Natรกlia Oliveira
Título: Casa 140 Copyright © 2018 Natália Oliveira. Todos os direitos reservados.
Autora Natália Oliveira Ilustrador Fábio Pereira Faria Filho Orientador Prof. Dr. Marcos Paulo da Silva Projeto gráfico e diagramação Vanessa Azevedo Contato naholliveir@gmail.com
Projeto Experimental do Curso de Comunicação Social Jornalismo 2018 Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Natรกlia Oliveira
Campo Grande, 2018
A mim mesma por não ter desistido durante esse longo trajeto, aos meus pais por me apoiarem, aos meus amigos que me deram forças para continuar fazendo o que acredito, e a você, por ler minha obra. •
É necessário sair da ilha para ver a ilha, não nos conhecemos se não saímos de nós.
José Samarago
∙ Sumário ∙ ∙ Prólogo ∙...................................................................... 9 ∙ Capítulo I ∙
A casa.......................................................................... 13 ∙ Capítulo II ∙
Dias e Dias.................................................................. 27 ∙ Capítulo III ∙
Japa.............................................................................. 53 ∙ Capítulo IV ∙
Pedro........................................................................... 61 ∙ Capítulo V ∙
Vitor............................................................................ 71 ∙ Capítulo VI ∙
Rafael.......................................................................... 87 ∙ Apêndice ∙............................................................... 105
∙ Prólogo ∙
É
sempre difícil chegar a algum lugar que não conhecemos. Aquele era um bairro que nunca sequer ouvi falar. Não por ser desconhecido para os habitantes locais, mas pela bolha em que vivemos. Na maior parte do tempo estamos restritos a nos deslocarmos de casa para a escola, faculdade, trabalho e vice-versa. Aquele endereço para mim era novo. Um tanto quanto longe também. Olhei no aplicativo de geolocalização no celular para saber como chegar ao local, qual ônibus pegar e quando descer. Os pensamentos negativos tomavam conta. Como se fossem uma voz de advertência; “E se você se perder”, “se me roubarem no caminho, nem sei exatamente para onde estou indo”, “você não tem internet para conferir, melhor não arriscar”. Pedi informação para amigos. Eles, assim como o aplicativo, disseram qual ônibus eu deveria pegar e onde descer. Para a minha surpresa e desespero, havia duas opções. Descer em um ponto distante e ir caminhando, na certeza de que mais cedo ou mais tarde chegaria, ou, descer em um ponto, esperar um outro ônibus e não saber onde ele levaria. Essas coisas podem ser assustadoras para quem não domina o suficiente as rotas da cidade em que reside. Resolvi optar pelo caminho mais fácil. Ir de Uber e voltar de ônibus. A tarifa da viagem fica bem salgada quando se está ∙9∙
∙ Prólogo ∙
sozinho. Tudo é muito novo. Como será o local? Será que eles vão ser receptivos? E se me tratarem mal? Automaticamente tratei de bloquear os pensamentos negativos. Iria de coração aberto. Não esperaria nada. Que a experiência me surpreendesse. Sempre soube que este tema seria forte e que me impactaria de alguma maneira. Para explicar melhor, voltarei um pouco no tempo. Tudo começou em meados de 2016, quando a ideia de um livro já rondava minha cabeça. Na verdade, desde que entrei no curso sabia que meu produto final seria um livro. O problema era o tema. Como sempre, queremos escolher da maneira mais correta possível para não se arrepender depois. Queremos que seja algo legal e, principalmente, que nos entusiasme, encha nossos olhos e nos faça sentir que o que fazemos tem relevância. Solicitei um Uber com o coração na boca. A ansiedade atacou-me um pouco. As dificuldades já começaram sem nem ao menos ter chegado lá. O preço estava pela hora da morte, como dizem por aí. Esperei para ver se o preço cairia. Não caiu, pelo contrário, apenas aumentou. Resolvi baixar um aplicativo semelhante. Nele, a corrida estava um pouco mais barata, mas não havia disponibilidade de muitos motoristas. Fiquei apreensiva, já era quase duas da tarde. Eu precisava estar lá nesse horário. Finalmente, depois de muito medo de não conseguir chegar a tempo, um motorista estava a caminho. Ele era baixo e aparentava ter mais de quarenta anos. O senhor de cabelos pretos, cheios até, começou a puxar papo. Gostava de conversar. Sua fala era mansa e tranquila. Durante todo o longo trajeto, dialogava comigo. Falamos sobre como é dirigir o dia todo, jornada de trabalho e faculdade. Muito tempo passou desde que eu decidira que seria um livro-reportagem. Meu problema perdurou até o fim de 2017, quando durante a banca final de algumas veteranas do curso, meu ∙ 10 ∙
∙ Prólogo ∙
professor levantou a questão de visibilidade social na terceira idade. De primeira, senti-me atraída pela temática, mas foi algo momentâneo. Algum tempo depois, durante uma aula, a ideia veio como um presente. Pronto e embrulhando, só esperando para ser aberto. Estava certa que queria falar sobre abandono social. Porém, como a ideia inicial fora sobre idosos, pensei em quais outros tipos de abandono poderia tratar. Então visualizei as crianças. Sempre gostei muito delas. Um estalo surgira em minha cabeça. Abandono social infantil. Pronto. Esse seria meu tema. Desde então as coisas só clarearam. A ideia amadureceu. Depois de um tempo, chegamos. O motorista estacionou em frente a uma residência aparentemente comum, pois esse era o intuito, que ela parecesse um ambiente familiar. Olho atentamente para ela antes de descer do carro e me questiono se estaria realmente no endereço certo. O homem esperou que eu tivesse certeza de meu destino para encerar a corrida. Paguei e fui deixada em um lugar até então totalmente desconhecido. As ruas eram muito parecidas, não seria muito difícil se perder. Depois de um tempo e de algumas entrevistas, percebi que o foco de minha pesquisa deveria ser revisto. De acordo com todas as fontes oficiais que consultei, o abandono social infanto-juvenil é considerado o mais cruel. Não que o abandono de crianças nos primeiros anos – ou meses – de vida seja menos traumático. Pelo contrário, ambos são assuntos extremamente complexos e que precisam ser debatidos. O que chama-me mais atenção nos casos infanto-juvenis é que os adolescentes são os que menos conseguem ser adotados, ou reintegrados à família. De acordo o último levantamento feito pelo Conselho Nacional de Adoção (CNA), de 44,832 pais que esperam por um filho(a), apenas 0.25% aceitam adotar adolescente com mais de 14 anos. Visto por esse lado, logo concluí que teria histórias carregadas de muitas cicatrizes e de muita complexidade. Existe muito para contar. De fato, não estava errada. ∙ 11 ∙
∙ Prólogo ∙
Não me envolver com as histórias era um receio recorrente meu. Porém, não me deixar tomar por emoções, e ao mesmo tempo não abdicar delas faria meu trabalho algo humano, real e sensível. Sem ser apelativo. Não queria que os meninos fossem vitimizados. Eu sabia que eles teriam histórias além do abrigo, e elas precisavam ser contadas. Parei em frente à casa de muros altos e portão vermelho. Analisei o cenário, a vizinhança. Os pequenos detalhes do desconhecido. Pensei que tudo iria dar certo. Então, respirei fundo e apertei a campainha. A sensação era a de ter pulado no oceano, sem boia e na incerteza de que a maré estaria boa. Agora só me restava nadar. Que viessem as ondas.
Todos os personagens aqui narrados são reais, entretanto, para preservação de suas imagens, nomes fictícios foram atribuídos a eles. Todas as histórias coletadas neste livro não aconteceram necessariamente nesta ordem, entretanto, não deixam de ser verídicas. Algumas falas foram adaptadas e recursos linguísticos aplicados. É importante ressaltar que todo material presente seguiu os critérios de apuração e os pilares éticos do dever jornalístico. Todos os áudios e fotos utilizadas para melhor detalhamento e construção da história foram autorizados pelas fontes, tanto pessoais, quanto oficiais. ∙ 12 ∙
∙ Capítulo I ∙
A casa “Ainda que meu pai e mãe me abandone, o senhor cuidará de mim”
∙ Capítulo I ∙
D
esconhecida para os que por ela procuram, a construção antiga, de muros amarelos e duas listras cinza, se esconde em uma rua estreita, próximo à esquina. No alto, quase camuflado entre as folhas de uma árvore presente na calçada, se vê o número 140, estampado em dourado e desgastado pelo tempo. Os grandes portões vermelhos queimados pelo sol se encarregam de separar realidades completamente distintas. Do lado de fora, uma casa comum, grande e arejada. Não há cercas, apenas um interfone. Lá dentro, do lado direito, quase fora do campo de visão, dois homens estão sentados na varanda. Não usam cadeiras, uma “mureta” aconchega seus corpos e impede o contato direto com o chão. Mais à frente, a porta principal da casa, entalhada com várias flores em alto relevo. É uma bela porta, daquelas antigas e pesadas. Um dos homens se aproxima do portão. - Pois não. Posso ajudar? Ah, está procurando pelo Sr. Francisco? Só um minuto. O homem tem a pele negra, é baixo e de fala firme. Veste uma camisa vermelha, usa óculos e seus poucos cabelos já apresentam sinais do tempo vivido. Ele não tem rugas. Seus passos são curtos, mas não demora a voltar. ∙ 15 ∙
∙ Natália Oliveira ∙
- Ele está esperando. Entre! – diz, com educação. Roupas no varal fazem parte da paisagem que estampa a entrada. Do lado esquerdo, após os primeiros passos observa-se um banheiro. Na porta, letras amarelas feitas com folhas de EVA alertam sobre o uso exclusivo do local. Do lado direito, uma sala grande, espaçosa. Vazia. As janelas seguem o mesmo estilo do portão. Grandes e vazadas. São grades, que passam a sensação de estar preso mesmo estando em liberdade. Elas não têm vidros, todos foram quebrados. Algumas estão enferrujadas, como muitas coisas ali. No calor, as janelas ajudam, pois não há ventiladores que funcionam. O único equipamento presente no local é um motor quebrado, pendurado na parede branca e manchada pelo tempo. Quando chove, o vento carrega a água para dentro e, junto dela, a poeira. Em um dia de temporal, as cortinas brancas que decoram o lugar, balançam de um lado para o outro. De longe, se escuta a fúria dos céus. - Ei, Marcelo, pode fechar a janela para a tia? – pergunta, Helena, a cuidadora. - Fechar como? – indaga o garoto.... Alguém chama por ele. A voz é de um homem e não está distante da sala. - Oi, já estou indo – responde gritando de volta. Ele se vira para a cuidadora. - Tia, seu Francisco tá me chamando. O Pedro amarra aqui. - O Pedro! – chama o menino. - O que é? Diz Pedro quando chega na sala. - Amarra as pontas da cortina aqui para a tia. - Amarrar como? ∙ 16 ∙
∙ Capítulo I ∙
- Igual ontem – responde a cuidadora. - Ontem teve um temporal aqui. Quando acontece isso, molha bastante a casa. Temos que nos juntar no meio para não se molhar, lá fora molha tudo. Ela se volta para Pedro. - Isso! Obrigada. No fundo da sala, encostados na parede estão dois sofás. O que um dia fora um estofado, hoje resume-se a madeira e revestimento. Capas escondem o forro original. São vermelhas e verdes. Ambos os sofás são cheios de furos, resultado dos muitos visitantes que neles se sentaram. Ao lado, um banco de madeira. Não tão grande, mas também não muito pequeno. Ideal para duas pessoas. À frente, uma televisão de tubo. Para muitos, a peça seria descartada, pois é velha e antiga, mas para eles, é mais do que apenas uma televisão. É um ponto de fuga, um passa tempo. O gesso do teto denúncia a idade da casa. Na laje há infiltrações e denota que o conjunto arquitetônico está incompleto. Como se tivessem esquecido de terminá-lo. Tudo o que existe é uma grande forma geométrica oca. - Acho que não vou voltar mais pro turno da noite – diz Helena, rindo. - Faz muito frio, você precisa ver – completa. A cuidadora está na instituição há mais de um ano, é uma das funcionárias mais antigas da casa. Devido à alta rotatividade do trabalho, é um bom tempo. Antes, trabalhava no turno da noite. Passou para o período inverso depois que retornou à casa, em julho de 2018. A senhora de aparência simpática é graduada em Pedagogia e gosta de levar coisas educativas para os meninos da casa. Sentada em um dos sofás, ela, junto com a educadora e a cozinheira do plantão, recortam figuras para construir uma árvore dos direitos e deveres do acolhido. O nome foi a própria Helena ∙ 17 ∙
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que deu. O papel que recorta remete as mãos dos meninos da casa, os que estão ali e os que já passaram. Pedro aproxima-se, de mansinho. Senta no chão próximo a cuidadora e reclama: - Ah, pra que isso aí? - Pra enfeitar a sala. Não sei você, mas as pessoas gostam das coisas bonitas, limpinhas – retruca a funcionária. Do outro lado, separada por uma pequena elevação, está a sala de jantar. O cômodo, porém, não se parece com uma. Não há mesa, cadeiras ou pratos. Ali não acontecem refeições, jogos em família e muito menos reuniões com os amigos da escola. Tudo o que existe é um punhado de vazio. A parede em tom de amarelo claro desbotado evidencia algumas borboletas coloridas pregadas, voando sem direção. Uma metáfora da vida. Próximos a elas estão algumas mensagens para uma boa convivência, palavras que simbolizam educação e agradecimento. As famosas palavras mágicas. Algumas borboletas estão com as asas quebradas, como as dos meninos dali. Para olhos atentos, são um dos indicativos da presença de crianças. Do lado, uma lista de regras da casa. - Essas borboletas fomos nós que fizemos, para dar uma enfeitada. Agora quero fazer isso da árvore dos deveres e uma árvore de natal. Ela aponta os lugares nos quais as colagens irão ficar. - Antes havia uma mesa aqui no centro. Fazíamos as tarefas ali, mas tiraram – relata Helena. À frente, duas prateleiras com diversos livros. Não é preciso observar muito para que os olhos viagem entre a história e a matemática em um piscar de cílios. Ao lado desta, outra estante. Ela é um misto de bagunça, jogos e mais livros. Ao lado esquerdo, está ∙ 18 ∙
∙ Capítulo I ∙
a sala do coordenador. Avisos estão espalhados pela casa. Perto da sala de Francisco, lê-se em negrito: “É estritamente proibida a entrada de acolhidos sem autorização”, outro aviso ressalta em letras maiúsculas: “COMUNICADO: O acolhido que não for à escola deverá limpar os banheiros e os quartos da unidade”. Os cabelos brancos de Francisco também denunciam sua idade, assim como as marcas da vida em seu rosto. O assistente social começou o trabalho na casa em novembro de 2017. Depois de um tempo, foi indicado ao cargo de coordenador. Desde janeiro de 2018 está à frente da unidade. De fora, a casa não perecia um sobrado. As escadas ficam ao lado da sala do coordenador. Elas são amarronzadas, assim como todo o piso, outra característica de casa antiga. Os degraus, estreitos, não são muitos. Um dos corrimãos de madeiras está ausente. Apenas os buracos na parede registram que um dia ele esteve ali. Mesmo durante o dia, o trajeto entre os andares é escuro. Nas paredes, vários rabiscos, nomes e frases. - Não tem ninguém lá em cima agora. Nesta hora estão todos na escola. – responde o Sr. Francisco. - Pode ir – reafirma. Há três quartos lá em cima. O primeiro, mais próximo da escada, é grande, não possui nenhuma cama, apenas um colchão com forro preto. Do lado direito, um dos banheiros da parte superior da casa se esconde entre as portas de um enorme guarda roupa. Os pisos são escuros, quase pretos, os azulejos brancos e o mármore da pia escuro. Também há a metade de um box de vidro, com roupas penduradas. O ambiente fede a esgoto. O vaso está entupido e o cheiro forte de urina impregna todo o andar de cima. O guarda-roupas que ocupa toda a parede, hoje consiste em apenas madeira destruída. As ∙ 19 ∙
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marcas revelam mais do que um móvel quebrado, denotam a violência que alguns meninos trazem na bagagem para o acolhimento. No canto desse guarda-roupas, um punhado de livros se exibe. Ao todo, são três pequenas divisórias preenchidas por conhecimento adormecido entre as folhas de papel. Na primeira prateleira, a obra “Papéis Avulsos”, de Machado de Assis ganha destaque. O cômodo está bagunçado. Roupas amontoadas, tênis jogados no chão. Ainda no guarda-roupas, a palavra MÃE está pichada em preto na madeira. Não há um nome, nenhuma indicação de quem tenha escrito ou para quem falava. O quarto todo é uma caixa de pensamentos, que flutuam nas paredes brancas. Às vezes, em letras miúdas e tímidas, já quase invisíveis. Outras, grandes, com fontes únicas e um traçado semelhante ao grafite de rua. Elas revelam desabafos, reflexões e pedidos. Alguns rabiscos são indecifráveis. Talvez seja assim a cabeça daqueles meninos, um manto de pensamentos embaralhados, apelos e desejos. O clima ali é denso. A caixa branca foi batizada como “CANTO DOS PENSAMENTOS”. O autor da ideia não está identificado. Acima da veneziana, bem no centro, há uma imagem. É Maria, mãe de Jesus. Ela está em uma pequena janela e segura o coração que, feito sol, irradia luz. - Deus é mau – dizem as palavras, quase como um sussurro. - Ainda que meu pai e mãe me abandone, o senhor cuidará de mim. Salmo 27:10 – retruca a outra. - Será que Deus existe? – indagam as letras um pouco mais distantes. - Como ter uma família? – questiona melancólica mais uma. - Que bosta ficar no abrigo – diz a última. O tom de sua voz é um misto de tudo e nada. ∙ 20 ∙
∙ Capítulo I ∙
O diálogo imaginário de vozes possui várias caligrafias, emoções e parece ter sido escrito em períodos diferentes. Será que essa confusão pertence a uma única pessoa? Ou outros garotos contribuíram com o canto do pensamento? É difícil saber. O quarto todo é um manto de informações codificadas. Alguns desenhos estampam uma parede e identificam o período de descoberta dos meninos. Uma das imagens é a de uma mulher nua. Seus cabelos são da altura do ombro, ela está de costas e possui uma tatuagem na nádega esquerda que diz “Te amo”, em inglês. Ao lado dela, um órgão sexual feminino. Ambos feitos à lápis. O silêncio toma conta da casa. Não há ninguém. Entre as paredes de um quarto para alguns nomes aparecem gradativamente. Alguns novos, outros nem tanto. A palavra “Japa” marca vários pontos da casa, junto com rabiscos de várias cores. No segundo quarto, apenas uma cama e três colchões encostados na parede preenchem o do lugar. Todos os meninos que moram ali perderam suas camas em brigas e algazarras. Nem sempre motivadas por eles mesmos. Agora, o objetivo é de que as camas sejam de ferro, não mais de madeira. Para isso, foi feita uma solicitação às Forças Armadas. O ventilador, assim como no outro quarto funciona apenas como um enfeite. O único vento que entra é pela janela. Uma faca de dois gumes: alivia e castiga, dependendo da estação do ano. Carimbos com o nome de um dos garotos eterniza nas portas e paredes sua passagem por ali. No último quarto, há mais colchões. Como no primeiro, o guarda-roupas também está sem porta. Este é um pouco menor que o outro cômodo. A exemplo dos outros dois, as janelas também dão para os fundos da casa. É uma instituição grande. No quarto há apenas uma cama e três colchões. O ventilador branco parece em melhor estado quando comparado aos outros da casa. O cômodo é mais organizado. Neste, as roupas estão dobradas e ∙ 21 ∙
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seguem um padrão de organização. No armário, a indicação: “roupas para sair”, mostra que a separação das peças é levada a sério. Grafadas nas paredes as vozes voltam a falar. - Viado! – grita uma delas. - Bicha! – fala a outra, um pouco mais longe. - Olha onde eu vim parar?! – exclama a última. Junto delas, desenhos abstratos e fisionomias desconhecidas. Ainda no guarda-roupa, na parte inferior, alguns tênis estão enfileirados. Alguns de marcas mais conhecidas, outros não. Algumas mochilas espalhadas e poucos acessórios, como bonés. Ao lado um banheiro. A porta está fechada, mesmo assim é possível sentir o cheiro. É um misto de urina com o mofo de lugares sem ventilação. No lugar da maçaneta, um buraco, grande o suficiente para se ver através dele. Ali encerra-se o pouco de privacidade que os garotos têm. Lá dentro, uma mancha preta corta o espelho. Parece descascado. Os armários estão vazios e sem portas. Na pia escura, uma escova de dente amarela com resquícios de creme dental, algumas roupas jogadas e muita água. Parece que a chuva alagou tudo. Os azulejos são claros e, como no outro banheiro, há parte de um box de vidro. Nele, três cuecas molhadas estão penduradas. O sanitário não tem tampa, nem assentos. De volta ao andar inferior, depois da sala de jantar, mais uma escada separa os cômodos. Desta vez, mais para baixo. O lugar tem a dimensão de um dos quartos. Tudo o que se vê lá, são roupas e sapatos. Assim que a escada acaba, do lado direito há duas estantes. Na primeira, de frente para quem chega, uma pilha enorme de roupas chama a atenção. Elas estão limpas e dobradas. Na montanha de algodão, camisetas de todos os tamanhos, cores e cortes. O ambiente não cheira nada. Os tênis jogados embaixo das estantes de roupas também são de diversos tamanhos, cores, ∙ 22 ∙
∙ Capítulo I ∙
estilos e gostos. Ali não existe individualidade, se dois garotos quiserem usar a mesma roupa, poderão ressorver de duas maneiras: na base do diálogo ou da “porrada”. De repente, a cuidadora aparece e fala: - Ah, você está aí. Já conheceu a casa? Depois de ouvir a resposta, ela dá uma pausa e afirma: - As roupas nem sempre ficam organizadas assim, eu arrumei faz pouco tempo. Bem melhor, não? - Os meninos brigam por tudo. Principalmente por roupa. Uma vez dois meninos brigaram feio. Eram irmãos gêmeos. Você precisava ver. Um deles mordeu a bochecha do outro, teve até sangue. Ela passa e vai para a cozinha. A instituição é antiga. No teto, marcas do tempo, do descaso e da precariedade. Uma parte da laje já não existe mais. Um grande buraco deixa amostra os tijolos e o encanamento. Uma grande porta vermelha, assim como as janelas, separa o guarda-roupas coletivo da parte externa da casa. Antes de sair. Uma olhada no último quarto, o único do andar de baixo. Diferente dos outros, ele é maior, possui três camas e quatro colchões. Sobre as camas, cobertores, mochilas e roupas. Os sapatos espalhados pelo chão parecem fazer parte da decoração. Na frente, um armário de ferro, algumas divisórias. Não está bagunçado, mas também não pode-se dizer que está organizado. Nas paredes, pichações, xingamentos e muitas ilustrações de órgãos sexuais masculinos. As vozes da parede têm força, falam de diversas maneiras: - Gay – grita uma. - Viado – retruca outra. - Come gay! – enfatiza a primeira. ∙ 23 ∙
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- Só Deus pode me julgar – grita mais alto a última. O cômodo é o único em que a cor azul aparece. Primeiro, nas paredes que circulam as camas de madeira, as poucas que sobraram. Depois, em duas grandes pilastras parecem sustentar o lugar. No canto há um banheiro. Piso preto, sanitário também. Não existe box de vidro tampouco privacidade. Como gatos, os meninos são astutos, silenciosos. Tudo acontece em segundos, por isso precisam sempre estar sob cuidados e observação. As cuidadoras estão atentas a qualquer movimentação, seja nociva ou não. São prisioneiros livres. Antes de sair do quarto, uma pequena porta camufla um guarda-roupas escondido. Não tem luz. Pela fresta, é possível enxergar algumas roupas dobradas e tênis jogados no chão. Apesar da luz invadir o ambiente, todo o cômodo é escuro. Lá fora, nos fundos da casa, de longe enxerga-se uma piscina vazia. O telhado ajuda na ventilação do local. É quase tudo aberto. Bancos de madeira estão espalhados pelos cantos. Há uma pequena parte coberta que protege da chuva e do sol. Aqui é o que eles chamam de refeitório. Uma grande mesa de madeira cobre boa parte do local e os bancos são tão extensos quanto. A cozinha fica ao lado. Ela não é grande, mas é estreita, o que faz com que pareça maior. De acordo com Clarice, uma das cozinheiras da casa, ali era uma lavanderia que foi adaptada. As poucas janelas que tem, possuem grades, assim como todas as outras da casa. O freezer e alguns outros utensílios são trancados com cadeados. Laranjas e maçãs estão exposta no armário. Frutas não faltam ali. A porta da cozinha fica sempre trancada na ausência de dona Clarice. A medida evita que os garotos entrem em horários não permitidos. As regras são levadas a sério pela cozinheira. Ali é o seu território, e ela é quem dita as regras. ∙ 24 ∙
∙ Capítulo I ∙
Um pouco adiante, separada do refeitório por um pequeno balcão de mármore escuro, uma churrasqueira fixa, opaca e apática. Sua cor natural parece ter ido embora há muito tempo. Pela sujeira, parece estar ali apenas de enfeite. Quando será foi a última vez que usaram? No balcão, uma televisão de tubo, assim como a da sala. Na parede, ao lado da cozinha as regras da casa. Ao todo são dez, como nos mandamentos bíblicos. A cozinheira reaparece, destranca a porta – fechada até então. Junto dela, um dos meninos, Pedro pergunta: - Quer um pouco de água? - Tá bom então – diz um tanto desanimado pela negativa. Ele enche o copo e bebe em duas goladas. O recipiente feito de plástico verde é grande. Em seguida, volta a encher o copo. Pelo suor do copo, nota-se que a água está basicamente congelada. Todo o líquido ali já foi consumido por ele. Porém, insiste em tentar tirar algo dali. O menino vai embora da mesma maneira como chegou. Do nada. Quieto e tímido. Do lado direito para quem segue para o refeitório. Há uma piscina vazia, manchada devido à ausência de água. Ali, ela é solitária. Os garotos quase não utilizam. Ficou proibido depois de um episódio traumático com um garoto. Agora, eles só entram quando permitido e com supervisão dos cuidadores. Quase camuflada entre a parede que delimita o final da instituição, esconde-se uma pequena casinha, feita de alvenaria. Ela é grande o suficiente para caber um garoto de até um metro e setenta, porém, pequena na mesma proporção para caber mais de quatro meninos juntos. Por dentro, apenas o vazio e alguns rabiscos nas pequenas paredes. Na parte de fora, os dizeres “Academia do Miguel” estampa a casinha. Antigamente, o lugar era uma casa de bonecas, hoje passou a ser um esconderijo para alguns. Na ∙ 25 ∙
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frente, uma casa de cachorro abandonada. O telhado está quebrado, o lodo tomou conta da parte inferior da parede. A construção também é feita de alvenaria. Voltando ao refeitório e seguindo em frente, a lavanderia. Um tanque simples e branco fica no meio do caminho. No pequeno “puxadinho”, a máquina de lavar grita. Algumas roupas estão em um segundo tanque, localizado ao lado do eletrodoméstico. No local, não há mais nada além de duas portas. Uma delas é o estoque da unidade. A outra é a sala da psicóloga e da assistente social da instituição. Dentro dela, dois computadores. É ali que os garotos tem acesso à internet para realizar pesquisas escolares. Além disso, apenas armários. No abrigo, as horas são como lesmas para os meninos, e feito vento para quem visita. É preciso arrumar distrações. A maioria passa o dia andando de um lado para o outro, sem saber o que procuram. Talvez essa seja uma das maiores agonias deles.
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∙ Capítulo II ∙
Dias e Dias “Olha onde eu vim parar”
∙ Capítulo II ∙
10 de setembro de 2018
É
manhã, a luz agracia a casa com os primeiros raios de sol. O dia promete ser quente. De acordo com a previsão do tempo, a máxima na cidade poderá chegar a 34 graus Célsius. Os garotos acordam. Na casa as regras são levadas a sério. O café é servido das seis às oito horas da manhã. Assim, os que acordam cedo conseguem comer antes de suas responsabilidades diárias e os que preferem e podem acordar mais tarde também tomam o café. Já quem acorda depois desse horário ou perde a hora para a refeição, fica sem ela. Nesse caso, o jeito é esperar pelo almoço, que é servido ao meio-dia. Os meninos se aprontam, vestem seus uniformes, seja da escola ou do trabalho, pegam suas mochilas e esperam pelo motorista. Na instituição só há um carro. Os horários são esquematizados para que ele consiga levar todos às escolas e empregos. Alguns trabalham como jovens aprendizes em lugares habilitados para receber os garotos. Nem todos estudam na mesma escola, nem no mesmo período. Cada um tem sua rotina, suas responsabilidades. Horas mais tarde, o motorista busca os garotos da manhã e começa o translado daqueles que estudam no período vespertino. A refeição é servida ao meio dia e o número de vezes que podem repetir a refeição não é limitada. Alguns não almoçam na instituição devido ao horário do trabalho. Outros, às vezes, negam-se ∙ 29 ∙
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a comer, por vários motivos. Quem sabe por já estarem fartos do cardápio, ou por não terem fome. Nesses casos, as cuidadoras responsáveis pelo plantão anotam em um livro específico. Tudo o que acontece é registrado nele. As anotações são uma garantia para as cuidadoras de que os garotos têm sido bem tratados e a opção de rejeitar o alimento uma escolha dos mesmos. Os relatórios são supervisionados pela assistente social da casa, Mirian, e depois encaminhados para a Secretária Municipal de Assistência Social. Dos doze garotos, sete estudam pela manhã, três no período da tarde, um a noite e um em tempo integral. Durante a tarde, a casa faz silêncio. Pedro, Leandro, Felipe, Henrique e Vitor são os únicos na unidade no período. Muitas vezes tudo o que se escuta são os cuidadores conversando ou o barulho da televisão. Hoje, Rafael também está na casa, recluso em seu quarto no andar de cima. Deitados em colchões, os demais assistem juntos ao seriado do SBT, Chaves. Os garotos não têm muitas opções. Na Tv aberta, a programação é restrita a Sessão da Tarde, e antes disso, ao seriado mexicano no SBT. Chaves arranca gargalhadas dos meninos. A educadora Cristina também acompanha as cenas. Pedro se concentra na tela, conversa com os personagens como se estivessem ali, naquela sala. - Por que acha chaves engraçado? pergunta a Cristina a Pedro. - Ah, eu só acho – responde ele. - Cê não acha, Felipe? - Acho - responde tímido. - E você, Henrique, acha? - Ah, um pouco, não muito. - Por que, um pouco? – indigna-se Pedro. - Ah, mano, só acho, sei lá.- responde Henrique. ∙ 30 ∙
∙ Capítulo II ∙
Os meninos não se olham enquanto conversam, suas retinas estão focadas na televisão, e é difícil tirá-las de lá. Pedro fica quieto, depois ri alto. Na cena, o ator Roberto Bolaños, que representa o personagem Chaves, faz uma de suas trapalhadas e junto de Kiko e Chiquinha, infernizam a Dona do 71. Personagens vividos respectivamente por Carlos Villagrán, María Antonieta de las Nieves e Angelines Fernández. Aos poucos, a inquietação domina o local. Um por um os garotos saem da sala e se dispersam para outros cômodos da casa. Um deles corre para a piscina. O menino de pele morena, cabelos castanhos e luzes loiras é Henrique. Seus fios parecem ter sido descoloridos com água oxigenada. A cor se assemelha a um amarelo bem claro. Aos 12 anos, sua estatura é pequena, seus olhos grandes e os lábios carnudos. Seu andar denuncia uma dureza disfarçada. Não é incomum encontrar a mesma postura nos outros garotos. Hoje a unidade é paz. A casa já foi um cenário de guerra, onde os mais fortes sempre vencem. E os mais fracos... se submetem às ordens. Olhos curiosos, tímidos e tomados pelo enfrentamento ocupam o ambiente. Nesse momento o foco já não está na televisão, mas para a visita que observa tudo. Alguns olham descaradamente, outros disfarçam a novidade de uma presença estranha na casa. De repente, Vitor aparece na sala. Ele é uns dos meninos mais velhos na unidade no período. Sua presença é como o vento, às vezes não vemos, mas hora ou outra o sentimos. O garoto quer ser percebido e para isso chama a atenção com elogios e olhares constrangedores. Seu jeito é “malandro”, daqueles que se acha bonito e pensa que todos compartilham do mesmo pensamento. Observa sem receio de estar sendo invasivo. São quase três horas da tarde e esgota-se o interesse na programação da Tv. Todos os meninos que sobraram ali tentam pro∙ 31 ∙
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curar algo para ocupar o tempo. Na unidade não há muito o que fazer, as bolas que os garotos tinham foram jogadas nos vizinhos ou estão murchas. A casa não possui espaço para recreação, muito menos material que propiciem isso. Francisco aparece no portão, procura as chave nos bolsos e não encontra. Interfona. A curiosidade volta à tona quando alguém se aproxima da entrada. Os mais novos seguem até uma das janelas da sala para espiar. - Quem é? Pergunta baixinho Henrique, escorado na janela. - Sei lá fei – responde Felipe, que também se junta a ele. - É só o sr. Francisco – responde Pedro, atrás dos garotos. - Será que ele trouxe doce pra gente? – pergunta Felipe, rindo. - Aham é sim, com certeza trouxe – ironiza Pedro. Um dos cuidadores abre o portão para ele. Ao entrar na sala, Francisco é interrogado por Henrique que ri. - Trouxe doce pra gente? - Que doce o quê – responde Francisco descontraído. Ele segue para sua sala. Veio de uma audiência no fórum. Muitas vezes é preciso comparecer em circunstâncias assim por “tramites” legais dos acolhidos ou por ocorrências que acontecem dentro da casa. O ambiente agora está vazio. Os cuidadores foram para o refeitório junto com alguns dos meninos. Para eles, é melhor que os garotos estejam todos juntos. Caso não estejam, um cuidador é responsável por um número determinado de adolescentes. A regra é não deixá-los sozinhos. Nos fundos da casa, no que já foi uma lavanderia, a psicóloga Daniela e a assistente social Mirian trabalham em relatórios enquanto um dos garotos da casa realiza uma pesquisa para a escola no computador. ∙ 32 ∙
∙ Capítulo II ∙
- Oi, pode entrar – diz Mirian – está dando uma olhada em tudo? - O Jeferson está aqui fazendo um trabalho para escola ressalta Daniela Antes de continuar, Daniela se vira para Jeferson, que está concentrado na tela do computador - Querido, você pode dar uma licencinha para gente um tempo? – pergunta Daniela. - Tá. Mas depois eu posso voltar? – indaga o menino - Pode – termina Daniela. O menino sai da sala e fecha a porta devagar. Lá dentro o ar condicionado dá a falsa ilusão de que o clima está ameno. Na verdade, as pessoas derretem. Parece que a previsão do tempo acertou em cheio. O sol castiga, e não só ele. A precária circulação de ar torna o clima ainda mais abafado. Depois que a porta é fechada completamente, Mirian e Daniela se sentam em suas cadeiras. As duas dividem um computador. - Os garotos vêm aqui para fazer esse tipo de coisa. É o único lugar da casa que tem computadores. Eles têm permissão pra usar, acompanhados de algum cuidador, ou da gente, quando estamos aqui – diz ela. - Alguns dos meninos que trabalham tinham celulares, mas a juíza proibiu. Lembra, Mirian? – pergunta Daniela voltando o olhar para a colega. - Sim. A juíza proibiu porque alguns dos meninos postam nas redes sociais coisas sobre a instituição. - É, isso não pode, porque a unidade é sigilosa. Muitos adolescentes que vêm para cá estão sobre proteção judicial. Os pais ∙ 33 ∙
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não podem saber onde o garoto está ou se os meninos não têm permissão de receber visitas específicas, diz Daniela. - Tudo depende do processo judicial e daquilo que trouxe os meninos até aqui, completa. - Eles também utilizam de maneira indevida – ressalta Mirian. - Vendo pornografia! – completa Daniela tímida. Além do consumo inapropriado de conteúdo sexual e da exposição da unidade nas redes sociais, os celulares geravam muitos desentendimentos. Os garotos que não trabalhavam também queriam utilizar a tecnologia. Por essas razões, a Juíza da 1º Vara da Infância, Juventude e do Idoso da capital sul-mato-grossense resolveu que a melhor alternativa para tentar solucionar o problema seria a restrição do uso para todos. No abrigo, a igualdade é lei. Não importa o poder aquisitivo que um garoto ou de sua família, a cor de sua pele ou sua religião, todos são tratados de maneira igual. No interior da sala, algumas roupas dos garotos que talvez partam logo da instituição. O canto é repleto de sacolas, bolsas e um skate. O tempo passa rápido. É hora do lanche. Das três horas, às quatro da tarde, é servido uma pequena refeição para que os meninos fiquem saciados até o jantar, que é servido às oito da noite. Dona Helena bate na porta. - Pode entrar, responde Daniela. Mas Helena parece não ter escutado. - Pode entrar! – repete ela. A cozinheira abre a porta de mansinho - Vim chamar vocês para o lanche. - Ah, já vamos, Dona Helena. Obrigada – responde Mirian. ∙ 34 ∙
∙ Capítulo II ∙
A porta da sala é fechada, a máquina de lavar ao lado trabalha incessantemente para dar conta de todas as roupas sujas no tanque. Na casa só há uma lavadora. Ela é guerreira e briga com o chão. Vez ou outra os barulhos mudam e máquina grita. Se perdeu a batalha ou não, é um mistério, pois logo reaparecem os grunhidos. Mirian e Daniela caminham em direção ao refeitório. Hoje o lanche é pão de cachorro quente, torrada com tomate, chá mate e bolacha água e sal. Logo os meninos aparecem. Pedro vem correndo. Felipe logo em seguida. Depois chegam Henrique e Vitor. Na mesa os garotos querem comer logo. O único que espera um tempo é Vitor. Sua postura é diferente dos outros meninos dali. Suas roupas também. Ele usa um boné vermelho, que é como sua segunda pele. As roupas limpas os aparelhos dentais bem tratados revelam mais do que ele imagina. Mais do que sua higiene, revela suas raízes. O chá parece estar bom. Pedro repete duas vezes. - Tia, pode repetir? – pergunta Felipe. - Não. Você já comeu dois, Felipe. Tem o Rafael ainda – responde a cozinheira, enquanto termina de preparar alguns pães. De repente, Rafael aparece no refeitório. Seus ouvidos são bons. O garoto escuta a pergunta de Felipe. - Sim. Estou na casa – responde Rafael. - Ué, não foi pra escola? – pergunta Henrique, sentado na mesa de madeira - Não, quis faltar hoje, estava cansado – diz o menino. Rafael é o único menino da casa que estuda em período integral. Ele está em uma das escolas de Autoria de Campo Grande. Há um ano foi implementado o programa de educação em tempo integral em escolas públicas da capital. Nelas, os alunos passam ∙ 35 ∙
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mais tempo no ambiente escolar, porém desenvolvem outros tipos de atividades no período reverso ao de aula, como grupos de teatro, aulas de culinária, jardinagem, administração, cerâmica, entre outros. Cada aluno possui um tutor, alguém para orientá-lo na última fase antes de enfrentar o ingresso numa faculdade. É um período importante. Rafael passa o dia todo na escola. Dias atípicos como este, em que está na casa, são raros. Ele pega um pão e serve o chá em um caneca de plástico verde. Os outros meninos estão quase terminando a refeição. - Ei, Rafael, vai comer os dois pães mesmo? – pergunta Henrique rindo. Rafael não responde nada. Pedro mastiga de boca aberta e faz barulhos os com últimos vestígios do lanche. A fome é grande.
Dia 13 de setembro de 2018
J
á passa do meio-dia. O tempo ainda continua a rir dos homens, sua gargalhada é quente e ele quase não fala.
A umidade também está baixa, o que torna o tempo seco ainda mais tórrido. A instituição é bem arejada, devido às grandes janelas e à falta de móveis. É começo da tarde, hoje a previsão é de máxima 36 graus Célsius. A capital está cada dia mais abafada. Desta vez, uma mulher diferente abre o portão. Sua aparência é magra, seus cabelos loiros, porém com raízes castanhas. Ela tenta dar partida em uma moto antiga, sem sucesso. Repete o movimento com os pés algumas vezes até que, consegue. Impaciência estampa sua face. ∙ 36 ∙
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- Fecha aqui pra mim? – pergunta para uma cuidadora. - Fecho – responde ela. - Já volto, tia – assegura a mulher loira já dando ré na moto. Na casa a palavra “tia” é muito usada, inclusive entre as cuidadoras. Na sala, Henrique, Felipe e um garoto não visto antes. Alguns sentados nos sofás velhos, outros em colchões espalhados no chão. Juntos, eles assistem à Sessão da Tarde. Uma das cuidadoras está sentada em um dos sofás, ao lado de um menino de blusa amarela, Leandro. Ele veste a camisa da seleção Brasileira. Sua feição é um misto de timidez e marra. A cuidadora puxa conversar com a outra, sentada a poucos metros dali, próxima a uma das janelas. As duas mexem no celular. Ela tem cabelos curtos e avermelhados. É bem magra, mas parece saudável, apesar das olheiras profundas. É uma das mais antigas na casa, trabalha lá há mais de um ano. - Eu já falei para ela "Tá fácil demais". Chego em casa, ela não fez nada – começa uma - E ela não trabalha não? – pergunta outra, erguendo a cabeça. - Não, diz estar procurando emprego, mas nunca vi entregar um currículo. - Ah, aí fica complicado, né? – completa a outra. - E o pior, ela não faz nada o dia todo. Aí, quando eu chego, começa a fazer. Pega uma vassoura, finge que estava limpando – termina a cuidadora, olhando para tela do celular. A conversa é sobre uma situação na casa de uma das funcionárias. Leandro está no meio das duas. - Ela mora na sua casa, tia? – pergunta o garoto curioso. - Sim – responde brevemente a mulher, olhando para a tela. ∙ 37 ∙
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Então, a funcionária volta a falar com a colega. A senhora aparenta ter mais de 40 anos. Sua estatura e baixa e seus cabelos pretos. A Indignação em sua fala demostra o quanto a situação pessoal a incomoda. - Aí ela inventou que quer casar, mas não quer deixar a casa. - Ué, ela quer casar e não quer morar sozinha? – intromete-se Leonardo. - Pois é, filho – responde carinhosamente. Todos voltam a atenção para o filme. Enquanto isso, paralelamente, os demais garotos prestam atenção às cenas. Não falam muito. Depois de um tempo, risos surgem discretos no ambiente. Algo aconteceu. - Pô cara, cê peidou, né? – pergunta Pedro para Felipe. - Que peidei o que, viado! – seu rosto muda e já não há sorriso nos lábios. - Viado é você, saiu largo aí – retruca Pedro. De repente Vitor desce as escadas. Estava dormindo, seu rosto não nega, muito menos sua voz. - Carai, moleque, quem peidou aqui? – pergunta ele ao chegar onde os meninos estão. - Foi o japa! – responde Pedro, rindo. Os garotos chamam Felipe assim, pois seus olhos são puxados, e seus cabelos lisos. O semblante mais se parece com um índio do que com um oriental. Felipe se levando do colchão. - Não foi eu – diz o menino. - O, senta aí, cê tá atrapalhando - pede Henrique. ∙ 38 ∙
∙ Capítulo II ∙
- Ei, pode parar vocês. Todos voltando para os seus lugares – adverte a cuidadora ao se levantar do sofá. Os ânimos parecem ter se acalmado. Felipe volta a deitar no colchão, olha para o lado e ri. Atitude suspeita para um inocente, não? Vitor anda pela casa. É nítido o seu tédio. O garoto continua com seu boné sagrado. Leandro está no sofá, Henrique o chama. Os dois são irmãos. Ao todo são em quatro, dois foram para outras instituições da cidade. - Ô, você vai se arrumar? – pergunta Henrique. - Jajá eu vou – responde Leandro. - Tem que ir logo, a tia vai levar a gente. - Se arruma você então – responde Leandro, ainda no sofá. Hoje é dia de visita aos irmãos menores que estão em outras unidades. Henrique levanta, sobe as escadas e vai tomar banho. Depois de alguns minutos, Leandro faz o mesmo. No intervalo em que os dois se aprontam, Mirian e Daniela aparecem na sala. - Cadê os meninos? – pergunta Daniela para a cuidadora. - Foram se arrumar – responde uma delas. - Eles ficaram enrolando, você sabe como é – completa. Dez minutos depois, os dois descem as escadas. Leonardo veste uma camisa vermelha, calça jeans e tênis. Já Henrique está com uma camiseta branca, short de taquitel, e chinelo. Enquanto descem Henrique pergunta ao irmão - Oh, cê viu o pente? - Caraca, cê não vive sem mim, hein. Tá na minha mochila – responde impaciente Leandro, enquanto senta no final da escada. ∙ 39 ∙
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- Estão prontos? – pergunta Daniela. - Só esperando o Henrique arrumar o cabelo – responde Leandro. O garoto parece ser cuidadoso com os fios. Passa o pente muitas vezes para trás até que esteja perfeito. Vai ao banheiro conferir como ficou e volta para o pé da escada, onde o irmão está. Devolve o pente e não agradece. - Coloca onde pegou! – ordena o irmão mais velho. O garoto estuda e trabalha. Por isso, a maior parte do tempo livre passa no quarto, descansando. Leandro não fala muito. E quando fala, a conversa não se prolonga. Levanta da escada, Henrique também está pronto. - Vamos? – pergunta Daniela. Mirian e Daniela tentam levar os meninos para visitar seus irmãos quinzenalmente. Como a unidade dispõe de apenas um veículo para transporte, fica difícil conseguir um horário em que o motorista esteja livre. - Faz mó tempo que não vejo eles, fala Henrique. - Quinze dias – responde Mirian – você sabe que faz isso. - A gente tenta levar mais vocês, mas por enquanto não dá. Com um carro só é complicado. Ainda tem o Rafael que também tem irmã e precisa vê-la. Vocês sabem que fazemos o possível – esclarece Daniela. Ele não diz nada. Então todos saem. Agora só restam Pedro, Felipe e Vitor na casa.
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∙ Capítulo II ∙
20 de setembro de 2018
S
ão Pedro está irritado. Com nuvens escuras no céu, a ameaça de chuva é iminente. Na varanda, há roupas penduradas em varais improvisados próximos às janelas. Hoje a casa parece mais familiar, e a presença ali já não é alvo de tantos olhares curiosos. Na sala, Pedro, Rafael, Felipe e Henrique fazem seu ritual de pós almoço. Assistem a Tv. O filme é um mistério. Parece ser de aventura, daqueles típicos de sessão da tarde. Os quatro meninos estão deitados nos colchões. Henrique parece pedir ajuda para Rafael na lição de casa. Todos estão enrolados em cobertas. Troveja lá fora, mas até o memento, sem sinal de chuva. A casa está um silêncio. Os garotos aparentam tranquilidade. Assistem ao filme e não falam muito. O coordenador sai de sua sala, e caminha rapidamente em direção a eles. - Quem deixou essa blusa na minha sala? – pergunta firme. - Que blusa, Sr. Francisco? – responde Felipe. - Esta! Responde Francisco apontando para a camiseta. Os garotos se olham... - Ah, não é minha não – diz Henrique. - Nem minha – fala Pedro. - Eu nem deixo blusa por aí – diz Henrique. Francisco, olha para ele e joga a blusa em sua direção. - Sei que foi você, folgado! – fala o homem rindo. Nem sempre a casa foi assim, pacífica, calma. Dois meses antes, o cenário era totalmente diferente. Os gêmeos Renato e Ju∙ 41 ∙
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liano aterrorizavam a unidade. Junto de Rodrigo, eles quebraram toda a mobília da residência, desde armários a pias. Os três tinham histórico de uso de drogas e estar na unidade era mais que a salvação, tratava-se de uma maneira de conseguir dinheiro. Os gêmeos eram conhecidos por sua maldade e brigas na instituição. Certa vez, em um desentendimento entre os dois, um dos meninos mordeu a bochecha do outro, tal como um pedaço de bife. O outro, para revidar, acertou a cabeça do irmão com uma gaveta. Foram necessários vários pontos para fechar o ferimento. O motivo do desentendimento? Aparentemente uma roupa foi o estopim da briga. Os dois viviam em brigas com todos e por qualquer coisa, quem mandava eram eles. Faziam as regras internas e não obedecê-los era pedir para apanhar. Tudo deveria estar onde os dois mandassem. O vício com as drogas levou os gêmeos a uma situação delicada. Ambos não queriam ficar na casa, mas também não desejavam deixá-la. Eles começaram a evadir da unidade e levar com eles roupas e tênis mais caros que os garotos que trabalhavam compravam. O destino? Trocar por drogas. Assim que ficavam sem ter o que comer, voltavam para unidade. Um ciclo sem fim. Hoje, os garotos não estão na unidade, não porque chegaram à maioridade, mas por ordem da juíza. Devido aos roubos, os garotos representavam uma ameaça e má influência para os demais. A droga os consumiu. Quando chegaram na casa, conseguiram um emprego como jovens aprendizes. Entretanto, não foram capazes de abandonar suas raízes. Hoje ,tristemente, vivem nas ruas da capital. Rodrigo chegou no abrigo na mesma época dos gêmeos. O garoto também usava drogas. Mas, diferente dos gêmeos, ele queria ficar afastado da casa de uma maneira diferente. O jovem se automutilava. Certa vez, fez um corte em seu braço tão profundo ∙ 42 ∙
∙ Capítulo II ∙
que precisou ser levado ao hospital. O motivo? Dizia não querer ficar ali. O ato se repetiu por mais de uma vez. Esse não é um caso isolado. Na casa houveram três tentativas diferentes de suicídio. Assim como os gêmeos, Rodrigo foi afastado da casa. Atualmente seu paradeiro é desconhecido. Henrique pega a blusa e ri. Em seguida, Francisco vira para Rafael que está deitado ao lado: - Hoje é sua audiência, hein. Quatro horas, não vai esquecer. - Eu sei, Seu Francisco – diz o menino. - Não gosto de ver meus pais, sei lá, fico apreensivo toda vez que os vejo – completa Rafael. - Eu sei, mas fazer o que – termina Francisco. Rafael levanta e sorri para a educadora Cristina. Ele é alto e magro. - Tia, pode passar uma roupa pra eu vestir na audiência? - Onde está – pergunta Cristina - Lá em cima! - Tudo bem – responde a funcionária levantando do sofá. Depois de alguns minutos, ela volta a aparecer na sala. Seus passos são rápidos, é nítida sua pressa. - Rafael, não achei. Onde está? - Tá aí, Tia. Ou tá no guarda-roupa aqui em baixo. - Achou? – pergunta Rafael. - Ah, agora achei. É só isso? - Aham – responde o garoto. ∙ 43 ∙
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A feição de Rafael está triste e seus olhos opacos. Ele sai da sala e sobe para se trocar. Depois de um tempo, o garoto volta pronto. Veste uma camisa xadrez de manga longa, preta com amarelo e vermelho. Por cima um blazer preto, calça jeans escura e alpargatas pretas. São quase quatro horas da tarde. Antes de ir, Rafael conversa com Pedro sobre o filme que terminara. Eles ficam um tempo a gesticular e a trocar opiniões sobre os personagens. Francisco vai até sua sala, pega alguns papéis e volta já chamando o garoto para partir. Rafael não olha para trás, nem se despede dos meninos. Antes que o portão se feche, Pedro pergunta a Francisco: - Ei, Sr. Francisco – grita. - O Vitor chegou em casa já? - Sim. Nós ligamos para saber se ele chegou bem. Está tudo certo, não se preocupe – diz o homem antes de sair completamente. - Tabom – responde o menino com a feição triste. A ausência de Vitor é eminente. Pedro e Felipe agora estão sozinhos. O garoto voltou para sua cidade dias atrás. Os dois parecem sentir falta do colega. Em pouco tempo, os meninos se apegam uns aos outros. Mesmo que não pareça, quando um vai embora, algo neles também vai. Talvez a esperança de um dia sair dali. Desde que Vitor chegou, Pedro logo se identificou e começaram a andar juntos. Seus olhos conversavam e eles demonstravam ter uma sintonia natural. Vitor era alguns anos mais velho e parecia ser um exemplo para os dois. Aos poucos os meninos saem da casa. A rotatividade é grande. Pedro teme que mais amigos sigam e que fique sozinho. O processo dele e de Felipe está nas mãos da juíza. Quando uma criança ou adolescente é tirada de sua família ou responsável legal, a juíza passa a ser quem decide o destino. Neste momento, está nas mãos dela o futuro próximo dos irmãos. Se serão reintegrados às famílias, se ficarão no abrigo aguardando por uma adoção ou como na maioria dos casos, até completarem 18 anos. ∙ 44 ∙
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Dia 04 de outubro de 2018
D
esta vez, o portão se abre ao meio-dia. Dois garotos estão prontos para irem para a escola. Um deles é pequeno, aparenta ter uns 13 anos, o outro um pouco maior, mas o rosto jovem não mascara sua idade. Eles estão arrumados e cheirosos, cabelos penteados para o lado, uniformes azuis. Um deles olha como quem diz “oi”, o outro ignora a presença já conhecida. O primeiro corre para dentro da casa em busca de um desodorante que esquecera de passar. O outro apenas espera encostado no portão. - Seeeeu miltoooo – grita ele. - Não passei desodorante. - Não? Indaga desconfiado o coordenador. - Não, juro! Só passei perfume. - Tá. Toma aqui – diz o homem. Alguns produtos de higiene pessoal, como lâmina de barbear, desodorantes e perfumes ficam trancados em um armário na sala do coordenador. Primeiro para evitar o desperdício. Segundo, para prevenir que utensílios cortantes sejam usados como armas contra outros meninos. A unidade tomou esta decisão após um incidente com Rodrigo. O garoto usou a lamina de barbear para atentar contra a própria vida e as dos demais integrantes da casa. Na ocasião, Rodrigo foi levado ao hospital e foram tomadas as devidas providências para que o caso não voltasse a se repetir. O motorista buzina e os meninos entram no carro rumo à escola. Mais uma tarde começa. Durante as visitas, a casa exala medo, preconceito, angustia e frustações. As paredes que sustentam a casa, também são o quadro perfeito para a realidade vivida ali. ∙ 45 ∙
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Elas falam, gritam e choram. Estão borradas pelo tempo, pelas cores dos lápis já apagados, por letras indecifráveis. Nelas é possível ouvir risadas, palavrões, preces e desabafos. Lá fora um temporal se forma. O vento sopra como um monstro e balança as cortinas. Relâmpagos cortam o céu. Os trovões vêm logo em seguida. Neste momento a sala está fria e cheira mofo. Os céus choram. De repente, uma forte chuva invade o cômodo. - Os lençóis lá fora! – exclama Helena, a cuidadora. - Eita, é verdade – completa a educadora Cristina. Ela está prestes a levantar quando o senhor Romeo entra apressado com os lençóis nos braços. - Ah, obrigada Romeo. Lavamos há pouco tempo, se molhassem seria trabalho perdido – diz Helena enquanto assiste Tv e os garotos almoçam no refeitório. Hoje eles comem frango, arroz temperado, repolho com carne moída refogado, feijão e couve flor com tomate cereja. A cozinheira Clarice faz tudo sozinha. Ela sai cinco horas da manhã de onde reside e utiliza o ônibus como meio de transporte. Para em uma escola próxima da instituição e caminha o resto do trajeto. A troca de plantão acontece às seis e meia da manhã. Quando Clarice chega mais cedo, espera na parte de dentro da casa até a troca de funcionários. Assim que chega, assina a folha de frequência e desce para a cozinha. Faz café para os funcionários e já começa a pensar no que fará de almoço. A refeição começa a ser servida onze horas. Quando quer fazer um prato diferente, a preparação é antecipada. Desde manhã ela descasca as coisas e deixa quase tudo encaminhado. O almoço não pode atrasar. Depois do almoço a rotina sempre é a mesma. Não há brincadeiras, tampouco espaço adequado para isso. Em um dia chu∙ 46 ∙
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voso como este, a Tv é a fuga da realidade, do tédio. Hoje só Pedro está na casa e nunca esteve tão triste. O esperado aconteceu, Felipe se foi. Deixou a casa no dia anterior. O garoto foi para a cidade de Bonito para se encontrar com a mãe biológica. Como de praxe, Chaves passa na Tv. As cenas não poderiam ser mais tristes. O personagem principal está na casa de Dona Florinda, junto com o professor Girafales. Sentados no sofá, os dois conversam sobre a situação de Chaves. Dizem que a vila precisa ajudar o garoto órfão, pois ele não tem lar, nem alimento. O garoto sempre esteve em cena, ouviu tudo e sentiu pena de si mesmo. No quadro seguinte, os adultos comem uma torta enquanto o menino se retorce de vontade. Eles não percebem sua presença ali. Então, o garoto abre a porta discretamente e sai triste e cabisbaixo Chaves retorna para a única coisa que pode dizer que é sua. O Barril velho e solitário. Enquanto Pedro assiste a cena, seus olhos demostram a tristeza instalada em seu coração. - Nossa. Cê viu que merda? O Chaves tá ali, mas eles nem viu. Nem deram torta pra ele – diz o Pedro, vidrado na tela. Talvez seja esse o motivo dos garotos gostarem tanto do seriado. Chaves é como eles; Órfão, sem lar, sem afeto familiar. Morando no que sequer podem chamar de seu. A casa é vazio neste momento. Pedro termina de ver o episódio, se joga no colchão e desabafa. - Tô estranho sabe? O Felipe saiu, foi embora. Mas tá certo. Ele tava feliz, vai encontrar a mãe biológica. Só quero saber quando eu vou sair daqui. Não aguento mais. A juíza falou que agora está nas mãos da psicóloga. Queria morar com meu tio aqui de Campo Grande. Ele ficaria comigo, tenho certeza. Aí ia mostrar pro meu pai. Ele vai ver só. ∙ 47 ∙
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Sua face é um misto de tristeza e raiva. Seus olhos marejam discretamente. Agora não chove apenas lá fora, mas aqui dentro também. Naquele colchão. Então continua: - Ele não ficou com a gente, eu mais meus irmãos. Vou mostrar pra que ele não pode ser pai assim. Ele vai ver! – exclama o menino. Sua boca se fecha em uma tentativa de conter as palavras que anseiam desesperadamente em sair. A técnica dá certo. Pedro para de falar. Mas seu corpo ainda se comunica. Suas mãos estão impacientes. Ele brinca com os dedos, dando “nós”. As cuidadoras voltam para a sala. - Pedro, tá molhando o colchão aí, não está vendo? – pergunta Helena. - Arrasta eles pra cá filho - completa a funcionária. O garoto se levanta e obedece. Ele veste uma camisa azul marinho. Seus cabelos são castanhos claros, quase loiros. Os fios estão na moda. O penteado usado por ele faz parte dos mais requisitados cortes atuais masculinos. Menor atrás e com um pouco de cabelo na frente, caído para o lado. Ele não usa gel, por isso o cabelo cai no seu rosto. É quase hora do café da tarde. O menino sai da sala, sobe as escadas. Instantaneamente, Helena pergunta: - Onde vai filho? - Dormir – responde Pedro. - O Joaquim está lá em cima, acabou de subir. Por que você não dorme aqui? Chama ele para dormir vir pra cá também. - Ah não, lá é melhor. dora.
- Não vão ficar lá em cima agora – repete enfática a cuida∙ 48 ∙
∙ Capítulo II ∙
- Tabom! – diz Pedro. Vou chamar ele. – responde bravo, enquanto sobe as escadas. - Em dias como este, a libido fica lá em cima. A gente tem que ficar ligada. Qualquer descuido e já tá acontecendo, principalmente a noite. Ah, nesse período eu costumo monitorá-los de quinze em quinze minutos – diz a cuidadora. A situação de sexualidade e hormônios dentro do abrigo é complexa. Os garotos estão descobrindo o próprio corpo, desvendando vontades e conhecendo desejos. O interesse pelo assunto fica explícito nos desenhos obscenos feitos em algumas paredes. Corpo de mulheres nuas, órgão sexuais masculinos e femininos. Uma vez, um dos garotos foi pego com outro na casinha de bonecas, nos fundo da unidade. A educadora percebeu o sumiço dos dois e foi procurá-los. Chegou a tempo, conseguiu evitar que algo acontecesse. Na instituição, um dos doze garotos é homossexual. Renan tem 15 anos. Só está na casa no período da noite. Seu nome estampa várias paredes. Geralmente vem acompanhado da palavra “viado”. - Os meninos dizem que são heterossexuais..., mas é aquela coisa, se um for, todos vão querer. Eles estão se descobrindo. Temos que fazer papel de mãe mesmo, de avó. Ensinar o que pode e o que não pode. O que é aceitável aqui e o que não é. Isso não é. O Renan me questiona o porquê dele não poder realizar as vontades aqui. Digo pra ele que aqui não é a casa dele. Que tem regras e que ele terá que esperar. Não é o momento sabe? – diz Helena preocupada. - Quando trabalhava no período da noite, sempre pedia para que ele dormisse perto de onde eu estava. Era uma maneira de protegê-lo. E de proteger os outros garotos. Já recebemos reclamações da escola devido ao comportamento dele. Falaram ∙ 49 ∙
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que ele estava constrangendo alguns garotos de sala. O trabalho é árduo e diário, aqui é um reflexo da sociedade – termina a cuidadora. Ela gosta de conversar. A senhora de cabelos grisalhos fala de uma maneira bastante calma, e é atenta a qualquer movimentação suspeita. Logo pergunta o que estão fazendo e faz questão de que todos estejam ao alcance de seus olhos. De preferência fazendo alguma atividade recreativa. A chuva insiste em molhar tudo. Dona Clarice vem chamar todos para o lanche da tarde. Hoje, para combinar com o tempo, tem bolinho de chuva e chá mate. Joaquim vem correndo na frente, ele é novo na casa, está aqui há uma semana. O garoto é impaciente, anda pela casa, mexe nas roupas e pertences dos outros garotos. Pega um livro, mas não se demora, folheia o conteúdo como quem procura algo específico. Agora na mesa, aguarda a hora em que Clarice servirá os bolinhos. Pedro vem logo em seguida. Enfim a espera acabou. Oito bolinhos para cada. Joaquim se levanta para pegar o chá, – eles adoram, bebem como se fosse água. Enquanto isso Pedro brinca: - Ei, aqui tem sete bolinhos. Me devolve – fala Joaquim rindo. - Tem oito, fei. Vê aí – fala rindo também. Os dois sorriem, então Pedro devolve o bolinho. - Alá, falei que você tinha pegado, forgado – diz Joaquim, ainda rindo. - Meninos, chamem a Daniela e a Mirian pra lanchar– diz Clarice, da cozinha. Clarice não gosta que os meninos entrem na cozinha. Mesmo que queiram ajudar com algo, a cozinheira prefere evitar. No ∙ 50 ∙
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ambiente existem vários utensílios cortantes que podem ser usurpados. Por conta disso, todos os garotos comem de colher, toda e qualquer coisa pode vir a ser uma arma. A preocupação vem dos tempos onde a casa vivia com medo e os funcionários não gostavam de trabalhar ali. Hoje, apesar do receio, a casa vive um de seus momentos áureos. Não há agressões físicas ou grandes discussões. Agressores, violadores de direitos e vítimas, os gêmeos deixaram na casa as marcas visíveis do que estamparam em suas almas antes do abrigamento. Poucos se sabe sobre eles. Suas histórias são mistérios escondidos em algum lugar da capital. Mesmo em meio a um período conturbado, flores desabrocharam. Davi, garoto de 17 anos, conseguiu morar sozinho antes de completar a maioridade. O caso é um dos exemplos que causam orgulho em Daniela e Mirian. Davi vive hoje em Campo Grande, com a ajuda do projeto padrinho e com o salário que recebe como estagiário em um hospital. O lanche acaba e a irritação do céu dá uma pausa. Todo o refeitório está praticamente alagado. A arquitetura do local ajuda para que a água entre com facilidade. O vento também auxilia na tarefa. Seu Romeo pega um rodo e começa a raspar a água do chão.
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uem olha para Felipe na escola muitas vezes não imagina sua história. Não sabe que ele mora em abrigo, tampouco que perdeu alguém importante recentemente. A trajetória dele na casa poucas pessoas veem, muitas imaginam, mas ninguém vive. Apenas ele. O menino tímido, de olhos negros e puxados, pele morena e sorriso contido, esconde bem seu passado. Sua face é um misto de curiosidade e reflexões. Na casa, o garoto é tranquilo. Tem um bom relacionamento com os outros meninos e possuiu uma amizade forte com Pedro, seu fiel escudeiro. Os dois são como irmãos, brigam, ficam sem se falar, mas logo estão em paz. As brincadeiras fazem parte da rotina dos dois. O linguajar próprio um com o outro também. Vez ou outra acontecem alguns estranhamentos, mas nada fora do normal. Acusações sobre flatulências é o mais comum. - Cê que peidou, né? – pergunta Pedro. - Você, viado – responde Felipe. - Você, saiu fácil aí né? Provoca Pedro. - Vai se foder! – retruca Felipe. - Sei que foi você Japa, porque não fui eu – termina Pedro. ∙ 55 ∙
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- Tabom, deve ter sido – responde Felipe, bravo. Os dois estão na sala, assistindo Sessão da Tarde, programação preferida. Embora Pedro prefira as peripécias de Chaves, Felipe acha que os filmes são mais interessantes. Então, para não ter briga assistem às duas opções. Há cerca de dois meses os garotos chegaram na casa, quase que no mesmo período. As personalidades semelhantes os aproximaram rapidamente. Assuntos em comum, em especial o interesse excessivo por garotas, deixava a conversa divertida. Muitas vezes é só sobre elas que conseguem conversar. - Ou, cê ainda ta com aquela menina lá? - Qual? Pergunta Felipe. - Aquela feia – diz Pedro. - Feia pra você – fala Felipe. - Era sim – Pedro começa a rir e irritar Felipe. - Mano, cê vai apanhar - avisa o garoto. - Vou? - Para de graça, velho – diz Felipe. - Mas é sério, as novinhas de 13 até que dá pra pegar, mas as de 14 cê não aguenta não. Cê tem rabo mole. - É sim. Esses dias duas foram atrás de mim pra perguntar se eu queria ficar com elas. - Tô ligado, as meninas mais bonitas qué fica cocê. Não aguento mais. Tem uma menina da minha sala que gosta de você. - Mas eu tô namorando. - Namorando quem, aquela feia lá? - Para de chamar ela assim. ∙ 56 ∙
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- Tá. Mas... é aquela que cê conheceu na Funesp? - Não, é outra, da minha sala – responde Felipe rindo. - Sabe, fico triste de ter que deixar ela. Quando for embora, sabe? - Cê é louco. Seu irmão vai arrumar um monte de menina pra você lá, e mais bonita, certeza. - Mas eu gosto dela. - Ah mano, fazer o que. Cê arruma outra lá – termina Pedro. Felipe está no sétimo ano e estuda no período diurno. Sua rotina é a mesma que a dos outros garotos da casa. Ele chega da escola, almoça, assiste televisão, mata o tempo até a hora do lanche e mais um pouco até o jantar. A fata de espaço para atividades recreativas influencia diretamente na qualidade de vida dos meninos. Deixa-os deprimidos e ociosos. Para a maioria, os livros na estante não chamam atenção. São apenas um punhado de letras. Um dia Felipe folheou um deles junto com um dos garotos. A ação não demorou muito. Eles passaram página por página rapidamente. Era nítido que aquilo não os agradava tanto. O que procuravam não estava ali. Felipe está animado. Falou com a mãe biológica por telefone, está esperançoso de que dias depois ele esteja fora do abrigo. O garoto torce para que Pedro também saia logo. A alegria nos olhos negros de Felipe contagia o ambiente. Apesar de tímido e de poucas palavras, o menino se comunica de outras maneiras. Sua história de abandono começa alguns anos atrás, antes do acolhimento. Não faltou amor, muito menos houve negligência. Felipe faz parte da porcentagem de meninos que foram abandonados por falta de condições da família biológica. Em 2005, a mãe de Felipe o deixou com uma amiga, e se mudou. Ela era ∙ 57 ∙
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muito jovem, mas cuidou do menino por nove meses. Felipe ficou com essa amiga até parar no abrigo. O que poucos sabem é da perda que assombra o coração do jovem. Sua mãe adotiva faleceu há pouco tempo vítima de uma das doenças mais devastadoras no mundo hoje: o câncer. Na casa em que vivia, o menino morava junto com as filhas da mãe adotiva. Hoje adolescentes, elas fazem faculdade e não conseguiram lidar com a responsabilidade de cuidar de uma criança. Então, foram ao Conselho tutelar e pediram orientação. No fim, mais uma vez Felipe entrou para as estatísticas. A expressão “devolução de adoção” estampa o papel do menino e de mais cinco na casa. Durante o seu desenvolvimento, a mãe biológica de Felipe voltou para cidade para conhecê-lo. A moça se mudou assim que entregou a criança para a amiga. Agora, sua residência fica e localizada em Nova Alvorada do Sul, 114 quilômetros de Campo Grande. Felipe ainda tem algumas lembranças dela, de quando era bebê e aos cinco anos, quando a mãe o visitou. A notícia do falecimento da amiga demorou para chegar até ela. O contato com a instituição veio de surpresa e trouxe esperança para o menino. Hoje mais velha e com melhores condições financeiras, a mãe quer buscar o garoto. Já conversou com ele algumas vezes por telefone e está decidida a cuidar de Felipe. O atual marido também incentivou a decisão e mostrou apoio. A fatalidade do falecimento da amiga mexeu com ela. O pedido está em processo e quem é responsável por aceitar ou não o requerimento é a Juíza da Vara da Infância, Adolescente e Idoso de Mato Grosso do Sul. A novidade faz a ansiedade de Felipe florescer. Não saber ao certo quando deixará a casa é angustiante para ele. A expectativa, o medo de não agradar a mãe e, em seu inconsciente, de ser deixado novamente não são ditos pelos seus lábios, mas pairam no ar. - Ei Pedro, começou o Chaves. ∙ 58 ∙
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- Beleza, tô indo – responde o garoto correndo pra sala. - Mano, será que vai ter Funesp esta semana? - Sei lá, hein, nem teve semana passada por causa da chuva - responde Pedro já deitado no colchão. - É memo, caiu o telhado lá, né? - Aham, Sr. Francisco disse que tá tudo regaçado. - Quanto tempo será que eles vão demorar pra arrumar? Não aguento mais não jogar bola! – reclama Felipe - Verdade. Tá foda. E pior que tô com saudade daquela guria lá, Felipe. - A Bianca ? - É. Faz mó tempão que nóis não se vê. - Aff! Ruim quando acontece essas coisas, aí nóis que se ferra. - Sempre, né Japa. Todos os sábados as instituições de acolhimento da capital, – exceto o berçário – se reúnem em um ginásio de esporte para a praticar de atividade físicas, visando proporcionar a integração entre os acolhidos. Nessa hora é que a paquera entra em cena. Alguns meninos voltam de lá namorando. Basta um olhar e já está firmado o compromisso. A data é um momento diferente do resto dos dias dos meninos. Eles aguardam muito pelo momento. Quando aprontam algo, ou desobedecem as regras, a primeira coisa que lhe é cortada é o direto de participar das atividades da fundação Municipal de Esporte da capital, Funesp. O seriado começou, mas parece que eles não se importam em conversar. Não hoje. - O que cê vai fazer no futuro, Japa? ∙ 59 ∙
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- Sei lá, uma família. E você? - Ah sei não. Queria fazer uma faculdade. - Ah, que mentira – retruca Felipe. - É verdade mano, de a...ad... administração – completa Pedro com dificuldade. A conversa acaba do mesmo jeito em que começou, naturalmente. Agora a atenção está voltada para a televisão novamente. Enfim, a data tão esperada chegou. O menino mal pode se conter, apresenta sintomas de ansiedade durante vários dias antes da chegada dos pais. Felipe vai sair do abrigo. A mãe vem buscá-lo de carro junto com o padrasto. A apreensão é grande e o reencontro mais ainda. A emoção toma conta de quem assiste a cena. Nos olhos de Daniela e Mirian, a sensação de dever cumprido e a satisfação por mais uma vida salva. Elas olham para Felipe e para a mãe e desejam que o mesmo aconteça com os outros garotos do abrigo. Felipe se despede de todos da casa, em especial do amigo Pedro. Embora a amizade dos dois tenha sido curta, longas histórias ficaram no coração de ambos. Assim, o garoto deixa o abrigo, com a mochila cheia de roupas, mas, acima de tudo, com a bagagem de meses em contato com a falta, com a carência e o medo. Juntos, eles caminham rumo ao portão de saída da instituição. A cada passo um desejo: Não voltar mais para a casa 140.
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Pedro
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le não sabe, mas as cores de suas camisetas dizem muito sobre ele. Elas refletem sua personalidade. Ora mais clara, em tons azuis, ora mais escura, em um azul marinho, quase preto. A tonalidade também acompanha o humor de Pedro. Coincidência ou não, as cores revelam o oculto, mostram sentimentos, atraem energias. A arte das cores está além do vestir-se. Ela se comunica com o mundo. Pedro não sabe, mas isso o torna ainda mais autêntico. O garoto de 14 anos, cabelos quase loiros e pele branca se culpa pelo próprio destino. A fala rápida, muitas vezes engasgada, anseia por palavras. Mesmo sem querer, conta mais do que os fatos. Pedro é fruto de um relacionamento entre pais jovens. Tem mais um irmão por parte de pai e três por parte de mãe. Duas meninas e um menino. Na linha hierárquica, Pedro é o primogênito. Em seguida, vem uma das meninas com 11, outra com 9 e, por último, o caçula, com 6. A mãe não sabia cuidar de tantas crianças, tampouco cuidar de si. Deixou os filhos com o ex-marido e foi morar na França. O pai, por sua vez, também não sabia cuidar dos filhos. Não conseguiu lidar com a responsabilidade e resolveu deixá-los sob os cuidados da mãe. Com a avó, moravam os quatro e mais um primo. Aos poucos o caçula, irmão de Pedro, começou a direcionar as atenções para ele. Era o “queridinho da vovó”. ∙ 63 ∙
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No acolhimento, Felipe não é o único menino com quem Pedro tem amizade. Desde que Vitor chegou, Felipe e Pedro não desgrudavam dele. Vitor não era estranho. Pedro o conhecia de uma seletiva para um time de futebol em Mato Grosso. Nenhum dos dois foi classificado. Eles não eram amigos, mas no abrigo passaram a conhecer a vida uns dos outros. A curta amizade aconteceu de maneira natural e eles não sabiam como acabaria. Vitor é três anos mais velho que os dois e se tornou como um irmão mais experiente para os garotos. Sentados na grande mesa de madeira do refeitório, Pedro e Vitor conversam sobre a vida, amores e aspirações futuras. Felipe está na sala. - Por que aquele dia, cê não quis falar o porquê de cê ter vindo pra cá, Pedro? – pergunta Vitor. - Ah, fiz uma coisa muito feia – responde o menino cabisbaixo. - Nada grave, né? – assusta Vitor. - Não sei. Só sei que agora tô aqui. Não quero falar disso. - Ta bom, inté. Se não quer não quer. Num vou te obrigar não – responde Vitor. Sua fala é diferente, o sotaque denuncia que o garoto não é campo-grandense. - Vamo muda de assunto, eu ouvi cê falando aquele dia que seu irmão aprontava umas com você. Conta aí. Tem nada pra fazer aqui mesmo. Pelo menos a gente conversa, inté. - Ah meu irmão é caçula, tem 6 anos ela, e aprontava um monti lá na casa da minha vó. Fazia as coisas e a ainda a culpa caiu em cima de mim – diz Pedro em um tom acima do seu timbre normal de voz. - Sério, mano? E sua vó fazia alguma coisa, acreditava em quem? – Vitor pergunta rindo. ∙ 64 ∙
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- Nele né! Briguei com ela por causa dele. Até já batia nele. - Nossa Pedro, o moleque tem seis anos, velho. - Seis anos – debocha Pedro – ele fazia de tudo, mó atentado aquele guri – a irritação surge em sua voz. - Ele não batia fraco não, tá! Batia forte. - Mas é criança, mano. - Sua vó era legal? - Não gosto dela. - Por que? - Ah, porque ela batia nas minhas irmãs. - Eita. Por que? Indigna-se Vitor - Sei lá – nesse momento, Pedro é poucas palavras. - Mas elas faziam alguma coisa? - Tinha vez que elas faziam alguma coisa, tinha vez que não, e ela batia. Uma vez eu derrubei ela, sorte que tava meu vô – diz Pedro - Sua avó? Por que, mano, cê ta loucão inté. - Tava com raiva dela, oxe. Ficava batendo nos meus irmãos. Quando fala na vó, lembranças amargas e tristes voltam à sua mente. Sua voz muda e a vontade de falar desaparece. O que o garoto diz ter feito de muito feio, e o que ele acha que o levou até o abrigo, é um mistério. Nem Daniela ou Mirian sabem. Na ficha do caso, não consta o incidente que o próprio diz ter cometido. Isso, ele guarda para sí e parece não saber lidar com tantos sentimentos. A culpa de estar onde está o consome. - Cadê o Felipe, que ele tá fazendo? Pergunta Pedro. ∙ 65 ∙
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- Sei não - responde Vitor. - Chama ele lá, fazendo favô – pergunta olhando para Vitor. - Eu? Ué, chama tu, forgado – responde Vitor. - Aff – resmunga o menino. - Tá, vou chamar – se rende Vitor. - Que foi? – pergunta Felipe vindo da sala. Seus pés estão descalços e seu rosto amaçado pela almofada que estava deitado. - Ah, pra você conversar com a gente, mano – diz Pedro passando o braço no ombro do amigo. - Tão falando do que? – pergunta Felipe, limpando os olhos. - De quando eu morava com a minha vó – explica Pedro. - Ain já ouvi as histórias. - Que histórias fí, é verdade! – diz Pedro. - Jeito de falar, otário – responde Felipe. - Tá, mas termina de conta, inté – fala Vitor. - Ah, nem sei onde eu parei. - Na parte que cê não gosta da sua avó – responde Vitor. - Ah é! Beleza. Aí quando eu morava lá, às vezes eu saia de casa, porque brigava com ela, não queria ficar lá. Teve uma vez que sai às seis e voltei quase dez horas. - E foi pra onde? – pergunta Felipe. - Pra um churrasco que me chamaram. - Quando eu não ia na igreja, ela ficava brava também, aí saía. A gente brigava porque eu não gostava de fazer nada. - Como assim? - indaga Vitor. ∙ 66 ∙
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- Ah, minhas irmãs tinham que fazer pra mim, porque eu não fazia nada. Mas aí minha vó batia nelas...eu não aguentava completa Pedro. O jovem admite os erros que cometeu, mas não mostra arrependimento quanto a algumas atitudes com a avó paterna. Quando o menino chegou no abrigo, achou que seria algo rápido, que passaria logo, talvez uma ou duas semanas. Mas ele estava errado, faz mais de 3 meses que ele está na casa. - Pedro tem um irmão mais velho por parte de pai, ele mora no Mato Grosso. A relação dos dois não parece ser de muita proximidade. - Conta aquela história do seu irmão mais velho, Pedro – pede Felipe. - Nem é uma história. Eu apanhava dele quando era mais novo, mas também batia. Nele e nos meus primos mais velhos. - Fala a verdade, os muleques dava um corro no cê, inté. Aposto - diz Vitor - Vai, já bati nele de pau quando era pequeno. Todo mundo apanha pra mim, de pau essas coisas. - Cê ia com a mão suja – grita Felipe, e ri. - Claro, meus primos eram maiores que eu - retruca Pedro, resmungando. - Tem que ir com a mão limpa. Lave a mão antes – fala Felipe, ainda rindo. - Lavei – responde Pedro, rindo também. Pedro deve ir morar com uma tia que mora na cidade de Sinope, no Mato Grosso. Deve ficar um tempo até a mãe voltar da ∙ 67 ∙
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França para buscá-lo. O garoto tem esperança de que o padrasto o adote, e que ele volte com a mãe para lá. - Pedro, se te perguntar uma coisa você vai ficar bolado? – questiona Vitor. - Depende, oxe – responde o menino. - Cê não tem mais mãe? – indaga Vitor, sem jeito. - Claro que tenho ou, ela mora na França. Vou morar com ela e meu padrasto, ele vai me adotar. Nem presto atenção na conversa aí – diz Pedro. - Ele tá sem jeito mesmo, Pedro, ó a cara dele – diz Felipe olhando para Vitor. - Relaxa, Vitão. Eu tenho! Antes era ruim a nossa relação, ela não tinha cabeça pra cuidar de filho, agora que ela descobriu em como é tá melhor. Nóis briga um com outro, mas nós volta a ser mãe e filho de novo. Ela fazia um monte de coisa errada comigo e eu aceitava, porque gostava mais dela do que do meu pai. - E seu pai, não vai ver ele mesmo, Pedro? – pergunta Felipe. - Meu pai não quer uma família, nunca quis. Mas deixa ele quando eu chegar em Sinop, vou mostrar na cara dele. - Ué, e vai fazer o que, machão? – pergunta Vitor. - Eu vou falar a verdade, lá não tinha que falar a verdade? Aí toma! Cê não quis não ter uma família? Agora cê que se lasque aí, arruma outra! - Cê tem coragem memo? - pergunta Felipe. - Oxe, claro! E se ele quiser, que vá atrás de mim lá no Mato Grosso. Falar comigo na minha frente. ∙ 68 ∙
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A mágoa do pai é explícita, e mesmo que não fosse, os olhos de Pedro o entegram. Um misto de raiva e esperança preenche seu semblante. As sobrancelhas se estreitam e as mãos não param. A falta do pai é uma ferida ainda aberta e que está longe de se cicatrizar. Quando Pedro acha que já está sarada, ela se abre novamente. Cansados de ficar sentados na mesa do refeitório, os meninos resolvem andar até a piscina vazia. - Chega de papo triste, eu hein – diz Vitor em pé olhando para a piscina - Tá, já sei do que falar - dispara Felipe. - Lá vem – resmunga Pedro. - Cê sabia que o Pedro perde pra mim pras mina? – debocha Felipe. - Vish. Verdade, muleque? – espanta-se Vitor. - Ah, cala boca, Japa! Só perco na escola, que cê tá ligado – responde Pedro. - Aham. Perde mesmo. Mas tudo bem, Pedro. Eu não sou metido não – diz Felipe. - Imagina se fosse. Não, mas é sério Vitor, as meninas tudo gosta dele. Até uma da minha sala. - Oloco, quando ficar mais velho vai arrumar muita mais menina então. Mas tem que se ligar, moleque, ser cara descente, inté. - Eu sei – fala Felipe. - Se eu tivesse morando com a minha vó, agora era pra eu estar lá no Tijuca. Tinha uma guria que gostava de mim lá. ∙ 69 ∙
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- Sério, mal cheguei lá e a guria já começou a conversar comigo, depois disse que gostava de mim. No ranking dos assuntos mais comentados entre os garotos, definitivamente as meninas estão em primeiro lugar. Não há hora nem lugar para conversar sobre quantas garotas cada um já beijou ou sobre quantas gostam deles. O tema é pauta fria. Quanto tempo vai levar até que Pedro saia do abrigo? Não é possível saber. Agora o que resta é esperar que a juíza resolva o destino do menino, que assim como tantos outros ali só querem o que é deles por direito: Um lar.
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ão precisou muito para que o jovem de 16 anos embarcasse rumo a uma aventura sem qualquer tipo de glória, tampouco de felicidade. Vitor deixou São Pedro da Cipa, cidade de 4 mil habitantes onde morava no interior de Mato Grosso, para apostar em uma vida de liberdade e independência na capital sul-mato-grossense. Com dinheiro em uma mão e coragem na outra, considerou que em Campo Grande encontraria o que tanto buscava: trabalho. Quando Vitor desembarcou na rodoviária de Jaciara, cidade a menos de 10 quilômetros da sua, não sabia ao certo qual seria seu destino. Olhava com atenção as placas dos guichês com vários destinos, quando fora interrogado por um estranho: - Mano, cê é de onde? - São Pedro, cidade vizinha – respondeu Vitor. - E vai pra onde? - Visitar meu primo, em Campo Grande - mente o garoto. - Ah, lá é bom de serviço, bom pra quem é menor de idade também, de tudo. Naquele momento, a opinião do estranho interlocutor, então interessado no destino do garoto, o convencera para onde deveria ∙ 73 ∙
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partir. Vitor estava confuso, sequer havia comprado a passagem. Depois de ouvir o argumento do homem, entretanto, sua decisão fora tomada. O bilhete custou R$ 128,00, pouco menos do total de R$ 150,00 que o garoto tinha na carteira. A viagem foi longa e cansativa. Ao desembarcar em Campo Grande, Vitor se deparou com dois problemas. Primeiro, sabia que tinha pouco dinheiro. Segundo, não havia para onde ir, nem o que fazer. O menino passou algumas horas no terminal rodoviário, comeu com o pouco de dinheiro que lhe sobrou. Deitou nos bancos. O arrependimento desceu amargo em sua garganta. Já tinha passado tempo demais ali. Precisava voltar para casa. Mas como? Vitor decidiu pedir dinheiro para os outros passageiros. Para sua infelicidade, porém fez o pedido à pessoa errada. Um assistente social tomou nota da situação do garoto e o encaminhou para o abrigo. A partir daquele momento, Vitor conheceria uma realidade totalmente distinta da sua. Quando o garoto chegou no abrigo, nada mudou para os outros moradores. Vitor era apenas mais um que chegava e que cedo ou tarde iria embora. Quando o menino chegara, alguns garotos estavam na sala. Os olhares curiosos preenchiam o lugar. Os cuidadores mostraram a unidade para o garoto. Vitor estava imóvel, incomodado com a situação. A casa não tinha quase nada. Um garoto então se aproximara, cumprimentando-o. - Oi, diz Felipe. - Oi. Responde Vitor, timidamente. - Cê não é daqui, né? De onde veio? – pergunta Pedro, ao aparecer, correndo, curioso. - Não. Sou de Mato Grosso. Por que? – desconfia Vitor. ∙ 74 ∙
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- Porque acho que conheço você – diz Pedro. - De onde? – estranha Vitor. - De uma peneira pra time de futebol - argumenta Pedro. - É verdade. Tô lembrando de você memo. Que coincidência, inté – responde o recém-chegado. - É – Pedro encerra bruscamente o assunto. - Ou, como é aqui? Pergunta Vitor, voltando o rosto para Felipe. - Ah, aqui é bom, tem o que comer, a gente vai pra escola, ninguém pega no pé, é bom. - É bom sim. Aham - interrompe Pedro, irônico. Vitor perdera o aparelho celular e não tem como avisar a mãe sobre o que acontecera e onde está. O medo toma conta do jovem. Suas roupas são levadas para a sala de Daniela e Mirian. Não é a primeira vez que ele foge de casa. Algum tempo atrás, um amigo o chamou para visitá-lo em uma cidade próxima a São Pedro. O amigo havia brigado com a esposa e convidara Vitor para fazer uma visita. Ao chegar no destino, no entanto, o amigo já estava reconciliado com a esposa e informou que Vitor não poderia mais dormir ali, precisaria voltar para casa. Vitor assentiu. O que ele não contara ao amigo, contudo, é que não possuía dinheiro para o retorno. O jovem também havia embarcado apenas com o dinheiro de ida. Como salvação, Vitor resignou e pediu à mãe para buscá-lo. Sem condições de mandar o dinheiro de forma imediata, a mãe não conseguiu levá-lo de volta no mesmo dia. O garoto então não vira outra opção a não ser passar a noite em um abrigo na cidade. Assim que o sol apareceu no céu, a mãe de Vitor conseguiu com que ele voltasse para a casa. Era, portanto, reincidente no assunto. ∙ 75 ∙
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Hoje, entretanto, a situação é diferente. Na primeira experiência, Vitor saiu de cada para consolar um amigo. Desta vez, para construir uma vida. Trabalhar, alugar uma casa, viver como um espírito livre. O garoto, porém, não encontrou a glória que buscava, tampouco a independência e ainda menos a liberdade. Cada vez mais o jovem dava-se conta de que sair de casa fora um grande erro. - Cê sabe quanto tempo vai ficar aqui, cara? – pergunta Felipe, sentado no sofá. - Sei não. Perguntei pras tias, elas estão tentando entrar em contato com a minha mãe. Sei que tá demorando muito, eu não sei porque não posso falar com ela. Já até passei o número da minha escola pra ver se me tiram desse trem logo. - Vishe, acho que cê não sai tão cedo. Tô aqui até hoje esperando. Isso faz mais de um mês – fala Pedro. - Cê é loco! Não fico aqui tudo isso não. Ceis vão ver, inté. – retruca Vitor. Todos os garotos ali presentes na sala frequentam a escola, fazem cursos ou trabalham. Vitor não. O garoto acorda no mesmo horário dos demais meninos. Não gosta de acordar tarde. Passa o dia de um lado para outro, esperando um sinal da mãe. Quando Felipe e Pedro estão na casa, geralmente no período da tarde, os três conversam, assistem televisão, se calam, voltam a conversar. Tempo é o que não falta. Vitor sente falta de jogar futebol e a cada dia que passa, gradativamente, o nó amarrado em seu pescoço aperta mais e mais. O menino não consegue respirar, e sente que grandes bolas de ferro presas em seus pés o impedem de voar. - Vai fugir? – pergunta Pedro. ∙ 76 ∙
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- Só não faço isso porque não tenho dinheiro pra voltar para casa. Mas aqui não é meu lugar. Eu não sou como vocês – dispara Vitor aos dois. - Como assim, mano, que nem a gente? – pergunta Felipe. - Nada, esquece - pede Vitor. - Não, começou tem que falar. Por que não é igual a gente? – insiste Felipe. - É, fala aí fei - pede Pedro. - Já disse que é pra esquecer moleque. - Beleza – diz Felipe, triste. Vitor não podia dizer o que passou em sua mente. Não faria isso com os meninos, não depois de viver como um deles. Em sua perspectiva, não era como os outros meninos da casa. O jovem tem mãe; e não qualquer mãe. Vitor tem uma mãe que se importa com ele. E isso já o tornava diferente dos outros. Tinha uma casa, uma família que não o rejeitou, o abandonou ou o maltratou. A família vive há muito tempo na pequena cidade de São Pedro da Cipa, a 150 quilômetros ao sul de Cuiabá. Juntos, são em seis. Dois irmãos já são casados e não moram com os pais. Na casa da família, Vitor e mais dois irmãos, um de 18 e outro de 15, vivem juntos. Na cidade não há muitos lugares para que menores de idade possam trabalhar e, embora os pais procurem dar tudo o que Vitor precisa, o garoto tem a necessidade de ser dono do próprio dinheiro e atingir a completa independência. O jovem procurou emprego em todos os lugares que conhecia, até mesmo em Jaciara, cidade vizinha, de cerca de 25 mil habitantes, de onde a pequenina São Pedro da Cipa emancipou-se na década de 1950. Entretanto, o que o impede de ser empregado é seu nível escolar. As empresas só contratam pessoas que estejam frequentando ou ∙ 77 ∙
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já tenham completado o ensino médio. O garoto, porém, repetira o primeiro ano. Vitor estudava no período da manhã e colocava a culpa de suas inúmeras faltas no horário. Para alguns professores, o garoto perdera sua oportunidade. O peso das palavras rondam a mente de Vitor até hoje e o levam a acreditar que a escola não é seu lugar. Quando mais novo, o menino sonhava em ser jogador de futebol e o sonho não o abandonara. Ainda haveria tempo? questionase. Os clubes costumam pegar moleques mais novos, continua a refletir... Exclui automaticamente o pensamento, convencendo a si próprio que o tempo no esporte profissional já passara e que teria que se contentar apenas com os treinos. - Gente, pra que esse clima? - pergunta Pedro - O cara falou que não é nada, vamos relaxar. - Não era nada gente - reafirma Vitor. - Vamos mudar de assunto. Me conta, conseguiu entrar em algum time de fut? – questiona Pedro. - Que nada, os caras não pegam moleque da minha idade, só pegam pra jogar quadra, eu não gosto de jogar futsal. - Ah, é difícil mesmo cara. Eu até curto jogar salão, mas prefiro o campo – diz Pedro. - Ceis tão loucos, prefiro mil vezes jogar salão. Campo é chato – retruca Felipe. - Ah, cada um com seu gosto, né? – diz Pedro. - É, respondem os meninos, e começam a rir. Vitor olha para a visita – que observa tudo – com segundas intenções. É nítido seu interesse. Mas não é só isso que seus olhos transmitem. As duas grandes esferas demonstram carência, ∙ 78 ∙
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arrependimento e ansiedade. Nessas horas, assim como todas as outras desde que chegara à instituição, Vitor pensa na mãe. Pensa em como ela poderia estar, se estaria sentindo sua falta. Na cabeça do menino, culpa e vontade dialogam: - Olha onde cê veio parar, tá feliz? - Ah, mas a gente precisava de trabalho. Aqui era a oportunidade perfeita de conseguir começar uma vida. - Olha pra você, trancado feito um bicho, com horário pra tudo. Sem nenhuma privacidade e muito menos ocupação. Essa era a oportunidade perfeita? - Às vezes temos que tentar, não acha? - Acho, porém com planejamento. Onde eu estava com a cabeça quando pensei que esse plano daria certo? - Estava comigo. Eu agi por nós. - Sou mais viver com a minha família, mil vezes. Você não gosta de ficar trancado, você odeia. Você tinha de tudo em casa. Não te falta nada. Tua mãe te dá tudo o que quer. - Disso não posso discordar de você. Mamãe me dá tudo mesmo. Querendo ou não, eu errei. Desculpa por isso. - Tudo bem, né. Agora já foi. Só vamos consertar essa merda toda que eu fiz. - É tudo o que quero, mas essas pessoas não me deixam falar com a mãe. - Será que eles querem pegar nossa guarda? - É o que tô pensando, mas já falei pra eles disso. - E o que eles falaram? ∙ 79 ∙
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- Que não querem a minha guarda. - Mas você falô mais alguma coisa? - Falei que a mãe me ama, que não sou igual a esses meninos que estão aqui. Ela não vai aceitar isso. - É verdade, ela não aceitaria mesmo Francisco passa em direção ao refeitório e Vitor o confronta: - Minha mãe ligou? - Estamos tentando falar com ela, Vitor. - Mentira! Vocês tão achando que eu vou ficar aqui. Podem ficar com os meus documentos, eu não vou ficar aqui. Não sou como esses guris – diz Vitor em voz baixa para os outros não ouvirem. - Fica calmo, menino. Você está achando que só porque você não é daqui que as coisas funcionam como você quer? Sua mãe vai ligar! Vitor confiou no que os meninos disseram sobre a casa. Mas, depois de algum tempo, os ânimos entre o garoto e a coordenação do abrigo se alteraram. Francisco não gostava que o menino usasse o boné para baixo. Queria ver os olhos do garoto. Vitor, por sua vez, detestava usá-lo do jeito que lhe era solicitado. A postura brava do garoto era associada a marra e valentia. Depois de dias imersos em reflexões, Vitor enxergou que o abrigo era ruim para ele, mas bom para os meninos. Eles estudam, trabalham, fazem cursos, têm o que comer, onde dormir. Onde estariam se não estivessem ali? – questiona-se. Entardece. O céu é um misto de nuvens claras e nuances de cores. Camadas rosas e laranjas começam a colorir a grande tela azul acima. Enquanto esperam o lanche, os meninos se reúnem ∙ 80 ∙
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na grande mesa de madeira. Felipe está com fome, Pedro mais ainda. Os três começam a conversar, parecem preocupados com o futuro de Vitor. - O que cê vai fazer quando voltar? - pergunta Pedro. - Ué, vou continuar fazendo o que eu tava fazendo. Jogando bola, estudando e ajudando minha mãe, inté. - Mas cê não repetiu de ano? – pergunta Felipe. - Sim, mas o que que tem, moleque? Vou continuar. Terminar o terceiro, né?! - ressalta Pedro. - Mas fala aí Vitor – pergunta Felipe – o que te trouxe pra cá? O que fez? - Fiz nada, ué. Achei que aqui em Campo Grande teria emprego, me enganei. E também... briguei com a minha namorada, agora ex. - Ah, esse é o motivo real mesmo, né? – fala Pedro. - Mina – completa Felipe. - Mano, ceis não sabem de nada, inté. Nem é por isso. Quer dizer, só por isso. Foi o que eu falei. - Por que ceis brigaram?- indaga Pedro. - Ah ela é muito nova, não sabe o que quer da vida, se quer ficar comigo ou com todos, brinca com meus sentimentos. Perto dos meus amigos fica diferente, não dá carinho, é chata. Aí quando tá só nóis, ela muda. Na terça liguei pra ela por vídeo, pra saber se tinha me traído e adivinha? Eu ouvi que tinha alguém junto com ela, era Mariana, a melhor amiga dela. Ela olhou pra amiga e começou a rir, aí eu desliguei. Sabia que ela tinha me traído, estava sentindo, e não foi a primeira vez. Eu falei que seu eu fosse embora não ia ligar pra dar satisfação e nem notícias. ∙ 81 ∙
∙ Natália Oliveira ∙
- Eita, Vitor é chifrudo – fala Pedro, rindo. - Para, mano. Isso é chato – diz Felipe. - Cala tua boca, moleque! – responde Vitor - Tava brincando, relaxa, mano – diz Pedro - Sorte sua que sou de boa. Se fosse outro, tinha quebrado tua cara – diz Vitor. - Tava tentando descontrair, mano, desculpa – diz Pedro. - Beleza, moleque, já foi. - Agora tá solteiro então? – pergunta Felipe. - Claro, ué, se não tô namorando – responde rindo. - E tem bastante menina bonita na sua cidade? - Ah, eu não consigo ficar com as outras meninas de lá. Minha ex-namorada ameaça elas. - Credo, que mina louca – espanta-se Pedro. As histórias de Vitor com garotas sempre foram conturbadas. Em seu braço direito, uma tatuagem caseira estampa o nome de um antigo relacionamento. A cor verde desbotada ressalta-se na pele branca do garoto. Anos atrás, Vitor decidira tatuar o nome da então namorada no braço como sinal de amor. Na ocasião, estava na casa de alguns amigos, que fizeram o mesmo. Mas, para surpresa de Vitor, quando os relacionamentos dos amigos acabaram, eles utilizaram uma espécie de aço para remover a tatuagem. A técnica era muito usada antes do recurso da remoção a laser. - Essa tatuagem aí é pra ela? – pergunta Felipe. - O que? – pergunta Vitor. - Se você fez pra sua namorada, é o nome dela? ∙ 82 ∙
∙ Capítulo V ∙
- Ah, não, essa aqui é outra. Foi burrice isso, inté – diz Vitor. - Como cê fez? – indaga Pedro. - É caseira, tá ligado? Nem sei como os moleques fazem. Eu só fiz porque eles fizeram também, na hora achei que seria uma boa ideia. - E a máquina, eles fizeram também? - Sim, os caras são inteligentes pra isso. Fizeram a maquininha em casa. Aí eu fiz. Mas os meus amigos tiraram depois, com um negócio de aço lá. - E por que cê não tirou também? – pergunta Pedro. - Que jeito? Não tenho coragem, não assim igual os moleques fizeram. Cê precisava ver, sangrou pacas. Mas vou cobrir ela – explica Vitor. Já é quase noite. Depois do jantar, Vitor se despede dos meninos e sobe para o quarto. Apesar de não ter realizado grandes atividades, o garoto se sente exausto. É como se a casa sugasse toda vida de Vitor. A cada dia que o menino passava ali, mais dava valor à vida que tinha no interior de Mato Grosso. Vitor não é religioso, mas antes de dormir reflete sobre seus dias no abrigo e sobre a vida dos meninos dali. Então, conversa sozinho: - A história deles é tão triste, né? Porque eles têm que passar por isso? – pergunta a si próprio. Os meninos ficam tristes por eu estar indo embora – e vou logo, espero. Aposto que eles também têm vontade de ir. E o Pedro, tadinho. Não vê a hora de sair desse trem aqui. - É, você viu que aqui o terreno é instável, não viu? Aquele dia que um dos moleques novos estava com o celular e o outro deu um soco no peito dele, foi tão triste. Me senti com dó – responde o outro “eu” de Vitor. ∙ 83 ∙
∙ Natália Oliveira ∙
- E quando você emprestava suas roupas pra eles, cê viu como eles ficavam felizes? – pergunta Vitor à consciência. - Achei bonita sua atitude, parceiro. Dar aquele shorts branco pro Jonas, foi uma coisa legal. Você até que gostava do shorts, mas ele precisava mais – diz o outro “eu”. - Obrigado, fiz de coração. Sabe que não sou de negar essas coisas – termina Vitor. Desde que chegou ao abrigo, o garoto não usou roupas dos outros meninos. Ali tudo é de todos, mas Vitor não gostou disso. O jovem não consegue usar roupas de outras pessoas. Isso é um ato insuportável para ele. As cuidadoras perguntaram se poderiam lavar suas roupas, mas o menino disse que não, que lavaria em casa. Vitor estava certo de que começaria uma nova vida. Na mala, trouxe quase todas suas roupas. Shorts de esporte, várias blusas, tênis... O que ele não imaginava é que levaria todas as peças de volta, mas agora sujas. Antes de dormir de vez, o jovem pede perdão pelo seu ato e deseja que a mãe esteja bem. - Amanhã vou embora, escuta o que tô te falando, Vitor. - Tomara, meu chapa - retruca o outro “eu”. O sol aparece no céu e como em todas as manhãs Vitor acorda cedo. Algo em seu íntimo diz que sairia dali. Toma banho, desce as escadas. Senta-se com os meninos para tomar café. Abruptamente, Francisco aparece: - Bom dia, Vitor, pode vir aqui por favor? - Tô indo – responde o garoto. - Sua mãe ligou, conseguiu o dinheiro para o seu retorno. Já compramos a passagem. ∙ 84 ∙
∙ Capítulo V ∙
- Sério? – espanta-se Vitor. - Sim. Você embarca hoje à tarde. - Mas... mas que horas ela ligou? – gagueja o menino. - Ontem à noite. Compramos agorinha. É bom já arrumar suas coisas. - Beleza. Valeu. A felicidade de Vitor reflete por meio de seus olhos. Volta para a mesa radiante. - O que foi? Pergunta Pedro. - É, tá todo feliz aí – diz Felipe. - Ele vai embora – completa Jonas, um dos garotos. - É molecada, vou pra casa hoje – fala Vitor. - Eu sabia que esse dia chegaria – diz Pedro. - É, sabíamos – complementa Felipe. - Foi legal conhecer vocês. A gente se vê por aí. - A gente se vê – fala Felipe, enquanto estende a mão para um cumprimento. - Se cuida carinha – responde Vitor, enquanto balança a mão do colega. - A gente se vê, cara – diz Pedro, estendendo a mão e com os olhos cabisbaixos. - Quem sabe a gente não se enfrenta no fut, inté – completa Vitor. - Pra que? Pro cê perder? – responde Pedro. - Vai nessa! – termina Vitor. ∙ 85 ∙
∙ Natália Oliveira ∙
Está quase na hora de os garotos seguirem para escola. O motorista buzina. Os meninos pegam as mochilas e se dirigem para a porta da sala. Pedro e Felipe ficam por último. Param na porta dos fundos e observam discretamente Vitor. Depois, sem pronunciarem uma palavra, se olham como quem diz “mais um”, e saem em direção ao carro. Vitor olha para a cena com o coração apertado. Algo naqueles meninos mexeu com ele. Suas histórias, seus sonhos, a amizade que desenvolveram em tão pouco tempo. Naquele último olhar para os meninos ali parados na porta, um “boa sorte” – desejado mentalmente – é jogado ao universo, tímido e discreto, feito a esperança de muitos do abrigo.
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∙ Capítulo VI ∙
Rafael
∙ Capítulo VI ∙
S
entado em um colchão no quarto, olhos voltados para a imagem de Nossa Senhora pendurada na janela, Rafael lembra do passado. Num piscar de olhos, ele volta a ter cinco anos e morar com a mãe biológica em algum lugar que recorda detalhes. As lembranças são como flashes, rápidos e desordenados. Um passado distante se mistura com o presente. Agora, Rafael está de volta à antiga casa. O garoto cuida dos irmãos mais novos enquanto a mãe trabalha. É o mais velho e, como em muitos casos semelhantes, assume o papel de responsável no cuidado dos irmãos mais novos. O menino é muito novo para entender o porquê de a mãe chegar tão tarde em casa ou o motivo de não mais voltar. Rafael brinca com os irmãozinhos, quatro no total. Tudo aconteceu tão rápido que o garoto não entende como foi parar naquele abrigo de paredes azuis. Tantas crianças, mas nenhum de seus irmãos. Assim como todos seus irmãos, Rafael foi retirado da mãe biológica. Sem ninguém da família extensa com disponibilidade para cuidá-los, foram para abrigos. Na época, as unidades de acolhimento não eram separadas por gênero como são hoje, tampouco por idade. Recém-nascidos dividiam espaço com crianças maiores; e essas com adolescentes. Não era incomum a notificação de agressões e abusos, fossem físicos ou psicológicos. ∙ 89 ∙
∙ Natália Oliveira ∙
Rafael pisca, lembra de funcionários que batiam nas crianças. Não se recorda se já apanhou. Uma nuvem negra se forma na cabeça do menino e uma dor íntima a acompanha. Mesmo ainda aos cinco anos, Rafael gravou na memória um episódio que gostaria de esquecer. Um abuso sexual. Embora não exista nenhum registro da ocorrência, casos assim são comuns no Brasil. Dados do Ministério da Saúde mostram que, entre o ano de 2011 e 2017, o país registrou um aumento de 83% nas notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes. Ao todo, mais de 184.524 casos foram notificados no país, 58.037 deles praticados contra crianças. O garoto fecha os olhos com força e está de volta ao quarto. - Rafael, a Dona Helena pediu pra te chamar pra lanchar – diz um dos meninos da casa. - Ah, tudo bem, obrigado. Já vou – responde o menino. O garoto não contou a ninguém sobre a violência sofrida. Nem mesmo para a psicóloga que acompanha seu desenvolvimento desde criança. Os pais se mostravam preconceituosos e Rafael tinha receio de que considerassem que sua sexualidade mudaria devido ao ocorrido. O jovem guardou segredo por doze anos e somente agora conseguiu contar. Primeiro, contou para a professora da escola onde estuda. Depois, para algumas cuidadoras. Ele volta os olhos para a Santa pendurada na janela, depois desce o olhar até as grades vermelhas que cortam a sua visão do horizonte. Lá fora o céu está calmo, feito o coração do menino. Entre uma piscada e outra, vê as paredes azuis do antigo abrigo. De repente, é novamente uma criança. Agora, porém, entre as imagens da infância, algo em si mudou, está mais velho. Tem seis anos. Não se lembra como tudo aconteceu, quando o escolheram, apenas sentiu que sua vida melhorou em um piscar de olhos. ∙ 90 ∙
∙ Capítulo VI ∙
Rafael foi adotado por um casal ao lado da irmã mais nova, Ana. Tudo parecia perfeito, a casa, as pessoas. Lá, as crianças desfrutavam do bom e do melhor. Os pais não eram ricos, mas ostentavam de uma boa estabilidade financeira. - O Rafael, cê vai ficar sem lanche se não descer! – avisa um dos meninos novamente, na porta do quarto. - Eu sei, já tô descendo. - Já falou isso quando o Bruno veio te chamar. - Tá, tô indo, que saco! – responde Rafael, bufando. O menino desce as escadas, vai até o refeitório e pega o lanche. Alguns meninos tentam puxar conversa, mas Rafael não está tão disposto. Troca rapidamente palavras com um deles e se vira para retornar ao quarto. - Onde você via? – pergunta a cozinheira. - Vou comer lá em cima. - Está tudo bem? – preocupa-se Helena. - Está sim. Só quero comer lá. - Tudo bem. O garoto volta para onde acabara de sair. Enquanto se vira, Pedro olha para Felipe sem dizer uma palavra. Seus olhos conversam, suas cabeças balançam feito um sinal de negativa. De volta ao quarto Rafael, termina de comer e se deita no colchão. Hoje, sua mente insiste em querer ficar no passado. Lembra-se de como era a vida em sua antiga casa, do quarto que tinha só para ele, do videogame, da televisão, dos amigos que conquistou ao longo do tempo. O menino respira fundo, leva as mãos por trás da cabeça. ∙ 91 ∙
∙ Natália Oliveira ∙
Em outro piscar de olhos, as brigas familiares voltam à mente. Tudo aconteceu tão depressa. As ameaças da mãe em deixá-lo na UNEI (Unidade Educacional de Internação) – local para onde menores infratores são levados –, as mentiras de um novo irmão descoberto a pouco, as humilhações contra a irmã. Numa rápida passagem de cena, o garoto estava no abrigo. Os onze anos passados com os pais adotivos eram o começo de um sonho que se transformou em pesadelo. Depois de alguns anos de adoção, a família começou a demonstrar aspectos que Rafael não havia percebido na inocência de sua infância, como falta de harmonia, brigas e desentendimentos desnecessários. Assim que as crianças cresceram e atingiram a puberdade, o comportamento da mãe tornou-se ainda pior. Dizia coisas absurdas para a irmã de Rafael, que ela não deveria estar ali, pois não havia sido escolhida, que o escolhido era apenas o garoto, mas que a menina teria ido junto. A garota sofria constantes humilhações da mãe. Dentro da casa, o pai não tinha voz. - Rafael, posso entrar? – pergunta Daniela na porta do quarto. - Pode sim. - Está tudo bem? Pedro me falou que percebeu que está triste hoje – diz a funcionária enquanto entra no quarto. - Estou sim. Lembranças... às vezes elas aparecem e ficam por aqui. - Quer conversar? - Ah. Pode ser. - O que está te incomodando? - Tô lembrando da minha antiga casa, das coisas que aconteceram, dos meus pais. Será que eles sentem minha falta, o que estariam fazendo agora? ∙ 92 ∙
∙ Capítulo VI ∙
- Isso é normal, você está sentindo falta. Por que lembrou deles hoje? - Não sei. Parei aqui em frente da janela e as memórias vieram involuntariamente. - Mas me conta, o que pensou sobre a sua antiga casa? - Sobre como viver com meus pais me tornou melhor, mesmo depois de tudo o que aconteceu, viver com eles me deu visão de vida, expectativas. - Claro. Você foi apresentado a um mundo onde várias possibilidades eram possíveis. E mesmo não estando mais lá, isso está com você. - Às vezes olho pros outros meninos aqui e sinto dó. Será que alguém me olha e sente isso? Não quero que sintam isso de mim. - Por que sente dó deles? - Ah, porque eles não tiveram as oportunidades que eu tive morando com meus pais. - Entendo. De fato, muitos não tiveram, são realidades diferentes. A situação é delicada, Rafa, talvez sintam, mas não fazem por mal. Que tal mudar de assunto? - Pode ser. - Como está as aulas de desenho? - Estão normais. Tô aprendendo técnicas novas de aquarela. - Vai trazer os desenhos para a gente ver? - Tenho que ver com a minha professora. Acho que vou poder sim – responde o menino tomado por um pouco mais de ânimo. ∙ 93 ∙
∙ Natália Oliveira ∙
- Rafa, tenho que ir agora fazer um atendimento junto com a Mirian, depois passa na minha sala, se quiser. Tudo bem? - Tudo bem. Na casa, os funcionários fazem mais do que os papeis que lhe são designados. Assumem funções de pais, mães e conselheiros, principalmente os cuidadores. O garoto se apoia em pequenos gestos de incentivo. Sua família agora é a escola, onde passa a maior parte do tempo. Os professores fazem o papel de pais, conselheiros e amigos. Foram eles que deram a estrutura emocional necessária para que o menino permanecesse no abrigo. Quando Rafael chegou na instituição, uma das professoras passou a visita-lo constantemente até que se adaptasse. A psicóloga sai do quarto. O menino volta a seus pensamentos. De repente, está nos fundos da antiga casa. Amigos de seu pai se reúnem para um jantar. Normalmente, nessas ocasiões Rafael não conversava com os convidados. Não por restrição, mas por não conseguir brechas nas conversas dos adultos. Exceto quando o pai o chamava. A relação do menino com o pai era de admiração. Saber que o pai era um estudioso, doutor em Direito e dotado de um currículo extenso de atividades, enchia os olhos de Rafael. O laço afetivo dos dois não chegava a ser amoroso, era intelectual. Os dois conversavam sobre tudo e o menino conseguia manter um bom diálogo. Algumas coisas fizeram com que Rafael amadurecesse intelectualmente, como a exigência do pai quanto aos estudos do garoto. Desde que chegou na casa dos pais adotivos, Rafael foi incentivado a ser estudioso e a ler muito. Logo, o gosto pelo estudo floriu na alma do jovem. A expectativa que o pai depositava nele não poderia ser desperdiçada, por isso o garoto se esforçava ao máximo para ser o melhor em tudo o que se dispunha a fazer. ∙ 94 ∙
∙ Capítulo VI ∙
O pai do garoto não se parecia com os dos amigos de Rafael. Esses, bebiam junto aos filhos, deixavam-lhes livres para ir e vir quando quisessem, jogavam videogame. Não, o pai do jovem era mais centrado, não chegava a ser rígido, ao menos com Rafael. Depois de alguns anos com as crianças, o pai de Rafael descobriu que tinha um filho biológico. O menino não se lembra de como as coisas aconteceram, apenas recorda de Yuri, o irmão, já morando com a família. Para o garoto, foi aí que a maré ruim teve início. A história do filho mais velho pouco importa para Rafael, mas o que rapaz fez em sua vida, sim, importa muito. Aos poucos, Yuri foi tomando tudo o que era do menino, inclusive a atenção do pai. Logo vieram os problemas. O filho mais velho era usuário de drogas. Mentia, dissimulava e culpava muito bem outras pessoas. Era um anjo na frente do pai, porém um demônio perto de Rafael. A presença de Yuri era insuportável para o garoto. Sentia nojo do irmão. Não frequentava o mesmo ambiente e evitava contato. O motivo de tanta aversão? Yuri começou a cometer pequenos furtos na casa. Saia e demorava dias para voltar. O vício não tinha fim. Com o tempo, a mãe de Rafael começou a perceber os itens que faltavam, o dinheiro que sumia misteriosamente. A nuvem negra que pairava sobre casa enfim desaguou e alagara tudo. Rafael passou a ser acusado pelos roubos do irmão mais velho. O menino conversa consigo mesmo. Em sua cabeça se forma uma bola de pensamentos conectados e compulsivos. - Olha onde eu vim parar, Yuri. Tá feliz? – uma voz grita em sua mente. - A gente sabia que mais cedo ou mais tarde aconteceria, Rafael. ∙ 95 ∙
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- Mas, eu tinha uma família, cheia de problemas, mas tinha. O que tenho agora? - Seus sonhos, seus professores. Olha para você Rafael. Seu futuro é promissor. - Minha família é a escola. Sem eles eu não aguentaria estar aqui. Sabe, quando você vem para cá perde toda a esperança, seus sonhos, é difícil não cair. - É eu sei. A gente precisou ter jogo de cintura, né? - Muita. No início achei que cairíamos nesse abismo. Mas, com toda ajuda emocional que recebemos, aos poucos as coisas foram se ajeitando. - E vai ser sempre assim, meu amigo. Ânimo! - Eu sinto falta dele, sabe? - Do papai? - Sim. - De como tudo que ele me mostrava era interessante e legal. Se hoje gosto de estudar foi porque ele me fez gostar. - Eu sei. Também sinto falta dele. Quer saber, por que você não faz algo, desenha, escreve, faça alguma coisa. Você é tão bom. - Ah, sinceramente não estou com forças hoje. Parece que meu corpo só quer ver o filme que já vi, e pior, que já sei o final. - Pare de se culpar por estar aqui. - Eu não me culpo, quem carrega esse peso é o Yuri. E é capaz de nem achar que carrega. - Ele desgraçou nossa vida, mas você viu o que a mamãe fazia também? Como ela humilhava a Ana e facilmente nos culpou por tudo. As mentiras que ela falou sobre nós... ∙ 96 ∙
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- Eu sei. Não precisa me lembrar disso. Não sei o que é pior. Ela ter me enxotado como um nada, ou ter acreditado no filho do meu pai que mal conhecia. - Acho que a última opção é a pior, cara. - Quer saber, vou desenhar algo mesmo. - Isso. Vai ser bom distrair um pouco – termina a voz, que dialoga em seus pensamentos. Rafael é um menino inteligente, estudioso e disposto a fazer o melhor em tudo. As tarefas do garoto não são fáceis. Cada vez mais, Rafael assume grandes responsabilidades para si. Hoje, é o líder da classe, do clube de desenho, secretário geral do grêmio estudantil, cartunista e também faz teatro. Tudo isso, na escola onde estuda. Rafael está entre os dez melhores alunos de Mato Grosso do Sul na categoria Escola da Autoria, modalidade de período integral onde várias atividades extracurriculares são desenvolvidas. Os professores imploraram para que não tirassem o menino de lá e o ajudam em tudo o que precisa. Porém, apesar de todas as tarefas e de tentar ocupar o tempo ao máximo, o garoto não consegue preencher o vazio que sente em seu peito. Mesmo não morando mais com os pais adotivos, Rafael recebe uma pensão. O decreto veio da juíza que estava à frente do caso. Por lei, mesmo que haja a devolução da criança ou do adolescente, os pais ficam responsáveis pelo sustento dos mesmos se a justiça assim decidir. Entre as 53 crianças e adolescentes que passaram pela casa até setembro de 2018, cinco deram entrada como devolução de adoção ou por tentativa malsucedida de retorno à família. Além desse, vários outros motivos compõem a lista das razões pelas quais os meninos chegam à instituição. Entre elas, está a má conduta da criança ou adolescente, com 25 meninos, seguida ∙ 97 ∙
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por negligência ou abandono, com 13 casos, abuso físico e psicológico, com cinco violência sexual e exploração infantil, com dois, e pais usuários de drogas, com um. Rafael tem a pele negra, os cabelos castanhos escuros que possuem algumas mechas com luzes amarronzadas nas pontas. Suas mãos são grandes e as unhas arredondadas. Uma delas, a do dedo médio, do lado direito, está quebrada. Seus olhos são órbitas quase negras, a boca é carnuda e os dentes grandes. Antes que o menino levante para desenhar, seus olhos piscam cansados. A imagem do pai vem à mente. Ele não duvidava da capacidade intelectual de Rafael. Quando havia brigas entre o garoto e a mãe, o pai logo intervinha e tentava acalmar as coisas. Para o menino, ele era um excelente pai e cidadão. Gostava do certo pelo certo, era exemplar. É seu exemplo de homem. Quanto a relação com a mãe, os dois nunca se deram muito bem. Quando criança, tudo corria em normalidade, mas Rafael e Ana cresceram e a mulher não soube lidar com isso. A puberdade deixou as crianças rebeldes, como a maioria dos adolescentes. Para a mãe, porém, o problema era muito maior do que aparentava. Certa vez, Rafael bebeu com um amigo, não informou onde estava e voltou muito tarde. A mãe acionou a polícia. Quando o jovem chegou em casa, os pais estavam extremamente aborrecidos com o menino. Na ocasião, Rafael se desentendeu com a mãe e acabou a ameaçando. Logo, o menino se arrependeu do que disse, mas já era tarde. Tudo era motivo para brigas entre os dois, principalmente quando a mãe acusava Rafael pelos delitos de Yuri. Boletins de ocorrência foram registrados algumas vezes na casa da família. Sempre que podia Yuri, gostava de provocar. Uma vez, os dois brigaram de forma grave e Rafael chegou a abrir um boletim contra o irmão na polícia. Os furtos também eram registrados através ∙ 98 ∙
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de boletins o que contribuiu para a decisão da família em devolver as crianças. Quando Rafael chegou na instituição, laudos médicos diziam que ele sofria de vários transtornos mentais. Depois de levá-lo a um médico novamente, a equipe do abrigo recebera um laudo que mostrava apenas um transtorno depressivo, que poderia ser controlado com remédios. O caso de Rafael não é isolado. Vários garotos da casa também sofrem de algum transtorno mental e tomam medicamentos. Para algumas pessoas que vivenciam o cotidiano do abrigo, os laudos que a mãe apresentou e que diagnosticaram Rafael com diversos problemas são falsos. Quando Mirian e Daniela leram a ficha do processo do menino, não conseguiram associá-lo ao Rafael que conheciam. Os depoimentos presentes no registro não condiziam com as atitudes e comportamento do garoto. No papel, registrava-se que o garoto era viciado em drogas, delinquente, mentiroso, dissimulado e manipulador. Rafael olha para o mundo de um jeito diferente. É sensível e empático. Apesar de todas as adversidades, não sente raiva dos pais. Às vezes o menino se comporta como um oceano em dias de ressaca, com ondas altas e fortes que quebram ríspidas nas encostas. Em outros momentos, é como um rio calmo, sem turbulências, que corre tranquilamente por seu leito. Nesse turbilhão de sensações, o garoto cria histórias, escreve, dedica suas obras a algumas pessoas que sequer desconfiam de suas habilidades. Em um de seus textos, Rafael homenageia o irmão mais novo. Desde que foi para o abrigo, o menino nunca mais o viu. O caçula foi adotado por um casal de indianos, que o levou para o país de origem. Na história, Rafael cria uma vida para o irmão, cheia de sonhos, vontades e alegrias. Ele não sabe como o garoto está, mas sempre que pode busca na memória suas remotas lembranças. ∙ 99 ∙
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Além das narrativas, Rafael escreve poemas, muitos deles dedicados ao pai. Desenvolve peças de teatro da escola e redige cartas de amor. Nos desenhos, o menino retrata rostos conhecidos, como os de Frida Khalo e de Albert Einstein. Corpos nus também aparecem como referências para o menino. - Posso te olhar, desenhar? – pergunta Pedro, ao entrar no quarto. - Pode, não comecei ainda, mas fica aí – responde Rafael. - E vai fazer o que? - Ainda não sei. Tem alguma sugestão? - Deixa eu pensar – responde o menino com uma das mãos no queixo. - Tabom, enquanto você pensa vou apontar o lápis. Rafael aproveita e vai ao banheiro. Pedro bate contra a cabeça como se as ideais fossem ser cuspidas dali à força. O menino volta. - Pensou? - Pensei, mas promete que não vai rir, mano? - Depende. Tá pensando em besteira? - Não, véi. Pensei em você me desenhar. - Ah, por que não pediu logo. - Não sei, só queria me ver no desenho. - Tabem. Quer um desenho mais realista ou tipo anime? - Pode ser mais realista. - Tá, nessa pose que você está mesmo? ∙ 100 ∙
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- Aham. Manda ver mano. - Tá, só não fica se mexendo muito. rir.
A situação é engraçada para Pedro. Ele se esforça para não - Você é um péssimo modelo, Pedro, sabia? - Sabia – responde o menino, rindo. - Pronto? - Não, fica calmo. - Mas já faz um tempo. - E acha que arte se faz assim? - Sei lá como se faz. Só sei que tá demorando.
- Meninos, o que estão fazendo? – pergunta uma voz na porta. É dona Helena. dro.
- Estou sendo modelo pra ele, pro desenho – responde Pe- Tá bom. Vou ficar aqui com vocês – diz a senhora. - Tudo bem – responde Rafael. - E agora, mano, acabou? – pergunta Pedro, impaciente. - Agora sim. Olha! O que achou?
- Caramba, até parece comigo mesmo – afirma Pedro, espantado. - Acha que ta parecido com ele, tia?- menciona Rafael para Helena. - Olha só! Ficou bem bonito, Rafa, parabéns! Acho que parece sim. ∙ 101 ∙
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- Obrigada! – responde o garoto sorrindo. - Da próxima cê desenha a Tia Helena, né tia? - Ah, posso desenhar você se quiser – responde Rafael. - Tudo bem meninos, outro dia você desenha, tá? - Tá bom. Pedro, quer o desenho pra você? - Quero. - Toma! – diz o garoto, enquanto entrega para o outro - Valeu. Vou mostrar pro Felipe pra ver o que ele acha. Aposto que vai querer que cê desenhe ele também. - Tá, mas se ele quiser eu desenho também. - Vamos ver o que ele diz – responde Pedro, já postado na porta do quarto. - Espera a tia, Pedro – pede Helena. - Rafa, vou descer para ver como estão as coisas, desce um pouco também – fala a cuidadora. Depois de entregar o desenho a Pedro, Rafael olha para o lápis em sua mão. Pensa no dia em que resolveu se maquiar. O garoto adora ser outras pessoas, fantasiar personalidades, viver outras vidas. O ato é natural, está intrínseco em seu modo de viver, fugir, não se habitar por não gostar de algo em si próprio. Na ocasião, Rafael foi para a casa de uma amiga. Junto, passaram a tarde aprendendo técnicas e desenhando a face um do outro. Foi um dia divertido. Sabendo que isso não seria bem aceito em casa, o menino tirou a maquiagem antes de chegar. Porém, o que ele não esperava é que a mãe perceberia resquícios de rímel em seus olhos. As perguntas foram inevitáveis e o desentendimento também. A mãe de Rafael não entendia a vontade do filho de ∙ 102 ∙
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ser outras pessoas. Na casa, o menino já maquiou os meninos, desenhava heróis e vilões em seus rostos. O amor pelo teatro, pelas palavras e artes plásticas está presente em tudo o que faz. Rafael ergue a cabeça e olha para a Santa pendurada na janela. Ele não é religioso, não sabe se consegue acreditar em Deus, mas gosta muito de Maria. O menino acredita que a Santa foi um divisor de águas em sua vida. A fé está presente nele, entretanto não em uma religião. Apesar de já ter passado por algumas experiências religiosas, não se sente preenchido por nada além da fé em Maria. O menino não gosta da Bíblia, critica o uso do livro como doutrinação social. Para ele, as únicas coisas que ali trazem convencimento são os salmos e o trecho {1 Coríntios 13:4-7}, onde há uma descrição detalhada sobre o amor. Em silêncio, faz um pedido à Santa. Volta os olhos para as mãos cheias de lápis e os guarda em um estojo, e depois este na mochila. Na bolsa, Rafael encontra um papel com um de seus últimos trabalhos acadêmicos. Ele folheia o texto como quem procura algum erro. Aponta para uma página e começa a ler. - Aqui! Sabia que tinha algo errado em algum lugar! - exclama o menino. - Para com esse perfeccionismo, Rafael – responde a voz em sua cabeça. - Tem que estar tudo certo. Você sabe o quanto me dediquei nesta pesquisa. - Claro que sei, sabemos disso. - Quem sabe no futuro eu não possa ajudar as pessoas com ela. - É uma possibilidade grande, cara. O trabalho de Rafael é sobre ondas sonoras e a cura do câncer, no qual pesquisa sobre como a agitação do som influencia di∙ 103 ∙
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retamente nas partículas do sangue. É um assunto complexo, mas o menino parece entender bem. Rafael é ambicioso, tem grandes sonhos e, como todo adolescente, vários projetos de vida. Entre as vontades futuras, está o intercâmbio para o Canadá, se formar em Jornalismo e trabalhar como professor na Universidade de São Paulo. Entrar para a Academia Brasileira de Letras como o mais jovem escritor do país e ganhar um Prêmio Nobel ocupam a posição número um na lista de grandes metas. Nos objetivos mais pessoais, ter um filho, fundar uma rede de abrigos no Brasil e na África. Com 70 anos, espera ter alcançado grande parte de suas vontades e ter tirado muitas crianças da miséria. Ele passa as mãos no cabelo e se lembra das últimas palavras da mãe. Durante uma audiência sobre o boletim de ocorrência que Rafael abriu contra Yuri, a juíza perguntou se o menino daria sequência ao processo. Respondera que não. Nessa hora, a mãe sentou ao seu lado e disse que Rafael estava livre. Os dois choraram. Passada a audiência, os pais levaram o garoto junto com o coordenador da casa de volta ao abrigo. A cada dez minutos, o pai insistia para que Francisco incentivasse Rafael a prestar o Exame Nacional do Ensino Médio, o ENEM, e os demais vestibulares. Fez o coordenador prometer que cumpriria com o pedido. Rafael desceu do carro sem a certeza de que aquele seria um adeus ou um até logo. Do portão para dentro, a vida do menino nunca seria a mesma. •
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O caminho judicial até o acolhimento
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A
medida protetiva de acolhimento de crianças e adolescentes é tomada apenas como última instância. Antes da chegada a uma instituição de acolhimento, vários processos são necessários. De acordo com os dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) referentes ao segundo semestre de 2018, há 47 mil crianças e adolescentes que vivem em abrigos no Brasil. Entre as unidades federativas com maiores índices de abrigamento, destaca-se São Paulo, com 13.418 mil casos, seguida de Minas Gerais, com 4.968, e Rio Grande do Sul, com 4.866. Na capital de Mato Grosso do Sul, 150 crianças e adolescentes vivem em 14 casas de acolhimento espalhadas por toda a cidade. Cinco dos abrigos são mantidos pela Prefeitura de Campo Grande, os demais são sustentados por organizações não governamentais (ONGs), cadastradas e fiscalizadas por meio do CMDA (concelho municipal da criança e do adolescente). O caminho para o abrigamento é longo e burocrático. No Fórum, a abordagem da Coordenadoria Social é o primeiro passo. Nos casos de destituição do poder familiar e de medidas de proteção em geral por circunstâncias de abuso sexual, violência física, abandono, violência psicológica ou negligência, a Juíza da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso solicita uma avaliação psicológica ou psicossocial tanto da criança ou do adolescente ∙ 107 ∙
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quanto dos pais. Muitas vezes, a abordagem também chega a pessoas da família extensa ou a terceiros que tiveram algum tipo de vínculo com a criança ou com o adolescente. É uma perícia psicológica que tem como objetivo encontrar alternativas de forma a subsidiar a Justiça numa decisão de interesse e segurança das crianças e dos adolescentes. As visitas às casas das crianças ou adolescentes são feitas sem aviso prévio e acontecem em momentos que as famílias pouco esperam. O intuito é vivenciar a situação real na qual a criança ou o adolescente se encontra. Caso seja constatado algum indício que atente contra os preceitos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), realiza-se a apreensão dos mesmos. Depois de esgotadas as tentativas de reintegração da criança ou do adolescente, é vez de o Núcleo de Adoção agir. Realiza-se um registro no Cadastro Nacional de Adoção (CNA). No banco de dados, procede-se um cruzamento de dados com o perfil da criança ou do adolescente e de pais na fila de espera. No caso de irmãos, por exemplo, o cruzamento é feito primeiro com o mais velho, seguido do irmão mais novo. Caso verifiquem-se perfis compatíveis, sucede-se o contato com os futuros pais junto ao aviso de que a criança tem um irmão. Na eventualidade de a família aceitar, ambos são adotados. Nos dados armazenados no CNA, estão presentes todas as informações pessoais do casal, assim como quais as características desejadas dos futuros filhos. Na lista de preferências, o gênero feminino, de etnia branca e bebês ocupam o primeiro lugar. Os pais que esperam por muito tempo na fila aguardam justamente por esse perfil. Algumas exigências também são colocadas no cadastro, como o veto a crianças que tiveram pais usuários de drogas ou contato com a rua. No Brasil, de acordo com o banco de dados do CNA referentes ao segundo semestre de 2018, apenas 9.193 crianças e adolescentes ∙ 108 ∙
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estão cadastradas e aptas para receber uma nova família. Dentre elas, 4.249 mil são meninas e 4.944 são meninos. Os números remetem a um recorte temporal determinado, uma vez que o cadastro é dinâmico, com atualizações constantes. No relatório dos pais, o número de cadastrados chega a 44.824. Quando se trata de idade, o número de pais que aceitam adotar crianças com mais de dez anos passa a diminuir. Porém, o percentual diminui drasticamente a partir dos 13 anos de idade. Com 14 anos, as chances são mais remotas. De acordo com o cadastro, apenas 111 pais aceitam filhos com essa idade em todo o território nacional. Entre as faixas etárias de 15 e 16 anos, a realidade é assustadora, com apenas 85 e 63 pais, respectivamente, dispostos a receber adolescentes em todo o Brasil. No cadastro geral, o número de crianças que possuem irmãos é de 5.172. Já o número de pais que aceitam adota-los é de 16.593. Outro fator importante é a preferência de apenas 3.789 pais pela adoção de meninos. Depois do cadastro, os meninos e meninas são encaminhados para o acolhimento. Antes do ECA, instituído em 1990, vigorava no país o Código do Menor. As instituições que faziam o serviço de acolhimento de crianças e adolescentes eram chamadas de orfanatos, educandários ou colégios internos, que durante anos ficaram vinculados a imagens de abandono. Nesses lugares, havia isolamento da comunidade externa e divisão do mesmo espaço com um grande número de crianças e adolescentes. Não existia a oportunidade de trabalho, nem de convivência familiar e comunitária. A partir do ECA, as crianças e adolescentes passaram a ser vistos como sujeitos de direitos e as instituições de acolhimento iniciaram seus processos de adequação às novas normas. Destaca-se como exemplo a participação dos adolescentes no mercado de trabalho e a integração familiar substituta. ∙ 109 ∙
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Nesse contexto, a 1ºVara da Infância e da Juventude de Campo Grande implementou em 2000 o Projeto Padrinho, programa de solidariedade e apoio às crianças e adolescentes. O objetivo é mostrar para a sociedade as condições nas quais as crianças e adolescentes vivem e estimular a participação das pessoas na convivência familiar e comunitária por meio do apadrinhamento. O projeto aproxima quem quer ajudar e quem precisa de ajuda, criando laços afetivos e proporcionando relações diretas entre as crianças, os adolescentes e os padrinhos. O apadrinhamento pode ser feito de três formas: 1) Afetiva, pelo meio de carinho, convívio e passeios; 2) Prestação de serviços, com ajuda nas horas livres, com idas até o abrigo ou em atividades sociais; e 3) Pessoa Física, Empresa, Entidade ou Instituição Madrinha, na qual as entidades podem apadrinhar a criança ou a instituição acolhedora por de apoio material, financeiro, prestação de serviços, atividades de formação profissional, cultura e lazer. Os padrinhos podem escolher o perfil do afilhado de acordo com os critérios disponíveis. O projeto foi reconhecido e teve implementação em outras 20 cidades de Mato Grosso do Sul.
Todas as políticas vigentes no ECA tem como objetivo a proteção integral de crianças e adolescentes. Por isso, o acesso às casas e aos mesmos é restrito e burocrático. As medidas de proteção são aplicáveis nos casos em que os direitos de adolescentes e crianças sejam ameaçados ou violados, seja pelos pais, sociedade ou Estado. ∙ 110 ∙
∙ Agradecimento ∙
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urante todo o trabalho contei com pessoas que me ajudaram muito para que isso estivesse em suas mãos. Gostaria de agradecer a cada uma individualmente, porém essa lista ficaria um tanto quanto extensa, e o receio de me esquecer de alguém assombra meus pensamentos. Portanto, gostaria de agradecer em especial, o meu orientador, que sempre acreditou em mim e no meu trabalho. Sem sua ajuda e amizade eu não teria conseguido terminar. Obrigada a todos meus amigos que me apoiaram, que vivenciaram minhas crises de ansiedade, que estiveram ao meu lado dizendo que tudo daria certo. A minha mãe, que mesmo de longe sempre fez questão de me incentivar e acreditar em mim. Aos meninos da casa 140, que me ensinaram tanto sem saber.
Obrigada!
• Esta obra, Casa 140, da autora Natålia Oliveira foi composta em Adobe Caslon Pro em novembro de 2018 como trabalho de conclusão do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.