já em O Estado MS, três publicações foram encontradas no alto da página e apenas uma nota esteve na fração inferior.


Dos quesitos avaliados com base no modelo teórico-metodológico de Shoemaker & Cohen (2006), o tamanho das notícias mereceu maior atenção durante a avaliação. Procurou-se, assim, fugir de equívocos de interpretação, visto que o critério utilizado para delimitação do tamanho de uma determinada matéria é variável – pode ter relação com a importância do tema, com o tamanho e ocorrência de outras pautas na página e até com os anúncios publicitários selecionados para o dia. Como frisado anteriormente, o trabalho considerou ainda a proposta metodológica de Leon Sigal (1973) para a análise dos canais de informação que deram origem às notícias e das fontes consultadas pelos jornalistas que assinaram as matérias. Nesse panorama, observou-se uma repetição de fontes que, em linhas gerais, se resumem a: 1) vítima; 2) presidente da Associação de Vítimas em Casos de Erros Médicos (AVEM-MS); 3) advogado do médico; e 4) presidente do Conselho Regional de Medicina. Não há, em nenhum dos casos selecionados nos jornais, a fala do profissional de saúde envolvido na suspeita de erro em questão. A pesquisa revela que a imprensa privilegia fontes oficiais, visto que os responsáveis foram ouvidos, mas vale-se também da versão de vítimas e ainda de “possíveis vítimas” que servem de fontes, mesmo quando os casos não estão confirmados. Nota-se a ausência, na cobertura da imprensa campo-grandense do tema, da opinião de outro médico sem envolvimento com o caso que pudesse oferecer explicações efetivas sobre como se caracteriza um erro, bem como sobre o modo pelo qual o referido ocorrido poderia ter sido evitado e até sobre os cuidados no pós-operatório. Tudo isso, de modo a ilustrar de maneira técnica a questão e facilitar a interpretação do tema pelos leitores.

Sobre os canais de informação utilizados pelos jornalistas,

observou-se a prevalência dos chamados “canais de rotina” e dos “canais informais”, conforme a classificação de Leon Sigal (1973). Por outro lado, há pouca incidência do denominado “canal empresarial”, aspecto que abrange entrevistas exclusivas, coberturas de acontecimentos espontâneos com base na apuração dos próprios jornalistas, pesquisas e análises originadas no interior da redação – o que se justifica pelo caráter factual da abordagem do tema “erro médico” na imprensa. Não há uma única reportagem específica e aprofundada sobre o conceito de “erro médico”, mas notícias que tratam de denúncias singulares e factuais ou publicações sobre o andamento dos processos na justiça. Em outras palavras, os profissionais


da comunicação não fizeram entrevistas aprofundadas com fontes especializadas e, a partir dessa apuração, construíram matérias interpretativas sobre a temática. Também não há registro de pesquisa e de análise de dados que tenha tido origem no trabalho do próprio jornalista como ponto inicial das notícias – uma hipótese que era considerada desde o início deste estudo visto que o Conselho Regional de Medicina não costuma informar sobre os processos ou denúncias. O sigilo adotado pelos profissionais da área de saúde impede que os profissionais da comunicação realizem matérias mais analíticas sobre os fatos. Assim, não há “jornalismo de dados” quando em questão está o tema “erro médico”. As notícias não partem de eventos espontâneos, tampouco são realizadas consultas a livros ou pesquisas para elaboração das matérias, o que, como já foi dito anteriormente, se justifica pelo tratamento de caráter factual dado pela imprensa aos casos desse tipo. Os canais de rotina deram origem a algumas das informações publicadas pelos jornais campo-grandenses, em especial as notas que foram divulgadas pelas assessorias de imprensa tanto do CRM quanto dos tribunais de justiça. Não há ocorrências – na cobertura dos jornais em casos de erro médico – de outras modalidades de canais de rotina previstas por Leon Sigal (1973): press-releases, conferências de imprensa e eventos não-espontâneos, o que é compreensível, posto que não é de interesse das classes envolvidas divulgar o tema (aqui estão também relacionadas as vítimas, que muitas vezes não querem tratar do assunto na imprensa). Concluiu-se ainda que a cobertura da imprensa sobre os casos de erro médico valeu-se em maior intensidade dos canais informais: denúncias, trâmites não-oficiais, relatórios e sondagem informal (SIGAL, 1973). As denúncias, nesse aspecto, aparecem como origem para a maioria das notícias divulgadas nos jornais (não somente nos casos de erro médico, mas também em temáticas de outras editorias). Todavia, para os fins desta pesquisa, observou-se que o critério de denúncia não apenas deu origem às matérias como teve influência direta no volume de notícias divulgadas e no espaço delimitado para as informações. Por esse conceito, há nos dois jornais mais notícias relacionadas ao médico cassado Alberto Rondon do que ao também cirurgião cassado Alexsandro de Souza. Vale ressaltar que os dois profissionais cometeram o mesmo erro: falharam por imperícia. Porém, enquanto 175 pessoas foram afetadas por Alberto Rondon, os registros contra


Alexsandro Souza apontam para danos contra sete vítimas, incluindo uma mulher que foi morta após um procedimento cirúrgico realizado pelo médico cassado. A sondagem informal também é um dos meios que os jornalistas se valem para tomar conhecimento de novas pautas. No contexto do erro médico, ocorre quando os profissionais da comunicação conversam com vítimas de algum profissional da saúde e acabam tendo acesso a outras fontes, ou a informações distintas das que foram pesquisadas inicialmente. Verificou-se ainda que os outros quesitos previstos na classificação dos canais informais de informação para notícia foram utilizados em menor intensidade ou não foram empregados. São eles: trâmites e relatórios/dossiês não-oficiais. O caráter polêmico e sigiloso com que o tema é tratado pela classe médica impede os jornalistas de obterem informações sobre o assunto. Por isso, observou-se também certa conformidade entre os jornais em relação ao tratamento dos casos. Uma vez mais, contudo, corrobora-se a opinião de que as dificuldades enfrentadas pelos profissionais não devem, de maneira alguma, justificar falhas que podem ser evitadas. Com base nisso, ao fim da pesquisa foi apresentada uma proposta para contribuir para um jornalismo mais eficaz e interpretativo na cobertura de erros médicos.

Habitou-se

na

contemporaneidade à informação conforme os interesses próximos dos leitores, sobretudo depois da consolidação do jornalismo online, modalidade que permite esse tipo de disponibilidade de conteúdo. A seleção do que é interessante ocorre também nos meios de comunicação impresso, quando o consumidor de notícias lê apenas as informações que considera interessante e descarta as outras editorias. A atitude de escolha e/ou desprezo a determinadas notícias pelo leitor não se configura propriamente um equívoco, mas constitui uma influência direta na formatação dos assuntos que serão publicados pela imprensa. A mídia não erra quando considera a opinião do público para elaboração das notícias; no entanto, esse não deve ser o único critério adotado. Observa-se uma tendência na imprensa em priorizar o interesse do público, mas propõe-se nesta pesquisa a priorização do interesse público em sua caracterização histórica. Por meio da leitura das notícias sobre “erro médico”, verificou-se que tanto Alberto Rondon quanto Alexsandro de Souza cobravam preços inferiores pelos procedimentos, ou seja, as vítimas foram atraídas pela vantagem financeira. A imprensa publicou essa informação, mas poderia ter enfatizado os riscos a respeito de tal atitude. Ambos os jornais poderiam


ter realizado uma abordagem mais aprofundada, interpretativa e educativa sobre o tema. De maneira recorrente, a mídia divulga o nome dos envolvidos em um processo judicial desde o início das investigações. Quando se trata de erro médico, evidentemente, a situação não é diferente. Entretanto, vale ressaltar que, uma vez publicada, a notícia pode também se tornar um fato por meio da construção de sentidos que promove sobre a realidade (GOMES, 2009). Tal atitude pode configurar uma falha quando os fatos não são confirmados. Ao fim das investigações – e somente após elas –, os médicos Alberto Rondon e Alexsandro Souza foram condenados e Cézar Maksoud foi absolvido. Todavia, mesmo a absolvição do médico não é suficiente para apagar seu nome dos jornais como suspeito. Nesse contexto, propõe-se uma solução intermediária: divulgar as denúncias, mas não o nome dos envolvidos até o final das investigações e do julgamento em última instância.

Com a mesma frequência, a imprensa

se vale exclusivamente das informações de boletins de ocorrência para a elaboração das notícias. Esses registros, porém, constituem apenas informações preliminares que podem ser modificadas no decorrer das investigações. Para a construção de um “jornalismo ideal” sugere-se a não construção de notícias com base exclusiva nesses meios.

Da análise do corpus, observou-se algumas vezes a justificação

da ausência de declaração de um dos envolvidos pela falta de tempo para o fechamento da edição. Esse procedimento somente ocorre pelo caráter imediatista da mídia que concede grande peso à concepção de “novidade”. Para o alcance da eficácia jornalística, nesse caso, sugere-se que a atitude correta seria aguardar a declaração dos envolvidos até as últimas consequências. Outra proposta apontada ao fim da pesquisa, quando em pauta está o erro médico, é o aguardo do resultado de laudos periciais ao invés da divulgação de informações preliminares. Em relação à delimitação das áreas destinadas às notícias sobre casos de erro médico, confirmou-se que os espaços dos jornais são pautados quase exclusivamente pelo caráter da “novidade”, o que não se configura em erro, desde que o mesmo espaço seja dado futuramente às possíveis retratações.

Por fim, a priorização do factual também contraria a

concepção daquele que seria um modelo de “jornalismo ideal”, uma vez que este propõe a interpretação dos temas ao invés da mera exposição dos fatos. No contexto da cobertura de erros médicos, diversas outras pautas – que não a


denúncia – poderiam ter sido abordadas pela imprensa: a formação dos médicos, as escalas de trabalho, o tratamento dado aos pacientes, a procura dos sul-matogrossenses por cirurgias plásticas, entre outros.

Apesar

de

a proposta apresentada nesta monografia a partir de uma perspectiva normativa parecer intangível, trata-se de um rol de atitudes simples e aprendidas durante a formação jornalística que podem ser adotadas de modo a contribuir para a consolidação de um jornalismo mais eficiente.


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