UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS CURSO DE JORNALISMO
CASSIA MODENA DE SOUZA
A violência contra a criança e o adolescente indígena na imprensa sul-mato-grossense: análise a partir de parâmetros normativos
Campo Grande (MS) SETEMBRO/2016
CASSIA MODENA DE SOUZA
A violência contra a criança e o adolescente indígena na imprensa sul-mato-grossense: análise a partir de parâmetros normativos
Monografia apresentada como requisito parcial para aprovação na disciplina Projetos Experimentais do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
Orientador: Prof. Dr. Marcos Paulo da Silva
DEDICATÓRIA Ao meu filho, Caio, de quem roubei valiosas horas de amor e atenção para desenvolver este trabalho.
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos familiares, amigos e professores que me ofereceram o suporte, apoio e formação necessários para desenvolver este trabalho e concluir, enfim, a tão esperada graduação em Jornalismo. Dos familiares e amigos recebi compreensão, afeto e puxões de orelha que considero terem sido decisivos para o meu crescimento enquanto estudante, mãe e pessoa. Entre todos eles, agradeço especialmente às mulheres: minha mãe, minhas tias, minhas primas e minhas amigas. Sabemos que temos obstáculos diferenciados a enfrentar, e eu sou grata pela sorte de contar com a ajuda de vocês para superar alguns deles. Uma lembrança especial à Elsi (in memorian) que fez de tudo para que eu não desistisse da faculdade mesmo após passar por algumas dificuldades. Amigos que têm relação direta com a escolha do tema deste trabalho e que quero citar aqui são a Nathaly e o Marcelo, com quem eu aprendi bastante sobre a questão indígena. Obrigada! Agradeço a todos os professores que tive, do ensino básico à graduação. Outra lembrança especial entre eles é o professor Mário Ramires (in memorian), que exerceu grande influência na minha formação. Não dá para deixar de citar e agradecer a atenção, compreensão, paciência e estímulo que recebi do meu orientador, o professor Marcos Paulo, e as sugestões certeiras que recebi das professoras Katarini e Rose na banca de qualificação.
LISTA DE TABELAS, FIGURAS, GRÁFICOS, ILUSTRAÇÕES
Tabela 1: Principais dados sobre a população indígena no Brasil...........................................13 Tabela 2: População indígena em Mato Grosso do Sul segundo a etnia.................................20 Gráfico 1 - Ranking das 10 TIs fora da Amazônia Legal com mais casos de violência contra a pessoa........................................................................................................................................24 Gráfico 2 – Casos de violência contra a criança e o adolescente indígena em Mato Grosso do Sul.............................................................................................................................................28 Gráfico 3 - Os direitos humanos como base para normas éticas e legais................................34 Quadro 1 – Sistematização dos parâmetros normativos para a cobertura jornalística de casos de violência contra crianças e adolescentes indígenas..............................................................50 Figura 1 - Matéria 1 do jornal Correio do Estado...................................................................56 Figura 2 – Matéria 2 do jornal Correio do Estado...................................................................57 Figura 3 - Matéria 3 do jornal Correio do Estado....................................................................59 Figura 4 - Matéria 4 do jornal Correio do Estado....................................................................60 Figura 5 - Matéria 5 do jornal Correio do Estado....................................................................61 Figura 6 - Matéria 1 do jornal O Progresso.............................................................................62 Figura 7 - Matéria 2 do jornal O Progresso.............................................................................64 Figura 8 - Matéria 3 do jornal O Progresso.............................................................................65 Figura 9 - Matéria 4 do jornal O Progresso.............................................................................66 Figura 10 - Matéria 5 do jornal O Progresso...........................................................................67 Quadro 2 – Sistematização da análise descritiva das matérias................................................68
RESUMO SOUZA, Cassia Modena de. A violência contra a criança e o adolescente indígena na imprensa sul-mato-grossense: análise a partir de parâmetros normativos. 2016. Monografia (Graduação em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo). Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campo Grande-MS, Setembro de 2016.
Esta monografia tem como objetivo analisar se a cobertura da imprensa sul-mato-grossense em relação à violência contra a criança e adolescente indígena corresponde a um modelo ideal, definido por parâmetros éticos e jurídicos estabelecidos a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, da Constituição Federal, da Convenção n° 169 da Organização das Nações Unidas sobre Povos Indígenas e Tribais, do Estatuto dos Povos Indígenas e do Estatuto da Criança e Adolescente. Parte-se da hipótese de que as produções jornalísticas regionais desconsideram normas contidas nesses aparatos e que, dessa forma, não conseguem contribuir com a plena consolidação e reivindicação da cidadania daqueles grupos, um compromisso do exercício do jornalismo voltado a mediar as relações sociais e servir ao interesse público. Optou-se por metodologia não-probabilística e aleatória, que selecionou como amostragem 10 matérias publicadas no período de 1° de janeiro a 2 de agosto de 2016 pelos jornais Correio do Estado e O Progresso de Mato Grosso do Sul.
Palavras-chave: Jornalismo; Violência; Criança; Adolescente; Indígena.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 9
1. VIOLÊNCIA CONTRA OS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL ...................................12 1.1 A violência contra indígenas na história de Mato Grosso do Sul ..........................17 1.2 A diversidade cultural de povos em Mato Grosso do Sul .....................................19 1.3 Violência contra os povos indígenas de Mato Grosso do Sul na atualidade ..........23 1.4 Crianças e adolescentes indígenas vítimas de violência em Mato Grosso do Sul...25 2. PARÂMETROS NORMATIVOS PARA A COBERTURA JORNALÍSTICA DA VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES INDÍGENAS ......................29 2.1 As normas éticas e legais no estabelecimento dos parâmetros ............................32 2.1.1 Declaração Universal dos Direitos Humanos.....................................................34 2.1.2 Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros........................................................38 2.1.3 Legislação indigenista e o Estatuto dos Povos Indígenas ...................................41 2.1.4 Estatuto da Criança e do Adolescente ...............................................................47 2.2 Sistematização das normatizações ..........................................................................49 3. ANÁLISE NORMATIVA DA COBERTURA DA IMPRENSA SOBRE VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE EM MATO GROSSO DO SUL.........53 3.1 Análise descritiva .................................................................................................56 3.1.1
Correio do Estado ...........................................................................................56
3.1.2
O Progresso .....................................................................................................62
3.1.3
Sistematização da análise descritiva.................................................................68
3.2 Análise normativa.................................................................................................70 3.2.1 Considerações sobre a análise normativa............................................................76
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................77 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...............................................................................79 ANEXOS E APÊNDICES.................................................................................................85
INTRODUÇÃO
No Brasil, a presença de sociedades de culturas plurais como os povos indígenas tanto é motivo de exaltação quanto de intolerância. Em um viés romântico, são grupos que representam a preservação dos recursos naturais e de saberes tradicionais. Em outro momento, tornam-se selvagens, oportunistas e invasores de terras adquiridas de “boa-fé” por seus proprietários. Uma questão que, de fato, os afeta de modo negativo é a violência, assunto deste trabalho. Ela será discutida com o auxílio de uma série de dados e de concepções teóricas, sobretudo em relação a seu contexto atual em Mato Grosso do Sul, unidade federativa onde vive uma considerável parcela da população indígena do país, composta por mais de 77 mil pessoas (IBGE, 2010). Os casos de violência registrados revelam as atuais situações de vulnerabilidade em que se encontram os grupos étnicos indígenas que resistiram a processos de expropriação de terras e aldeamentos promovidos nesse Estado ao longo da história. A criança e o adolescente indígena1, apesar de representarem categorias que possuem mecanismos legais e políticas públicas específicas voltadas para sua proteção, são também afetados, algumas vezes em proporções até maiores em relação aos demais integrantes da comunidade à qual pertencem. O objetivo geral desta monografia é analisar se a imprensa regional realiza coberturas noticiosas sobre a violência contra o indígena criança e adolescente de Mato Grosso do Sul com observância a critérios – legais e éticos – mínimos, e, assim, contribui para gerar debates públicos sobre a cidadania desses grupos e mobilizar ações concretas que visem o estanque do problema. Para tanto, será feita uma sistematização de normas éticas e legais consideradas fontes de parâmetros que possam orientar uma cobertura avaliada como ideal. Os então denominados parâmetros normativos serão extraídos de aparatos embasados nos direitos humanos, sendo eles o Código de Ética dos Jornalistas e leis e outros dispositivos jurídicos direcionados aos povos indígenas e às crianças e adolescentes.
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Devido a especificidades culturais de cada povo indígena, essas categorias podem não ser concebidas da mesma forma ou até mesmo não reconhecidas. Em algumas sociedades, por exemplo, apenas a infância é reconhecida, sendo estipulados ao final dessa fase rituais de passagens para a vida adulta. Este trabalho se vale de uma interpretação que já reconhece a categoria adolescente como aceita entre povos de Mato Grosso do Sul, como será demonstrado adiante.
A opção por uma abordagem normativa ao invés de outra de teor crítico (SOARES, 2005) se dá em função de ela servir como referência ao exercício do jornalismo intencionado a cumprir um papel social que lhe cabe e o fundamenta: servir ao interesse público e à cidadania. Um outro motivo é que a reunião dos parâmetros definidos na perspectiva normativa deste trabalho poderão, oportunamente, servir como guia prático para jornalistas. A análise será feita por meio de uma amostra aleatória não-probabilística de representatividade social (LOPES, 2005), isto é, foram selecionadas a partir da temática um total de dez matérias jornalísticas consideradas significativas nos jornais impressos de Mato Grosso do Sul, o Correio do Estado e o O Progresso, publicadas no período compreendido entre 1° de janeiro a 2 de agosto de 2016. O critério de escolha dos veículos baseou-se no alcance – o primeiro tem sede na capital, Campo Grande, e circula em grande parte dos demais municípios do Estado; o segundo tem sede em Dourados, cidade onde se encontra a maior concentração demográfica de pessoas indígenas no Estado, e também circula nos municípios do interior, sobretudo naqueles em que vive considerável número de pessoas indígenas. O critério de escolha do período foi a ocorrência de dois eventos relevantes do ponto de vista da análise: um confronto entre índios e fazendeiros que deixou um guaranikaiowá morto e o andamento e conclusão dos trabalhos de uma Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul que investigou casos de violência entre os indígenas sul-mato-grossenses. As matérias encontradas entre as datas foram filtradas e optou-se por analisar as que abordavam a violência não-simbólica, tema central da maioria. Este trabalho está estruturado em três capítulos. O primeiro aborda a violência contra os povos indígenas do Brasil e de Mato Grosso do Sul como elemento que acompanhou as mudanças sociais e políticas do país e a conquista de direitos pelos índios e, nesse contexto, retrata as crianças e adolescentes como categorias especialmente afetadas por ela. O segundo capítulo discute qual seria o papel do jornalismo no que diz respeito à cidadania, de acordo com o viés normativo – de que forma ele pode, segundo seus princípios, atuar a favor da consolidação e reivindicação dos direitos – e estabelece, por meio de uma sistematização, os parâmetros legais e de conduta ética do jornalista que podem orientar uma cobertura noticiosa considerada ideal em relação à violência contra as crianças e adolescentes indígenas de Mato Grosso do Sul. No último capítulo é feita uma análise descritiva das notícias e reportagens publicadas pela imprensa regional e, por fim, a análise normativa de todo esse material.
Os resultados obtidos sinalizam que a cobertura realizada no período definido está ainda distante dos parâmetros sugeridos como ideais. Apesar de as matérias selecionadas, como um todo, não atenderem as expectativas quanto ao papel do jornalismo em promover e reivindicar cidadania dos povos indígenas de Mato Grosso do Sul – uma questão urgente pela vulnerabilidade dessa população e pela necessidade de debate mais aprofundado sobre as causas e soluções do problema – foi possível identificar produções jornalísticas que contribuem para a discussão em um ou mais aspectos, e que não se distraem do compromisso de abordar criticamente esse assunto. Por outro lado, os resultados da análise também confirmam a hipótese inicial de que parte da imprensa sul-mato-grossense se atenta mais a cobertura de casos episódicos sobre a violência contra o indígena, o que reduz a probabilidade de o jornalismo causar reflexão sobre ela, contemplando a viés da questão estrutural que é, e gerar mobilização social quanto a ela.
1. VIOLÊNCIA CONTRA OS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL
As violências física e simbólica contra os povos indígenas brasileiros existem desde o seu encontro com o europeu, há mais de 500 anos. Permearam essa relação no passado, quando geraram um verdadeiro massacre dos povos nativos sob o esteio da colonização, e continuam presentes mesmo após uma sucessão de fatos históricos. A história oficial privilegia um enredo sobre a formação do Brasil que é contado a partir dos primeiros povoamentos, das primeiras lideranças políticas e do desencadeamento do processo de desenvolvimento econômico das regiões mais estratégicas. Os indígenas costumam ocupar o papel de meros coadjuvantes nessas narrativas (ALMEIDA, 2003), ora são sujeitos oprimidos pelo colonizador, ora não são mais do que um dos grupos que deixaram marcas na cultura brasileira. Contada dessa forma, a narrativa histórica suprime fatos que são relevantes para desvelar o processo de permanência dos povos indígenas no território brasileiro e que se correlacionam com o que se passa no presente. Esquece-se de elucidar que, diante da conquista territorial truculenta, da colonização política e cultural europeia desinteressada pela existência do Outro, os índios, como foram denominados primeiramente por Christovão Colombo2, encontraram formas de resistir ao processo de despovoamento (CUNHA, 1992) que fundou o Brasil. O genocídio das populações indígenas que se voltavam contra essa dominação de fato aconteceu no sentido físico e cultural (WILL, 2014), mas apesar de as guerras e doenças ceifarem vidas e modos de viver no período colonial, os povos indígenas reagiram negociando suas perdas, empreendendo fugas e forjando alianças. Desde que Portugal considerou todo o território brasileiro como parte de seus domínios imperialistas, ignorando a presença de populações nativas e promovendo nele as primeiras formas de ocupação, a questão agrária – relativa à posse, propriedade e uso das terras – passou a ser a principal preocupação. Da colônia à república foram editados mecanismos normativos e leis para sua regulação, que também incluíam os índios, no entanto, suas garantias de posse eram desprezadas e frequentemente contornadas por manobras políticas (ARAÚJO, 2006). O direito à demarcação e usufruto de suas terras hoje é sistematicamente previsto e assegurado pela atual Constituição Federal de 1988, mas a questão territorial ainda assim continua sendo a mais emblemática reivindicação dos povos 2
Colombo teria se deparado com o Novo Mundo ao pensar que navegava em direção às Índias do oriente, em nome da Coroa espanhola. Por causa disso, assim nomeou os primeiros habitantes da América com quem teve contato (LUCIANO, 2006).
indígenas, principalmente diante da necessidade de espaços que ofereçam condições mínimas para a subsistência da crescente população de índios do país. Estimativas do número de indígenas que habitavam o Brasil antes da chegada das naus portuguesas carecem de exatidão, algumas projeções apontam para uma população aproximada de até cinco milhões de pessoas3. Já nos anos 1950, o antropólogo Darcy Ribeiro elaborou estudo com base em dados do antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) que alertava para a diminuição da população indígena e para a extinção de etnias no país. Essa e outras publicações de sua autoria levaram a crer na época que havia um processo de decréscimo desses povos e de total desaparecimento de suas culturas em andamento (RIBEIRO, 1957 apud MELLATTI, 2007). No entanto, na década de 70 ganhou força a mobilização indígena, que cobrava a superação desse discurso e reclamava o reconhecimento de sua identidade e diversidade cultural, além do direito dos índios às terras que já lhes pertenceram em um passado mais recente, mas haviam sido expropriadas e tituladas a terceiros. Esse movimento passou também a afrontar propósitos de emancipação dos índios pelo Estado consumados em lei que os considera como um contingente populacional transitório, a ser integrado completamente à sociedade nacional com o passar do tempo (LUCIANO, 2006, p. 20)4. Ao final do século passado, números divulgados oficialmente apontavam uma população de aproximadamente 234 mil indígenas no país (IBGE, 1991). O último recenseamento geral, publicado em 2010, trouxe informações mais delineadas 5 e revelou que, ao contrário do que se pensava, a quantidade de pessoas que se autodeclararam indígenas havia crescido:
Tabela 1: Principais dados sobre a população indígena no Brasil
POPULAÇÃO INDÍGENA ETNIAS INDÍGENAS LÍNGUAS INDÍGENAS
895.917 305 274
Fonte: IBGE, 2010
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Autores como Julian Steward, Willian Denevan e Jhon Hemming desenvolveram estudos demográficos com a finalidade de calcular a população indígena que habitava o Brasil nessa época. De acordo com os resultados obtidos, é possível estimar que a população indígena era de 3 a 5 milhões de pessoas (MELLATI, 2007). 4
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Referência à lei n° 6001 de 19 de dezembro de 1973, conhecida como Estatuto do Índio.
O Censo 2010 do IBGE aplicou um questionário específico direcionado às pessoas que se autodeclararam indígenas e os resultados revelaram dados geográficos e de relação étnica e linguística não investigados pelos recenseamentos anteriores.
Com o desenvolvimento econômico, a modernização e a urbanização do país vieram o reconhecimento da cidadania do indígena e avanços na adoção de políticas públicas em assistência, saúde e educação a eles direcionadas – serviços ainda deficitários, na prática. No entanto, essas mesmas mudanças paradoxalmente também fizeram dos povos indígenas minorias sociais que ficaram à margem desses processos, quer em contextos urbanos ou rurais, e assumem-se como ameaças a organização e a sobrevivência de suas sociedades. Segundo Borges (2016, p. 306-307): As políticas de Estado – produzidas e negociadas no complexo cultural (e normativo) do capitalismo contemporâneo – demoraram para reconhecer a cidadania indígena. Antes o contrário: vêm refletindo noções e crenças hegemônicas que sustentam formas de etnocentrismo, que atravessam as instâncias federativas formais e conformam práticas capilares de governabilidade, que sistematicamente vêm excluindo os índios dos processos de estatização no Brasil, conforme assinala Lima (1995; ver também Foucault, 2002, cap. 2-3; Marston, 2004). Nas últimas décadas, os índios tiveram razoável sucesso na resistência ao status de ser transitório e, logo, no reconhecimento de que a eles poderiam (deveriam) ser direcionados os mesmos programas, projetos e ações concebidos para a população em geral. Somente no final da década de 1980, é que os índios foram plenamente reconhecidos como sujeitos de direitos territoriais, civis e políticos, não sem uma tenaz resistência frente ao padrão colonial de poder vigente (Ramos, 1998; Quijano, 2014).
Neste século, os povos indígenas buscam sustentar suas bases culturais frente ao Estado nacional e reivindicam o reconhecimento e a efetivação de seus direitos como integrantes de uma sociedade distinta da predominante, mas, sobretudo brasileira. A garantia territorial – sendo a terra culturalmente compreendida não como propriedade privada, e sim como o espaço em que se vive tradicionalmente – é a principal condição para que isso ocorra, pelo significado especial que possui para eles: Território é condição para a vida dos povos indígenas, não somente no sentido de um bem material ou fator de produção, mas como o ambiente em que se desenvolvem todas as formas de vida. Território, portanto, é o conjunto de seres, espíritos, bens, valores, conhecimentos, tradições que garantem a possibilidade e o sentido da vida individual e coletiva. A terra é também um fator fundamental de resistência dos povos indígenas. É o tema que unifica, articula e mobiliza todos, as aldeias, os povos e as organizações indígenas, em torno de uma bandeira de luta comum que é a defesa de seus territórios (LUCIANO, 2006, p. 101).
Inúmeras terras foram expropriadas dos índios no passado e tituladas a terceiros pelo Estado, com vistas ao desenvolvimento econômico. Como forma de restituí-las e reparar esse erro histórico é que a Constituição Federal de 1988 passou a prever o direito ao seu reconhecimento e demarcação, desde que a posse originária seja comprovada por meio de estudos antropológicos. A demarcação conclui-se após os seguintes procedimentos: 1) estudo de identificação e delimitação da terra, 2) contraditório administrativo, 3) declaração dos limites pelo Ministério da Justiça, 4) demarcação física pela Fundação Nacional do Índio (Funai), 5) levantamento fundiário de avaliação de benfeitorias implementadas pelos ocupantes não-índios, 6) homologação da demarcação pela Presidência da República, 7) retirada de ocupantes não-índios, com pagamento de benfeitorias consideradas de “boa-fé” e reassentamento dos ocupantes não-índios que atendem ao perfil da reforma, 8) registro das terras indígenas na Secretaria de Patrimônio da União, 9) interdição de áreas para a proteção de povos indígenas isolados, a cargo da Funai6. O direito à demarcação das terras tradicionais não se vale do argumento do pertencimento material e ancestral, anterior à chegada de Cabral ao Brasil, mas sim da concepção desses espaços como “[...] algo construído e constantemente reconstruído de acordo com a dinâmica própria de cada população, (que) torna-o inseparável da história de um povo indígena. Remete, portanto, para ‘contingências históricas’ [...]” (NASCIMENTO; URQUIZA, 2013, p. 58). Entretanto, muitas áreas reivindicadas a partir desse entendimento ainda não foram demarcadas, principalmente por causa da existência de interesses antagônicos entre índios e os fazendeiros, seus atuais proprietários. O agronegócio é elemento que faz parte da formação histórica de Mato Grosso do Sul e, atualmente, é o que impulsiona sua economia. Esse apelo mantém os interesses dos produtores rurais acima de qualquer outro, mesmo que a custo da sobrevivência das populações indígenas e da violação de seus direitos. Há pessoas indígenas em todos os Estados brasileiros, mas estima-se que as Terras Indígenas (TIs) destinadas ao seu usufruto ocupem apenas 13% de toda extensão territorial do país, enquanto justamente nelas foram registrados os maiores índices demográficos em relação aos povos indígenas (IBGE, 2010). As consequências da inação do Estado e da morosidade do poder judiciário nas ações de demarcação e na resolução definitiva desse impasse são disputas em ações judiciais
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O processo de demarcação é regulamentado pelo Decreto n° 1775/96.
que se arrastam por até mais de 20 anos sem decisão7, enquanto comunidades inteiras vivem em situações de precariedade e se instalam em locais de risco, além de frequentemente se envolverem em conflitos armados no próprio espaço físico reivindicado, o que tem resultado em mortes e em um clima permanente de insegurança. De acordo com o relatório En Terreno Peligroso (2016), produzido pela organização não-governamental Global Witness, em 2015 o Brasil apresentou os maiores índices em todo o mundo de mortes violentas provocadas por disputa de território rural, e lidera esse ranking pelo quinto ano consecutivo. A maioria das vítimas (40%) é indígena, segundo a organização. Estudos semelhantes sobre a violência no campo não são realizados no país, e o relatório também alerta para isso. Infere-se que a questão da terra é a constante da lista das principais violações dos direitos dos indígenas – que são resguardados nas esferas estatal e, inclusive, internacional – e gera outras formas de violações, sendo a violência a mais patente entre elas. Muitas vezes ela passa despercebida na interpretação de compilados de dados oficiais como, por exemplo, o Mapa da Violência. Nele, a categoria indígena apresenta números pouco quantitativos em relação às demais categorias8 (WAISELFISZ, 2014), mas considerando que os índios compõem atualmente apenas 0,4% de toda população (IBGE), a proporção dos casos de violência que os atinge em relação ao número de pessoas indígenas no país gera índice que, comparado aos números da média nacional, pode ser considerado alarmante. Questões sobre violência contra os povos indígenas são aprofundadas e avaliadas em relatórios e banco de dados mantidos por instituições não ligadas ao poder público, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e o Instituto Socioambiental (ISA)9, por exemplo, bem como em publicações como o livro Indígenas no Brasil – Demandas dos povos e
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O artigo n° 67 da Constituição Federal de 1988 estabelece que “a União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição” (BRASIL, 1988). Entretanto, há vários processos judiciais andamento que prolongam a espera dos povos indígenas pela demarcação em até duas décadas. A informação é do Ministério Público Federal em Mato Grosso do Sul, órgão que atua em defesa das populações indígenas e é parte legítima nos processos pela demarcação de terras. Disponível em: http://noticias.pgr.mpf.mp.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_indios-e-minorias/nota-a-imprensa-esclarecedemarcacao-de-terras-indigenas-em-mato-grosso-do-sul. Acesso em agosto de 2016. 8
As categorias consideradas pelo mapa são raça/cor/etnia. A da etnia é representada por indígena, e as demais, de raça/cor são definidas em amarelo, branco, pardo e preto (WAISELFISZ, 2014). 9
O ISA e o Cimi realizam monitoramento independente dessas informações, que são obtidas através da colaboração de pesquisadores, missionários (caso do Cimi) e índices da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), Distrito Sanitário de Saúde Indígena (DSEI).
percepção da violência10 (BOKANY; VENTURI, 2013), que aponta, a partir de resultados obtidos em pesquisa de opinião pública, que enquanto prevalece a ilusão da resolução do problema das terras indígenas no campo jurídico, o preconceito, a exclusão social e a violência são invisibilizados entre os povos indígenas. Mato Grosso do Sul, unidade federativa do Brasil onde vivem aproximadamente 77 mil indígenas – maior população da região Centro-Oeste e segunda maior população do país, atrás apenas do Amazonas (IBGE, 2010) – vem apresentando os maiores índices de violência praticada contra o índio e também autoprovocada por ele. Antes de prosseguir com a apresentação dos dados que sustentam essa afirmação, é imprescindível compreender o processo de formação do Estado diante da presença de indígenas na região e saber onde estão hoje e qual a atual diversidade cultural dos povos que permaneceram.
1.1 A violência contra indígenas na história de Mato Grosso do Sul Desde o século XVI os bandeirantes, colonos paulistas, adentravam o interior do Brasil, região conhecida como sertões, em busca do aprisionamento de índios para o trabalho forçado em São Paulo. A partir do século XVIII essas empreitadas se intensificaram, especialmente com a descoberta do ouro na porção norte, onde fica hoje o município de Cuiabá, capital do Estado de Mato Grosso. Nesse meio tempo, a região meridional dos sertões, onde hoje está Mato Grosso do Sul, servia somente como rota para as bandeiras e para as monções, caravanas de ocupações permanentes que iam se formando nas proximidades do ouro (ESSELIN; OLIVEIRA, 2007, p. 38). Em 1770, a ameaça da invasão espanhola levou à necessidade da demarcação e a incitação da ocupação dessa região, já que ela incidia nos ainda imprecisos limites territoriais da coroa portuguesa. Em resposta a esse estímulo, fazendeiros começaram a empreender ali a criação de gado e lavouras. Essas primeiras ocupações, na então província de Mato Grosso, foram marcadas pela escravidão e expropriação do território tradicional indígena antes estabelecido, e tornaram-se ainda mais fortes no período pós-guerra com o Paraguai (1864-1870). A presença de pessoas não indígenas e o desenvolvimento de atividades econômicas nessa região era ainda mais interessante do ponto de vista fiscal, pois gerava lucro
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A publicação mencionada reúne análises de antropólogos brasileiros em relação aos resultados de pesquisa de opinião pública inédita feita entre os anos 2010 e 2011 pelo Instituto Rosa Luxemburgo e pela Fundação Perseu Abramo. Pode ser consultada em: http://novo.fpabramo.org.br/sites/default/files/Ind%C3%ADgenas%20do%20Brasil.pdf
ao governo, a essa altura endividado por causa dos altos custos do longo combate militar com o país vizinho. Como resultado, os povos indígenas que já viviam em comunidades desestabilizadas dispersaram-se ainda mais pela região. Sem suas terras, era comum que fossem explorados como mão-de-obra nas fazendas, atuando como vaqueiros e também no transporte de embarcações e na produção da borracha, erva-mate e alimentos. Nesse período, foi empregado especialmente o trabalho do povo Terena, reconhecidos como exímios agricultores, e dos remanescentes do povo Guaikuru, habilidosos na lida com o rebanho e com as intempéries climáticas da região do Pantanal sul, junto também à servidão dos povos Kinikináu, Layana, Guató e Guaná (ESSELIN; OLIVEIRA, 2007, p. 39-40). Por meio dessa dinâmica, consolidou-se a fixação do colono em Mato Grosso. Mais tarde, na primeira metade do século XX a política expansionista do governo de Getúlio Vargas conhecida como “Marcha para o Oeste” motivou, desta vez, a migração massiva de pessoas e companhias internacionais como a Matte Laranjeira para exploração econômica da região. A criação da Colônia Agrícola de Dourados (CAND) fazia parte desse projeto político-econômico e se dá em sobreposição ao extenso território dos Kaiowá e Guarani que historicamente ocupavam grande parte da região. A justificativa foi a de que se tratavam de terras devolutas11, mas elas haviam sido expropriadas desses povos, quer pela imposição da força e da violência ou pela grilagem e titulação indevida aos novos donos. Além dessas ações diretas, a anuência do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e a omissão do Estado e do poder judiciário na época foram os dois grandes agentes responsáveis pela legitimação de um processo violento de esbulho territorial (NASCIMENTO; URQUIZA, 2013). Mesmo expulsos, mais tarde os indígenas ainda trabalharam nas fazendas recéminstaladas e eram explorados pela Companhia Matte Laranjeira na produção de erva-mate. Quando sua presença passou a ser dispensável, os Guarani e Kaiowá foram removidos para áreas demarcadas pelo SPI para a sua concentração, junto também a outros povos indígenas da região. O relatório final da Comissão Nacional da Verdade, que apurou e recuperou histórias de violações de direitos humanos praticadas no Brasil, apontou uma série de abusos em relação ao aldeamento nesse período, conforme o seguinte relato:
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Termo servia para designar terras vagas, em que não havia ocupação alguma. Mesmo que houvesse, era comum a emissão de declarações oficiais fraudulentas que atestavam a inexistência de índios nas áreas cobiçadas por particulares.
As terras indígenas demarcadas pelo SPI no Mato Grosso caracterizaram-se por suas extensões diminutas. Jogados com violência em caminhões e vendo suas casas sendo queimadas, índios Guarani e Kaiowá foram relocados à força nessas áreas, em uma concentração que provocou muitos conflitos internos. Esse confinamento foi um método de “liberação” de terras indígenas para a colonização. Os chefes de posto exerciam um poder abusivo, impedindo o livre trânsito dos índios, impondo-lhes detenções em celas ilegais, castigos e até tortura no tronco. Enriqueciam com o arrendamento do trabalho dos índios em estabelecimentos agrícolas, vendendo madeira e arrendando terras. O Relatório Figueiredo evidenciou essas torturas, maus tratos, prisões abusivas, apropriação forçada de trabalho indígena e apropriação indébita das riquezas de territórios indígenas por funcionários de diversos níveis do órgão de proteção aos índios, o SPI, fundado em 1910. Atestou não só a corrupção generalizada, também nos altos escalões dos governos estaduais, como a omissão do sistema judiciário (KEHL, 2014, p. 201).
Como mencionado, a desterritorialização dos povos Guarani e Kaiowá foi um processo que teve relação direta com projetos de desenvolvimento da região enquanto ela se constituía. Em seguida, começam a urbanização do Estado e a derrubada de grandes parcelas da mata nativa para a introdução da monocultura de soja e para a criação de pastagens para o gado e, mais recentemente, para o plantio de cana-de-açúcar. Após a divisão do Estado de Mato Grosso e a criação de Mato Grosso do Sul em 1979, não só os Guarani e Kaiowá, mas também a maior parte dos demais povos indígenas encontravam-se sistematicamente aldeados, convivendo em sociedades desestabilizadas e enfrentando dificuldades diante da desassistência do poder público e da escassez de meios para a subsistência.
1.2 A diversidade cultural de povos em Mato Grosso do Sul No século XIX triunfava a teoria de que certas sociedades sem a figura do Estado teriam ficado na estaca zero da evolução e, nesse contexto, o autor da primeira obra sobre história geral do Brasil, Francisco Varnhagen, considerava os povos indígenas “sociedades na eterna infância”, que não possuíam história, apenas etnografia (VARNHAGEN, 1979, p. 30 apud CUNHA, 1992, p. 11). Em Cultura, um conceito antropológico, Roque de Barros Laraia explica que concepções como essa não possuem qualquer embasamento, pois nenhuma sociedade humana é estática. Elas passam por mudanças internas, que são lentas e ocorrem dentro de seu próprio sistema, ou então radicais, quando decorrentes do contato brusco com outras civilizações, como é o caso dos índios brasileiros. Conforme o autor:
[...] cada sistema cultural está sempre em mudança. Entender esta dinâmica é importante para atenuar o choque entre as gerações e evitar comportamentos preconceituosos. Da mesma forma que é fundamental para a humanidade a compreensão das diferenças entre povos de culturas diferentes, é necessário saber entender as diferenças que ocorrem dentro do mesmo sistema (LARAIA, 2001, p.70)
Ainda se faz necessário enfatizar que em se tratando de povos indígenas, é preciso dispensar as generalizações a respeito de sua cultura presentes no senso comum. Cada um dos diferentes grupos caracteriza-se por um conjunto de traços culturais únicos que definem seu modo de viver. Em Índio – Esse nosso desconhecido, Joana Fernandes (1993, p. 17-20) afirma que com a rejeição do conceito de aculturação que acompanhou a superada teoria de desaparecimento e integração dos índios, passa a ser mais adequada a ideia de identidade étnica para explicar as suas distinções diante da sociedade predominante. De acordo com o Censo 2010, cerca de 75% das pessoas que se autodeclararam indígenas souberam informar a sua identidade étnica (IBGE, 2010). O último recenseamento do IBGE considera a existência de oito grupos étnicos em Mato Grosso do Sul, sendo os Guarani (subdivididos entre Kaiowá e Nãndeva) e os Terena os mais populosos.
Tabela 2: População indígena em Mato Grosso do Sul segundo a etnia
ETNIA Guató Kinikinau Kadiwéu Terena Atikum Ofaié Guarani-Kaiowá
POPULAÇÃO 175 126 1.418 23.277 34 70 45.689
Fonte: SESAI/MS, 2011
Guarani e Kaiowá Do tronco Tupi, o povo Guarani era, segundo relato de jesuítas, um dos mais numerosos presentes nos limites das colônias ibéricas da América do Sul (CUNHA, 1992), regiões de especial interesse dos europeus por sua importância geopolítica. Atualmente restam apenas três de seus subgrupos no Brasil: Kaiowá, Mbyá e Ñandeva, que se encontram espalhados por quase todo o território.
Em Mato Grosso do Sul, há dois desses grupos, os Kaiowá e os Ñandeva. Eles habitam principalmente as Terras Indígenas localizadas ao sul e sudeste do Estado, concentrando-se em maior número no município de Dourados. São eles que possuem a maior extensão de terras demarcadas e que também reivindicam a maior parte daquelas ainda não demarcadas no Estado (FUNAI, 2016). Os povos Guarani denominam os lugares que ocupam de tekoha. É o lugar físico (ha) onde se realiza o modo de ser (teko), o estado de vida. Neste espaço, efetivam-se as relações sociais, de acordo com as leis de sua cultura. No processo de formação do Estado, destacam-se os inestimáveis prejuízos dos povos Guarani e Kaiowá, tradicionalmente detentora do maior território na região. Para o historiador Antonio Brand (1997), o deslocamento forçado para pequenos espaços de terra não permitiu e não respeitou a reprodução de seu modo de ser – particular à sua cultura e visão de mundo –, o que gerou complexas desordens internas, refletidas na fragmentação e comprometimento de suas formas de organização social e política. Em seus estudos, usa o termo confinamento para explicar essa dinâmica. Atualmente, os Ñandeva de Mato Grosso do Sul se autodenominam somente como Guarani e o outro grupo, somente como Kaiowá. Juntos, ocupam e reivindicam um total de 45 Terras Indígenas no Estado (FUNAI, 2016).
Terena Remanescentes do grupo Txané-Guaná, os Terena existentes em Mato Grosso do Sul eram povos considerados dóceis pelos colonizadores, que habitavam a região do Chaco Paraguaio e migraram para a Bacia do Alto Paraguai. Encontram-se hoje na zona rural de municípios do Estado como Sidrolândia, e também são numerosos em centros urbanos como a capital, Campo Grande (IBGE, 2010). A história dos Terena tem sido descrita por quatro momentos, denominados Tempos Antigos, Tempos de Servidão, Tempos Atuais e Tempo de Despertar (VIEIRA, 2013, p. 28). O primeiro diz respeito à saída do Chaco devido à pressão dos colonos; o segundo e o terceiro, pela conseguinte dispersão pelo espaço territorial, desestruturação das sociedades e a escravidão, principalmente após guerra com o Paraguai, e pela sua posterior inserção em aldeias e reservas designadas pelo Serviço de Proteção ao Índio. O quarto e último período remete a mudanças sociais, políticas e ambientais e a ruptura da sociedade atual Terena, momento “marcado pela inserção dos patrícios Terena nos espaços que antes não eram
ocupados por eles” como, por exemplo, cargos de trabalho na Funai de Campo Grande, como vereadores, professores e técnicos agrícolas nas aldeias (MIRANDA, 2006, p. 35 apud VIEIRA, 2013, p. 30).
Kadiwéu São descendentes dos Mbya-Guaikuru, que ocupavam também o Chaco, especificamente a sua região setentrional, conhecida como Grande Chaco. No passado, o povo Guaikuru era chamado pelos colonizadores de “índios bravos”, conhecidos por serem temíveis guerreiros que faziam o uso do cavalo como principal arma dos conflitos que participavam e aos saques que tradicionalmente promoviam. No início, eles representaram sério obstáculo à ocupação da fronteira sul de Mato Grosso, mas posteriormente chegaram a estabelecer um acordo de paz com a coroa portuguesa. Essa aliança acabou se deteriorando a ponto de alguns grupos passarem a ser extintos em conflitos na região e em decorrência de doenças (MANGOLIN, 1993 apud VIEIRA, 2013). Os kadiwéu participaram da guerra com o Paraguai e receberam como recompensa a delimitação das terras que ainda ocupavam. Apesar de a garantia dessa posse ter sido historicamente ameaçada por invasões de posseiros, abusos por parte do Serviço de Proteção ao Índio e tentativa de esbulho promovida pela Assembleia Legislativa do então Estado de Mato Grosso (SILVA, 2011), a área constituiu-se na Reserva Indígena Kadiwéu, atualmente localizada no município de Porto Murtinho e subdividida em cinco diferentes aldeias.
Ofaié A presença desse povo é registrada oficialmente somente a partir do período republicano no Brasil. Viviam da caça e da coleta principalmente do mel, e se organizavam em pequenas comunidades, mantendo o costume de sempre adentrar o interior das matas quando suspeitavam que haviam sido encontrados. No século XIX, estabeleceram-se em aldeias à margem do Rio Paraná, mas abandonaram essas terras após o enfrentamento com mineiros, nordestinos e paulistas que chegaram à região estimulados pela política de migração e ocupação econômica. Eram empregados como peões em fazendas, mas acabavam voltando a se deslocar em busca de matas onde teriam maior proteção (DUTRA, 1996 apud VIEIRA, 2013).
Após reivindicações do Sistema de Proteção ao Índio, o então governo de Mato Grosso reservou uma área de terra devoluta para o povo Ofaié, contudo, ela ainda era ocupada por um fazendeiro, o que fez com que os indígenas permanecessem aos fundos da propriedade. Eles foram removidos do local pela Fundação Nacional do Índio e, mais tarde, conseguiram recuperar apenas uma parcela daquelas terras, localizada no município de Três Lagoas, e ainda não regularizada (DUTRA, 1996 apud VIEIRA, 2013).
Guató Conhecidos como índios canoeiros, habitam tradicionalmente o Pantanal. Estudos ainda imprecisos sugerem que eles pertençam um subgrupo da nação Guaikuru. Costumavam organizar-se em famílias nucleares e em espaços autônomos espalhados pelo território pantaneiro (OLIVEIRA, 1996 apud VIEIRA, 2013). Hoje eles vivem na ilha de Ínsua, no município de Corumbá, fronteira com a Bolívia, ainda no Pantanal. Com a instalação de um destacamento militar região, os índios foram obrigados a ceder parte da ilha ao Exército Brasileiro e encontram-se hoje em número também reduzido (MANGOLIN, 1993 apud VIEIRA, 2013).
Kinikinau Pertencem ao subgrupo Guaná. Durante o século XVIII, os Kinikinau atravessaram o Rio Paraguai, instalando-se na região banhada pelo Rio Miranda, de onde saíram por terem sido expulsos. Desde então, passaram a migrar separadamente para regiões diferentes (VIEIRA, 2013, p. 46). Em Mato Grosso do Sul vivem atualmente em terras também ocupadas por terena e kadiwéu.
Atikum Esse povo é originário do Estado brasileiro de Pernambuco, e chegou a Mato Grosso do Sul no início da década de 1970. Estão no município de Nioaque, em Terra Indígena pertencente à etnia Terena. Por possuírem a pele negra e falarem apenas o idioma português, muitas vezes não são reconhecidos como índios. O local que atualmente ocupam não possui solo fértil para plantação e, além disso, falta inclusive água potável à comunidade (SILVA, 2000 apud VIEIRA, 2013).
1.3 Violência contra os povos indígenas de Mato Grosso do Sul na atualidade
Relatório divulgado em 2014 pelo Cimi destaca Mato Grosso do Sul como “estado que há anos vem sendo recordista em violência contra os povos indígenas” (CIMI, 2014, p. 75) e que concentra crescentes casos de violação dos direitos humanos, em especial assassinatos e suicídios. Conforme as informações disponibilizadas no documento, de 2003 a 2014 foram registrados 390 assassinatos e 190 tentativas de assassinatos de índios somente no Estado. Em relação aos suicídios, apesar de imprecisos, os números registrados são alarmantes: 707 casos contabilizados entre os anos 2000 e 2014. Há também outros índices preocupantes além dos que são considerados os mais críticos. São enfatizados também os números de desassistência pelo poder público, conflitos diretos por terra, lesões corporais, violência sexual e casos de preconceito étnico racial. De acordo com informações do ISA (2016), a violência entre as populações indígenas de Mato Grosso do Sul é mais expressiva nas áreas da zona rural em que há litígio – terras reivindicadas, porém em situação jurídica irregular – ou que já estão demarcadas, mas possuem extensão reduzida, como é o caso da Reserva Indígena de Dourados que abriga uma população atual de 15 mil indígenas “em situação de extrema vulnerabilidade” em uma área diminuta de 3.474 hectares, segundo a própria Fundação Nacional do Índio (Funai). Ao todo há 63 Terras Indígenas em Mato Grosso do Sul, e apenas 29 delas estão em situação regular. Grande parte encontra-se em fase de estudo ou homologação (FUNAI, 2016) 12. No seguinte ranking, elaborado pelo instituto, nove das 10 Terras Indígenas mais violentas, fora da Amazônia Legal, estão no Estado13:
Gráfico 1 - Ranking das 10 TIs fora da Amazônia Legal com mais casos de violência contra a pessoa
12
Informações sobre a Reserva Indígena de Dourados e a situação das Terras Indígenas estão disponíveis no site oficial do órgão indigenista oficial, a Fundação Nacional do Índio e foram consultadas em 20 de agosto de 2016. 13
A Terra Indígena Caramuru-Paraguassu é a exceção do gráfico, e fica no Estado da Bahia.
Número de ocorrências
Período: 2012-2016 60
Violência sexual
50
Suicídio Preconceito e discriminação
40 30 20
Homicídio (tentativa)
Homicídio Contra o patrimônio (tentativa) Agressão (tentativa)
10
Agressão
0
Acidente Abuso de poder
Fonte: Gráfico produzido pela autora para finalidades específicas da monografia com dados do ISA/2016.
Um documento assinado por representantes de mais de 20 movimentos sociais e sindicais, entregue à Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul em 2015 como manifestação coletiva, traz um levantamento de dados ainda mais veemente sobre a violência, que calcula 390 assassinatos e 585 suicídios de indígenas em Mato Grosso do Sul entre os anos 2003 a 2015. O relatório da Comissão de Inquérito Parlamentar (CPI) da ação/omissão do Estado de Mato Grosso do Sul nos casos de violência praticados contra os povos indígenas no período de 2000 a 2015, chamada de “CPI do genocídio”, produzido em resposta a essa manifestação, cita as informações e destaca também casos de violência direcionada contra os indígenas, como por exemplo, ataques a acampamentos situados em áreas de disputa de terra em que moradias foram destruídas e houve sequestros, torturas e pistolagens contra crianças, jovens, adultos e idosos, sem distinção (MATO GROSSO DO SUL, 2016, p. 6-8). A violência direta contra os indígenas ou indireta, decorrente de problemas internos nas comunidades, afeta de diferentes modos as oito etnias que vivem nesse Estado brasileiro e que compõem aproximadamente 3% de sua população total (IBGE, 2010). Entre eles os povos Guarani e Kaiowá são o contingente mais numeroso na região e também os que mais reivindicam terras, ao passo que também são os maiores afetados pela violência física e pela violação de direitos nas áreas da saúde, educação e segurança alimentar (CIMI, 2014). 1.4 – Crianças e adolescentes indígenas vítimas de violência em Mato Grosso do Sul
Os casos de violência expostos apresentam uma face ainda mais preocupante, a elevada incidência entre crianças e adolescentes indígenas. Muitas vezes ela não está expressa explícita e sistematicamente nos índices, como também pode não ser percebida de tal maneira pela comunidade indígena em que ocorrem. Antes de destacar esse recorte sobre violência, convém ressalvar que a própria concepção da infância e adolescência pode variar de um povo indígena para outro, principalmente entre os que estabelecem ritos de passagem para demarcar as diferentes fases, sendo mais comum a adoção do termo juventude, segundo Assis da Costa Oliveira (2014). No caso dos grupos indígenas de Mato Grosso do Sul, a denominação adolescência já é aceita entre aqueles que vivem em áreas próximas a zonas urbanas segundo apurou Pinheiro (2011, p. 38). Ainda sobre essa questão, é possível evidenciar que:
O aspecto a ser ressaltado é que a partir das cosmologias de indígenas de diferentes etnias “crianças” e “adolescentes” costumam ser percebidos como sujeitos com corpos em transformação, como todas as demais pessoas e corpos. Portanto, suas opiniões e perspectivas próprias sobre o mundo deveriam ser tomadas como as de todos os demais seres, consideradas suas ontologias. Em suma, são seres que fazem e transformam o mundo, como todo mundo. São sujeitos autônomos em corpos distintos, mas que desde seu ponto de vista participam, intervém e modificam substantivamente as culturas das quais fazem parte. Para diversas culturas indígenas não há porque destacar estes sujeitos em detrimento dos outros e as questões problematizadas por esses povos voltam-se à dimensão social, que, por conseguinte, precisa ser objeto de investigação antropológica, ainda que voltada à especificidade de um segmento (TEÓFILO DA SILVA, 2012, p. 5).
Essa perspectiva diferencia-se do conceito de infância ocidental. Para OLIVEIRA, (2014, p. 15): “[...] os modos indígenas de ser e criar crianças são todos muito diversos do modo ocidental que estrutura os direitos universais, fundados na noção de indivíduo e individualismo, na distinção de corpo e mente, e na ideia mesmo de infância – ou no sentido de infância.
Especificamente em relação às características gerais das diferentes infâncias dos povos indígenas, Antonella Tassinari (2007) sugere cinco que podem ser consideradas comuns entre elas sem incorrer em generalizações:
Possuem reconhecimento de sua autonomia e capacidade de decisão;
Possuem
reconhecimento
de
suas
habilidades
de
aprendizagem
diferenciadas frente aos adultos;
São consideradas mediadoras de entidades cósmicas, principalmente as menores;
São consideradas mediadoras das relações sociais;
Recebem educação voltada para a saúde do corpo e bem estar.
Do ponto de vista jurídico no Brasil, criança é quem possui de 0 a 12 anos de idade incompletos, e adolescente, de 12 a 18 anos completos. Elas são categorias que possuem direitos coletivos específicos regidos pela lei 8.069, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e são consideradas, sem distinção de raça, cor, etnia ou gênero, sujeitos que gozam de proteção integral por parte do Estado, família e sociedade em geral, instituições que devem deixá-las a salvo de qualquer tipo de violação de seus direitos (BRASIL, 1990). A violência contra crianças e adolescentes é uma dessas principais violações, e é interpretada como um problema de saúde pública pela legislação (BEZERRA, 2006, p. 19). Na ótica da saúde, esses dois grupos são considerados, segundo Jorge e Souza (2006, p. 23) “os mais expostos e vulneráveis a sofrerem violações de seus direitos, afetando direta e indiretamente sua saúde física, mental e emocional [...]”. Crianças, adolescentes e jovens representam juntos 52% do total da população indígena no Brasil e vivem, em sua maioria, em Terras Indígenas. Mais da metade desse percentual correspondia a pessoas da faixa dos 0 aos 14 anos, segundo o último censo oficial (IBGE, 2010). Como já dito, nesse universo também são registrados números expressivos de violência, entre os quais se destacam os suicídios, os homicídios, as agressões físicas e os abusos sexuais, como demonstram dados referentes a 2014 informados pelo Distrito Sanitário Especial Indígena em Mato Grosso do Sul (DSEI-MS)14: Gráfico 2 – Casos de violência contra a criança e o adolescente indígena em Mato Grosso do Sul
14
Foram solicitados dados referentes a 2015 e 2016 ao DSEI-MS, contudo, por questões administrativas eles não puderam ser informados até a conclusão deste trabalho.
Números da violência contra crianças e adolescentes indígenas menores de 14 anos em 2014 5
5
8
Violência física
1 39
Violência sexual Homicídio Suicídio
Fonte: Gráfico produzido pela autora para finalidades específicas da monografia com dados do DSEI-MS (2014).
A média de suicídios entre crianças e adolescentes indígenas entre 1 a 19 anos em Amambai, município de Mato Grosso do Sul, por exemplo, foi a maior registrada em todo o país entre 2009 e 2013 de acordo com o relatório Violência Letal contra Crianças e Adolescentes do Brasil (WAISELFISZ, 2015, p. 54). O Mapa da Violência - Jovens do Brasil (WAISELFISZ, 2014, p. 143), já havia alertado para os numerosos casos entre jovens ocorridos de 2003 a 2008 e chegou a considerar pandêmica a situação de Mato Grosso do Sul e do Estado do Amazonas. As violências física, sexual, os homicídios e os suicídios são as violações mais destacadas, mas há também outras, como por exemplo, a fome, que atingiu 80% das crianças e jovens guarani-kaiowá de três comunidades de Mato Grosso do Sul em 2013, segundo pesquisa da Rede de Ação e Informação pelo Direito a se Alimentar (FIAN Brasil)15.
15
Esse percentual das crianças e jovens disse ter comido menos quantidade de comida do que julgavam ser necessário porque não dispunham de recursos para obter alimentos (FRANCESCHINI, 2016).
2
PARÂMETROS NORMATIVOS PARA A COBERTURA JORNALÍSTICA DA VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES INDÍGENAS
Neste capítulo será feita a revisão de um conjunto de normas éticas e jurídicas que podem ser referências seguras e compatíveis com uma cobertura jornalística de casos de violência contra a criança e o adolescente indígena comprometida com a promoção da cidadania e com a atribuição ética do jornalismo. Dessas normas serão extraídos parâmetros que, depois de sintetizados e sistematizados, servirão como base para a análise de notícias que será realizada no terceiro capítulo. Antes, porém, será discutida de forma breve a relação entre jornalismo, mediação social e cidadania, elementos que podem auxiliar a compreender a influência que a imprensa é capaz de exercer ao agendar o tema em questão. A imprensa como hoje é conhecida nasce junto aos regimes democráticos modernos e se assume como uma das instituições da cidadania que tem como função informar sobre o presente. Nesse contexto, o jornalismo admite a responsabilidade social de ser ele próprio um dos pilares da democracia, considerando que lhe caberiam papéis como os de se obrigar à verdade e verificação dos fatos, a agir com lealdade ao público e vigiar os poderes executivo, legislativo e judiciário em nome do cidadão e de forma independente, como enunciam Bill Kovach e Tom Rosenstiel em Os Elementos do Jornalismo (2004). Uma espécie de “quarto poder” que presta informações sobre os acontecimentos correntes voltadas ao interesse público, com a finalidade de mediar a relação entre a sociedade civil e as instâncias políticas. Um outro viés questiona se essa concepção do jornalismo não estaria sendo invocada nos dias atuais de modo insistente e inoportuno, já que, passada a euforia da emancipação da imprensa conferida pela democracia – junto à limitação do poder estatal e as primeiras garantias civis de liberdade – o jornalismo teria se consolidado como atividade liberal e empresarial e o que estaria em jogo na esfera pública – espaço simbólico em que a imprensa produz influência – seriam os conflitos entre o poder do Estado, o poder econômico e as demandas da sociedade civil. É o que argumenta Wilson Gomes em Jornalismo, Fatos e Interesses, quando afirma que o interesse público tem servido como máxima do jornalismo em seu discurso de autolegitimação, mas já não parece capaz de fundamentar toda a atividade jornalística contemporânea (GOMES, 2009, p. 69). Servir ao interesse público, no sentido de produzir e fazer circular informações necessárias para que os cidadãos possam influenciar a
decisão política e a gestão do Estado, não deixa de ser uma das atribuições do jornalismo. Não funciona mais, porém, como princípio absoluto. Segundo o autor:
O jornalismo é um ramo de atividades, um negócio legítimo como tantos outros, e não simplesmente um serviço público. Quem está no ramo da informação sobre o atual estado do mundo, a atualidade. Ao contrário de muitos negócios, o jornalismo não só vende seu produto ao consumidor de informações. Ele oferece ao consumidor informação sobre determinados âmbitos da atualidade, nos padrões de qualidade, velocidade e profundidade demandados, buscando fazer a maior quantidade possível de clientes, a audiência. A audiência conseguida é, então, vendida ao anunciante, operação que em geral paga as contas e mantém funcionando o negócio (GOMES, 2009, p. 81-82).
Ideia que também se desfaz é a de que produzir e consumir informações são pólos opostos do processo de comunicação pressuposto pelo jornalismo. As novas formas de interação social conduzidas pela tecnologia revelaram que comunicar vai além de simplesmente difundir e distribuir mensagens. Para Cremilda Medina (2006), essas novas interações sugerem um processo mais complexo de comunicação em que o jornalismo ainda assume o papel da mediação social – não como detentor do “quarto poder”, discurso que o reveste de certa autoridade e arrogância, mas sim como o mediador das tensões de poder, disposto a estabelecer o diálogo social e interpretar os sentidos que emanam das múltiplas vozes dos autores sociais. Nesse processo, o jornalista é o mediador-autor e também um agente cultural:
O jornalista como privilegiado leitor da cultura, uma vez que transita na primeira realidade, observa o mundo à sua volta e capta depoimentos dos protagonistas sociais, ouve relatos e reúne declarações do universo conceitual (informações especializadas, opiniões e interpretações), assume, nessas mediações, uma responsabilidade autoral que permeia qualquer editoria. Ao produzir sentidos – e é isso que o jornalista faz –, ele está falando de certa cultura, com os protagonistas culturais localizados (MEDINA, 2006, p. 81).
De acordo com a autora, a tarefa de atribuir sentido à realidade permite que o jornalista seja chamado de produtor cultural. Essa atribuição de sentidos consiste em representar a primeira realidade, onde de fato as coisas acontecem, na segunda realidade, a simbólica, por meio da narrativa contida nas notícias, reportagens e outros gêneros jornalísticos. Quando articula o diálogo social, o jornalista promove o que Medina chama de signo da relação (2006, p. 81-82).
A imprensa disponibiliza informação, prevista a prática da mediação social (MEDINA, 2006), e por meio dela pode tornar os cidadãos capazes de influenciar decisões políticas e a gestão estatal, quando esta diz respeito ao interesse público (GOMES, 2009). Neste sentido, também tem relação com o exercício da cidadania. Cidadania é um fenômeno histórico da construção de direitos cuja trajetória resulta no estabelecimento de um conjunto de direitos e deveres civis, políticos e sociais conferidos às pessoas (MARSHALL, 1967 apud CARVALHO, 2008). No Brasil, o direito à comunicação é um direito fundamental e está entre as garantias básicas asseguradas à cidadania. Ele compreende direitos civis, voltados para o indivíduo, e de direitos coletivos, editados para assegurar o bem-estar social. Entre esses direitos estão a liberdade de expressão, a liberdade de informação jornalística e aqueles relacionados à propriedade intelectual e à regulamentação quanto à pluralidade e diversidade nos meios de comunicação16 (NAPOLITANO, 2009). Para Murilo César Soares (2009), é possível abordar a relação entre jornalismo e cidadania sob dois enfoques distintos, o crítico, que se apoia nas condições empíricas em que atua a imprensa (realidade imperfeita e complexa), e o normativo (o tipo ideal). A primeira abordagem admite a incorporação dos interesses de mercado no jornalismo, que fez com que ele passasse a ver o público como consumidores, e os desconsiderasse enquanto cidadãos ativos com direitos e obrigações. Nesse sentido, “encoraja a mudança da diversidade da informação em direção ao entretenimento, age a favor dos anunciantes e contra os cidadãos, privilegia a fala corporativa” (KEANE, 1998 apud SOARES, 2009, p. 60). Ainda segundo a visão crítica, existe na prática uma distância entre o âmbito dos meios (jornalistas, editores e seus potenciais leitores, que provêm em geral da classe média) e o âmbito das reivindicações de direitos sociais (reclamados pelas maiorias sociais, pertencentes às classes sociais mais baixas), o que faz com que a imprensa privilegie temas que envolvem o interesse de mercado e da classe média (SOARES, 2009, p. 60-61). Essa sub-representação das questões da cidadania decorreria da adoção de critérios de noticiabilidade que priorizam os acontecimentos pontuais, as pessoas importantes, a negatividade e o impacto sobre a sociedade, enquanto os temas referentes às camadas mais 16
No Brasil, todos eles estão dispostos na Constituição Federal de 1988. A liberdade de expressão é um direito humano e um direito político fundamental que assegura a manifestação livre de pensamentos, ideias e opiniões a todos os indivíduos, como condição para um Estado democrático e está inscrita em seu artigo 5º. Já a liberdade de informação está disposta em seu artigo n° 220 caput, e diz respeito ao direito público de informar e de ser informado. A lei nº 5.250/67, conhecida como Lei de Imprensa, regulou as atividades do ramo durante 42 anos e foi revogada pelo Supremo Tribunal Federal por ser incompatível com esses princípios constitucionais de liberdade.
pobres teriam espaço na imprensa apenas em ocorrências extremas como acidentes, chacinas, calamidades e conflitos abertos (SILVA, 2005; WOLF, 1996 apud SOARES, 2009), situações que adquirem valor noticioso pelo número de pessoas envolvidas, pelo interesse nos relatos humanos e não como fatos inseridos em um contexto mais amplo, indicativos da desigualdade social, da exclusão histórica e outras injustiças. “Assim, cessadas as circunstâncias imediatas do acontecimento, o assunto tende a desaparecer do noticiário ou a restringir-se a pequenas notas nas páginas policiais” (SOARES, 2009, p. 62). É a segunda abordagem proposta pelo autor, a ideal e normativa, que interessa a esse trabalho. Ela corresponde à racionalização de princípios que, embora nem sempre efetivos, estão positivados no direito e presentes na visão do jornalismo como prática de mediação social. De acordo com essa perspectiva, a informação jornalística é essencial nos dias de hoje principalmente por ser um dos direitos civis necessários à realização da participação na esfera pública e, por conseguinte, ao acesso à esfera política. Dessa forma: O direito à informação é um “direito-meio” que dá acesso aos demais direitos, entendidos como “direitos-fins”. É por meio da informação que os cidadãos podem fazer escolhas e julgamentos de forma autônoma, de modo que ela os auxilia a exercer suas prerrogativas, tornando, por meio de sua difusão, mais acessíveis aos demais direitos (GENTILI, 2005, p. 128 apud SOARES, 2009, p.59).
Soares tem como referência para essa perspectiva o autor Victor Gentili, que defende que há uma responsabilidade dos meios de comunicação para com a coletividade, sejam eles públicos ou privados, pois prestam contas à Justiça e aos cidadãos (GENTILI, 2005 apud SOARES, 2009). Em relação ao papel da imprensa na consolidação, ampliação e disseminação da cidadania, é possível aferir que existe uma tensão entre o que se espera do jornalismo – o modelo ideal – e entre os conflitos que o desviam dessa busca, verificados na prática. Conclui Soares (2009, p. 68) que “[...] a imperfeição da realidade não constitui uma condenação dos princípios” e que a imprensa como instituição da democracia sofre as pressões do compromisso com seus critérios normativos e da sua submissão às forças de mercado, mas deve traduzi-las em um equilíbrio dinâmico.
2.1 As normas éticas e legais no estabelecimento dos parâmetros
Na deontologia do jornalismo e nas leis – representados por códigos de ética profissional, pelo conjunto de normas estatais e pelas declarações e tratados internacionais pactuados pelos países – podem ser encontrados direcionamentos para definir parâmetros ideais para o exercício da profissão. Na prática, eles funcionam como reguladores da atividade jornalística, estabelecendo a ela critérios mínimos e delimitando a liberdade de informação de modo a evitar que ela entre em conflito com outros direitos. Neste trabalho, consideram-se os códigos de ética do jornalismo e os direitos que perfazem a cidadania das crianças e adolescentes indígenas um conjunto de normas que podem servir como fontes de parâmetros para a produção de notícias sobre a violência contra a criança e o adolescente indígena comprometida com a promoção e a consolidação da cidadania, dentro das possibilidades da imprensa. Serão, dessa forma, estabelecidos parâmetros normativos que sirvam para analisar a produção antecedente da imprensa e, oportunamente, para guiar futuras coberturas noticiosas. Avalia-se que normas éticas e legais aplicáveis na análise da cobertura noticiosa sobre violência praticada contra indígenas crianças e adolescentes de Mato Grosso do Sul são a Declaração Internacional dos Direitos Humanos, o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, o Estatuto da Criança e do Adolescente, legislações indigenistas (o Estatuto do Índio, os artigos 231 e 232 da Constituição Federal e a Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho)17 e ainda o Estatuto dos Povos Indígenas que, se esclarece de antemão, é uma proposta que não possui o vigor da lei, mas pode ser considerada como parâmetro pelo seu caráter atualizado e democrático. Para selecionar esses parâmetros normativos, levou-se em consideração que o principal personagem dos fatos narrados pelas notícias a serem examinadas é um sujeito de direitos da esfera universal, da esfera da infância e adolescência, e faz parte de uma sociedade distinta que possui garantias no direito estatal e internacional enquanto coletividade. E pensou-se também no jornalista que produz a notícia e, por meio do seu discurso, representa o indígena. Em relação à atuação desse profissional dentro de critérios normativos, entende-se que o código de ética é a principal referência. Todos esses dispositivos inserem-se no contexto de um só, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, já que os direitos humanos, assentados no princípio da dignidade da pessoa e seus direitos básicos, representam as bases para a formulação das demais normas e são princípios nelas contidos: 17
Legislações indigenistas são o conjunto de leis que se aplicam ao indígena, mas foram elaboradas e regulamentadas no sistema jurídico por não-índios.
Gráfico 3 - Os direitos humanos como base para normas éticas e legais
Jornalismo
Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros
Povos indígenas
Artigos n° 231 e 232 da Constituição; Convenção n° 169 da OIT e Estatuto dos Povos Indígenas
DIREITOS HUMANOS
Estatuto da Criança e do Adolescente
Criança e adolescente
Fonte: Gráfico produzido pela autora para finalidades específicas da monografia.
Nos próximos itens, essas normas éticas e legais serão revisadas para que se possa nelas encontrar os parâmetros considerados ideias para a produção de notícias. Posteriormente eles serão sistematizados em uma tabela.
2.1.1 A Declaração Universal dos Direitos Humanos Como conquista histórico-social, os Direitos Humanos foram consolidados com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) da Organização das Nações Unidas em 1948, pouco tempo após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando grande parcela da humanidade não dispunha da garantia formal e tampouco efetiva de seus direitos básicos. Em Direitos Humanos - Conceitos, significados e funções, Vladmir Silveira e Maria Rocosonalo os definem como:
Faculdades que o direito atribui a pessoas e aos grupos sociais, expressão de suas necessidades relativas à vida, liberdade, igualdade, participação política ou social, ou a qualquer outro aspecto fundamental que afete o desenvolvimento integral dos indivíduos em uma comunidade de homens livres, dos grupos sociais e do Estado, com garantia dos poderes públicos para restabelecer seu exercício em caso de violação ou para realizar prestação (PECES-BARBA, 1987, p. 14-15 apud ROCOSONALO; SILVEIRA, 2010, p. 217).
Essas necessidades citadas pelos autores relacionam-se ao princípio da dignidade da pessoa humana, importante asserção para o desenvolvimento das sociedades, que é fruto de um longo processo sociocultural. Ele pode ser definido como premissa de respeito mínimo à condição de ser humano em cada período histórico. Se a dignidade prevalece, a substituição da vida ou integridade humana por outro valor fica impedida (GARCÍA, 2001, p. 19-20 apud ROCOSONALO; SILVEIRA, 2010, p. 104). Os Direitos Humanos, retomando, constituíram-se, sobretudo como um pilar universal para a formulação de leis e demais regulações internas nos Estados nacionais, além de outras normatizações, como geralmente é o caso dos códigos de ética profissional. A Constituição Federal de 1988, onde se encontram as normas indigenistas e em relação à infância e adolescência, e também o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, são dois dos dispositivos amparados sob as suas bases. A Convenção n° 169, norma internacional inserida na esfera das legislações indigenistas, também acompanha o princípio dos direitos humanos. O Estado brasileiro pactua com a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas e assegura a dignidade humana na Constituição Federal quando afirma em seu artigo 1º:
TÍTULO I Dos Princípios Fundamentais A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III – A dignidade da pessoa humana [...]
Por sua vez, o Código dos Jornalistas Brasileiros (FENAJ, 2007) alinha-se com a Constituição Federal e com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, quando propõe que: [...] Art. 6º - É dever do jornalista: I – opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos; [...]
Por fim, a Convenção n° 169 também está de acordo com os direitos humanos em:
[...] ARTIGO 3º
1. Os povos indígenas e tribais desfrutarão plenamente dos direitos humanos e das liberdades fundamentais sem qualquer impedimento ou discriminação. [...]
Entretanto, como trata-se aqui da relação das leis e da ética com sociedades culturalmente distintas como são os povos indígenas, é preciso ressalvar que apesar de pretenderem universais, os direitos humanos e a própria concepção de dignidade humana são fundadas nos valores da cultura ocidental, e por isso podem não contemplar as diferentes visões de mundo preservadas por esses povos, levando em consideração que eles possuem matrizes culturais não ocidentais. Ante a isso, Boaventura Souza Santos (SANTOS, 2006 apud OLIVEIRA, 2014) defende que o primeiro passo para a possível transformação intercultural dos direitos humanos é assumir que todas as culturas possuem concepções de dignidade humana, mas nem todas as concebem em termos de direitos humanos. As diferentes organizações sociais dos povos indígenas podem então não conceber esses direitos básicos da mesma forma que a sociedade ocidental, mas ainda assim sugere-se que o jornalista os tenha sempre em vista e procure correlacionar os valores expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos com os valores das culturas indígenas. Na perspectiva da presente monografia, os trechos da Declaração Universal dos Direitos Humanos que podem ser considerados na cobertura jornalística em relação aos povos indígenas (sobretudo crianças e adolescentes) são:
Artigo 1° Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade. [...] Artigo 2º Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra, origem nacional ou social, fortuna, nascimento ou outro estatuto. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autónomo ou sujeito a alguma limitação de soberania. Artigo 3º
Todas as pessoas têm direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. [...] Artigo 6º Todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento como pessoa perante a lei. Artigo 7º Todos são iguais perante a lei e, sem qualquer discriminação, têm direito a igual proteção da lei. Todos têm direito a proteção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. [...] Artigo 12° Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a proteção da lei. [...] Artigo 22º Toda a pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social; e pode legitimamente exigir a satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis, graças ao esforço nacional e à cooperação internacional, de harmonia com a organização e os recursos de cada país. [...] Artigo 17° 1. Toda a pessoa tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros. 2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade. [...] Artigo 25° [...] 2. A maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozam da mesma protecção social [...] Artigo 29º [...] 2. No exercício deste direito e no gozo destas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática. 3. Em caso algum estes direitos e liberdades poderão ser exercidos contrariamente aos fins e aos princípios das Nações Unidas. [...]
Em resumo, a imprensa deve fundamentar suas produções nas seguintes asserções em relação à pessoa humana:
Nasce livre e igual aos demais em dignidade e direitos;
Tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal;
Tem direito ao respeito e preservação da honra e reputação;
Tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros;
Pode invocar seus direitos sem discriminação e independentemente de raça, cor, sexo, língua, religião, origem nacional ou social, etc.;
Tem direito a segurança nos aspectos econômico, cultural e social e ao reconhecimento de sua personalidade jurídica em todos os lugares;
Crianças têm direito a assistência especial.
2.1.2 Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros Em sua origem a palavra Ética deriva do grego éthos e refere-se aos costumes ou caráter de uma pessoa que devem ser educados para os valores da sociedade. No sentido filosófico, ela pode ser definida como um conjunto de valores e princípios universais que são relativizados nas escolhas individuais, e que variam conforme o período histórico e a sociedade a que se referem (CHAUÍ, 2010). A ação ética pressupõe a existência de racionalidade e liberdade para fazer escolhas entre os valores disponíveis, que podem ser bons, maus, justos ou injustos. Agir com ética compreende o desafio de tomar decisões individuais em concordância ao bem comum e à noção de justiça de uma sociedade. Voltada então ao social, a ética também serve de suporte para o desempenho de diferentes atividades profissionais. Ela geralmente é inscrita em códigos para melhor estabelecer princípios, responsabilidades, deveres e proibições ao profissional. Para Cláudio Abramo (2006), não existe uma ética específica do jornalista, seu senso ético deve ser o mesmo que qualquer cidadão possui, pois o que é ruim ao cidadão é ruim também ao jornalista. Rogério Christofoletti (2008) e Francisco Karam (1998) discordam em parte da afirmação e justificam que há sim a necessidade de estabelecer uma ética particular ao campo do jornalismo em vista do poder e da influência que a imprensa exerce, já que eles implicam em responsabilidades redobradas em relação a determinadas condutas profissionais. Christofoletti (2008, p.20) argumenta que basta pensar que, diferente
das demais profissões, “o jornalismo lida com reputações e honras pessoais, com valores e conceitos, com o imaginário popular, com versões da história e com o próprio senso de verdade e realidade”. Um exemplo que ilustra a argumentação é o caso da Escola Base, um dos episódios mais marcantes da história da imprensa brasileira que demonstrou como o desprezo a princípios éticos e constitucionais associado à dimensão pública que o erro do jornalismo alcança pode gerar danos irreparáveis às pessoas18. Eugênio Bucci (2000, p. 39) afirma que o jornalismo é em si mesmo a realização de uma práxis ética, antes mesmo de ser uma técnica. Ele chama atenção para uma “síndrome de autossuficiência ética” entre os profissionais da área que julgam que a função de informar o público é tudo o que interessa, e que os métodos que utilizam para isso são bons, corretos e justos por definição, e não estão em discussão. Segundo o autor, é fato que uma série de decisões no cotidiano do jornalista são solitárias, até porque não há tempo nem condições para debatê-las em equipe diariamente. No entanto, a razão de ser do repórter é a preexistência do direito à informação, a qual pertence ao cidadão, e por esse motivo é preciso sempre discutir a ética e prestar contas publicamente, de acordo com Bucci (2000, p. 46), “sobretudo porque a imprensa não é simplesmente um ‘serviço’ de oferecer notícias ao público, não importando a que custos e por que meios. A imprensa é a materialização de uma relação de confiança e o que sedimenta a confiança é a prática ética”. O autor traz uma lista dos erros mais frequentes cometidos pela imprensa, elencados por Paul Johnson. Entre eles os mais comuns são a distorção, a invasão de privacidade, a destruição da reputação alheia e o abuso de poder (2000, p.137-165). O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) regula a profissão desde 1987 e encontra-se na sua quarta versão, atualizada pela última vez em 2007. Entre os demais códigos de ética do jornalismo vigentes no Brasil, ele é o mais corrente, pois concentra-se nos profissionais de imprensa e foi aprovado após debates entre a categoria profissional e submetido à consulta pública
18
Em 1994, a imprensa repercutiu a denúncia de um suposto caso de abuso sexual de crianças em uma escola de São Paulo como um fato comprovado, e corroborou para o julgamento popular antecipado e reações extremas contra os suspeitos que, ao final de investigações policiais, foram considerados inocentes. Mais detalhes são contados no livro O caso da Escola Base, de Alex Ribeiro (1995).
(CHRISTOFOLETTI, 2008). No entanto, sem a existência de um conselho federal para regulamentar o exercício do jornalismo, a aplicabilidade do código de ética é limitada19. Em relação à atuação da imprensa na cobertura dos casos de violência contra as crianças e adolescentes indígenas, admite-se aqui que ela pode orientar-se pelos seguintes itens do documento: Capítulo II - Da conduta profissional do jornalista [...] Artigo 6º - É dever do jornalista: I - opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e a opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos; [...] VIII - respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão; [...] XI - defender os direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial as das crianças, adolescentes, mulheres, idosos, negros e minorias; [...] XIV - combater a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, econômicos, políticos, religiosos, de gênero, raciais, de orientação sexual, condição física ou mental, ou de qualquer outra natureza; [...] Capítulo III - Da responsabilidade profissional do jornalista [...] Artigo 11º - O jornalista não pode divulgar informações: [...] II - de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente na cobertura de crimes e acidentes; [...] Artigo 12º - O jornalista deve: I - ressalvadas as especificidades da assessoria de imprensa, ouvir sempre, antes da divulgação dos fatos, o maior número de pessoas e instituições envolvidas em uma cobertura jornalística, principalmente aquelas que são objeto de acusações não suficientemente demonstradas ou verificadas; [...] VIII - preservar a língua e a cultura do Brasil, respeitando a diversidade e as identidades culturais. [...]
Desta seleção destacam-se sete pontos do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros: 19
O jornalista que age de maneira antiética está sujeito apenas a advertências públicas. Sem que haja um Conselho Federal dos Jornalistas não é possível que a transgressão seja passível de punição como a cassação do registro profissional, por exemplo.
Defesa dos Direitos Humanos;
Respeito à honra e à imagem;
Defesa e promoção da cidadania, principalmente a das crianças, adolescentes e minorias sociais, como os povos indígenas;
Combate à perseguição e discriminação por motivos sociais e raciais;
Rejeição da publicação de informações que apresentem caráter mórbido e sensacionalista ou que sejam contrários aos valores humanos, especialmente na cobertura de casos de violência;
Sempre que possível ouvir a versão de todas as pessoas e representantes das instituições envolvidas na informação a ser veiculada, sobretudo aquelas que estão sendo acusadas sem comprovação;
Respeito e preservação das identidades e diversidades culturais do Brasil.
2.1.3 Legislação indigenista e Estatuto dos Povos Indígenas Neste tópico serão examinados as legislações indigenistas, criadas
e
regulamentadas por não-índios – o Estatuto dos Povos Indígenas, artigos n° 231 e 232 da Constituição Federal e a Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – e as proposições do Estatuto dos Povos Indígenas, que não se enquadra como legislação indigenista por não possuir valor legal, apesar de pretendê-lo, e por ter sido elaborada com a participação plena dos povos indígenas, seus próprios destinatários. A lei nº 6.001 de 19 de dezembro de 1973, conhecida como Estatuto do Índio, regula a situação jurídica dos indígenas no país. Validou-se com o propósito de “preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional” (BRASIL, 1973), ou seja, propõe-se como um conjunto de normas que acompanhará um processo de assimilação cultural que supostamente culminaria na integração total do indígena à sociedade civil. Esta perspectiva integracionista e vários dispositivos do Estatuto foram superados após a promulgação da Constituição de 1988. Um deles é o que instituía o regime tutelar dos índios por considerá-los relativamente incapazes para a vida civil, seguindo o antigo Código Civil20. A tutela seria exercida por órgão oficial, a Fundação Nacional do Índio (Funai), até que os indígenas se adaptassem e se incorporassem totalmente à nação civilizada (ARAÚJO, 20
O antigo Código Civil de 1916 foi revogado pelo atual Código Civil de 2002.
2006, p. 46). Os artigos que em muito restringiam sua autodeterminação e autonomia para organizarem-se socialmente também são dispositivos ultrapassados do Estatuto do Índio. O problema que as visões da tutela e da assimilação acarretam é a alocação dos indígenas na posição de subalternos no exercício de seus próprios direitos e interesses. Nas palavras de Ana Valéria Araújo em Povos indígenas e a “lei dos brancos”: direito à diferença: O grande absurdo é que, em pleno século XXI os índios ainda sejam vistos como cidadãos não plenamente capazes de determinarem as suas próprias vontades, um órgão de Estado sendo o seu tutor e encarregado de intermediar (autorizando e desautorizando) as inúmeras relações de contato em que já se encontram efetivamente envolvidos. A condição de tutelados cerceia a sua livre expressão política, a administração direta de seus territórios, seu acesso aos serviços públicos, ao mercado de trabalho, às linhas oficiais de crédito. (ARAÚJO, 2006, p. 47).
Embora desatualizado, o Estatuto de 1973 ainda encontra-se vigente. Vários dispositivos da lei, assim como os citados acima, não foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988, por isso são considerados inválidos, apesar de não revogados. Em compensação ao atraso do Estatuto do Índio, dispositivos da Carta Magna trouxeram avanços significativos como o reconhecimento de sua organização social, que engloba usos, costumes, tradições, línguas e crenças; reconhecimento de posse e usufruto das terras que tradicionalmente ocupam; reconhecimento da postulação em juízo para defesa de seus direitos e interesses; e o dever da União demarcar terras e proteger e fazer respeitar todos os bens indígenas (AMADO, 2016, p. 14-17). Em vista de a terra e a organização social serem pontos cernes para a compreensão da atualidade da questão indígena em Mato Grosso do Sul, conforme apontado no primeiro capítulo deste trabalho, e de terem se constituído então nos principais avanços dos novos dispositivos da legislação indigenista de 1988, considera-se que é à Constituição Federal que o jornalista pode se reportar ao cobrir pautas que envolvam os povos indígenas do Estado. Já que muitos dos casos de violência contra o indígena em Mato Grosso do Sul possuem ligação com a falta ou disputa por posse de terras, espera-se que o profissional da imprensa tenha conhecimento não só dos dispositivos da Carta Magna que falam sobre particularidades culturais, mas também daqueles relacionados à posse, usufruto e demarcação de terras. Mesmo competindo somente à atuação do poder público, os assuntos referentes à propriedade também são de interesse da imprensa, pois podem servir para contextualização das informações divulgadas.
Desse modo, critérios normativos que orientem o jornalista quanto à cobertura de assuntos sobre violência contra o índio em Mato Grosso do Sul e sobre outros elementos a ela relacionados podem prever os seguintes trechos do Capítulo VIII “Dos índios” da Constituição Federal (BRASIL, 1988):
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições [...] § 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. [...] § 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. [...]
No cenário internacional há também normas indigenistas, sendo a principal delas a Convenção nº 169, adotada em 1989 pela da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Ela é considerada o primeiro instrumento internacional vinculante que trata especificamente dos direitos coletivos dos povos indígenas e tribais do mundo. Foi promulgada pelo Brasil somente em 2004, por meio do Decreto nº 5.051 daquele ano21, e representa um progresso em relação ao direito à autodeterminação das sociedades indígenas, controle de suas instituições e maneiras de viver, direito à própria gestão econômica e manutenção e fortalecimento de suas identidades, línguas e religiões nos limites dos Estados em que vivem (GUARANY, 2006, p. 162). Numa perspectiva normativa, o jornalista pode pautar seu trabalho também em concordância a Convenção da OIT. As partes mais relevantes para este trabalho são:
21
Apesar de o Brasil pactuar com a Convenção mencionada, no ordenamento jurídico brasileiro não há qualquer garantia de que os tratados internacionais devem primar sob a Constituição nas situações de conflito normativo (SOARES, 2011).
PARTE I – POLÍTICA GERAL [...] ARTIGO 3º 1. Os povos indígenas e tribais desfrutarão plenamente dos direitos humanos e das liberdades fundamentais sem qualquer impedimento ou discriminação. As disposições desta Convenção deverão ser aplicadas sem discriminação entre os membros do gênero masculino e feminino desses povos. 2. Não deverá ser empregada nenhuma forma de força ou coerção que viole os direitos humanos e as liberdades fundamentais desses povos, inclusive os direitos previstos na presente Convenção. [...] ARTIGO 5º Na aplicação das disposições da presente Convenção: a) os valores e práticas sociais, culturais, religiosos e espirituais desses povos deverão ser reconhecidos e a natureza dos problemas que enfrentam, como grupo ou como indivíduo, deverá ser devidamente tomada em consideração; b) a integridade dos valores, práticas e instituições desses povos deverá ser respeitada; [...] PARTE II – TERRA ARTIGO 13 1. Na aplicação das disposições desta Parte da Convenção, os governos respeitarão a importância especial para as culturas e valores espirituais dos povos interessados, sua relação com as terras ou territórios, ou ambos, conforme o caso, que ocupam ou usam para outros fins e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação. [...] ARTIGO 14 1. Os direitos de propriedade e posse de terras tradicionalmente ocupadas pelos povos interessados deverão ser reconhecidos. Além disso, quando justificado, medidas deverão ser tomadas para salvaguardar o direito dos povos interessados de usar terras não exclusivamente ocupadas por eles às quais tenham tido acesso tradicionalmente para desenvolver atividades tradicionais e de subsistência. Nesse contexto, a situação de povos nômades e agricultores itinerantes deverá ser objeto de uma atenção particular. 2. Os governos tomarão as medidas necessárias para identificar terras tradicionalmente ocupadas pelos povos interessados e garantir a efetiva proteção de seus direitos de propriedade e posse. 3. Procedimentos adequados deverão ser estabelecidos no âmbito do sistema jurídico nacional para solucionar controvérsias decorrentes de reivindicações por terras apresentadas pelos povos interessados. [...]
A variedade de ferramentas normativas expressas somente neste item do capítulo revela como a legislação que se aplica ao indígena dispõe-se de forma esparsa e é demarcada por ausências de reconhecimento pluriétnico e multicultural. Uma das propostas para cobrir essas lacunas e incluir as novas perspectivas trazidas pela Constituição de 1988 e a Convenção 169 em um só dispositivo, é a substituição do Estatuto do Índio de 1973 pelo Estatuto das Sociedades Indígenas, que tramita sob o projeto de lei nº 2.057/91 no Congresso Nacional há 24 anos. Ele foi aprovado por uma comissão especial em 1994 e atualmente está paralisado. A última movimentação foi registrada em 201222. Há ainda uma proposição de substituição ao protelado projeto de lei, denominada Estatuto dos Povos Indígenas. Ele foi formulado em 2009 sob a coordenação da Comissão Nacional de Política Indigenista do Ministério da Justiça, composta por representantes de instituições públicas e por indígenas de várias etnias, e entregue à Câmara de Deputados no mesmo ano em que foi concluído, junto à solicitação de que os parlamentares retomassem a discussão sobre a revisão do Estatuto do Índio de 1973. A regulamentação de novos temas, a capacidade civil dos índios e as consequências da alteração do atual sistema tutelar são os principais pontos levantados nessas e nas demais propostas de substituição. A conquista recente de importantes espaços políticos pelos indígenas faz ainda mais emergente uma definição sobre a nova legislação (ARAÚJO, 2006). As leis do direito acompanham mudanças culturais da sociedade a que se remetem, isto porque elas próprias são instrumentos de adaptação social, e por isso necessitam ser atualizadas. Para Franceso Consentini, “o Direito nasce da vida social, se transforma com a vida social e deve se adaptar à vida social” (CONSENTINI, 1929, p. 1 apud NADER, 2007, p. 20). A partir desse entendimento, é desejável que o jornalista também guie-se pelas propostas em andamento, pois elas refletem as atuais demandas dos povos indígenas que a obsoleta legislação não acompanhou. Considera-se aqui que apesar de o Estatuto dos Povos Indígenas não tramitar em caráter oficial, é ele a proposição mais democrática em suas bases de formulação, por ter os próprios sujeitos de direito como partícipes de sua construção. Portanto, sugere-se ao profissional de imprensa principalmente o conhecimento dos seguintes trechos que ele traz:
CAPÍTULO III - Da proteção da criança e do adolescente indígenas 22
De acordo com consulta sobre a tramitação realizada em 24 de http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=17569
julho
de
2016
em
Seção I - Disposições Preliminares Art. 163. A aplicação da legislação pertinente à infância e adolescência, nas questões específicas das crianças e adolescentes indígenas, serão prioritariamente feitas pelas comunidades indígenas, segundo seus usos, costumes, tradições e organização social. §1º. Devem ser respeitadas as concepções dos diversos povos e comunidades indígenas acerca das faixas etárias que compreendem o período legalmente estabelecido como infância e adolescência. [...] Art. 165. Em caso de ameaça à vida ou à integridade física de criança ou adolescente indígena, o órgão indigenista federal, por intermédio de equipe multidisciplinar e em diálogo com a respectiva comunidade indígena, promoverá o encaminhamento adequado à sua proteção integral, preservando-se, sempre que possível, o direito à convivência com a sua comunidade. [...] Seção IV - Outras disposições Art. 175. Na aplicação desta Lei, reafirma-se-à o respeito às práticas tradicionais indígenas, desde que em conformidade com o sistema constitucional de direitos e garantias fundamentais. [...] TÍTULO VII – Das Culturas [...] Art. 202. Os povos indígenas poderão estabelecer seus próprios meios de informação em suas próprias línguas e a acessar a todos os demais meios de informação não indígenas sem discriminação alguma. Parágrafo Único. O Estado adotará medidas eficazes para assegurar que os meios de informação estatais reflitam devidamente a diversidade cultural indígena e, sem prejuízo da obrigação de assegurar plenamente a liberdade de expressão, deverá incentivar os meios de comunicação privados a refletir devidamente a diversidade cultural indígena e promover campanhas de valorização das expressões culturais indígenas. [...]
Seis tópicos das legislações indigenistas vigentes e do Estatuto dos Povos Indígenas que podem ser destacados para auxiliar a atuação da imprensa são:
Reconhecimento da organização social e demais aspectos da cultura indígena;
Direito inalienável à posse, usufruto e demarcação das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas e reconhecimento de sua relação cultural peculiar com a terra;
Garantia dos Direitos Humanos, direitos e liberdades fundamentais em face das práticas indígenas tradicionais que os violem, sem impedimento ou discriminação por motivo de etnia ou gênero;
Respeito às diferentes concepções geracionais dos povos indígenas, quando diversas das legalmente estabelecidas como infância e adolescência;
Respeito às diferentes aplicações da legislação referente à criança e ao adolescente indígena nas sociedades indígenas devido a especificidades culturais - em caso de práticas que ameacem à vida ou à integridade física de criança ou adolescente indígena, o órgão indigenista promoverá diálogo com a comunidade indígena e preservará, sempre que possível, o direito dos mesmos à convivência dentro dela;
Meios de comunicação privados e meios de informação estatais devem refletir devidamente a diversidade cultural indígena e promover campanhas de valorização de suas expressões.
2.1.4 O Estatuto da Criança e do Adolescente O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei nº 8.069/90, é considerado uma das legislações mais avançadas do mundo por fundamentar-se na doutrina de proteção integral, princípio que considera toda criança e adolescente pessoa em desenvolvimento, cidadão pleno e sujeito de direito prioritário que deve ser resguardado pela família, sociedade e Estado. A lei rompe com o Código de Menores23, que dispunha apenas sobre assistência, vigilância e proteção aos menores de 18 anos de idade que estivessem em situação de risco, abandono ou que tenham cometido ato infracional (BRASIL, 1979). A mudança acompanhou a Declaração Universal dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU), que passa a reconhecer toda criança como sujeito de direitos e não somente como objeto de proteção (ALVES, 2007). Em Indígenas crianças, crianças indígenas, Assis da Costa Oliveira (2014) revê a evolução dos direitos da infância e adolescência no Brasil, enquanto dispositivos formulados com base nos Direitos Humanos, e desconstrói os fundamentos ocidentais que universalizam a concepção destas fases, para então argumentar que o ECA e os Direitos Humanos da criança não comtemplam a diversidade cultural em suas doutrinas. Conforme o autor, o direito a não discriminação, inscritos em ambos instrumentos:
23
Instituído pela lei nº 6.697/79 e revogado pelo ECA, em 1990.
Não evidencia diretamente o reconhecimento das diferenças socioculturais, tampouco estabelece critérios diferenciados para a reformulação dos conceitos jurídicos, com o que se conclui tratar-se de proposição que reduz a potencialidade da diversidade às questões de correção social, mas não de empoderamento da identidade cultural. (OLIVEIRA, 2014, p. 132-133).
O jornalista, no vértice normativo defendido neste trabalho, precisa ponderar, ao tratar da violência envolvendo crianças e adolescentes indígenas, que eles são sujeitos presentes em duas normatizações – na legislação indigenista e no direito da criança e do adolescente – e, ao mesmo tempo, atentar-se à ausência do viés plural dentro dessas leis. Em termos específicos à infância e adolescência, pode orientar a cobertura noticiosa de acordo com os seguintes artigos e incisos, com especial atenção aos que dispõem sobre situações de violência: Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem. Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. [...] Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. [...] Capítulo II Do Direito à Liberdade, ao Respeito e à Dignidade Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis. [...] Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a
preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais. Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. [...] Título III Da Prevenção Capítulo I Disposições Gerais Art. 70. É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente. [...]
Em suma, as nove questões retiradas do ECA que podem sobressair a conduta profissional do jornalista são:
A criança e o adolescente são detentores dos direitos da pessoa humana;
Leis e outros meios devem assegurar condições para o seu desenvolvimento pleno;
A lei (ECA) aplica-se a toda criança e adolescente, sem qualquer discriminação;
A sociedade em geral, a família e o poder público devem assegurar e priorizar seus direitos básicos;
Nenhuma criança ou adolescente sofrerá negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão;
A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas em processo de desenvolvimento;
Devem ser preservadas sua imagem, identidade, autonomia, valores, ideias e crenças, espaços e objetos pessoais;
É dever de todos deixá-los a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor;
É dever de todos prevenir a ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente.
2.2 Sistematização das normatizações
A maior parte dos artigos, incisos e parágrafos que foram destacados como fontes de orientação para o trabalho do jornalista não dispõem sobre deveres e proibições diretamente ligados à cobertura da mídia, porém não é justificativa para que eles sejam ignorados enquanto normas. Em uma perspectiva normativa, o ideal é que eles sejam sempre consultados pelo jornalista como parâmetros de confiança para sua atividade profissional. A tabela abaixo contém a sistematização de todas as normatizações exploradas, conforme os parâmetros que representam: Quadro 1 – Sistematização dos parâmetros normativos para a cobertura jornalística de casos de violência contra crianças e adolescentes indígenas
NORMAS DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
CÓDIGO DE ÉTICA DOS JORNALISTAS BRASILEIROS
LEGISLAÇÃO INDIGENISTA E ESTATUTO DOS POVOS INDÍGENAS
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Valores humanos
Toda pessoa nasce igual em dignidade e direitos.
Defesa dos direitos humanos.
Garantia dos Direitos Humanos, direitos e liberdades fundamentais em face das práticas indígenas tradicionais que os violem, sem impedimento ou discriminação por motivo de etnia ou gênero.
A criança e o adolescente são detentores dos direitos da pessoa humana.
Cidadania da criança e do adolescente
Toda pessoa tem direito à segurança nos aspectos econômico, cultural e social e ao reconhecimento de sua personalidade jurídica em todos os lugares;
Defesa e promoção da cidadania, principalmente a das crianças, adolescentes e minorias sociais, como os povos indígenas.
Respeito às diferentes aplicações da legislação referente à criança e ao adolescente indígena nas sociedades indígenas devido a especificidades culturais.
A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas em processo de desenvolvimento;
PARÂMETROS NORMATIVOS
Crianças têm direito a assistência especial.
Leis e outros meios devem assegurar condições para o seu desenvolvimento pleno; A sociedade em geral, a família e o poder público devem assegurar e
priorizar seus direitos básicos. Respeito e reconhecimento da diversidade cultural e combate ao preconceito e à discriminação
Toda pessoa pode invocar seus direitos sem discriminação e independentemente de raça, cor, sexo, língua, religião, origem nacional ou social, etc.
Respeito e preservação das identidades e diversidades culturais do Brasil;
Reconhecimento da organização social e demais aspectos da cultura indígena;
Combate à perseguição e discriminação por motivos sociais e raciais.
Respeito às diferentes concepções geracionais dos povos indígenas, quando diversas das legalmente estabelecidas como infância e adolescência;
A lei aplica-se a toda criança e adolescente, sem qualquer discriminação.
Meios de comunicação privados e meios de informação estatais devem refletir devidamente a diversidade cultural indígena e promover campanhas de valorização de suas expressões. Honra e imagem
Toda pessoa tem direito ao respeito e preservação da honra e reputação.
Respeito à honra e à imagem.
-
Devem ser preservadas sua imagem, identidade, autonomia, valores, ideias e crenças, espaços e objetos pessoais.
Violência
Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
Rejeição da publicação de informações que apresentem caráter mórbido e sensacionalista ou que sejam contrários aos valores humanos, especialmente na cobertura de casos de violência.
Em caso de práticas que ameacem a vida ou à integridade física de criança ou adolescente indígena, o órgão indigenista promoverá diálogo com a comunidade indígena e preservará, sempre que possível, o direito dos mesmos à convivência dentro dela.
Nenhuma criança ou adolescente sofrerá negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão; É dever de todos deixar crianças e adolescentes a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou
constrangedor.
Posse da terra
Toda pessoa tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.
-
Direito inalienável à posse, usufruto e demarcação das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas e reconhecimento de sua relação cultural peculiar com a terra.
-
(Fonte: Tabela realizada pela autora para finalidades específicas da monografia)
Com o auxílio das normas foi possível elencar seis tópicos-chave dentro do tema violência contra a criança e o adolescente indígena: 1) valores humanos; 2) cidadania da criança e do adolescente 3) respeito e reconhecimento da diversidade cultural e combate ao preconceito e à discriminação, 4) honra e imagem, 5) violência, 6) posse da terra, e atribuir a cada um deles recomendações éticas e legais que podem orientar a produção jornalística. Os parâmetros obtidos contêm valores presentes nos direitos humanos, civis e coletivos das crianças e adolescentes indígenas e em uma conduta ética adequada do jornalista, por isso seriam eles capazes de contribuir para uma produção de notícias que busque consolidar, promover e reivindicar a cidadania, a diversidade cultural e a pluralização de vozes na imprensa, mantendo a qualidade da cobertura noticiosa segundo critérios éticos da profissão e de acordo com o que dela se espera, por ser o jornalismo também uma instituição social que serve aos interesses do cidadão. Nesse aspecto, cabe a ressalva de que a imprensa não possui o poder direto de motivar ações efetivas por parte das instâncias do poder público capazes de interferir na questão da violência e de impedir a violação dos direitos das crianças e adolescentes indígenas. Segundo Murilo César Soares (2009, p. 65-66), ela possui o poder simbólico de mobilizar o debate público por meio da oferta de informações, sendo os cidadãos responsáveis por cobrar ações concretas dos órgãos estatais que os representam.
3 ANÁLISE NORMATIVA DE NOTÍCIAS SOBRE VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE EM MATO GROSSO DO SUL
Neste capítulo busca-se atender ao objetivo geral do trabalho, que é analisar se a cobertura noticiosa da imprensa sul-mato-grossense em relação à violência, especificamente se praticada contra a criança e o adolescente indígena, está de acordo com critérios mínimos definidos com base na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros e nas leis e propostas legais que visam garantir a cidadania desses grupos. Para realizar essa análise, será examinado um conjunto de matérias jornalísticas publicadas entre 1° de janeiro a 2 de agosto de 2016 24. Foram escolhidas ao todo 10 produções como amostra aleatória não-probabilística de representatividade social (LOPES, 2005). Optou-se por selecionar as que foram publicadas por dois veículos de comunicação impressos de Mato Grosso do Sul, Correio do Estado e O Progresso. Ambos são jornais tradicionais no Estado que, apesar de presentes na web como sítios de notícia, ainda mantêm em circulação suas edições diárias impressas. O Correio do Estado circula há 62 anos, já o O Progresso, há 66. O alcance dos jornais foi condição relevante para a escolha. O Correio do Estado tem sede na capital, Campo Grande, dirige-se à cobertura de fatos em todo o Mato Grosso do Sul e é líder em circulação, com tiragem de 13.291 exemplares em dias úteis25. Já O Progresso tem sede em Dourados, principal município da região Cone Sul de Mato Grosso do Sul, e possui tiragem de 10 mil exemplares, circulando de segunda a sábado26. As matérias foram buscadas de acordo com o(s) tipo(s) de violência que noticiavam. Procurou-se, preferencialmente, aquelas que traziam relatos sobre as violências que mais atingem as crianças e adolescentes indígenas segundo os dados do Distrito Sanitário Indígena de Mato Grosso do Sul (ver gráfico 2) e relatório Violência letal contra crianças e adolescentes do Brasil (2015), sendo elas a agressão física, o abuso sexual, o suicídio, o
24
Período escolhido em razão da atualidade.
25
De acordo com a consultora de mercado FTPI. Informações disponíveis em: http://ftpi.com.br/jornal/correiodo-estado/ 26
Informação disponível em: http://www.progresso.com.br/cidades/o-progresso-66-anos-destacando-a-fronteirabrasil-e-paraguai
homicídio. As matérias sobre violências simbólicas, minoria entre as encontradas, foram descartadas. Esse material empírico será descrito antes de ser submetido à análise com parâmetros normativos. Os principais aspectos a serem considerados nessa descrição são os técnicos e os relativos ao conteúdo geral de cada matéria. Quanto à técnica serão descritos elementos como título e subtítulo27, autoria do texto, retranca28, editoria/página29 e fotografias e informações gráficas30. A descrição em relação ao conteúdo geral das matérias irá considerar se trata-se de notícia ou reportagem31, qual(s) o(s) tipo(s) de fonte utilizada(s) para obter informações, e a(s) forma(s) de violência noticiada(s). Sobre a classificação como notícia ou reportagem e quanto às fontes consultadas, serão consideradas como referência as concepções apresentadas por Nilson Lage em Estrutura da Notícia (1987) e em A Reportagem: Teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística (2006). De acordo com o autor, a notícia resulta da cobertura de fatos ou de uma série de fatos, enquanto a reportagem realiza levantamento de um assunto conforme ângulo preestabelecido e o interpreta em algum nível (LAGE, 1987, p. 46-47). E a despeito das fontes, Lage (2006, p.49) as conceitua de forma geral como “[...] instituições ou personagens que testemunham ou participam de eventos de interesse público” e são questionadas pelo jornalista com o intuito de obter dados e depoimentos a serem utilizados segundo técnicas jornalísticas. Quanto à sua natureza, ele as categoriza em: a) oficiais, oficiosas e independentes; b) primárias e secundárias; c) testemunhas e experts (2006, p. 62-68). Entende-se que, neste trabalho, é suficiente a diferenciação das fontes em primária ou secundária, conforme as definições do autor:
27
O primeiro exprime o tema central da matéria, o segundo, um subtema ou assunto complementar.
28
De acordo com o vocabulário jornalístico, retranca é a palavra ou expressão que identifica o texto e é apresentada acima do título. 29
Também segundo o vocabulário jornalístico, editoria é uma seção ou caderno de um jornal, geralmente nomeada segundo os assuntos centrais do conteúdo que apresenta (economia, cidades, polícia e cultura). A ordem em que aparecem e a quantidade de páginas que ocupam variam conforme o veículo. 30
Números, mapas, tabelas, mapas e outras informações organizadas fora do texto em elementos chamados de infográficos. 31
Outras produções jornalísticas foram descartadas na busca.
Primária: as que participaram, presenciaram ou possuem relação direta com o fato e podem ser consultadas com a finalidade de obter informações essenciais para a matéria como fatos, versões e números; Secundária: as que não estão necessariamente envolvidas com o fato, mas podem contextualizar, interpretar e aprofundar informações sobre ele.
Em relação à violência consideram-se as tipologias e naturezas admitidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e discutidas por Maria Cecília de Souza Minayo em Violência: um Velho-Novo desafio para a atenção à saúde (2005, p. 57-58). Quanto à tipologia, elas podem ser classificadas, segundo a autora, em:
Auto-infligida: são suicídios, ideações suicidas, tentativas de suicídio, automutilações, agressões a si próprio;
Interpessoal: expressa em diversas formas de violência como a física, a sexual e a institucional. Subdivide-se em intrafamiliar e comunitária. A primeira é aquela que ocorre entre os parceiros íntimos e membros da família. A segunda ocorre no ambiente social geral, entre conhecidos e desconhecidos;
Coletiva: acontece nos âmbitos macrossociais, políticos e econômicos, caracterizando a dominação de grupos e do Estado. São considerados atos que causem dano, lesão e morte cometidos por grupos organizados, nações, atos terroristas e multidões.
Estrutural: refere-se aos processos sociais, políticos e econômicos que reproduzem e cronificam a fome, a miséria, as desigualdades sociais de gênero, de etnia e mantêm o domínio adultocêntrico sobre crianças e adolescentes.
Já quanto à natureza, podem consideradas como física (agressão, homicídio e outros), sexual, psicológica ou por abandono, negligência ou privação de cuidados (MINAYO, 2005, p. 58)32. Por fim, a análise com parâmetros normativos será feita em seguida, com enfoque a seis tópicos já elencados no capítulo anterior: 1) valores humanos, 2) cidadania da criança e do adolescente, 3) respeito e reconhecimento da diversidade cultural e combate ao preconceito e à discriminação, 4) respeito à honra e à imagem, 5) violência e 6) posse da terra.
3.1 Análise descritiva A descrição das matérias será feita segundo o jornal em que foram encontradas e a data de publicação, por ordem cronológica. Serão apresentadas figuras para ilustrar cada uma, que poderão ser consultadas em dimensão maior nos anexos deste trabalho.
3.1.1 Correio do Estado Foram selecionadas cinco matérias, entre as quais três são reportagens e duas são notícia.
Figura 1 - Matéria 1 do jornal Correio do Estado
Fonte: Jornal Correio do Estado, edição de 5 de junho de 2016.
1) Título: “Idosa e dois homens assassinados de forma violenta no interior” Retranca: “Homicídios” 32
Como já mencionado, as matérias foram escolhidas preferencialmente segundo as formas de violência mais frequentes apontadas pelas estatísticas.
Subtítulo: não possui Autor: Renan Nucci Editoria/Página: Cidades, 8 Fotografia/Infográfico: não possui
A matéria 1 (ver anexo 1) é uma notícia de cinco parágrafos sobre três homicídios registrados em municípios do interior de Mato Grosso do Sul, que não possuem relação entre si. Apesar de o título se referir somente a homens, o segundo assassinato relatado é o de um adolescente indígena de 17 anos, que aconteceu em Dourados. A identidade da vítima é revelada na matéria. A violência que a levou a óbito é a física, de natureza interpessoal, pois foi praticada contra ela pelo próprio cunhado, também indígena. No trecho do texto em que o assassinato do adolescente é comentado, não é citada a fonte das informações. Segundo a matéria, o homicídio ocorreu após o adolescente tentar defender a irmã, esposa do autor do crime, que havia sofrido violência doméstica33. Figura 2 – Matéria 2 do jornal Correio do Estado
Fonte: Jornal Correio do Estado, edição de 15 de junho de 2016.
2) Título: “Mais um índio morre em disputa por terra no Estado”
33
Quando ocorre em casa, ambiente doméstico ou em relação de familiaridade, afetividade ou coabitação (BRASIL, 2006).
Subtítulo: “Nos últimos cinco anos, foram quatro indígenas mortos nas fazendas invadidas de MS; ontem, em Caarapó, mais uma pessoa morreu em confronto, e outras ficaram feridas” Retranca: “Tensão” Autor: Tainá Jara Editoria/Página: Cidades, 7 Fotografia/Infográfico: 2 fotografias e 1 infográfico (ambos
sem
identificação de autoria)
A matéria 2 (ver anexo 2) do jornal ocupa quase todo o espaço da primeira página da editoria Cidades e recebeu destaque como manchete34. Pode ser considerada uma reportagem, pois além de trazer detalhamentos em torno do fato noticioso ocorrido no dia anterior, “a morte do guarani-kaiowá e agente de saúde Clodiode Aguileu Rodrigues de Souza, de 26 anos, na manhã de ontem em Caarapó”, também relaciona o assunto com outros assassinatos de indígenas registrados em anos anteriores, na mesma circunstância, em conflitos por terra, e organiza os dados em um infográfico35. Ela foi estruturada em dois blocos diferentes. Em relação ao fato mais recente, a jornalista consultou uma fonte primária, o cacique Lorivaldo Nantes, que estava na área em que houve a morte de Clodiode Aguileu Rodrigues de Souza. As fontes secundárias da reportagem são outras sete – a Polícia Civil; a administração do Hospital São Matheus; o secretário de Justiça e Segurança Pública de Mato Grosso do Sul, José Cardoso Barbosa; a Fundação Nacional do Índio; o conselho indígena Aty Guasu e a irmão da proprietária legal da área reivindicada pelos indígenas, José Armando Amado, parte que representa o outro lado da situação, decorrente de conflito de interesses de posse entre indígenas e a fazendeira. Uma criança ficou ferida no mesmo confronto, no município de Caarapó, em Mato Grosso do Sul, segundo a matéria. Essa informação foi obtida junto à fonte secundária não identificada, que falou em nome da administração do Hospital São Matheus. Em trecho próximo ao fechamento da matéria, a polícia, outra fonte secundária informa que “[...] seis indígenas teriam sido encaminhados feridos para o Hospital São Matheus [...]”, portanto, presume-se que essa criança teria sofrido alguma forma de violência coletiva, tendo em vista 34
35
Manchete é o título que destaca, na capa do jornal, o principal assunto trazido pela edição do dia.
Item auxiliar que apresenta informações e dados no formato gráfico dentro de uma matéria, com a finalidade de complementá-la e exibir o conteúdo de modo mais atraente visualmente.
que ela estava em um ambiente em que havia, segundo a reportagem, disputa de interesses entre dois grupos por meio do embate físico – um defendia a propriedade privada (direito individual e econômico) e outro defendia a terra de ocupação tradicional indígena (direito coletivo). A matéria 3, que será descrita a seguir, e foi publicada no dia seguinte, esclarece que essa vítima sofreu violência física e foi encaminhada ao hospital após ser atingida por tiro de arma de fogo.
Figura 3 - Matéria 3 do jornal Correio do Estado
Fonte: Jornal Correio do Estado, edição de 16 de junho 2016.
3) Título: “Desinteresse de autoridades marca investigação de conflito” Subtítulo: “Mais de 24h depois do incidente, Polícia Federal não havia feito perícia, tampouco procurado as vítimas” Retranca: “Caarapó” Autor: Tainá Jara, com a coautoria de Glaucia Vaccari e Lucia Morel Editoria/Página: Cidades, 9 Fotografia/Infográfico: 1 fotografia reproduzida do site Alô Caarapó e 1 infográfico com mapa, sem identificação de autoria, cuja fonte das informações é o IBGE A matéria 3 (ver anexo 3) é um suíte36 da matéria 2 do jornal Correio do Estado, descrita anteriormente. Ela também recebeu destaque na capa da edição do dia, abaixo do
36
É uma matéria jornalística que trata dos desdobramentos de um fato já explorado anteriormente por outra matéria.
título da manchete. Ocupa praticamente metade da página em que foi inserida e traz também um mapa. Pode ser considerada uma reportagem, por enfocar a demora das autoridades em tomar providências quanto à morte do guarani-kaiowá e à violência física que sofreram outras pessoas, desdobramento em relação ao conflito que se deu em Caarapó. Além de retomar fatos ocorridos durante o confronto, a matéria também fala sobre a tensão provocada pela constante situação de risco na região e sobre a estrutura de segurança mobilizada para evitar novas reações. Trata-se de um conflito de interesses, como mencionado, e a repórter cita fontes ligadas aos indígenas, ao poder público e a organizações representativas dos índios e produtores rurais. Ao todo, foram identificadas sete delas: o superintendente do Hospital da Vida – para onde os feridos foram encaminhados –, Genivaldo Dias da Silva; “entidades ligadas aos direitos humanos”; o Sindicato Rural de Caarapó, o prefeito de Caarapó, Mário Valério; a Polícia Militar; o cacique Lorivaldo Nantes e o Ministério da Justiça. A única fonte primária ouvida é o cacique que, na transcrição de sua fala, menciona as crianças da comunidade a qual pertence: “A gente não tem medo, vamos lutar ou morrer, em nome de nossas crianças”. Uma das fontes secundárias, o superintendente Genivaldo Dias da Silva, confirma que indígenas foram feridos por “munição real” e, a partir disso, depreende-se tratar de violência física, uma tentativa de homicídio praticada em um contexto de violência coletiva, devido aos conflitos de interesses que envolvem a questão. A criança ferida é citada na matéria e sua identidade é revelada, assim como a das demais vítimas que estavam internadas no hospital.
Figura 4 - Matéria 4 do jornal Correio do Estado
Fonte: Jornal Correio do Estado, edição de 13 de julho de 2016.
4) Título: “Força Nacional não inibe novo confronto em Caarapó” Subtítulo: não possui
Retranca: “Embate” Autor: Tainá Jara e Mariana Chianezi Editoria/Página: Cidades, 9 Fotografia/Infográfico: 1 fotografia (sem identificação autoria)
A matéria 4 (ver anexo 4) também é uma suíte das matérias 2 e 3. Ela ocupa um pequeno espaço abaixo da matéria principal da página, e noticia que houve novos conflitos em Caarapó e mais casos de violência física, mesmo com a presença de agentes de segurança pública na região. Dessa vez, três indígenas – um adulto e dois adolescentes que não são identificados – foram baleados por “homens armados em quatro caminhonetes e um trator” e ficaram feridos. A informação foi obtida por meio de fonte secundária, o Conselho Indigenista Missionário. Assim como as matérias anteriores, essa notícia destaca que as vítimas estavam expostas a situação de violência coletiva, motivada por divergências de interesses em relação ao processo de demarcação de Terra Indígena.
Figura 5 - Matéria 5 do jornal Correio do Estado
Fonte: Jornal Correio do Estado, edição de 30 de julho de 2016.
5) Título: “Criança é espancada, estuprada e morta por tios na aldeia” Retranca: “Barbárie” Subtítulo: não possui Autor: Renan Nucci, com coautoria de Sidinei Bronka Editoria/Página: Cidades, 10 Fotografia/Infográfico: 1 fotografia de Sidinei Bronka
A quinta e última matéria da amostra selecionada no jornal Correio do Estado (ver anexo 5) é uma reportagem que apresenta detalhes sobre a morte de uma menina de 3 anos que morava na aldeia Bororó, em Dourados, e sobre a investigação policial do crime. Na edição em que foi publicada, recebeu uma pequena chamada37 na capa. A única fonte consultada pelo jornalista é a delegada Paula Ribeiro dos Santos Oruê da Delegacia de Atendimento à Mulher de Dourados. As informações obtidas são todas de caráter secundário, já que nenhuma fonte relacionada diretamente ao fato foi citada na matéria. O caso é contado com destaque a detalhes sobre os maus-tratos, agressões físicas e possível abuso sexual que levaram a criança à morte, e também com ênfase na prisão dos suspeitos de cometer as “atrocidades”, como cita o texto, e a “barbárie”, como descrito na retranca, os tios com quem a menina morava. Eles são representados como autores do crime, apesar de a investigação ainda estar em curso, de acordo com a matéria. A partir disso, sugere-se que a violência que causou a morte da vítima é a interpessoal e intrafamiliar, nas formas, física, sexual e por maus-tratos ou negligência.
3.1.2 O Progresso No jornal O Progresso também foram selecionadas cinco matérias, entre as quais duas são reportagens e três são notícia.
Figura 6 - Matéria 1 do jornal O Progresso
37
Também dentro do vocabulário jornalístico, significa um título destacado na capa do jornal, que não seja a manchete do dia.
Fonte: Jornal O Progresso, edição de 26 de janeiro de 2016.
1) Título: “Irmãos de 15 e 16 anos são baleados em emboscada” Retranca: não possui Subtítulo: “Eles seguiam juntos por uma rua localizada na aldeia Bororó quando foram alvejados” Autor: sem identificação Editoria/Página: Dia a Dia, 3 Fotografia/Infográfico: não possui
A primeira matéria do jornal O Progresso (ver anexo 6) noticia duas tentativas de homicídio e um assassinato registrados em diferentes localidades de Dourados. Somente o primeiro fato, as tentativas de homicídio, será considerado nesta descrição, já que ocorreu na Reserva Indígena e diz respeito a dois adolescentes indígenas. O texto ocupa um pequeno espaço ao final da página, e o relato da notícia a respeito das vítimas indígenas compõe-se de três parágrafos e possui poucos detalhamentos. A única menção à fonte de informação é “segundo as autoridades”. Neste caso, a expressão “autoridades” pode se referir tanto a fontes primárias (lideranças indígenas, por exemplo, que teriam testemunhado ou apurado o ocorrido) ou fontes secundárias (a polícia, por exemplo). Devido à incerteza na expressão, a fonte desta matéria não será classificada. A violência que vitimou os adolescentes pode ser considerada física, de natureza interpessoal e comunitária.
Figura 7 - Matéria 2 do jornal O Progresso
Fonte: Jornal O Progresso, edição de 15 de junho de 2016.
2) Título: “Conflito em fazenda deixa um índio morto” Retranca: não tem Subtítulo: “Morreu atingido por disparos de arma de fogo o índio Cloudione Rodrigues Souza, de 26 anos, agente de saúde” Autor: sem identificação Editoria/Página: Dia a Dia, 3 Fotografia/Infográfico: 2 fotografias, a primeira de Sidnei Lemos, e a segunda de autoria não identificada
A matéria 2 (ver anexo 7), recebeu destaque como manchete do jornal O Progresso, e se trata de uma notícia sobre a morte do indígena Cloudione Rodrigues de Souza no conflito por terra que aconteceu em Caarapó, também publicada pelo jornal Correio do Estado. Ela possui um bloco de texto à parte, que traz informações sobre providências a serem tomadas por autoridades quanto ao ocorrido. Foram identificadas ao todo sete fontes, das quais não se sabe se foram consultadas diretamente pelo autor da notícia por causa de referências constantes a outros veículos de imprensa como “Segundo sites de notícia da capital”, “Conforme informou o Caarapó News” e “Segundo informação do Campo Grande News”. As fontes primárias são três: “os índios” – modo em que foi citada na matéria –, o cacique Lorivaldo Nantes e o proprietário de uma das fazendas da região (não identificado por nome). Já as secundárias são
quatro: o deputado federal “Zeca do PT”, a polícia, o secretário Especial de Saúde Indígena, Rodrigo Rodrigues e o Ministro da Justiça, Alexandre Morais. Vários detalhes sobre o confronto são abordados pela matéria 2. Em relação à violência coletiva que envolveu as crianças que estavam em meio ao confronto, o que interessa a esta análise, depreende-se da notícia que duas delas sofreram violência física durante o episódio, provocada por queimadura.
Figura 8 - Matéria 3 do jornal O Progresso
Fonte: Jornal O Progresso, edição de 13 de julho de 2016.
3) Título: “Três índios são baleados em área de conflito em Caarapó” Retranca: não possui Subtítulo: não possui Autor: Valéria Araújo Editoria/Página: Dia a Dia, 3 Fotografia/Infográfico: 1 fotografia (sem identificação de autoria)
A matéria 3 (ver anexo 8) ganhou também um destaque na capa do jornal O Progresso, e se trata de notícia sobre novos atos de violência coletiva envolvendo indígenas na área reivindicada em Caarapó. É um suíte da matéria 2 do mesmo jornal. Segundo relata, três indígenas foram atingidos por tiros, sendo que dois deles são adolescentes de 15 e 17 anos. Ao todo há três menções a fontes secundárias. Entre elas, duas são citadas como “órgão indigenista” e “fontes oficiais” e não é possível saber, no desenvolvimento do texto, de quem se tratam precisamente. A outra é o coordenador da
Fundação Nacional do Índio em Dourados, Vander Nishijima. Nesta notícia, também há referência à informação proveniente de outro veículo de imprensa, o site Midiamax. Figura 9 - Matéria 4 do jornal O Progresso
Fonte: Jornal O Progresso, edição de 30 de julho de 2016.
4) Título: “Criança é espancada até a morte pelos tios” Retranca: não possui Subtítulo: “Menina indígena, de três anos, sofreu violência sexual, queimaduras, tinha fratura na perna e no maxilar, também foi abandonada pelos pais” Autor: Flávio Verão Editoria/Página: Dia a Dia, 3 Fotografia/Infográfico: 1 fotografia de Hedio Faza
A matéria 4 do jornal O Progresso (ver anexo 9) é uma reportagem pois, além de noticiar a morte de uma menina indígena de 3 anos que vivia na aldeia Bororó, em Dourados, também traz detalhes sobre as investigações da polícia em relação ao caso. Assim como matéria sobre o mesmo assunto publicada pelo Correio do Estado, a única fonte consultada é secundária, a delegada Paula Ribeiro dos Santos Oruê. As formas de violência relatadas no texto são também as situações violência interpessoal e intrafamiliar, nas formas de maus tratos ou negligência, agressões físicas e abuso sexual, a princípio praticados pelos tios da
criança. A matéria atém-se na descrição das formas de violências sofridas e nas providências já tomadas pela polícia em relação ao caso.
Figura 10 - Matéria 5 do jornal O Progresso
Fonte: Jornal O Progresso, edição de 2 de agosto de 2016.
5) Título: “Índios denunciam omissão em estupros de crianças” Retranca: não possui Subtítulo: “Na Reserva Indígena de Dourados, mais de 20 casos continuam impunes; Conselho diz que assassino de indígena teria estuprado a filha dela de 5 anos” Autor: Valéria Araújo Editoria/Página: Dia a Dia, 3 Fotografia/Infográfico: 1 fotografia de Hedio Faza
A última matéria selecionada no jornal O Progresso (ver anexo 10) é uma reportagem sobre a omissão do poder público em relação a casos de abuso sexual de crianças, na forma de estupro, e também de violência doméstica que vêm sendo registrados em grande número na Reserva Indígena de Dourados. Uma das situações em que houve tanto o estupro de uma criança como a violência doméstica contra sua mãe é descrita por uma fonte primária consultada pela jornalista, o vicepresidente do Conselho Indígena da Reserva Indígena de Dourados, Ivan Cleber de Souza. Este caso em específico trata-se de violência interpessoal e intrafamiliar, pois foi praticada
por pessoa que convivia com as vítimas. Ainda segundo a mesma fonte, órgãos do poder público não têm oferecido proteção às vítimas e agido para punir os agressores, caracterizando-se um outro tipo de violência, a estrutural, decorrente da desassistência em segurança pública e do não acesso à justiça. Outra fonte primária é o secretário executivo do Conselho Indígena e pastor Valdemir Ribeiro Ramires, que conta ter tentado intermediar um dos casos. A terceira e última fonte de informações presentes no texto é o Conselho Tutelar, de caráter secundário.
3.1.3 Sistematização da análise descritiva O seguinte quadro sistematiza as informações descritivas das matérias consideradas mais relevantes para auxiliar a análise descritiva: Quadro 2 – Sistematização da análise descritiva das matérias
DESCRIÇÃO VEÍCULO
CORREIO DO ESTADO
CORREIO DO ESTADO
CORREIO DO ESTADO
CORREIO DO ESTADO
CORREIO DO ESTADO
O
TÍTULO DA MATÉRIA
EDITORIA E PÁGINA/DEFINIÇÃO EM NOTÍCIA OU REPORTAGEM
FONTES DAS INFORMAÇÕES
TIPO/FORMA DE VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA OU ADOLESCENTE INDÍGENA Violência interpessoal (comunitária); violência física (homicídio)
Idosa e dois homens assassinados de forma violenta no interior Mais um índio morre em disputa por terra no Estado Desinteresse de autoridades marca investigação de conflito Força Nacional não inibe novo confronto em Caarapó Criança é espancada, estuprada e morta por tios na aldeia
Cidades, página 8, notícia
Não citadas
Cidades, página 7, reportagem
1 primária e 7 secundárias
Violência coletiva; violência física (tentativa de homicídio)
Cidades, página 9, reportagem
1 primária e 7 secundárias
Violência coletiva; violência física (tentativa de homicídio)
Cidades, página 9, notícia
1 secundária
Violência coletiva; violência física (tentativa de homicídio)
Cidades, página 10, reportagem
1 secundária
Irmãos de 15
Dia a Dia, página 3,
1 fonte não
Violência interpessoal (intrafamiliar); violência por maus tratos ou negligência, violência física (agressão) e violência sexual Violência interpessoal
PROGRESSO
e 16 anos são baleados em emboscada
notícia
O PROGRESSO
Conflito em fazenda deixa um índio morto
Dia a Dia, página 3, notícia
O PROGRESSO
Três índios são baleados em área de conflito em Caarapó Criança é espancada até a morte pelos tios
Dia a Dia, página 3, notícia
O PROGRESSO
Dia a Dia, página 3, reportagem
identificada e não classificada por estar citada de modo impreciso 3 primárias e 5 secundárias, parte delas citadas de modo impreciso e sem identificação 3 secundárias (duas delas não possuem identificação)
(comunitária); violência física (tentativa de homicídio) Violência coletiva; violência física (lesão por queimadura)
1 secundária
Violência interpessoal (intrafamiliar); violência por maus tratos ou negligência, violência física (agressão) e violência sexual Violência interpessoal e estrutural; sexual
Índios Dia a Dia, página 3, 2 primárias e 1 denunciam reportagem secundária omissão em estupros de crianças (Fonte: Tabela realizada pela autora para finalidades específicas da monografia) O PROGRESSO
Violência coletiva; violência física (tentativa de homicídio)
Em síntese, a análise descritiva possibilitou aferir que: 1) de acordo com os títulos, em seis das 10 matérias a violência contra a criança e o adolescente não é o tema central, 2) as notícias e reportagem aparecem geralmente nas páginas intermediárias do jornal, nas editorias de Cidades e Dia a Dia, 3) metade das produções são reportagens, mas apenas uma aprofunda a questão da violência contra a criança indígena, 4) sob uma perspectiva normativa, em quatro matérias há problemas quanto ao modo em que as fontes são citadas no texto, 5) a maioria das fontes consultadas é de caráter secundário e não testemunhou o fato, 6) a forma de violência mais noticiada é a física, na forma de tentativa de homicídio, e de natureza interpessoal e coletiva, geralmente praticada em áreas de conflito, reivindicadas pelos indígenas, e na própria comunidade em que vivem. Também em observação a outros elementos – não inclusos no quadro acima, porém presentes nas descrições – foi possível verificar que: 6) apenas indígenas que vivem nos municípios de Dourados e Caarapó foram citados nas notícias, 7) apenas a etnia indígena guarani-kaiowá é citada em duas das matérias, e 8) no período estipulado não foram produzidas matérias sobre suicídio de crianças e adolescentes indígenas, apesar de esse tipo de violência aparecer em números expressivos nos dados apresentados no Capítulo 1 deste trabalho.
3.2 Análise normativa Neste item final, o recorte empírico será analisado de acordo com os parâmetros sistematizados (ver quadro 1), e com o auxílio da descrição feita sobre ele (ver quadro 2).
Valores humanos Entre as dez notícias e reportagens analisadas foram encontradas ao menos cinco violações de direitos humanos contra as crianças e adolescentes: os próprios atos de violência (que ferem o direito à vida e à segurança pessoal), a não garantia do direito à terra (espaço essencial para as sociedades às quais pertencem, que representa a reprodução da vida em sociedade), a desassistência em segurança pública, o não acesso à justiça e a falha do poder público em oferecer assistência especial a eles. A cobertura ideal sugerida segundo parâmetros normativos precisa, segundo o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, promover a “defesa dos direitos humanos”, considerar a percepção dos povos indígenas sobre eles, de acordo com parâmetro referente às legislações indigenistas e ao Estatuto dos Povos Indígenas que prevê a “garantia dos Direitos Humanos, direitos e liberdades fundamentais em face das práticas indígenas tradicionais que os violem, sem impedimento ou discriminação por motivo de etnia ou gênero” e, ainda, reconhecer as crianças e adolescente como “detentores dos direitos da pessoa humana”, como inferido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Nenhuma das matérias trata as cinco violações encontradas explicitamente como uma questão de direitos, contudo duas reportagens tratam-nas como tema central e as relacionam com a omissão das autoridades. A primeira é a matéria 3 do jornal Correio do Estado (ver anexo 3), que tem como título “Desinteresse de autoridades marca investigação de conflito” e aborda a demora das autoridades em investigar a autoria dos disparos que matou um indígena guarani-kaiowá e feriu outras cinco pessoas, entre elas uma criança, também indígena. No texto, que é de autoria da jornalista Tainá Jara, fica implícito que o tema central é a violação ao direito de acesso à justiça pelos povos indígenas. “Entidades ligadas aos direitos humanos” chegaram a se manifestar quanto a esse tipo de desassistência, segundo a reportagem. Outras violações de direitos citadas, também não de modo explícito, são a própria situação de violência a que as crianças, adolescentes e suas famílias estiveram expostos para reivindicar o direito de posse de suas terras tradicionais, que não é assegurado por entrar em conflito o direito à propriedade
privada – que diz respeito aos fazendeiros e possui natureza econômica –, e na violência física em si das quais foram vítimas. A outra é a matéria 5 do jornal O Progresso (ver anexo 10), de título “Índios denunciam omissão em estupros de crianças”, que traz uma denúncia de lideranças da Reserva Indígena de Dourados, fontes primárias, sobre a violência sexual contra crianças e sobre a violência doméstica praticada contra mulheres da comunidade, violações que se agravam em função da desassistência em segurança pública e da impunidade dos agressores, colocando em risco a própria segurança e a vida das vítimas, dois direitos humanos. Apesar de ressaltar esses dois valores, a segurança e a vida, a jornalista autora do texto, Valéria Araújo, também não cita de forma direta que a denúncia se trata da violação de direitos humanos, defendidos em caráter básico e universal. Não foi identificada, em nenhuma das dez matérias, referência a valores contrários aos direitos humanos.
Cidadania da criança e do adolescente De acordo com os parâmetros normativos propostos neste trabalho, uma cobertura noticiosa considerada ideal precisa considerar e destacar a cidadania da criança e do adolescente como de caráter específico e de exercício prioritário e reconhecê-los como categorias que têm direito à assistência especial e à dignidade como pessoas em processo de desenvolvimento, que contam com proteção especial por parte da família, do poder público e da sociedade em geral. Além disso, no caso dos povos indígenas, precisa considerar o respeito às diferentes aplicações da legislação dirigida a eles nas sociedades indígenas devido a especificidades culturais. De acordo com parâmetro retirado do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, os profissionais devem defender e promover a cidadania, principalmente a das crianças, adolescentes e minorias sociais, como os povos indígenas. A partir desse ponto de vista, entende-se que seis matérias incitam, em maior e menor grau, debates sobre a cidadania das crianças e adolescentes indígenas e possuem alguma probabilidade de servirem como ferramentas para sua defesa . As mesmas reportagens citadas no item anterior foram as que mais se aproximaram da cobertura analisada como ideal, especialmente porque consultaram fontes primárias que, de acordo com a transcrição de suas falas, se mostraram especialmente preocupadas com as crianças e adolescentes indígenas e seus direitos.
Uma delas é o cacique Lorivaldo Nantes, citado na matéria 3 (ver anexo 3) do jornal Correio do Estado, que afirma no seguinte trecho que os atos em reivindicação ao direito à terra são motivados principalmente pelas causas das crianças: “a gente não tem medo, vamos lutar ou morrer, em nome de nossas crianças”. Conforme já mencionado, nesta reportagem, a jornalista Tainá Jara apurou que a disputa pela área resultou em violência e que entre as pessoas que ficaram feridas há uma criança indígena, atingida por “munição real”. Infere-se, a partir do texto, que providências para identificar e punir o(s) autor(es) do disparos ainda não haviam sido tomadas, e tampouco em particular à violência contra a criança. Na outra a matéria 5 do jornal O Progresso (ver anexo 10), a jornalista Valéria Araújo transcreve no texto a afirmação de uma das lideranças (não identificada) da Reserva Indígena de Dourados, que aponta, indiretamente um problema em relação à garantia de direitos da criança no que diz respeito à redefinição da guarda de crianças que tiveram de ser retiradas dos pais: “[...] muitas vezes o judiciário, ao invés de consultar quem está dentro da reserva como os agentes de saúde e as lideranças, entregam as crianças para parentes irresponsáveis que só vão judiar das crianças”. Essas mesmas lideranças também se arriscam, segundo a reportagem, tentando intervir nas situações de violência e até aprisionando – por seus próprios meios – seus autores, mas contam com a atuação da polícia, que não é prestada por vezes. A matéria chama atenção para a violação da dignidade da criança – quando esta corre o risco de ter de conviver em um lar no qual os responsáveis ignoram seus direitos – por conta de questões ignoradas pelo poder público, para outras formas de violação como a própria violência e seus altos índices e também para a violação do direito à segurança e justiça, que, se assegurados, poderiam inibir novas ocorrências e desdobramentos dos atos já cometidos. As outras quatro matérias abordam, de forma menos sistemática, questões sobre a cidadania da criança e do adolescente. Duas delas tratam sobre o mesmo assunto – a morte de uma menina de 3 anos que sofreu violência física, sexual e maus tratos por parte dos tios – e acabam incitando a discussão sobre cidadania quando falam sobre a atuação do poder público em relação a identificar e prender os acusados de violentar a criança. São elas a matéria 5 do Correio do Estado (ver anexo 5), de Renan Nucci, e a matéria 4 do O Progresso (ver anexo 9), de Flávio Verão. A reportagem de Renan Nucci fala sobre a atuação do Conselho Tutelar, órgão de proteção à criança e ao adolescente, que foi acionado após a violência ter sido constatada em um hospital, e da Polícia Civil, que passou a investigar o caso. Tanto a polícia quanto o conselho são também citados no texto de Flávio Verão como entidades que estão
tomando providências em relação ao caso, entretanto, na matéria que produziu, o jornalista também menciona iniciativas de policiais e do Conselho Tutelar em relação aos outros filhos do casal – que até então estava preso – quanto a interrogar essas crianças: “[...] policiais falaram com uma das crianças que confirmou as agressões” e decidir o destino delas “ainda ontem o Conselho Tutelar iniciou um trabalho para identificar se a avó tem condições de assumir a educação dos netos”. Se, de fato, os policiais interrogaram as crianças, há de se considerar que houve outra violação de direitos não questionada pela reportagem, já que, segundo o Estatuto da Criança e Adolescente, não são os agentes de segurança os designados a colher depoimentos desses grupos quando há uma situação de violência, mas sim assistentes sociais e psicólogos. As demais são notícias sobre novos casos de violência na área de conflito em Caarapó. Tratam deles a matéria 3 do jornal O Progresso (ver anexo 8), de Valéria Araújo, e a matéria 4 (ver anexo 4) do jornal Correio do Estado, de Tainá Jara e Mariana Chianezi. Em relação à cidadania, a questão que pode ser destacada é a do direito à segurança que, apesar de garantido, conforme afirmado nos textos, não conseguiu inibir a tentativa de homicídio contra um adulto e dois adolescentes indígenas, violência também relacionada à violação do direito à terra.
Respeito e reconhecimento da diversidade cultural e combate ao preconceito e à discriminação No viés sugerido pelos parâmetros normativos, a cobertura jornalística ideal prevê, nesse eixo, que as produções da imprensa considerem os direitos das crianças e adolescentes dos povos indígenas, sem discriminação, preservem suas identidades e diversidades culturais, promovendo campanhas de valorização de suas expressões e combatam a perseguição por motivos sociais ou raciais. Nenhuma das dez matérias analisadas corresponde satisfatoriamente a esse parâmetro. Não foi encontrada, dentro do recorte empírico, notícia ou reportagem que explicitasse discriminação contra os povos indígenas e suas crianças, porém, também não foram percebidas campanhas de valorização de suas expressões e especial consideração a suas especificidades culturais. Das que noticiam conflitos sobre a terra, por exemplo, apenas a matéria 3 do jornal O Progresso (ver anexo 8), de Valéria Araújo, menciona que práticas culturais como um tipo de dança e uma reza estavam sendo executadas no momento de um ataque violento, mas sem aprofundamento sobre o sentido dessas expressões. Bem como ela, a matéria 3 do jornal Correio do Estado (ver anexo 3), transcreve a fala de um cacique
indígena e demonstra, sem contextualização, que as crianças são categorias possivelmente valorizadas em especial na cultura daqueles povos indígenas: “a gente não tem medo, vamos lutar ou morrer, em nome de nossas crianças”. A etnia das crianças ou adolescentes que foram vítimas de violência não é citada em nenhuma matéria e não é também reconhecida a diversidade cultural em que estão inseridas. Em todos os textos, elas são tratadas como crianças indígenas ou adolescentes indígenas somente. Apenas duas, as matérias 2 e 3 do jornal Correio do Estado (ver anexos 2 e 3) citam a etnia guarani-kaiowá, só que em referência a um indígena de 26 anos, que foi assassinado durante conflitos por terra. A matéria 5 do Correio do Estado (ver anexo 5) apresenta um ponto problemático do ponto de vista do combate ao preconceito. A última parte do texto, iniciada a partir do intertítulo “Agressões na capital”, relaciona a violência que levou à morte uma menina indígena de 3 anos com um caso semelhante, que aconteceu em Campo Grande e foi bastante explorado pela imprensa local. No texto, o jornalista relembra essa ocorrência anterior e menciona as expressões “rituais de magia negra” e “oferenda” para se referir às motivações religiosas daquele crime. A delegada Paula Ribeiro dos Santos Oruê esclarece que, em um primeiro momento, foi descartada a hipótese de que a violência contra a menina indígena possua pretextos parecidos. Entretanto, entende-se que ainda assim aquelas expressões reforçam a intolerância contra religiões de matrizes africanas e, associadas à referência da morte da criança indígena, podem reforçar preconceitos também em relação a esses grupos.
Honra e imagem Nesse eixo, considera-se principalmente os seguintes parâmetro normativos: “toda pessoa tem direito ao respeito e preservação da honra e reputação” e “devem ser preservadas [da criança e do adolescente], sua imagem, identidade, autonomia, valores, ideias e crenças, espaços e objetos pessoais”. Nenhuma das matérias que compuseram o recorte empírico atinge negativamente a honra das crianças e adolescentes indígenas ou trouxeram imagens que as identifique. Entretanto, duas delas revelaram os nomes de uma criança e um adolescente que foram vítimas de violência, contrariamente ao que prevê o Estatuto da Criança e Adolescente, norma que serviu de fonte aos parâmetros definidos por este trabalho. São elas as matérias 1 e 3 do jornal Correio do Estado (ver anexos 1 e 3).
Na matéria 3 (ver anexo 8) do jornal O Progresso, a jornalista Valéria Araújo expõe um depoimento que aponta desrespeito à honra dos indígenas durante ataque em área de disputa em Caarapó: “saí daí, seus vagabundos”. Segundo a notícia, a frase foi dita por proprietário ou funcionário de uma fazenda.
Violência O principal aspecto sobre os parâmetros normativos a ser considerado na análise da exploração da temática da violência contra as crianças e adolescentes indígenas no recorte empírico definido é se as matérias apresentam caráter mórbido ou sensacionalista. Nesse ponto, as duas matérias produzidas sobre a morte de uma menina indígena de 3 anos no Correio do Estado e no O Progresso (ver anexos 5 e anexos 9) são problemáticas, pois os textos dos jornalistas Renan Nucci e Flávio Verão se excedem na descrição dos três tipos de violência praticados contra a mesma criança e no detalhamento do atendimento médico que a vítima recebeu, enquanto deixam de debater questões sobre a cidadania e ao contexto em que a violência ocorreu. Um exemplo são passagens como as encontradas, respectivamente, no Correio do Estado e no O Progresso: “[..] queimaduras, ferimentos na genitália e arranhões provocados por um escova de cerdas duras usada para lavar roupa [...]” e “[...] Foi constatado que a menina estava com a canela e o maxilar fraturados e tinha sinais de abuso sexual no ânus e na vagina [...]”.
Posse da terra Conforme verificado pela análise descritiva do recorte empírico, as matérias selecionadas registram somente fatos que ocorreram em dois municípios de Mato Grosso do Sul, Dourados e Caarapó. Segundo informações da Fundação do Índio (Funai) sobre as Terras Indígenas em Mato Grosso do Sul (2016) em ambas as cidades há áreas consideradas de posse tradicional dos índios, no entanto, elas ainda não foram regularizadas. No caso de Dourados, há também o caso específico da Reserva Indígena de Dourados, que possui um espaço reduzido e não abriga dignamente a população crescente de pessoas indígenas que nela vivem. As matérias 2, 3 e 4 do Correio do Estado e as matérias 2 e 3 do O Progresso fazem referência ao conflito pela posse de terras em Caarapó, já que ela é seu tema central. Todas elas (ver anexos 2, 3, 4, 6 e 7) mencionam a situação irregular da área disputada, que está em processo de demarcação, porém já foi reconhecida como terra tradicional indígena. A matéria 2 do Correio do Estado foi a que mais informou detalhes sobre o procedimento e a
matéria 2 do jornal O Progresso foi a que menos se ateve a ele. Nas demais matérias em que o conflito pela terra não era assunto central, o direito dos indígenas a ela não foi citado como elemento de contextualização. Apesar de a reivindicação da posse das terras ser um elemento temático explorado, entende-se aqui que ela foi abordada sistematicamente apenas pela matéria 3 do Correio do Estado (ver anexo 3), que a relaciona com assassinatos indígenas em decorrência de outros conflitos fundiários por posse e apresenta detalhes sobre o reconhecimento da Terra Indígena que provocou o confronto em Caarapó.
3.3 Considerações sobre a análise normativa A partir da análise feita dentro dos seis eixos sistematizados no Capítulo 2, foi possível inferir que no período de 1 janeiro a 2 de agosto de 2016, os jornais Correio do Estado e O Progresso não realizaram cobertura que, em sua totalidade, abordasse a violência contra a criança e o adolescente de acordo com os parâmetros normativos. As matérias responderam mais positivamente àqueles definidos em cidadania da criança e do adolescente e, de forma negativa, deixaram de promover o respeito e reconhecimento da diversidade cultural e combater o preconceito e a discriminação, conforme propõem os dispositivos que serviram como fonte para estabelecer os parâmetros utilizados. Apesar de terem sido encontradas algumas reportagens no recorte empírico, que possibilitariam o aprofundamento e a contextualização do assunto (LAGE, 2006) em relação ao direito à terra e direitos humanos, elas não abordaram de forma direta e esclarecedora essas questões. A cobertura valeu-se mais de enfoques episódicos, a partir de casos pontuais, sem oferecer uma abordagem contextual, que pudesse dar conta da complexidade e da gravidade da questão, tal como exposta no Capítulo 1. Considerando-se ainda, que no período estipulado houve um confronto por terra que resultou em violência, esperava-se encontrar matérias que explorassem com maior profundidade preceitos sugeridos nos eixos dos parâmetros normativos sobre valores humanos, respeito e reconhecimento da diversidade cultural e posse da terra, o que não aconteceu.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Admite-se neste trabalho que o jornalismo contribui para a reivindicação, consolidação e ampliação da cidadania e que, a julgar pelo seu passado e presente, os povos indígenas de Mato Grosso do Sul, em especial suas crianças e adolescentes, são sociedades que têm sofrido uma violação sistemática de seus direitos, no entanto, a imprensa local pode estar abstraindo-se de cumprir o papel social de agendar esse assunto como tema da cobertura jornalística. Para ajudar a pensar em uma atuação ideal, que corroborasse com a construção de um discurso capaz de mobilizar a opinião pública quanto à urgência em debater a violência contra as crianças e adolescentes – grupos considerados mais vulneráveis dentro deste universo – foram propostos parâmetros normativos. A pretensão deste trabalho é que eles funcionem tanto como instrumentos para analisar a cobertura jornalística já feita quanto como guia para futuras produções da imprensa. Os aparatos jurídicos que auxiliaram o estabelecimento desses parâmetros – a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os artigos n° 231 e 232 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), a Convenção n° 169 sobre os povos indígenas e tribais da Organização Internacional do Trabalho, o Estatuto dos Povos Indígenas – e o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros não são entendidos, no presente trabalho, como mecanismos de cerceamento do direito à comunicação da imprensa, do jornalista e da empresa jornalística. Pelo contrário, eles são examinados como ferramentas de auxilio, capazes de orientar um profissional que, por dirigir-se ao público e retirar das esferas civil e política os temas substanciais de seu trabalho, precisa manter-se alinhado com os interesses do cidadão e produzir informações de interesse público. A democracia, o suporte dessa relação intrínseca no jornalismo, possibilitou o direito de informar e de ser informado à imprensa e aos cidadãos. Apesar de a imprensa também prezar por interesses econômicos – afinal, geralmente é formada por empresas privadas que precisam manter-se, com base nas regras do mercado – não é impossível que ela continue se responsabilizando e se preocupando em manter seu papel social autolegitimador: servir ao interesse público. Sem esse princípio a existência da imprensa como instituição social perde o sentido. Nesse ponto de vista, propõe-se que a imprensa sul-mato-grossense sirva aos interesses dos cidadãos que são crianças e adolescentes e pertencem a etnias indígenas do
Estado, não só noticiando as violações de direitos, mas também indo a fundo em questões que os afetam há muito tempo como a posse da terra, o preconceito, a discriminação, o não reconhecimento de suas diversidades culturais e o desprezo a seus valores e necessidades básicas. O cruzamento dos argumentos e dados em torno da violência e do não acesso à terra – duas violações de direitos nas quais insistiu este trabalho –, dos parâmetros normativos e dos resultados da análise de parte da cobertura já feita, indício de que a cobertura precisa e tem condições de melhorar. Para isso, é necessário que os jornalistas voltem a atenção para a população indígena de Mato Grosso do Sul e procurem contribuir com a produção de conteúdo que diga algo sobre suas urgentes demandas e denuncie as injustiças sociais que os cercam.
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ANEXOS E APENDICES Anexo 1
Anexo 2
Anexo 3
Anexo 4
Anexo 5
Anexo 6
Anexo 7
Anexo 8
Anexo 9
Anexo 10