Cinema de Herói A história dos que construiram o cinema em Mato Grosso do Sul
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Ana Luiza Vieira - Wendy Tonhati
Cinema de Herói A história dos que construiram o cinema em Mato Grosso do Sul Campo Grande 2013 7
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Dedicamos este livro às nossas famílias e a todos apaixonados pelo cinema.
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Prefácio Para um produtor gráfico e professor de planejamento gráfico, que ao longo desta vida já produziu mais de vinte livros, prefaciar o seu primeiro, ainda que este livro reportagem seja um trabalho acadêmico de alunas, as quais enfrentarão uma banca de Projeto Experimental, para a obtenção de título de bacharel em Comunicação Social – Jornalismo, e mais, substituindo Mario Ramires na orientação, confesso: não será um desafio fácil. Mas vamos lá. O livro reportagem “Cinema de Heroi”, com suas 12 reportagens (capítulos), editorial (introdução), e considerações finais, as acadêmicas Ana Luiza e Wendy buscaram tratar “a pauta cinema sul mato-grossense ” inspirada na forma literária/jornalística com que José Octávio Guizzo, em seu livro “Esboço histórico do Cinema em Mato Grosso” (1967), tratou a pesquisa sobre o tema, sendo o grande precursor das pesquisas sobre cinema em nosso Estado. A escassez de trabalhos escritos, livros, reportagens, ou mesmo, vídeos-documentários e etc, sobre cinema em Mato 11
Grosso do Sul, motivaram as acadêmicas a fazerem muitas leituras, pesquisa jornalística, descobrir fontes, produzir entrevistas e depois reportar, escrever, re-escrever, escrever a quatro mãos. Neste contexto e com essa “metodologia jornalística” e com o que tiveram durante o curso de jornalismo da UFMS, editaram estes textos com a preocupação de mostrar que aqui se faz cinema sim. Desta forma, narram em seus textos um pouco da vivência de personagens envolvidos com o fazer cinema e o seu desenvolvimento do em nossa região. E assim, encontraram pesquisadores, professores, autores, realizadores, cineastas, entusiastas, “loucos por cinema” e heróis que aqui, nascidos ou não, criaram ou pretendem criar produtos audiovisuais e ou cinematográficos com identidade cultural local. Para finalizar esta breve apresentação, devo dizer que Ana Luiza e Wendy encararam a árdua tarefa de produção gráfica/edição final deste livro reportagem com desenvoltura, retomando os estudos e a aprendizagem de planejamento gráfico, dos programas de editoração eletrônica, e ainda, tendo uma melhor compreensão desta importante fase de um trabalho como este, mesmo com o pouco tempo que tiveram para isso. Devo ainda ressaltar que o mérito é todo das autoras e acredito ter dado conta da tarefa de substituir o orientador Mario Ramires que nos deixou em setembro de 2012. Com certeza ele teria “apertado” mais as meninas na carpintaria dos textos. Boa leitura! Jose Marcio Licerre
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Apresentação Desde seu surgimento em 1895 com os irmãos Lumière até os dias atuais, muitas mudanças influenciaram o modo de pensar sobre o Cinema. Ampliaram-se visões para entender períodos, fases, ciclos, marcados pela ênfase de períodos históricos. As referências autorais e estéticas diversificaramse; mas, significativamente, cresceu o número de estudos voltados para o universo das produções cinematográficas. Neste trabalho, podemos entender mais detalhadamente como vem se desenvolvendo o Cinema em Mato Grosso do Sul, especificamente a partir do filme “Alma do Brasil”, de Libero Luxardo e Alexandre Wulfos, datado de 1932, quando Mato Grosso ainda era um estado uno, quase esquecido no interior do Brasil. Apesar de terem nascido nos estados de São Paulo e Rio Grande do Sul, respectivamente, os dois contribuiram expressivamente para o desenvolvimento do cinema local e influenciaram toda uma geração que viria um dia a pensar 13
em fazer filmes por aqui. Partindo de suas raízes, ainda nos primeiros anos da década de 30, passando por todas as transformações históricas das décadas seguintes, a Ditadura Militar, a Divisão do Estado, narramos um pouco da vivência de personagens envolvidos no desenvolvimento do Cinema em Mato Grosso do Sul. Muitos não nasceram em terras pantaneiras, mas aqui criaram laços que amarraram nossa cultura em uma identidade única. São pesquisadores, professores, realizadores, cineastas, entusiastas, “loucos”, heróis. E o fio condutor que liga nossa narrativa é a paixão pelo cinema; desprendida de rótulos ou teorias, orientada pela vontade livre de pensar e fazer. Mas algumas armadilhas neste percurso estão plantadas para todos aqueles que se aventuram em trilhá-lo e, para ultrapassá-las, questões teóricas se impõem impiedosamente. Afinal, o que é cinema? Foi essa a pergunta que motivou Jean Claude Bernadet na composição da sua obra que leva esse mesmo título, “O que é cinema?”. Muitos foram os pensadores que se propuseram a responder (de sociólogos a psicólogos, de filósofos aos próprios cineastas), mas nenhuma resposta parece satisfatória. Questão que nem esse artigo pretende esgotar, mas que serve para que notemos, afinal, o que nos fascina no cinema. Já dizia o poeta não haver o amor, apenas suas provas. Não existe uma entidade “O Cinema”, apenas suas provas, ou seja, os filmes, as produções. Responder a questão “o que é o cinema?” é puxar na memória os filmes que amamos, 14
pois não existe uma idéia de cinema, uma especificidade da arte. Há os filmes, essas provas de amor, há idéias de cinema e as singularidades de cada filme. Partindo daí, possivelmente a melhor e mais justa definição para cinema seja a de Godard parafraseando seu mentor André Bazin: “o cinema não é uma arte, nem uma técnica, é um mistério”. As autoras
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Sumário Cinema: de Paris para o interior do Brasil........................ 19 O Pantanal nas Telas.......................................................... 29 Cinema urbano.................................................................. 37 Economiza a janta e compra o filme................................ 45 Um cinema com a cara da nossa cultura......................... 53 Uma paixão construída..................................................... 63 Quando as boas idéias aparecem...................................... 69 Professor em várias dimensões.......................................... 75 Sob o Signo da Paixão....................................................... 85 Glorinha, campo-grandense de coração.......................... 103 Cineclube: Arte e Resistência............................................. 109 Referências Bibliográficas.................................................. 113
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Cinema: de Paris para o interior do Brasil “Chega um dia em que as salas escuras não bastam. Há necessidade da pessoa que se interessa por cinema se experimentar, fazer também suas tentativas” Salim Miguel
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uando em 1895 os irmãos Lumière realizaram a primeira projeção pública, não imaginavam que a paixão pela imagem em movimento moveria tanta gente ao redor do mundo. A primeira sessão, organizada pelos irmãos Lumière foi rápida e barata. Por um franco cada, 33 assentos foram ocupados por cerca de 20 minutos no subsolo de um café em Paris para ver as imagens projetadas pelo cinematógrafo. Sete anos mais tarde, com o francês Georges Mèliés, e suas técnicas de trucagem e efeitos especiais, empregando fusão de imagens e exposição múltipla de negativos, o cinema virou uma arte. E rapidamente essa arte atravessou o atlântico e chegou ao Brasil. No país, a primeira exibição cinematográfica aconteceu já no ano seguinte, onde hoje funciona o teatro Glauber Rocha, no Rio de Janeiro. O primeiro cinema foi aqui inaugurado em 1909 – o Cine Soberano, que hoje é chamado de Cine Íris, também no Rio de Janeiro. No início de século XX, Mato Grosso do Sul, então um estado uno, no interior brasileiro teve contato com as primeiras projeções e também se aventurou nas suas primeiras produções. O primeiro cinema chegou a Campo Grande em 1910, com o italiano Raphael Orico que tinha como objetivo mostrar ao então Arraial de Santo Antônio de Campo Grande a inédita forma de comunicação de imagens. O Cine Brasil, que seria a primeira experiência dos campo-grandenses com o cinema, foi instalado embaixo da copa das árvores na atual Travessa Lydia Baís. Esse “cinema” ainda não era uma sala de exibição e funcionava a céu aberto, onde os filmes eram projetados em um grande pano branco colocado em uma das paredes do Hotel Democrata. 20
O fascínio pela imagem em movimento motivou a instalação das salas de cinema no Arraial e em outras cidades do Estado, como Aquidauana e Corumbá. Antes mesmo de ser elevada à categoria de cidade, Campo Grande já conhecia três cinemas: Cine Brasil (1910), Cine Ideal e Cine Rio Branco (1912). O Cine Ideal, inaugurado em 1912 pela empresa Nepomuceno e Barros, na Rua 7 de setembro, quase esquina com a rua 14 de julho, foi o primeiro cinema fechado de Campo Grande. O Cine Guarani foi inaugurado em 1920, e posteriormente passou a se chamar Cine Central. Em 1929 foi instalado o Cine Santa Helena, na Rua Dom Aquino. O ano 1932 entra para história com o Cine Triannon, que funcionava na Rua 14 de julho, exibindo Alma do Brasil, primeiro filme produzido em Mato Grosso do Sul. Depois veio o Cine Alhambra em 1937, o Rialto em 1940 e na década de 1960 os irmãos Lahdo inauguram os cines Jalisco e Acapulco.
Cine Alhambra, na avenida Afonso Pena.
Na década de 1970, os campo-grandenses conhecem o 21
Auto Cine, instalado na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, o Cine Estrela, no bairro Santo Amaro, o Cine Nova Campo Grande, os Cines Plaza e Center na antiga rodoviária. Na década de 90, o Cine Hawaii no Shopping Campo Grande o Cine Campo Grande na Rua 15 de novembro. Nos anos 2000, o Cinemark que substituiu o Cine Hawaii, o Cine Cultura e o Cinépolis.
No começo de tudo, os cinejornais! A produção cinematográfica em Mato Grosso do Sul teve início com os cinejornais, que eram noticiários exibidos no cinema como uma espécie de trailer. Os assuntos eram variados e incluíam desde matérias turísticas até minidocumentários políticos de cunho governista. Os cinejornais foram importantes porque a partir deles foi feito um registro da nossa história da época. Muitos dos cinejornais eram financiados pelo poder público e narravam um acontecimento da semana, como uma inauguração de obra pública. De acordo com o “Esboço histórico do Cinema em Mato Grosso”, de José Octávio Guizzo (1967), em 1938, havia o Cinejornal de Aquidauana, de Décio Correa Oliveira, que desde criança já manejava uma câmera. Em 1938 ele começou a filmar em sua cidade natal, o carnaval de rua e de clubes, desfiles de aniversário da cidade, de independência do Brasil e inaugurações, tudo em 16 mm. Oliveira filmou até 1969, 40 cinejornais, registrando a história de Aquidauana. Em Campo Grande, Michel Saddi, adquiriu uma filmadora 16 mm em 1956 e começou por brincadeira a filmar. Em 1957, com o patrocínio do então prefeito de Campo 22
Grande, Marcílio de Oliveira Lima, ele fez a cobertura dos jogos nordestinos, realizados na cidade, dessa vez, já em 35 mm. Nesta mesma época fundou o Cine-jornal Produções Michel Saddi e filmou mais de 100 cinejornais. Em Três Lagoas surgiu a Leão Cinematográfica e em Campo Grande, os irmãos Bernardo e Abboud Lahdo começaram em 1958 a produção de uma série de cinejornais que foram interrompidos quando foram realizar o primeiro longa metragem.
Da Aurora do Amor à Alma do Brasil No final da década de 1920, um grupo de jovens anunciava que fariam um filme em Campo Grande com o nome de “Aurora do Amor”. O filme já tinha o roteiro, o jornalista paulistano Libero Luxardo, seria o diretor; Alexandre Wulfes nascido no Rio Grande do Sul e criado em Corumbá seria o câmera; Egon Adolpho viveria o galã e a estrela seria Lili Rubens. Apesar de inúmeros ensaios e até mesmo promoção na imprensa local e nacional, o filme não vingou pela falta de dinheiro. Mas a dupla Luxardo e Wulfes não desistiria. No final de 1930 pediram autorização para o Governo do Estado de Mato Grosso e instalaram em Campo Grande a Empresa Cine Propaganda Mato-grossense que produziria curtas e o nosso primeiro longa metragem. “Alma do Brasil” foi filmado quase inteiro em janeiro de 1932 e foi o primeiro filme com partes faladas e cantadas sincronizadas. É apresentado dentro da história do cinema brasileiro do chamado ciclo patriótico e situa-se como o primeiro filme brasileiro de reconstituição histórica. A produ23
ção levou multidões ao cinema, foi exibido em todo o país e também em Portugal.
Cenas finais de Alma do Brasil, foram gravadas próximo a Campo Grande.
A ideia inicial de Luxardo e Wulfes era fazer um documentário com as manobras militares do General Klinger que eram realizadas na região de Nioaque e que seguiam até Laguna, no Paraguai. Com o apoio do general que era conhecido do pai de Wulfes, os dois receberam total apoio para que fossem filmadas as manobras realizadas pelos militares. Luxardo contou em entrevista a José Octávio Guizzo em 1987, que Wulfes teria ficado empolgado com as manchetes dos jornais que noticiavam as grandes manobras militares realizadas em Nioaque, na mesma região onde ocorreu a retirada da Laguna “Ele disse: Luxardo, vamos fazer o filme da retirada, das 24
manobras, que isso é um sucesso, todos os jornais estão noticiando isso, vai ser uma coisa fabulosa, nós vamos ganhar dinheiro e depois fazermos o Aurora do Amor”.
Alma do Brasil entrou para a história do cinema brasileiro.
As cenas do filme foram rodadas nos locais onde se desenrolou a Guerra do Paraguai: Nioaque, Jardim e Bela Vista. Segundo as contas de Wulfes, cerca de 300 pessoas estiveram envolvidas nas filmagens. Nenhuma delas era ator ou atriz de cinema. Grande número de soldados e prostitutas foram convencidos a trabalhar de graça, recebendo apenas comida e cachaça, trabalhando por diversão e pelo espírito cívico que o filme evocava. “O filme foi feito por nossa conta mesmo, minha e do Luxardo, agora, contamos com a boa vontade do General Klinger, que nos pôs a disposição 150 cavalos com cavaleiros, arranjamos depois todas as vestimentas dos soldados, armas. Como precisávamos de muitas mulheres para acompanhar aquela retirada, aqueles retirantes, todo o meretrício de Campo Grande tomou parte e foi para lá”.
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Todo o elenco de “Alma do Brasil” era amador, apenas a portuguesa Conceição Ferreira, era profissional e foi paga para atuar no filme. Conceição era uma estrela dos palcos e dona de uma companhia de teatro. Foi convidada para participar do filme por Luxardo e Wulfes após chegar do Paraguai.
Portuguesa, Conceição Ferreira era a única atriz profissional do filme.
A princípio, Luxardo e Wulfes não gostaram do resultado do documentário e resolveram enriquecer o filme fazendo a fusão de imagens com os principais personagens da Retirada da Laguna. Conceição não participou das cenas filmadas durante a manobra militar. Suas cenas só foram incluídas no final, após serem gravadas nos arredores de Campo Grande. Após as filmagens, o filme foi todo revelado em Campo 26
Grande, na fotografia do pai de Wulfes. A primeira exibição foi feita com o filme ainda mudo. Depois, os dois realizadores arranjaram dinheiro e conseguiram ir para o Rio de Janeiro terminar o filme com o processo de sonorização. Os diálogos, quatro no total, foram enxertados depois, já no processo de mixagem, na então capital do Brasil. Com uma fotografia muito elogiada na época, “Alma do Brasil” foi o primeiro filme feito sobre fatos históricos inteiramente sonorizado. A narrativa não é linear e partes da história são contadas em forma de flash back. O filme já estava pronto antes da Revolução de 32, iniciada por São Paulo, aderida pelo Sul de Mato Grosso e que pretendia derrubar o presidente Getúlio Vargas, mas por conta da aparição do General Klinger e a suspeita de que ele teria apoiado a realização porque queria se promover, a censura suspendeu a exibição de “Alma do Brasil” no Cine Eldorado (RJ) e o filme recebeu vários cortes.
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O Pantanal nas telas Nossa viagem não é ligeira, ninguém tem pressa de chegar A nossa estrada, é boiadeira, não interessa onde vai dar Onde a Comitiva A, chega já começa a festança Através do Rio Negro, Nhecolândia e Paiaguás Vai descendo o Piqueri, o São Lourenço e o Paraguai. Almir Sater e Paulo Simões
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fauna e flora do Pantanal sempre atra íram aventureiros dispostos a grandes caçadas. Uns caçaram onças, outros caçaram filmes. O letoniano Sasha Siemel veio para o Pantanal caçar o felino com espingarda, conheceu um índio, aprendeu a caçar com zagaia e terminou fazendo documentários e escrevendo livros sobre os safáris que promovia no Pantanal. Líbero Luxardo, caçava filmes, após “Alma do Brasil”, entrou em uma caçada de onça que terminou lhe rendendo um ferimento na perna, 30 dias de cama e um filme. Mais de 50 anos depois, a caçada continuou com o campo-grandense Candido Alberto da Fonseca que caçou a história de Sasha para um documentário. Pouco mais de um ano após terminar “Alma do Brasil”, Líbero Luxardo partiu para sua próxima produção, dessa vez, sem Alexandre Wulfes, pelo menos no começo da empreitada. Nesta época, dois filmes deveriam ter sido feitos pela “Lux Film”: “As Maravilhas do Mato Grosso” e “Anguara”. Os dois filmes pretendiam retratar cenas e costumes das então “misteriosas e desconhecidas” regiões de oeste de Mato Grosso. Para a imprensa da época, em 1934, Luxardo afirmou que para o filme “Anguera,” havia perigosamente filmado a serra de Maracaju, uma região até então, inédita até para os mato grossenses. Já para o filme “Maravilhoso Mato Grosso”, a imprensa da época narrou que Luxardo focaria as belezas da região em um novo filme. “Chega-nos de um Pantanal distante, das margens do Taquari, a notícia de uma viagem acidentada e cheia de peripécias que a expedição cinematográfica chefiada por Líbero Luxardo, vem de realizar com o fito único de fazer uma coletâ30
nea de curiosidades para o cinema”.(In: GUIZZO, José Octávio. Alma do Brasil.Campo Grande, MS.1984) Luxardo continuou filmando no Pantanal. Foi convidado por um coronel para participar de caçadas de onças que ele decidiu filmar para um documentário. Com o passar do tempo, o filme Anguera morreu de vez e vendo que as imagens de caçadas como documentário não era comercial, Libero se juntou novamente a Alexandre Wulfes. Eles contrataram artistas de rádio para fazer a abertura e final de um filme em que as cenas de caçadas originalmente captadas para o documentário, são passadas como sonho. No final, o filme entrou para a história do cinema nacional como “Caçando Feras”, em 1936. O letoniano Sasha Siemel saiu de casa aos 16 anos para fugir da imposição do pai que queria que ele estudasse engenharia. O jovem entrou em um navio rumo à Alemanha, e de lá, não parou mais. Foi para os Estados Unidos, para Argentina, onde foi boxeador e veio para o Brasil. Entrou no país pelo Rio Grande do Sul e com 24 anos veio parar no Pantanal. Assim começou sua carreira de caçador de onças pintadas contratado pelos fazendeiros para matar com arma de fogo o felino que às vezes dava prejuízos no Pantanal. Um dia Sasha descobriu que um índio Guató caçava onças com uma zagaia. Decidiu aprender a técnica e filmar o índio. Depois que aprendeu, passou somente a caçar com o artefato. Sasha trazia estrangeiros para caçadas no Pantanal e fez uma série de filmagens. Antes de exibir seus filmes ele dava explicações sobre as caçadas. Ele fez pelo menos dois documentários: “Caçando” e “Minha Vida no Sertão”. Sasha faleceu em 1970, aos 80 anos, mas permaneceu 31
vivo na memória. Foi tema do documentário “Sasha Siemel – O caçador de Onças” de Candido Alberto da Fonseca (2007). O documentário vai além das questões do que é correto ou incorreto e dá voz a um caçador. Sobre o filme, o diretor afirma: “Estou fazendo um filme histórico e o documentarista não tem que ficar bancando o politicamente correto que eu tenho que retratar aquilo que é objeto do documentário”, diz Cândido.
Documentário Sasha Siemel (2007), com partes em animação.
O Faroeste é aqui Em 1971, o Pantanal foi o cenário para o nosso primeiro filme de ficção colorido. O longa “Pantanal de Sangue”, do campo-grandense Reynaldo Paes de Barros, inaugura um novo ciclo de cinema no Estado com o filme que foi denominado um “autêntico filme de faroeste brasileiro”. “Pantanal de Sangue” foi gravado na Fazenda Santo Antonio do Paraíso, próximo à divisa dos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, inspirado por histórias e fatos da infância do diretor. O filme é o terceiro longa produzido por Reynaldo que 32
havia estudado cinema nos Estados Unidos. Quando voltou realizou os filmes “Férias no Sul”, “Agnaldo, Perigo a Vista” e “Pantanal de Sangue”. Narra uma história um tanto cono Brasil: um fazendeiro que deseja se apossar das terras do seu vizinho, retratando um duelo de desfecho sangrento.
Pantanal de Sangue, de Reynaldo Paes de Barros.
Pantanal musicado
O Pantanal é sem dúvida um dos temas mais recorrentes na produção cinematográfica de Mato Grosso do Sul. Em 1983, com “Comitiva Esperança”, o Pantanal foi cenário para mais um filme. Dessa vez, um documentário feito pelos músicos Almir Sater, Paulo Simões e o maestro e violinista Zé Gomes. Os três realizaram uma viagem pelo Pantanal, assim como canta a música famosa e com o mesmo nome. Passaram por regiões conhecidas como Paiaguás, Nhecolândia, Piquiri e Abobral. Os registros poéticos da cultura e costumes do homem pantaneiro foram intercalados com músicas e o resultado foi o documentário “Comitiva Esperança”. Embora filmando o Pantanal, os músicos foram acom33
panhados pela equipe de filmagem de uma produtora paulista. A comitiva viajou e ouviu moradores, peões, trovadores, mascates e outros representantes da comunidade pantaneira para conhecer e documentar a região. O média-metragem “Comitiva Esperança, uma viagem ao interior do Pantanal”, foi dirigido por Wagner Paula de Carvalho, fotografia de Aluísio Raulino e som de Artur Bandeira. O documentário recebeu diversos prêmios em festivais no ano de 1985.
Comitiva Esperança 1983. Com Almir Sater, Paulo Simões e Zé Gomes.
É também com a música “Vida Bela Vida”, de Guilherme Rondom e Paulo Simões e conhecida na voz de Almir Sater, que o Pantanal aparece no filme institucional Pantanal de Aquidauana (2011), do diretor Maurício Copetti. Foi com o Pantanal como cenário, que Coppetti fez sua primeira produção, o documentário “Delta do Salobra” (2004), “Água dos Matos” (2006) e “Planície Revisitada” (2011). . 34
“Eu trabalhava como guia de turismo e aproveitei pra fazer umas imagens e depois montei o documentário”, conta Copetti sobre a primeira produção “Delta do Salobra”.
Pantanal de muitos Com os curtas “Paralelos”, de Alexandre Basso e “A Poeira”, dirigido por Helio Godoy, ambos de 2007, o Pantanal ganhou o rosto das crianças. Paralelos narra história de um menino de 10 anos que espera a volta do trem de passageiros no Pantanal. O curta é uma ficção, mas o tema retratado é real. Mostra as pessoas que tiveram que conviver com o fim do trem de passageiros no Pantanal. Não é um filme com temática infantil, mas mostra a criança como personagem principal. Já em “A Poeira”, o cinema infanto-juvenil ganhou seu primeiro mergulho no Pantanal. O curta é uma adaptação do conto “Nessa poeira não vem mais seu pai” do corumbaense Augusto César Proença e foi gravado em uma fazenda. Ao longo dos anos, as câmeras documentaram a maior planície alagada do planeta de vários ângulos. O documentário “Terra das Águas” tem 16 capítulos que mostram as diferentes relações do homem pantaneiro com o meio. Durante um ano (2005), a equipe de filmagem acompanhou durante o trajeto duas das três comitivas que conduzem gado para leilão da Curva do Leque (Nhecolândia), evento que era realizado uma vez por mês na região. O vídeo tem 58 minutos e foi dirigido e escrito por Rosiney Bigattão.
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Cinema urbano “Só a obsessão faz cinema neste país” Cacá Diegues
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aralelos Trágicos”, dos irmãos Bernardo Elias e Abboud Lahdo, foi o primeiro filme genuinamen te campo-grandense. Os irmãos Lahdo já tinham experiência com as câmeras, pois haviam realizado uma série de cinejornais na Capital. O filme é baseado no livro homônimo escrito por Bernardo, foi rodado no ano de 1966, com apenas algumas cenas de exterior filmadas em São Paulo e finalizadas nos Estúdios Vera Cruz. “Paralelos Trágicos” tinha equipe e elenco todo regional e contava a história de um casal, impedido de viver uma paixão por conta de diferenças de classes sociais. Paralelos foi exibido no Cine Alhambra no dia 13 de janeiro de 1967, com a estreia em benefício da campanha de combate ao câncer. O filme demorou um ano para ser feito e foi exibido em vários estados do Brasil e foi para o exterior. Sobre o filme, no “Esboço Histórico”, Guizzo diz: “Na tradição do cinema brasileiro, eles trabalharam sem apoio dos poderes público, dos banqueiros, dos capitalistas, dos fofoqueiros e de todo mundo que se julga autoridade em cinema”. Paralelos Trágicos recebeu selo de qualidade da censura Federal, e a liberação pra ser exportado, devido à qualidade de som e imagem. Foram gastos US$ 80 mil dólares para fazer o filme (Fisher e Pinheiro). Após 46 anos, não sobrou muito do filme que contava a história de um professor vivido pelo próprio Abudd Lahdo e uma aluna do colegial. Diz a lenda, que a atriz principal, Geny Ratier, se casou com um importante membro da sociedade campo-grandense e que ele teria mandado por fogo nas 38
cópias dos filmes para que o passado artístico da esposa fosse esquecido. Fato é que o filme foi destruído junto com muitos outros filmes produzidos pelos Lahdo em um incêndio que sucatou o Cine Acapulco em 2000. A família Lahdo possui apenas partes da película do filme que podem ser restauradas e uma cópia em 16 mm. Na década de 1970 o Estado foi palco de mais uma Caçada. Mas dessa vez não foram as onças as vítimas. Em 1974 foi lançado o filme “Caçada Sangrenta”, produzida pela Dacar Filmes, empresa que reunia José Eduardo Rolim, David Cardoso e Gilberto Adrien. “Caçada Sangrenta” conta a história de um homem que se envolve com uma milionária que um dia aparece morta. O filme tem cenas em várias cidades como Campo Grande, Aquidauana e Ponta Porã.
Cinema poesia Na terra que o poeta Manoel de Barros escolheu para viver, a poesia não poderia se separar do cinema. O próprio Manoel é tema dos filmes de Joel Pizzini, “Caramujo Flor” (1989), de Miguel Horta, “Dia de Manoelino” (2003) e “Só dez por cento é mentira” do diretor pernambucano Pedro Cezar (2008). Os filmes de Joel Pizzini são muitas vezes classificados como experimentais ou poéticos. É assim com o primeiro curta, lançado em 1989, Caramujo-Flor, baseado no “universo” do poeta Manoel de Barros e que foi premiado em diversos festivais. No ano de 2001, é a vez de a atriz sul-mato-grossense Glauce Rocha encher as telas com “Glauce, Estudo de um Rosto”.
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Caramujo Flor - Joel Pizzini, 1989
Em 2011, com mais um título transbordando poesia, foi lançado o filmensaio “O Elogio da Graça” narrado do ponto de vista de Maria Graça Sucksdorff, que recria sua aventura, no Pantanal, ao lado do cineasta e naturalista sueco Arne Sucksdorff , durante a realização de um livro de fotografias e da série de reportagens para a televisão sueca. Em 2012, é a vez da história de Ney Mato Grosso, um dos protagonistas de Caramujo Flor, virar o tema central. No documentário “Olho Nu”, o cantor volta a sua paisagem originária, a cidade de Bela Vista, onde foram filmadas várias sequências do filme que foram intercaladas com parte do extenso material bruto de Caramujo Flor, filmado 23 anos antes. Também chamado de experimental, o curta de ficção “Nanquim”, de Mauricio Copetti é mais um exemplo de filme-poesia, dessa vez, poesia surrealista. No filme de 2005, gotas de tinta ganham formas. O nanquim se espalha por todos os lados, pelos corpos e vira escrita, pintura, desenho, 40
tatuagem. No filme rodado em Corumbá, o abstrato da tinta dá vida a um poema visual de múltiplas interpretações. O diretor e produtor do filme participou do filme O Elogio da Graça como fotógrafo. Mas o cinema que mostra o cotidiano da cidade não é exclusividade de Campo Grande. Extrapolando os limites de Aquidauana, Essi Rafael vem apresentando filmes que mostram cenas cotidianas de uma maneira lírica. O curta “Um Conto de Solidão”, tem 12 minutos e foi realizado com atores e moradores da cidade. O curta “Ela Veio me Ver”, de 2010 teve a estreia no Cinemark de Campo Grande, fato inédito para o cinema sul-mato-grossense e também foi exibido fora do Brasil. “Dois Tons” (2005), do douradense Caetano Gottardi tem 15 minutos. O filme mostra um garoto que mora numa região rural do Brasil e nela vive novidades como a música e o amor, passando por perdas e descobertas em sua pacata e solitária vida.
Dois Tons - Caetano Gottardi, 2005
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Em 2013 o curta “O Florista” ganha destaque. O filme feito em 2012 por Filipe Silveira aborda um tema ainda pouco explorado no Estado. O serial killer. A produção foi escolhida pela Associação de Cinema e Vídeo (ACV/MS) para representar o Estado no Prêmio do Cinema Brasileiro 2013. Filipi além de dirigir, escreveu o roteiro, atuou. No curta, um serial killer conhecido como “O Florista” encara o mundo como um jardim que possui flores e pragas que precisam ser eliminadas. Segundo Filipe, o tratamento da violência foi uma das preocupações durante as filmagens. “Desde o começo tive a preocupação de não fazer um filme tivesse apenas a violência, ela está presente com certeza, mas queria fazer um filme com conceito e bonito de se ver”
Associação de cinema e vídeo de MS A associação de cinema e vídeo de Mato Grosso do Sul (ACV/MS) foi criada por Alexandre Basso e Sonia Bacha. Atualmente a ACV/MS é presidida por Orivaldo Mendes Junior. O cineasta Cândido Alberto da Fonseca foi presidente da associação por seis anos. Após a fundação a associação participou de eventos promovidos pela ABDN - Associação Brasileira de Documentaristas e Curtas-metragistas e encontros realizados nos festivais de cinema brasileiro. A associação tem como objetivo a valorização do setor para formação de um pólo cinematográfico no Estado. Entre as propostas da ACV/MS está a criação da Film Commission que é uma organização, sem fins lucrativos, que se propõe a 42
colaborar com os profissionais da área audiovisual e a atrair equipes de produções audiovisuais para filmar em seus territórios de atuação. Sobre a vinda de cineastas de fora que utilizam Mato Grosso do Sul como cenário, Cândido diz embora dê projeção ao Estado, muitas as pessoas vem aqui, filmam, fazem documentários sobre a fauna, flor, transformam isso em produtos, mas o Estado não recebe nada em troca. “A vinda desses realizadores colabora com a gente como associação, mas o filme acabado é um produto, eles vendem a preço de ouro nos lugares e o dinheiro não fica nenhum tostão aqui”. A Film Commission deve ainda discutir formas de incentivar a produção de filmes no Estado, respeitando normas como a contratação de equipes técnicas locais e a apresentação de pontos turísticos aos produtores de outros estados como forma de divulgar o potencial do Estado enquanto cenário de grandes produções. “Com a Film Commission, cada vez que entrar vai ter que contratar 40% daqui, essa é uma das minhas propostas”, conclui Cândido.
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Economizava a janta e comprava o filme “Você economizava a janta e comprava o filme. Fiz assim meu primeiro filme. Acabei, mas se perdeu”. Cândido Alberto da Fonseca
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ampo-grandense, Alberto Cândido da Fonseca tem mais de 15 produções na carreira. Apaixo nado por cinema, desde criança frequentou as matinês do Cine Alhambra. Estudou Comunicação Social e viveu no Rio de Janeiro por 15 anos. Morou por quatro anos em Lisboa e estudou cinema em Moscou. De volta a Campo Grande, realizou documentários de fundamental importância para a história do Estado. Das memórias da infância, ele conta que a diversão era ir aos cinemas da cidade. Ele e os amigos frequentavam o Cine Santa Helena e às sextas-feiras, em assistiam filmes japoneses e realizavam trocas de gibis. “A única que coisa que tinha de diversão aqui era ir ao cinema, inclusive, tinham os filmes proibidos que a gente queria ver. Uma vez eu fui ver um, mas era proibido para menores de 14 anos. Peguei um lápis e raspei, fiz um bigode, parecia quadrilha. O gerente me deixou entrar, era proibido, mas ele sabia que eu gostava de cinema”. O começo da carreira foi no teatro. O cineasta diz que antes de 1977 praticamente não existia cinema no Estado, por conta do alto custo do equipamento. Em 1971, o músico Geraldo Roca viu o espetáculo teatral “Oxil - o Super Herói” de autoria de Cândido e Geraldo Espíndola e a direção de Humberto Espíndola e falou que Cândido acabaria indo para o cinema. Não deu outra. Ele foi para o Rio de Janeiro e durante o curso para teatro percebeu que se encaixava melhor no cinema. “A minha vida começou no teatro e acabou no cinema. Mas, na verdade, você não sai de nenhum. Porque de qualquer maneira você está atuando. Eu escolhi fazer direção, você dirige atores, você atua. Então você nunca sai definitivamente do teatro”. 46
O primeiro filme veio em 1977, um curta metragem intitulado “Asfixia”, produzido em Super 8. Logo depois, Cândido fez um curta em 16 mm sobre os artesãos da cerâmica de São Gonçalo, onde ele viveu uma aventura em uma vila de pescadores de Cuiabá. “Ninguém falava direito comigo. A noite caiu uma tempestade, eu só enrolei o equipamento sensível e o negativo em um plástico e fiquei lá debaixo da lona. Me abrigaram na casa de uma liderança, depois disso, eles se abriram. Eu fiz meu primeiro filme assim. Hoje está inacabado”. Foi um amigo do Rio de Janeiro que dava aulas em uma faculdade carioca que “desviou” uma câmera para que ele pudesse realizar o filme. Cândido relembra que o amigo falou “Toma. Mandei para o conserto, você tem 15 dias para fazer o seu filme”. Ele alugou um gravador, veio para Campo Grande, emprestou uma barraca e foi de ônibus para Cuiabá com o equipamento. “Já tinha juntado latinhas de 100 pés de negativo, você economizava a janta e comprava o filme”. As adversidades fizeram parte de todo o processo de produção do filme. Cândido conta que de bicicleta, pedalava cinco quilômetros para carregar uma bateria. Cinco para ir e cinco para voltar, e depois ficava esperando a bateria carregar, por 15 minutos. O filme de 18 minutos demorou dois anos para ficar pronto. O segundo filme foi um curta sobre a escultora Conceição Ferreira, a Conceição dos Bugres. Gaúcha que veio para Mato Grosso do Sul e tornou as esculturas dos bugrinhos um símbolo do Estado. O curta foi feito em 1979, após o cineasta 47
vencer um concurso da Fundação Nacional de Artes (Funart). O filme foi filmado em 35 mm e tem dez minutos de duração. O filme é um dos únicos registros audiovisuais da artista e necessita de restauração. A matriz em 35 mm está na cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e a cópia em 16 mm foi doada pela Funarte ao Museu da Imagem e do Som (MIS-MS). Com os negativos que sobraram de Conceição dos Bugres, ainda em 1979 foi feito o longa “Silvino Jaques - O Itinerário de um Matador”, que está inacabado até hoje. Depois, Cândido foi chamado para realizar um documentário sobre a Universidade de Mato Grosso do Sul que estava passando de estadual para federal. “Eu contratei o Reynaldo [Paes de Barros] como fotógrafo, ele tinha o equipamento e fizemos o filme. Foi meu segundo filme em 35 mm. Editamos em um mês. A universidade não se interessou em ver essa cópia, o reitor morreu em seguida e esse filme está perdido”. Ao todo, o cineasta conta mais de 15 produções, algumas foram perdidas no tempo outras, não foram lançadas ainda, como a série “Ilustres Desconhecidos” que retrata a vida e obra de artistas plásticos do Estado. 48
Cândido realizou primeiro, o capítulo sobre Isaac de Oliveira, que é um amigo e diz a produção foi uma causalidade que depois virou uma série. A Série tem ainda as artistas plásticas, Patrícia Helney e Rosane Bonamigo, Marco Aurélio Tavares “Lelo” e Beto Lima. “Vendo aquilo [vídeo sobre Isaac de Oliveira] eu falei: Poxa, dá para fazer uma série de artistas plásticos, porque o Humberto Espíndola está me pedindo para fazer o documentário dele, faz 30 anos”. Os filmes feitos por Cândido sobre Conceição dos Bugres e sobre o pintor Beto Lira que produziu telas com uma visão própria sobre temas como flores, gatos e bicicletas. Esses são os únicos registros feitos sobre os dois artistas, já falecidos. Conceição que morreu em 1984 e Beto Lima em 2003. Cândido diz que durante a criação da série segue a personalidade da pessoa para poder criar a narrativa. A ideia de produzir o documentário sobre o artista plástico Beto Lima surgiu na época em que produziu um dos discos do Geraldo Espíndola “A mulher do Geraldo é amiga do Beto Lima e ele estava morrendo. A última cena seria ele pedalando para o céu. Ele chegou de manhã arrumado para gente fazer a cena ele falou que estava passando mal, foi embora e morreu, fiz o fim em animação”. Sobre os temas de suas obras, o diretor diz que sempre busca o cinema autoral. Segundo ele, o cinema de autor, se preocupa com o tema, com a maneira de narrar. Já o cinema comercial, segue exigências do mercado.
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Cândido foi sócio de José Octávio Guizzo e José Souza Leitão na produtora Seriema Filmes e foi de conversas com Guizzo que surgiram os filmes sobre a Conceição dos Bugres e sobre o Sasha Siemel. “O José Octávio Guizzo me falou que queria fazer um filme sobre a Conceição, mas ele tinha um outro conceito do filme. Eu disse um dia para ele, depois de anos que ele só falava que ia fazer: ‘Vou colocar o filme em um projeto se passar eu vou fazer o meu filme, você faz o seu depois’. O Sasha também veio assim, de conversa com o Guizzo. Ele falou no Sasha e eu fui fazer um documentário em uma fazenda que tinha um livro sobre do Sasha, chamado O ‘Tigreiro’. Na filmografia de Cândido também há a ficções. O curta “Vereda Sertaneja” foi feito em 1978. Ele também escreveu o roteiro do longa, “SNI Um interrogatório Final Terrorista Che Guevara Passou Por Aqui”. “O Che que passou mesmo por aqui. Eu ponho o Che Guevara e o presidente Jânio Quadros, que nasceu em Campo Grande e condecorou o Che no Hotel Gaspar. O filme todo passa ali”.
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Entre os planos está a adaptação de quatro contos regionais e duas séries: uma sobre a América Latina, e outra, chamada “Achados e Perdidos na Gaveta do Meu Quarto”, sobre música. Sobre o cinema em Mato Grosso do Sul, Cândido diz hoje está em expansão, mas que há altos e baixos. “Para arrecadar você tem que inscrever na Lei Rouanet ou inscrever nos fundos de investimentos. O duro é que é R$ 200 mil para o cinema e audiovisual no Centro Oeste, Norte e Nordeste. A maneira de conseguir dinheiro é esse, ou emenda parlamentar. É preciso fazer um projeto, mas os nossos artistas brigam por ego.
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Um cinema com a cara da nossa cultura “Fazer filme é ir à luta, não desistir jamais” Miguel Horta
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interesse de Miguel Horta pelo cinema come çou ainda na infância quando freqüentava as sessões do Cine Glória na cidade de Aquidauana, no interior de Mato Grosso do Sul. Aos seis anos seu pai o levou para ver o primeiro filme do qual tem alguma recordação, uma ficção futurista que se passava na lua. Nascido em Campo Grande, filho de um marinheiro que viajou por vários países do mundo, ainda menino, morando no interior, Miguel estudava muito, por exigência de seu pai. Durante as férias de final e inicio de ano, ele tinha aulas para se preparar para o ano letivo seguinte. No colégio de padres em que freqüentava o sistema de educação inspirado nos tradicionais métodos americanos, alguns professores começaram a notar que ele tinha uma facilidade grande para lidar com a arte e viram ali um talento em potencial. Nos capítulos das enciclopédias que via em casa, a parte que falava sobre história da arte e os gênios da pintura lhe chamava atenção. Em casa ele fazia pequenas esculturas, desenhava e fazia réplicas de telas famosas de artistas como Botticelli e Michelangelo para desenvolver suas habilidades. “Desde pequeno eu desenho. Alguns professores da escola notaram que eu era ‘diferente’. Minha integração com o grupo era complicada, meu papo era com os professores. Eu fiquei muito isolado. Meu pai não deixava a gente não se misturar muito”, relembra Aos 16 anos, Miguel começou a frequentar mais sessões de cinema. Entre elas, teve uma primeira experiência com óculos 3D no antigo Cine Gloria. “Tinha uma cena que tinha um morcego que passava e 54
parecia que o animal vinha para você. Já era uma coisa louca, em Aquidauana na década de 1970”
Cine Glória, em Aquidauna
Outro interesse de Miguel que também ajudou a formar sua paixão pelo cinema foi afinidade com o teatro. Em Campo Grande, teve a oportunidade de participar de uma peça teatral da escola Mace, mas ainda no interior já tinha se arriscado a escrever pequenos roteiros. “Fui lá e me deram o pior papel, eu entrava em cena e não falava nada. Era uma frase só, mas mesmo assim eu era rigorosíssimo nos ensaios, eles morriam de rir de mim. Eu ganhei como melhor ator do festival mato-grossense de teatro, com uma frase. Fui elogiado por Plínio Marcos que era do júri. Ele subiu no palco, pediu licença para me elogiar. Era dramático o momento, embora fosse só uma frase. Em seguida, Miguel Horta conheceu algumas pessoas que lhe convidaram para participar de um grupo de teatro. Lá conheceu Luis Bigatão, primo de Lu Bigatão, que lhe chamou para viajar ao Rio de Janeiro. “Fomos para o Rio 55
com uma mochila, um queijo, uma lata de sardinha. A gente conseguiu um documento para poder viajar. Ficamos nos aventurando entre idas e vindas, ora em São Paulo, ora no Rio.” Miguel e Luis preferiram morar em São Paulo por causa do teatro que estava num momento mais forte por lá e pela vontade de conhecer o ator e produtor David Cardoso. “Bem aquela coisa de ‘ele é ator da TV Tupi, faz cinema’. Ficávamos ligando para as revistas. Botei na cabeça que ia trabalhar em televisão”. Na época Miguel ainda esculpia e fez um São Francisco em pedra para vender e ganhar algum dinheiro. Com a escultura em mãos, levou até alguns antiquários, mas nada conseguiu além de possibilidades de deixar a peça em consignação. Foi quando andando pela cidade às 4h, cansado, ele encontrou a pessoa que lhe levaria finalmente para a tão sonhada televisão. Um senhor de terno, passou por ele bêbado e perguntou o que era aquilo. Ele então respondeu que era uma escultura; o homem perguntou onde ele morava e disse que queria encontrá-lo no dia seguinte. Como não tinha muita coisa a perder, Miguel foi até o encontro ainda com o São Francisco em mãos. A escultura não foi comprada, mas ele recebeu uma proposta irrecusável daquele senhor que conhecera na noite anterior. “Ele me perguntou se eu gostaria de trabalhar na televisão. Falou ‘eu sou produtor, meu nome é Jaime Camargo’. Ele adaptou Brida para TV Manchete, escreveu Drácula uma novela para TV Tupi e estava fazendo o primeiro programa da TV brasileira de psicologia. E ele me chamou para ser assistente dele.”
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Ainda em São Paulo, com o dinheiro do trabalho na TV Tupi, Miguel conseguiu comprar sua primeira câmera de cinema, uma Super 8, que filmava em película. Sua primeira inserção no cinema deu-se pela realização de pequenos filmes dos casarões antigos da cidade, intitulado na época de “Adeus São Paulo”. Após a temporada trabalhando na capital paulista, com a falência da TV Tupi, Miguel retornou a Campo Grande e passou a trabalhar na produção de programas de televisão, de peças de teatros, fez comerciais e alguns curtas. “Fiz A Máfia, que é um projeto sobre a ferrovia, produzi a rodoviária como década de 40. Coloquei uns carros antigos, produzi um figurino antigo para as meninas. Edson Audi gostou muito, ele me ajudou na iluminação. Depois fiz um trabalho do Charles Chaplin para finalização de ano da TV Morena. Esse a gente fez em 16 mm, em película”, explica. O movimento do cinema em Campo Grande “estava reduzido à zero”, como relembra Miguel. “Teve Alma do Brasil, na década de 30, Paralelos trágicos na década de 60, coisas pontuais que aconteceram. Mas não tinha muita gente envolvida porque era muito caro fazer cinema em película.” Ele também relembra que na época o filme Comitiva Esperança, com Almir Sater fez muito sucesso. Na época Miguel se aventurava em fazer alguns curtas. “Fiz um sobre o Manoel de Barros, em Super 8, que hoje está no Museu [MIS]. O dia que eu puder vou terminar esse filme”, recorda. Recentemente, Miguel envolveu-se com um grande projeto chamado “Los Niños de la Guerra”, sobre a Guerra do Paraguai a partir da visão de um menino arregimentado 57
para o conflito. O longa remonta o fato histórico por meio de uma ótica humanista, como Miguel define. Desde criança, ele teve contato com a cultura paraguaia, morando em Mato Grosso do Sul. “Eu pesquiso a Guerra do Paraguai há mais de 15 anos. Comecei com projeto de longa-metragem sobre a retomada de Corumbá, o chamado ‘Signo da Pátria’. Esse projeto foi para o Rio de Janeiro. A gente fez contato com várias produtoras. Houve um grande interesse na época. Viram o roteiro e se apaixonaram. Porém, houve uma mudança política na época, uma mudança de governo, que me deixou completamente de mãos atadas”. Para evitar que todo esse material sobre a Guerra do Paraguai ficasse parado, Miguel teve a idéia de produzir “Los Niños de la Guerra”. No longa, realidade e ficção estão misturadas, interligadas na memória de um menino que teria lutado no conflito. A idéia do projeto encantou o ator e produtor David Cardoso que interpreta o General Cerqueira. “O texto do General [Dionísio] Cerqueira, interpretado por David Cardoso, é real, é fala dele, literalmente. Aquilo não é ficção. Ficção é a parte do menino que vai para a guerra no contexto de 1869, quando o Solano Lopez, não tendo mais soldado, começa a enviar crianças para a guerra”, conta. 58
Como Miguel tinha muito material sobre a Guerra do Paraguai, a criação do roteiro do filme foi rápida. “Em seguida, já parti pra luta. Comecei a trabalhar com algumas prefeituras. Na época, o prefeito de Porto Murtinho, era o Abel Proença, que é muito sensível. Ele bateu o olho no roteiro e gostou. O projeto recebeu, através de uma lei municipal, R$ 22 mil. Depois, financiaram mais R$ 30 mil. O filme custou R$ 150 mil aproximadamente”, explica. Grande parte do dinheiro utilizado para a produção do filme saiu do bolso de Miguel e da colaboração de amigos e entusiastas culturais. “David Cardoso não foi apenas um ator, foi um grande aliado. Ele não me cobrou um centavo sequer. Muito pelo contrário, me ajudou a buscar dinheiro, a divulgar o projeto para as pessoas, captar o que pudesse viabilizar o filme”. Miguel chegou a inscrever o projeto no FIC (Fundo de Incentivo Cultural) para conseguir recursos para concluir o filme, mas não conseguiu ser aprovado no processo de seleção. “Ou eu não sei fazer projeto ou o conselho [do FIC] é exigente demais pra mim. Ou o conselho é uma coisa de PHD pra cima ou eu estou num nível muito baixo de estudo latino-americano”. As filmagens do filme, ainda não finalizado por falta de recursos, foram feitas em duas semanas, na cidade de Porto Murtinho e na colônia Camelo Peralta, no Paraguai. “Por incrível que pareça, num projeto de cinema, você trabalha muito e filma pouco. O resto é planejamento e correr atrás das coisas, editar, captar recursos, finalizar mesmo a produção. A filmagem, em si, foi bem rápida”, explica. No enredo, Miguel buscou trabalhar as memórias do 59
personagem, contextualizando o conflito e as batalhas por ele vividas. Fez o que ele chama de “clichê de cinema”. “São memórias de um personagem já velho, que é o general Cerqueira, escrevendo o seu livro em 1910. Ele começa ter lembranças da guerra enquanto escreve suas memórias. Lembra da história de um menino, que ele conheceu na guerra. Aí começa a aparecer a história desse menino, que mora com a avó, que o pai já fora pra guerra. O filme trata da visão desse menino sobre a guerra”, conta. Além do sofrimento das crianças envolvidas na Guerra, Miguel fala também sobre a força das mulheres e do papel decisivo delas durante o conflito e no processo de reconstrução dos países envolvidos. “Tem uma cena de seis mulheres esfaqueando uma vaca magra e doente para poderem tomar o sangue e aliviar a fome, a sede. Ali fica evidente o sofrimento, mas também a força, a vontade de sobreviver”. No longa, Miguel afirma ter trabalhado a guerra de forma humanista e não estabelecendo lados, não dividindo entre o bem e mal, mas sim contando a história de um garoto, que tem sonhos, que tem fantasias, que é vítima de uma propaganda de guerra. “Você se transporta para o Paraguai em 1869, quando Solano Lopez estava arregimentado e pegando as crianças para lutar na guerra. Imagina a ilusão que era implantada na cabeça das pessoas! Havia, inclusive, a lenda de que quem morresse na guerra ressuscitaria em Assunção. Os meninos eram pegos pelo ufanismo. E essa propaganda tem mais força quando há miséria”, conta emocionado. E justamente essa pobreza que Miguel busca trabalhar no filme, retratando a estética latino-americana, de herança guarani. “Não busco maquiar. Não me interessa a estética 60
européia. Quero mostrar que essa estética, a indígena, é muito mais interessante que a estética européia. Para a preparação dos atores, grande parte moradores de Porto Murinho e comunidades próximas, Miguel fez dois meses de oficina. Sessenta garotos participaram, mas o que mais apareceu nas filmagens, o menino Hugo, veio do Paraguai. “Ele é talentosíssimo, interpreta maravilhosamente bem. Eu trabalhei a linguagem naturalista e o tipo físico, os traços deles, era o que eu buscava para atingir meu objetivo, principalmente em relação à estética. Quero que meu cinema tenha a cara do lugar que quero mostrar. Cinema com a cara da nossa região, da nossa cultura”, explica. Atualmente Miguel Horta está trabalhando na produção do filme “O Erro do Acerto”, pensando em novos projetos e parcerias, mas continua buscando incentivo e recursos para concluir e lançar “Los Niños de la Guerra”. “Preciso filmar o trecho final do filme, editá-lo e fazer o lançamento, toda a divulgação. Vai ser um sonho concretizado vê-lo pronto. Ainda não tem data para acontecer. Mas tenho consciência de que fazer filme é isso, é ir à luta. Não desistir jamais”
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Uma paixão construída “Eu fui ao cinema pela primeira vez quando eu tinha 18 anos. A minha paixão nasceu depois e dentro de um caminho que tive que ir construindo”. Marinete Pinheiro
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m 2006, as acadêmicas de jornalismo Marinete Pinheiro e Neide Fisher decidiram escrever um livro como trabalho de conclusão de curso. O tema? O mesmo deste livro – A produção cinematográfica de Mato Grosso do Sul. As então acadêmicas ouviram que a produção cinematográfica era insuficiente para um livro inteiro. Foi o professor Alexandre Maciel, quem sugeriu as salas de cinema, pois haveria mais fontes e seria possível escrever o livro entitulado “Salas de Sonhos – Histórias dos Cinemas de Campo Grande.” , e contou que durante a infância frequentava um cinema em Corumbá. Elas conseguiram encontrar referências bibliográficas que serviram como uma confirmação de que havia uma história para ser contada. Marinete conta que ela e amiga foram batendo em várias portas para encontrar a história dos cinemas de Campo Grande. Ela relembra que um amigo falou do Cine Nova Campo Grande, e ela teve que ir ao bairro procurar onde estava a sala de cinema e encontrar as pessoas que trabalharam lá. O livro foi escrito em 2005, ano em que as duas terminaram a faculdade e publicado em 2008 com apoio da Prefeitura. Em 2009, Marinete escreveu a segunda parte do livro que conta a história das salas de cinema do Estado. “Fui descobrindo as histórias e fazendo um primeiro registro delas, porque antes estavam fragmentada em alguns livros, algumas publicações. Mas as minhas maiores fontes de pesquisa foram as pessoas mesmo”. Nesse tempo, Neide se mudou de Campo Grande e 64
Marinete se tornou diretora de cinema, estudando em uma das mais conceituadas escolas de cinema do mundo. Ela fez a prova para Escola de Cinema de Cuba e foi selecionada para estudar na escola de cinema e que recebe alunos de todo o mundo. De volta este ano, tem planos para realizar filmes por aqui.
“É muito complicado sobreviver de cinema aqui, mas eu decidi que é o que eu quero fazer. Fiquei três anos estudando cinema em Cuba, para voltar e não fazer isso. Para mim foi um desafio, chegar numa escola com pessoas que já estudaram cinema. Eu fui ao cinema pela primeira vez quando eu tinha 18 anos. A minha paixão nasceu depois e dentro de um caminho que tive que ir construindo”. Marinete conta que começou a se interessar pelo tema durante a faculdade, no período em que trabalhou na produtora do vídeo Umas e Outras, do cineasta Cândido Alberto da Fonseca e foi isso que despertou o interesse para contar a história do cinema. Dentro da produtora Marinete produziu o DOC TV, um programa do Governo Federal que realizava um documentário por Estado. 65
“A minha primeira experiência cinematográfica foi trabalhando como produtora do DOC TV. Na própria produtora teve um outro filme que eu também trabalhei na produção. Antes de ir para Cuba eu só tinha trabalhado em pequenas produções e foi um desafio muito grande, porque lá, eu tinha que ser diretora”. Depois que se formou na faculdade tentou entrar no mercado do cinema, mas relata que foi muito difícil. “É muito difícil, porque na verdade o mercado não está para o cinema, o mercado está para a publicidade, e o mercado para publicidade precisa de uma formação em publicidade. A outra coisa é que dentro da faculdade a gente não tinha técnica e o mercado está aberto para quem é mais técnico”. Marinete explica que a filosofia da escola é oportunizar às pessoas que nunca fariam cinema na vida. O que eles chamam , na escola, de mercado periférico. Ela diz que esse mercado não está trabalhando para fazer filmes de grande bilheteria, mas está trabalhando para que o cinema exista em lugares como o interior do Brasil. Segundo ela, em Cuba, os alunos eram questionados sobre o porquê de realizar determinado filme. “Eu fiz um documentário com uma menina que era professora de dança que o material serviu para ela estar hoje no México dando aula. A gente começa a pensar um pouco mais na necessidade dar um retorno para a pessoa do que você está fazendo. Para que o trabalho não seja somente em benefício seu”. Um dos planos de Marinete após a volta para o Estado 66
é a criação de uma cooperativa de cinema em que as pessoas que fazem e gostam de cinema cooperem. Os planos são de que a cooperativa realize duas obras por ano e quem escolherá essas obras são os próprios cooperados. “Eu sou uma sul-mato-grossense realizadora que nunca realizei aqui, até agora, porque acabei de voltar. Existem projetos paralelos que eu pensei enquanto estava em Cuba ainda e um documentário sobre a cantora Delinha”. Sobre os incentivos financeiros, ela afirma que muitas vezes a falta de incentivo é consequência da má qualidade do que se produz aqui. “A produção precisa de um incentivo. É um debate muito intenso que tem que fazer sobre a cultura. Tem gente produzindo, e tem gente produzindo pela paixão que tem pelo cinema. Quando você consegue fazer um filme que você vê que Campo Grande fechou uma rua para fazer uma cena, você começa a mostrar para a cidade que está fazendo cinema e a sociedade consegue ver o cinema e então, você muda a visão do incentivo das políticas públicas para o cinema”. Marinete aposta na qualificação como forma de melhorar e valorizar a produção de cinematográfica no Estado. Além disso, ela ressalta que a cultura precisa ser vista também como um negócio. O caminho é buscar um pouco a forma de qualificar o que as pessoas estão produzindo. “A cultura aqui não é um negócio, e não só Mato Grosso do Sul, é o Brasil em geral. A cultura não vista como uma atividade econômica. O empresário vê números. Falta conhecimento que não é só investimento na realização, mas falta investimento na formação e na busca da cultura como economia”. 67
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Quando as boas idéias aparecem “Não faço audiovisual só por dinheiro, é paixão mesmo, é o ar que respiro, sou artesão, preciso da cumplicidade, do namoro” Edson Audi
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envolvimento de Edson Audi com cinema co meçou ainda na infância quando freqüentava salas de exibição e assistia filmes na televisão. Fascinado com aquela linguagem, pegava caixas de papelão, fabricava câmeras de brinquedo e fingia filmar a família, sem saber onde exatamente buscava estas ideias. Jovem, aos 18 anos, foi à cidade de Manaus buscar sua primeira câmera fotográfica, uma Voigtländer, com uma lente 50mm. Desde então começou a fotografar e nunca mais parou. Em um navio de Manaus a Belém nasceu seu primeiro ensaio; depois já vivendo no Rio de Janeiro, Edson montou um pequeno laboratório onde começou a ampliar suas fotos, colocando-as no papel; trabalho que foi a base para montagem de sua primeira exposição. O que lhe despertava interesse era a possibilidade de controlar todo o processo, desde a ideia até o resultado final. No início, Edson fez alguns documentários praticamente só. Tempos depois estudou em uma escola de cinema em Paris, o Conservatório Livre do Cinema Francês e em seguida começou uma longa temporada trabalhando em emissoras de televisão. O primeiro entre todos os seus trabalhos foi o programa Recado feito em Campo Grande na TV Morena, com apresentação de Marilu Guimarães. Também foi responsável pelo quadro de música intitulado Imaginasom. “Em seguida voltei para Paris e trabalhei na TV francesa, depois fui convidado pelo Jayme Monjardim para vários trabalhos na extinta TV Manchete no Rio, entre um que adorei, o Cinemania”, conta. Foram várias idas e vindas entre Brasil e França até que surgiram as câmeras digitais e a pos70
sibilidade de editar em computadores. “Vivi plenamente esta liberdade desde os primeiros dias e me tornei independente, estava feliz, novamente podia controlar todo o processo”. Atualmente, Edson Audi tem produzido seus próprios documentários, alguns encomendados por produtoras do Brasil e da França, além de programas para TV a Cabo, em especial o Canal Brasil da Globosat. Para ele o fundamental para ser um bom diretor ou produtor de audiovisual é ter boas idéias. “O resto é fácil. Hoje é possível fazer um filme usando um celular e qualquer computador para finalizá-lo”, exemplifica. Sobre as produções de realizadores que vivem em Mato Grosso do Sul, Edson afirma ter tido o prazer de ver belos trabalhos. O maior problema é o da continuidade e a falta de uma cultura audiovisual no sentido pleno da palavra. Em 1995, Edson Audi conciliou sua paixão por Campo Grande e o sonho de realizar um projeto local. Ele e sua equipe de produção colocaram em rede nacional um programa produzido localmente, o Som do Mato. “Fora isto, para sobreviver tive que fazer até filmes publicitários e política, não gostei da experiência e não sou bom nisto, no meu caso não faço audiovisual só por dinheiro, é paixão mesmo, é o ar que respiro, sou artesão, preciso da cumplicidade, do namoro”, enfatiza. Edson conta que também não deixou de aproveitar uma rápida passagem Corumbá para capturar imagens e depoimentos. De acordo com ele, a cidade faz com que ele se identifique culturalmente e na lá foram feitos filmes que ele gosta muito, entre eles “Agripino, Um Guardador de Sonhos” – que fez muito sucesso na Europa -, São João de 71
Corumbá, Siriri e Cururu, entre outros.
Agripino, Um Guardador de Sonhos
“Admiro os realizadores locais, respeito a sua força de vontade, são verdadeiros heróis. De minha parte estou aberto a novas parcerias.” Em sua filmografia, a última produção feita em Mato Grosso do Sul data de 2001, mas a vontade de realizar projetos aqui não falta. Segundo Edson, falta tempo e conhecimento sobre possíveis interlocutores, além do fato de algumas montagens serem complexas e desgastantes. Ele também afirma ter a intenção de dar oficinas, destas que desmistificam a linguagem e a produção. “Destas que dizem, ‘sim é possível, você pode’.” Atualmente, Edson Audi está produzindo, a pedido, um DVD sobre o músico Paulo Simões, envolvendo além das músicas, poesia, conversas e imagens captadas por diferentes pessoas. Mas articular e viabilizar grandes projetos ainda são problemas em Mato Grosso do Sul e em outros estados que estão afastados do eixo Rio-São Paulo. “É como se você não existisse”, afirma. 72
Os cenários e belezas naturais das cidades sul-matogrossenses já despertaram interesse de vários diretores que vieram até aqui utilizar espaços como locações. Mas para Edson, filmar em determinados locais, especificamente documentários, exige um olhar sensível em relação ao contexto inserido neles. “O Pantanal é lindo, mas pode se tornar um desvio do verdadeiro olhar, uma espécie de desfoque, se não for acompanhado da cultura pantaneira, do homem, da dimensão humana, enfim, de conteúdo que justifique a imagem. Não conheço todos os filmes feitos no Pantanal, mas vejo muita beleza e pouco discurso, pouco conteúdo. É muito mais aquela história de ‘Olha, filmei isto aqui porque eu sei que você vai gostar, arrasei’. E ai vem aquela sequencia de por do sol, de pássaros, de onça, etc. Para o turismo deve ser bom. Mas como eu sempre digo o difícil hoje, na minha humilde opinião, são as boas idéias aparecerem, no resto a gente da um jeito.”
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Professor em várias dimensões “Precisamos de investimentos na produção e na formação de pessoas” Helio Godoy
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ascido em São Paulo, o professor Helio Godoy começou cedo, aos 16 anos, a estudar fotogra fia com seu tio que mantinha um estúdio na cidade. Durante sua graduação, cursando Biologia, começou a aprimorar o que havia desenvolvido em estúdio e exercitar ainda mais seu olhar para capturar boas imagens. O primeiro contato de Helio com a produção audiovisual aconteceu alguns anos depois quando passou a trabalhar na TV Cultura, ainda na Capital paulista. Na sequencia decidiu fazer mestrado em cinema na Escola de Comunicação e Artes da USP e deu inicio ao projeto de um documentário sobre a cidade de Cubatão. Durante todo o mestrado, ele tentou realizar o documentário. O trabalho levou tempo, teve inicio em 1991, na época em que Helio já estava em Campo Grande, dando aulas no curso de Biologia. Quando concluiu o mestrado em 1992, mudou de curso e passou a dar aula no curso de Artes Visuais, na época chamado de Educação Artística; mesma época em que estava sendo criado o curso de Jornalismo. “Eu dava aula de fotografia e vídeo nos dois cursos e comecei a desenvolver alguns projetos de documentação fotográfica no campus universitário. Realizei um trabalho de documentação fotográfica da Serra de Piraputanga em 93/ 94. Depois disso comecei a fazer alguns vídeos; na época não era muito fácil conseguir uma boa câmera - e comecei dessa forma, sempre trabalhando com documentários”, conta. Recentemente em 2007, o professor Helio Godoy produziu um filme de ficção longa metragem baseado num argumento do corumbaense Augusto César Proença, chamado “A Poeira”. Essa foi sua única incursão no mundo da ficção. 76
“Eu acho que a realidade é mais interessante que a ficção. Isso não quer dizer que não vou ao cinema ver o Batman [risos]” Como não havia graduação na área de cinema na época, Helio buscou alternativas para aprender. Na década de 90 quando surgiram os softwares que faziam edição não linear, decidiu comprar um computador mais potente que comportasse os programas para fazer montagens. Em São Paulo encontrou um curso de Adobe Premiere; do software do 3D Studio Max de Animação e Modelagem 3D. Aprendeu muito lendo, fazendo experiências e fotografando. Recentemente, em 2003, fez um curso de cinematografia digital na Associação Brasileira de Cinematografia Digital. Para o professor, cada trabalho que aparece é um desafio diferente em que ele tem a oportunidade de aprimorar seu conhecimento, buscando resolver problemas. Atualmente, está envolvido com pesquisas e a produção de filme em 3D, com a estereoscopia, desde 2003. “No ano 2000 prestei concurso em outra faculdade e fui dar aula no curso de Imagem e Som em São Carlos, tive contato com profissionais mais especializados na área de cinema. Dessa experiência surgiu a oportunidade de lidar com filme em 3D. Retornei pra Campo Grande com essa proposta de pesquisar e produzi aqui um documentário sobre o Lago 77
do Amor”, conta. O projeto foi encaminhado para o CNPQ e para o Fundect, agência regional de apoio a pesquisa, para captar recursos que viabilizassem a produção do filme. O dinheiro foi investido na montagem de um laboratório e na construção de acessórios necessários para filmar em 3D. Foram comprados computadores, telas de projeção. A equipe contou com estudantes e parceiros, totalizando cinco pessoas que puderam aprender, ensinar, trocar experiências. Segundo o professor Helio, o processo foi difícil, lento, mas o sucesso do projeto está diretamente ligado ao que ele chama de “aquela insanidade de ser professor”. Aquela vontade de ensinar e aprender, num processo que nunca termina. Após a divulgação dos resultados da pesquisa realizada antes e durante o documentário do Lago do Amor o projeto teve algumas repercussões, principalmente pelo trabalho de pesquisa na área. O professor Helio Godoy engatou uma série de palestras desde o final do filme em diversos locais: na Associação Brasileira de Cinematografia, na Cinemateca Brasileira, em congressos e cursos em outras cidades. No Festival de Cinema do Rio – um dos principais do país - a exibição de um trecho do documentário foi o primeiro filme projetado em 3D filmado no Brasil. No retorno de lá, participou do Festival Brasileiro de Publicidade, divulgando a pesquisa e falando sobre a tecnologia que envolve a produção de um filme em 3D. Um tempo depois parou de fazer a divulgação no Bra78
sil e passou a divulgar no exterior, por meio de um contato com a Escola de Design na Alemanha. Lá o professor Ludgard Franz, entusiasta do 3D, montou um laboratório para viabilizar produções do tipo, e convidou o professor Helio Godoy para exibir o documentário sobre o Lago do Amor. A primeira vez que o filme foi projetado inteiro foi numa sala de cinema na Alemanha. “Aqui no Brasil ninguém se interessou muito. Depois o professor veio para cá e apresentou uma palestra no Festival de Arte e Tecnologia. Fomos ao Pantanal e decidimos fazer um filme em 3D sobre ao Geopark (Bodoquena-Pantanal). Esse filme está em fase de produção, estamos buscando apoio”. Segundo o professor Helio Godoy, a principal repercussão que o documentário gerou foi essa, um novo projeto, tentando ser viabilizado. “No Brasil o 3D está muito devagar, não temos ninguém investindo consideravelmente. Temos mais interesse fora do país. As coisas parecem fluir melhor fora do Brasil.” Sobre as produções em Mato Grosso do Sul, ele avalia que aqui sofremos as mesmas dificuldades enfrentadas em outros locais do país, principalmente porque fazer cinema ainda é muito caro; demanda trabalho em equipe, recursos para comprar equipamentos que muitas vezes custam caro. A tecnologia é uma aliada no processo e têm facilitado muito, viabilizando produções que antes não eram nem imaginadas. Mas como ela está sempre mudando, câmeras e acessórios acabam se tornando obsoletos muito rapidamente e manter-se atualizado custa muito dinheiro. Fora o fato de que para filmar, fazer um documentário, você precisa se deslocar, gastar com alimentação, hospedagem e considerar possíveis imprevistos. 79
No Brasil uma das alternativas para conseguir o financiamento de uma produção cinematográfica é entrar no sistema que sobrevive na base do incentivo fiscal. Funciona da seguinte forma: os patrocinadores dão dinheiro para viabilizar os projetos e esse valor posteriormente é abatido do imposto de renda que eles devem ao Brasil. A outra forma é conseguir dinheiro público que as Secretarias e Fundações de Cultura e o Ministério da Cultura ofertam pelos editais. O problema é que a demanda é sempre muito maior do que a oferta de recurso. “Você tem um monte de projetos sendo inscritos e apresentados e só meia dúzia é aprovada” Do atual governo do Estado pra cá, houve a criação de um sistema de edital, de financiamento de produção audiovisual e isso é uma novidade aqui, porque há muito tempo isso já ocorre em São Paulo, desde 1946. Sempre a demanda por recurso será maior que a oferta e o problema está relacionado à ausência de um mercado de audiovisual efetivo no Brasil. “Mesmo que exista a lei de incentivo a cultura, esse dinheiro dado a rigor pertence ao governo, porque é devido pela empresa a ele, então sempre é dinheiro do Estado que está sendo usado para fazer o filme. Falta um mercado pujante que gere lucro, que tenha condições de reinvestir. Essas leis foram criadas para incentivar essa cultura do patrocínio, do cara que quer investir em cinema, mas até hoje elas funcionam porque permitem esse abatimento do imposto. E tem muita empresa que sobrevive fazendo filme desse jeito”, afirma o professor.
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Uma possível mudança de perspectiva nesse mercado talvez esteja amparada na lei de produção de incentivo audiovisual, que obriga os canais de televisão paga a transmitirem programas de produtores independentes brasileiros (aqueles que não têm vínculo com uma emissora de televisão). A realidade das produções regionais pode melhorar porque isso necessariamente implica em investimento. É difícil que se consiga produzir uma quantidade tão grande de material para suprir a demanda apenas no eixo Rio-São Paulo e nas maiores capitais. Os estados que estão menos evidentes nesse mercado audiovisual assumiriam então um papel importante. Mato Grosso do Sul - além de ter muitas pessoas interessadas em produzir, com novas idéias, oferecendo novas possibilidades, conta com dois pontos fortíssimos: a riqueza cultural de seu povo (que advém de mistura de vários povos) e seus cenários naturais. “Nossa potencialidade está nos cenários naturais, o que temos que fazer é articular e viabilizar as produções que querem acontecer aqui. O ponto forte é o que temos para ser mostrado e o ponto fraco é a forma como isso vem sendo feito. Para resolver isso precisamos de investimentos na produção e na formação de pessoas.” Atualmente, Mato Grosso do Sul não conta com um curso de cinema ou especializações na área. Há quase 26 anos trabalhando na UFMS, o professor Helio não acredita que tão cedo existirá uma graduação do gênero, mas não por falta de interesse de alunos ou de mestres. Dentro do curso de Artes Visuais existem algumas disciplinas voltadas para o vídeo, mas com uma abordagem direcionada a produção artística ou do chamado vídeo-arte – 81
categoria que tem estado em alta em Festivais e Editais que contemplam a área de cinema. Uma das respostas para a falta de oferta do curso é o problema da colocação profissional desse aluno em um mercado que não é muito organizado. Segundo o professor, a área do cinema cultural em Campo Grande é muito afastada da atividade real de produção audiovisual. “Poucas produtoras decidem fazer algo cultural e ir atrás de recurso para o projeto. Os que fazem isso são pessoas mais à parte da estrutura comercial; as produtoras daqui têm conta com o governo, recebem dinheiro por publicidade, ganham com as eleições e vão tocando a vida desse jeito. Poucas ou quase nenhuma se enveredam pra um trabalho de desenvolvimento de projetos de documentário ou ficção, embora existam mecanismos que poderiam viabilizar a captação de recursos pra isso. Mas existe essa separação”, explica. Para exemplificar a situação ele cita um caso aplicado ao eixo Rio-São Paulo. Uma grande produtora como a O2, que tem como um dos sócios o cineasta e diretor Fernando Meirelles, tem projetos culturais e também aqueles que atendem a demanda da área de publicidade. Eles conseguem lidar com essas duas categorias de produção: uma é a prestação de serviço e a outra é a execução de projetos próprios. Aqui em Mato Grosso do Sul fica tudo separado, quem faz projetos próprios não é o pessoal que lida com a parte comercial. E vice-versa. Isso não é bom porque, na verdade, a infra-estrutura tecnológica para a produção de cinema em Campo Grande está nessas produtoras que desenvolvem atividade comercial. Falta um pouco de abertura dos dois lados para entender que é uma coisa só e vale a pena investir nessa 82
articulação. Outro ponto que poderia incentivar o cinema local seria a criação de um sistema que tornasse viável o trabalho de cineastas aqui em Mato Grosso do Sul. Atualmente algumas pessoas têm trabalhado na constituição de uma film comission, que consiste em uma estrutura governamental ou privada que dá conta de atender as demandas de filmagem em determinado local, além de fazer publicidade fora do estado e fora do país para atender o interesse de produtoras para usar as cidades como cenário pra fazer os filmes. A film comission seria uma rede de informações das mais gerais às mais específicas sobre mão de obra, equipamentos, prestadores de serviço, e todos os tipos de dados necessários para organizar a produção de um filme. Exemplo: um cineasta quer filmar em Corumbá. Seria possível por meio desse “cadastro” descobrir quem é o eletricista que atenderia essa produção na cidade, como pedir uma autorização para a concessionária de energia, quantos figurantes estão disponíveis por lá, se existem maquiadores, figurinistas, atores. Reuniria também um banco de dados com fazendas com atrativos paisagísticos, locações especiais, etc. Para construir a film comission é necessário primeiramente ter gente interessada e, em segundo, um plano de ações conjuntas entre produtores e entusiastas do setor cultural em Mato Grosso do Sul.ei nvestimentos.
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Sob o Signo da Paixão “Trabalhar pela Cultura e fazer cinema em Mato Grosso do Sul é viver sob o signo da paixão. Só quem é apaixonado se dispõe a travar essa luta” Idara Duncan
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dealizadora do Museu da Imagem e do Som em Campo Grande, a professora Idara Negreiros Duncan Rodrigues é uma cinéfila, escritora e entusiasta cultural que dedicou anos de sua vida ao fomento das artes desenvolvidas em Mato Grosso do Sul. Carioca da gema, ela nasceu em 1940 no período em que a Cidade Maravilhosa vivia um dos momentos mais importantes da cultura brasileira: o nascimento da Bossa Nova. Os primeiros passos que direcionaram Idara a paixão pelo mundo artístico foram dados no Rio de Janeiro aos 12 anos de idade, quando colocava sapatos de salto alto para entrar em salas de projeção que exibiam filmes do neo-realismo Italiano e francês. “Mesmo com pouca idade, eu era apaixonada por cinema. Mas imagine uma menina de 12 anos naquela época querendo ver filme estrangeiro? Eu chamava algum colega com mais idade, aparência de mais velho, colocava um salto e ensaiava muito em casa antes de ir para parecer adulta. Mas assistia todos os filmes! Não perdia um”, relembra. Apesar dessa afeição especial pelo cinema, ainda no início da adolescência, Idara não deixou de conhecer, estudar e apreciar outras expressões artísticas. Isso se deu em grande parte pela efervescência cultural do ambiente em que vivia. O famoso bairro carioca de Ipanema foi o cenário perfeito para que ela se aproximasse mais do que viria a ser a razão de seu trabalho futuramente: a cultura em todas as suas faces. “Eu era colega de Nara Leão, Nana Caymmi, Teresinha Rúbia [filha da vedete Mara Rúbia] e da Renata Gnatalli [filha do Maestro Radamés Gnatalli]. Quando saíamos da aula a caminho de casa, de um lado da rua tínhamos a Petite Galerie 86
com grandes artistas reunidos, obras de Candido Portinari, Di Cavalcanti, Volpi. Não resistíamos, parávamos pra entrar e perdíamos a hora de retornar pra escola. Ficávamos ali observando, ouvindo histórias. E do outro lado da praça tinha o teatro Jangadeiros, que era um teatro experimental onde grandes diretores de teatro se reuniam para montar peças. Era um teatro de arte. Uma vez também tocamos piano no programa do Cezar Alencar, na Rádio Nacional. Não sei dizer qual área é mais forte na minha vida, porque a cultura pra mim sempre foi uma coisa só, é uma só paixão”, explica. Aos 20 anos, Idara trocou o fervor de Ipanema pela vida pacata no então estado de Mato Grosso. Após cinco anos de casada, em 1961, o marido dela que era militar, foi transferido de cidade. Moraram por dois anos em Terenos, em uma fazenda com estantes lotadas de livros; como havia interrompido os estudos, Idara lia o tempo todo, até livros dos quais não gostava muito. Depois de dez anos morando em Campo Grande, mudaram-se para Três Lagoas, onde ela teve a oportunidade de fazer uma faculdade. Como em Três Lagoas a universidade oferecia poucos cursos, optou por estudar Letras. A graduação iniciada em 1972 foi concluída quando Idara retornou a Campo Grande - onde teve a oportunidade de ter aulas com a professora Maria da Gloria Sá Rosa, com quem viria a trabalhar mais tarde. Após o término do curso, Idara logo começou a dar aulas no colégio Joaquim Murtinho e não parou mais, até a chegada de sua aposentadoria. Autora de livros que abordam temas gerais e específicos sobre a cultura de Mato Grosso do Sul, Idara começou cedo a escrever seus primeiros textos nos informativos internos da escola. O conhecimento e a vivência que adquiria por 87
meio dos ambientes que frequentava (teatros, salas de exibição, grupos de leitura, centros culturais e galerias) lhe davam suporte e embasamento para escrever. Ainda que na época a censura fosse algo iminente em todos os lugares. “A censura atrapalhou muito as atividades artísticas no Brasil, mas em especial atrasou o desenvolvimento da área cinematográfica”, conta. No livro “Memória da Arte em MS, historias de vida” (1992) que ela organizou em parceria com a professora Maria da Gloria Sá Rosa e Maria Adélia Menegazzo, está a pesquisa que aborda o tema e seus desdobramentos; como se deu o inicio das atividades cinematográficas, como se desenvolveram e quais as conseqüências e elementos envolvidos nesse processo. Grande parte da formação cultural e do senso crítico de Idara foram influenciados pela figura da professora Maria da Glória Sá Rosa. Em 1979, quando o Estado de Mato Grosso foi dividido, já graduada, ela foi convidada pela exprofessora e diretora executiva da primeira Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, Glorinha, a trabalhar no setor que havia sido recém-criado. Na época, a primeira equipe da FCMS era formada por Américo Calheiros, Lenilde Ramos, Neusa Arashiro, Albana Nogueira, entre outros nomes. Seu envolvimento com a cultura sul-mato-grossense, mais especificamente com setores como a Fundação, estava apenas começando. Em 1985, Idara ficou a frente da Fundação de Cultura, substituindo outro grande nome e amigo de longa data: José Octávio Guizzo. Mas a principal contribuição de Idara para o setor cultural de Mato Grosso do Sul deu-se na trajetória que condu88
ziu até a criação do Museu da Imagem e do Som. Através da Lei nº 1793, de dezembro de 1997. O espaço foi inaugurado por ela em 28 de dezembro do ano seguinte, e aberto a visitação do público logo em seguida, em janeiro. Como no inicio a estrutura física do local não era a mais adequada para armazenar filmes e imagens, muitos materiais sensíveis foram perdidos. Com o tempo, o MIS foi recebendo doações de produtores, fotógrafos e realizadores. Para Idara a concepção do Museu foi um sonho que se tornou realidade e uma vitória para ela enquanto profissional. “A vitória veio no final da minha gestão como secretária de Cultura de Mato Grosso do Sul. Fizemos a cerimônia na época de festas de final de ano. Ainda guardo com carinho as fotos e o discurso que li naquele dia. Foi realmente um momento muito emocionante, uma vitória para mim, para os que acreditaram no projeto e para a cultura do estado”. Em janeiro de 2001, o Museu da Imagem e do Som foi transferido para um prédio na Avenida Afonso Pena e passou por um período de reestruturação que durou cinco meses. Em maio do mesmo ano, no dia 18, quando se comemora o Dia Internacional do Museu, o MIS foi reinaugurado. Além da possibilidade de ter uma sala de exibição própria, o Cinemis, o museu ampliou seu acervo devido a transferência de fotos e negativos da Coordenadoria Geral de Governo (Cogecom), totalizando 50 mil peças. Também recebeu na época uma coleção de fotos da atriz campo-grandense Glauce Rocha, entre outros arquivos de pessoas que colaboraram para a formação da identidade cultural de Mato Grosso do Sul. Entre as peças mais raras do Museu está uma cópia do filme “Alma do Brasil” (1932), dirigido por Alexandre Wulfes e Líbero Luxardo, que narra o episodio da Retirada da Lagu89
na. A importância está no fato de que este foi o primeiro longa metragem brasileiro inteiramente sincronizado, com partes faladas e cantadas que remontam um fato histórico. Anos mais tarde, em 2008, o MIS foi transferido para o Memorial da Cidadania e da Cultura Popular Apolônio de Carvalho, na Avenida Fernando Correa da Costa. Atualmente está sob a coordenação de Rodolfo Nonose Ikeda. Hoje Idara acredita que falta uma valorização e um reconhecimento maior da importância do museu, mas que talvez seja um problema ainda em nível nacional. Apesar de serem centros difusores de conhecimentos relevantes sobre os mais variados temas, os museus são desconhecidos por uma grande parcela da população, que também em sua maioria lê pouco e raramente freqüenta salas de cinema. Normalmente a palavra “museu” é logo associada a coleções de objetos antigos, mas a função desses centros vai além de simplesmente expor itens que despertem a curiosidade do público. As exposições de bens culturais realizadas pelos museus são resultado de estudos interdisciplinares realizados por historiadores, antropólogos, arqueólogos, museólogos e arteeducadores, que constroem um discurso a partir dos objetos e imagens expostas. A leitura e entendimento pleno destes discursos é sempre uma interação entre as informações disponíveis e toda a bagagem cultural de cada visitante. A criação de museus expressa o interesse de uma sociedade em criar ambientes onde permaneçam registrados aspectos relativos à sua cultura, identidade e memória, proporcionando uma sensação de pertencimento. A não preservação do passado é uma omissão por parte da sociedade e prin90
cipalmente por órgãos públicos aos quais cabe a missão de trabalhar por essa árdua tarefa. Em seu Esboço Histórico sobre o Cinema em Mato Grosso do Sul, José Octávio Guizzo, advogado e pesquisador, publicou em 1974: “As gerações futuras não perdoarão essa grave omissão e nem concederão a atenuante da imprevidência aqueles que encarregados da construção do nosso futuro não foram dignos da preservação de um passado grandioso e do qual muito nos orgulhamos.”
José Octávio Guizzo Em 20 de novembro de 1989, o advogado, produtor cultural, escritor, poeta e pesquisador José Octávio Guizzo falava sobre a trajetória da atriz Glauce Rocha, no Auditório do Centro de Ciências Humanas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. A intenção dele era lançar a biografia ampla da campo grandense, que marcou as telas e palcos nacionais nas décadas de 50 e 60 – que morreu em 1971, aos 41 anos. Para isso, buscou farta documentação sobre a atriz durante 16 anos, não medindo esforços em entrevistas e materiais que pudessem reconstituir os pontos principais de sua vida e carreira. Guizzo explanava para público atento durante a Semana de Letras, que sediava a palestra. No instante em que relatou como foi a morte da atriz, começou a passar mal. Tentou sair do auditório, mas um enfarto fulminante tiroulhe a vida instantes depois. Com isso, a cultura sulmatogrossense perdeu um de seus mais ativos defensores. A professora Idara que estava presente na ocasião relembra com pesar a morte do companheiro de lutas e amigo.
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“Sempre me emociona demais relembrar aquela data. Ele [José Octávio Guizzo] fez a palestra na UFMS, estávamos eu e Glorinha assistindo. Era um dia muito quente, ele foi fazer a palestra e no final abriu para perguntas da platéia. Mas ele disse ‘muito rápido porque estou sentindo uma dor no braço, não estou muito bem’, e ninguém achou que fosse nada grave. Mas quem queria parar de fazer pergunta? Estava todo mundo encantado”, recorda emocionada. Idara conta que ele respondeu cerca de três perguntas quando decidiu sair dizendo que voltaria outro dia para atender todas as dúvidas dos estudantes. Isso depois de ter falado por 1h30, extremamente emocionado, falando do que era a paixão da vida dele, o cinema. “Aí ele levantou e saiu acompanhado por um professor, quando ele subiu as escadas, caiu e não levantou mais. Ele morreu ali, nas escadas. Muito novo. Era acima de tudo, um grande amigo”, relembra Idara.Quando assumiu a Fundação de Cultura, em 85, ela deu prosseguimento a muitos trabalhos que Guizzo tinha iniciado, entre eles a criação da TV Educativa, o Trem da Cultura e o Tombamento do Casario do Porto. “Ele era mais que um entusiasta cultural, era um apaixonado por cinema, viajava por conta dele, vivia para pesquisar e manter viva nossa memória”, conta. Nascido em Campo Grande, Guizzo desde cedo 92
freqüentava as matinês do Cine Alhambra e começava ali sua paixão pelo cinema. Ponto de encontros daquela que viria a se tornar uma das maiores cidades do oeste brasileiro, o Alhambra foi o principal cinema de Campo Grande por décadas. Projetado pelo arquiteto alemão Frederico Urlass e edificado pelo construtor Thomé & Irmãos, o empreendimento do comerciante Karim Bacha, de 1936, foi grandioso em sua época até se comparado às salas de exibição das principais cidades brasileiros. Tinha 1.700 lugares, sendo 1.100 no térreo e 600 no balcão, com 28 camarotes e aparelho de projeção da Western Eletric sonorizado importado e sistema de iluminação da GE. Local de festas, palestras, reuniões, formaturas e outros eventos, seu estilo Art Déco era típico da arquitetura da década de 1930 no país. Foi demolido no fim dos 80 para dar lugar a um hotel quatro estrelas até hoje não concluído à Avenida Afonso Pena, entre a Avenida Calógeras e a Rua 14 de Julho, no centro da cidade.
Cine Alhambra, na avenida Afonso Pena.
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Além de sua grande paixão pelo cinema, José Octávio Guizzo tinha também grande afinidade com a música. Na adolescência, chegou a apresentar programa de rádio divulgando grandes nomes do jazz. Em seguida prestou serviço militar obrigatório e cursou Direito em Curitiba - PR, onde teve oportunidade de conviver pessoas e ter contato direto com efervescência cultural que vivia a cidade.
Livro de José Octávio Guizzo sobre o filme “Alma do Brasil”
De volta a Campo Grande, começou a atuar na área jurídica, mas a cultura sempre foi o que mais lhe despertou interesse. Autor de canções, foi vencedor de festival musical realizado em 1967 no Clube Surian, organizado pela professora Maria da Glória Sá Rosa. A música “Mané Bento – vaqueiro do Pantanal” trazia uma visão humanista do pantaneiro. Nos anos 80, lançou o livro “A moderna música urbana de Mato Grosso do Sul”, que falava sobre a vida e obra musical de artistas como Geraldo Roca, Geraldo 94
Espíndola, Paulo Gê, entre outros, apresentando a produção regional como um movimento parecido com a bossa nova ou, mais recentemente, o mangue beat. O filme sobre Glauce Rocha chegou a ter seu roteiro escrito, porém o projeto nunca foi levado adiante. Seu trabalho na área de políticas públicas para a cultura refletiu em muito do que o Estado tem atualmente funcionando no setor. A Fundação de Cultura Municipal, Estadual, o Museu da Imagem e do Som, tiveram em José Octávio Guizzo uma fonte de inspiração por seu trabalho árduo e sua postura incansável diante da luta que é atuar na defesa e fomento da cultura de Mato Grosso do Sul.
MIS e Memória Estima-se que atualmente o acervo do Museu da Imagem e do Som em Campo Grande reúna mais de 8.000 mil itens entre fotografias, filmes, vídeos, cartazes, discos de vinil, objetos e registros sonoros. No último ano, a coordenação do MIS tem contemplado processos e meios híbridos, ao invés de produzir unicamente eventos a partir de suportes convencionais (fotografia, cinema, vídeo), com o objetivo de integrar as expressões artísticas por afinidades ou contrastes poéticos, encontrando lógicas internas que possam costurálas com outras sutilezas de leitura. A importância de desenvolver estudos e pesquisas sobre as produções cinematográficas de Mato Grosso do Sul dá se a partir do fato de que apenas por meio delas a memória da cultura local ficará preservada. “A nível regional, por sua vez, o filme é apenas um dos
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bens móveis do imenso patrimônio cultural que herdamos, e, que aí está a exigir de nós uma ação de salvaguarda imediata, se não quisermos ser, num futuro bem próximo, um povo despersonalizado e um Estado sem caráter. GOMES, Paulo Emílio Salles. Prefácio. In: GUIZZO, José Octávio. Alma do Brasil. Campo Grande, MS, 1984. p.7 Com o passar do tempo, as histórias e fatos relevantes vão se perdendo em arquivos mortos e na memória de pessoas que participaram desse processo. Os pesquisadores são agentes diretos no resgate e na promoção da identidade cultural do estado.
Quatro salas de cinema estão representadas no painel doMIS
“Se a bibliografia do cinema sul-mato-grossense articula os seus primeiros passos, o seu quadro de pesquisadores ainda é reduzidíssimo. Urge ampará-lo para que possamos promover uma vasta campanha de pesquisa em favor de nosso acervo de filmes. Em suma, entendemos que o resgate e a 96
preservação de nossa memória visual é um imperativo de agora “(p.8) Programas como Amplificadores de Cultura, Cultura em Situação, Cinema no Museu e Exposições Temporárias promoveram, por meio de estratégias educativas, o acesso aos bens culturais que formam a identidade sócio-histórica de Mato Grosso do Sul. Além disso, desde a sua criação, o MIS tem desenvolvido ações museológicas no sentido de contribuir com a formação e a difusão de conhecimento no Estado, oferecendo à comunidade uma programação diversificada que compreende palestras, oficinas, cursos, seminários, mostras de cinema e exposições. Na época em que José Octávio Guizzo e a professora Idara Duncan empenhavam-se em suas pesquisas e trabalhos na área cultural, no entanto, não havia um acervo organizado propriamente, como existe em alguns museus, bibliotecas e arquivos municipais atualmente em Campo Grande. Os registros em sua maioria estavam perdidos em caixas, gavetas, nas casas de pessoas envolvidas com as grandes produções culturais, cinematográficas ou não, feitas em Mato Grosso do Sul. Partes importantes possivelmente ainda estejam perdidas. Algumas talvez nunca venham a ser resgatadas. O que não é notado ou evidenciado muitas vezes é que com essas pequenas perdas, perde-se também a memória cultural de nosso povo, como Guizzo citou em seu Esboço Histórico do Cinema em Mato Grosso, há 45 anos. “(...) Na estafante pesquisa que realizamos, todo o material encontrado localizava-se nas mãos de particulares. Nada, absolutamente nada, foi encontrado em bibliotecas 97
públicas ou em quaisquer órgãos públicos, que pudessem auxiliar na confecção desse esboço histórico, o que evidencia o descaso e a incúria daqueles que deveriam ser os primeiros à preservar nosso patrimônio cultural (...). As gerações futuras não perdoarão essa grave omissão e nem concederão a atenuante da imprevidência aqueles que encarregados da construção do nosso futuro não foram dignos da preservação de um passado orgulhoso e do qual muito nos orgulhamos.” (1967, p.1) A professora Idara Duncan foi a responsável por escrever o capítulo sobre cinema no livro Memória das Artes em MS e seu trabalho foi muito influenciado pelo discurso e pelas idéias de Guizzo. Segundo ela, mais que um pesquisador, José Octávio era em primeiro lugar um apaixonado por cinema que vivia em função dele. Em seu livro, a professora destaca que Mato Grosso do Sul até hoje não conta com uma escola de cinema, nem com os chamados “ciclos cinematográficos” que ocorreram mais intensamente em outros estados brasileiros, especificamente no eixo Rio-São Paulo. “Nosso cinema sempre foi feito de forma espontânea, marginal, solitária, sem qualquer tipo de mecenato. A centralização da indústria cultural, nas grandes capitais, dificultou a produção local, que além de não possuir infraestrutura, dificilmente consegue sensibilizar empresários e instituições culturais na obtenção de recursos”, explica Idara. Mas em um contexto ampliado, o cinema sulmato-grossense sofre as mesmas dificuldades do cinema de outros estados em situações semelhantes: falta de recursos técnicos, carência de incentivos financeiros, falta de sensibilidade por parte dos governantes para entender que a cultura 98
é a identidade primeira de um povo. Por isso grande parte da população ainda tenha a dúvida se realmente existe alguém fazendo cinema ou tentando fazer cinema aqui. Falta visibilidade, falta divulgação, falta pesquisa na área. Só não falta vontade de produzir. “O que é interessante no cenário do nosso cinema atual é que temos novos rostos, como Essi Rafael, como os antigos que voltaram, citando como exemplo o Reinaldo Paes de Barros, o Cândido. No meio deles ainda temos vários nomes, Miguel Horta, David Cardoso. Quem faz cinema aqui é herói. Sabe que está fazendo um trabalho que não necessariamente vai lhe dar dinheiro, vai lhe consumir tempo, muitas vezes tendo que deixar de lado a família. Só a paixão explica isso. Os cineastas daqui vivem sob o signo da paixão”, completa Idara Duncan.
O Discurso Na inauguração do Museu da Imagem e do Som, em Campo Grande, no dia 29 de dezembro de 1998, a professora Idara Duncan, então Secretária de Estado de Cultura e Esportes, discursou para a platéia que ali presenciava aquele momento tão significativo para ela e para a preservação da cultura de Mato Grosso do Sul. Em seus arquivos ela encontrou a versão original do texto que escreveu e leu naquela data: “Inauguração do Museu da Imagem e do Som Palácio Popular da Cultura – 29/12/98 O resgate das manifestações culturais fortalece a identidade e constitui-se em grande referencial histórico para 99
a pesquisa e o registro de nossas tradições, perpetuando-se para as gerações futuras. Ao entrarmos no novo milênio, a história acelera-se com a queda dos muros que marcaram fronteiras político-ideológicas. Mais do que nunca, os países precisam de uma política cultural que garanta sua permanência, e para tanto é fundamental a conservação, a integridade de seu acervo patrimonial. Os museus da atualidade afastam-se da antiga concepção de Templo das Musas e passam a ser os maiores monumentos a cultura e grande veículo de marketing. A função museológica é fundamentalmente um processo de comunicação, o que significa que os museus não são apenas fontes de informação, mas principalmente instrumentos de educação que estabelecem a interação entre a comunidade com o processo e os produtos culturais, tornando-se importante instrumento para o desenvolvimento harmonioso dos povos. O Museu da Imagem e do Som de Mato Grosso do Sul, o nosso MIS, vem atender à reivindicação da população, através do Conselho Estadual de Cultura. Deverá constituirse em verdadeiro centro de intercâmbio e informação com outras entidades congêneres, permitindo ao Estado a sua integração às mais avançadas técnicas e produções artísticas modernas. O Museu que ora inauguramos no Palácio Popular da Cultura ficará vinculado a Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul. Sua implantação está sendo possível graças a convênio assinado entre o Ministério da Cultura e a Secretaria de Estado de Cultura e Esportes, que destinou recursos na ordem de R$ 230.000,00, sendo 20% 100
contrapartida do estado e ao empenho das equipes de trabalho da Secretaria e Fundação de Cultura de MS. Temos a certeza de que a próxima gestão da cultura do Estado está sensibilizada a dar prosseguimento ao processo de implantação do MIS, que chega para ficar. Para Aluízio Magalhãoes, a sociedade é a melhor guardiã de seu patrimônio, basta conscientizá-la. O Museu é de vocês! Idara Negreiros Duncan Rodrigues “Secretária de Estado de Cultura e Esportes – MS”
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Glorinha, campograndense de coração “E se estamos cada vez mais próximos de encontrar nossa identidade cultural, muito disso devemos a pessoas como ela, que se e nvolveram e não fugiram à luta” Idara Duncan, sobre a professora Maria da Glória Sá Rosa
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earense de Mombaça, Maria da Glória Sá Rosa – a professora Glorinha – nasceu no dia 4 de novembro de 1927, mas é campo-grandense de coração. Filha de Tertuliano Vieira e Sá e de Cleonice Chaves e Sá, Glorinha, como é conhecida por aqui, chegou ao então estado de Mato Grosso no ano de 1939. Graduada em Línguas Neo-Latinas na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, participou em 1961 da fundação e instalação dos primeiros cursos superiores de Campo Grande, na Faculdade Dom Aquino de Filosofia, Ciências e Letras (FUCMT) – que posteriormente se tornaria a Universidade Católica Dom Bosco, onde lecionou durante 17 anos. Ali criou o Teatro Universitário Campo-grandense (TUC), a revista Estudos Universitários e o Cineclube de Campo Grande. Foi coordenadora do Curso de Letras onde teve a oportunidade de promover vários cursos e semanas literárias, sempre incentivando seus alunos a se interessarem pela cultura em todas as suas formas. “A professora Maria da Glória Sá Rosa sempre valorizou muito a cultura e os alunos dela não ficavam imunes, quase todos se envolviam com as artes e comigo não foi diferente”, conta a professora e escritora Idara Duncan, ex aluna de Glorinha. “E se estamos cada vez mais próximos de encontrar nossa identidade cultural, muito disso devemos a pessoas como ela, que se envolveram e não fugiram à luta”, completa. Em Campo Grande, Maria da Gloria foi responsável pela organização de festivais de música e de teatro, que revelaram vários artistas regionais para o Brasil. Também produ104
ziu o programa Intercomunicação na TV Morena e Mensagem ao Mundo Feminino na Rádio Educação Rural. Em 1967, começou a trabalhar na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, onde chefiou alguns de seus departamentos e organizações culturais. Ali promoveu exposições de artes plásticas, ciclos de conferências e o Projeto Prata da Casa, além de ter sido responsável pela edição do disco e do vídeo do mesmo nome. No Centro de Estudos Humanos e Sociais da UFMS lecionou Literaturas de Língua Portuguesa, Língua e Literatura Espanhola, História da Arte e Didática, Foi Presidente da Fundação de Cultura do Estado, Secretária de Estado Adjunta da Cultura e Presidente do Conselho Estadual de Cultura onde atuou durante 20 anos. Atualmente Glorinha é professora aposentada da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, além de membro da Academia Sul-matogrossense de Letras e da Associação Brasileira de Críticos de Arte e fundadora da Aliança Francesa de Campo Grande, (da qual é Presidente) e do Cineclube de Campo Grande. Entre suas obras publicadas estão: “Cultura Literatura e Língua Nacional” (1976) em parceria com Albana Xavier Nogueira, “Memória da Cultura e da Educação em Mato Grosso do Sul” (1990), “Memória da Arte em Mato Grosso do Sul” (1993) em parceria com Idara Duncan e Maria Adélia Menegazzo, “Deus Quer”, “O Homem Sonha, a Cidade Nasce” (1999) “Crônicas de Fim de século” (2001), “Contos de Hoje” e “Sempre-Tecendo Palavras” (2002). É autora dos capítulos sobre Música e Teatro no livro Campo Grande Cem Anos de Construção (1999), de textos sobre Literatura Música e Teatro no livro Cultura e Arte em 105
Mato Grosso do Sul (2006) além de centenas de artigos sobre personalidades, arte e cultura em jornais e revistas locais e nacionais. Fez várias conferências sobre Educação e Cultura em todo o Estado, prefácios e apresentação de catálogos de arte. Escreveu e publicou em 16/12/2006 a obra Artes Plásticas em Mato Grosso do Sul, (em parceria com Idara Duncan e Yara Penteado). Em 2009 publicou A Música em Mato Grosso do Sul,em parceria com Idara Duncan - obra que foi lançada em diversos municípios do Estado. Em 31 de março de 2011, lançou a obra “A Literatura Sul-mato-grossense na ótica de seus construtores”, escrita em parceria com Albana Xavier Nogueira, em Campo Grande e em vários municípios do Estado. Em fevereiro de 2005 o Conselho Universitário da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul concedeu-lhe por unanimidade o título de Doutora Honoris Causa pelos serviços prestados à Educação, à Cultura de MS e a Historia da Universidade. Glorinha também recebeu os seguintes títulos: - Grã Cruz da Ordem do Mérito de Mato Grosso do Sul conferido pelo Governador Marcelo Miranda Soares - Professora honorária da UNIGRAN de Dourados agosto/2003 - Cidadã Campo-grandense conferido pela Câmara Municipal de Campo Grande-MS/1974. - Troféu mérito cultural ofertado pela Unigran/da Grande Dourados em 25 outubro/2009 - Cidadã Sul-mato-grossense outorgado pela Assembléia Legislativa de MS em 2007 106
- Medalha do Mérito Educativo, outorgado pela Câmara Municipal de Campo Grande em 25/11/09 A professora Maria da Glória foi casada durante 56 anos com o engenheiro agrônomo e pecuarista José Ferreira Rosa, falecido em 4 de junho de 2008. Do casamento nasceram quatro filhos: José Carlos, José Boaventura (falecido) Luiz Fernando e Eva Regina e sete netos: André, Amanda, Paloma, Luiz Henrique, Maria Rita, Gabriel e Maria Thereza. Ela viajou pelos mais diversos países do mundo e também conhece todos os estados brasileiros, em especial, Mato Grosso do Sul, sua grande paixão.
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Cineclube: Arte e Resistência “Uma ideia na cabeça e um projetor 16 mm nas costas” Lema dos Cineclubistas
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movimento dos cineclubes data do início do século XX. O primeiro estatuto de um cineclube organizado saiu na revista francesa Ciné Club, organizada por Louis Delluc. Em 1925, ainda na França, nasce a Tribuna Livre do Cinema, inaugurando a tradição de sessões semanais seguidas de debate sobre temas específicos. No Brasil, o Chaplin Club foi o primeiro cineclube que manteve uma atividade sistemática, organizada e um estatuto. O Chaplin Club publicava a revista O Fã, que, junto com a programação do cineclube, promoveu discussões a respeito do cinema e suas influências no ambiente cultural em que as pessoas estavam inseridas. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, os cineclubes se multiplicaram por toda a Europa. Durante o Festival de Cannes de 1947, foi constituída a Federação Internacional de Cineclubes (FICC), com participantes da Argentina, Bélgica, Inglaterra, Itália, França, entre outros. A FICC estabeleceu alguns princípios gerais aos cineclubes, como seu caráter não comercial e a disposição de criar uma rede internacional de circulação de filmes. O cineclube francês era um exercício de completa adesão emocional ao cinema. Tal fato, porém, não retirou seu caráter crítico. O movimento tinha como eixo fundamental a discussão do cinema em contextos capazes de ampliar a visão de seus participantes, além de uma produção de crítica impressa que influenciaria o cinema em outras partes do mundo. Os cineclubes nada mais eram que núcleos de aprofundamento do conhecimento em cinema. A organização do público para discutir o processo cine110
matográfico em cineclubes e outras reuniões envolvendo jovens e cinéfilos, relembrando os clubes do livro ou de leitura, fizeram multiplicar pelo mundo vários movimentos que reformavam os cinemas nacionais. Cineastas consagrados como Jean-Luc Godard, François Truffaut, Eric Rohmer e Jacques Rivette – nomes maiores da nouvelle vague - eram assíduos freqüentadores de cineclubes. O Neo-realismo italiano e o Cinema Novo Brasileiro também são originários do cineclubismo, mostrando sua extrema importância no desenvolvimento do cinema mundial. Na década de 1960, mais especificamente no ano de 1967/68, período de ditadura militar, Mato Grosso do Sul viu nascer o movimento cineclubista tomado por um ideal de contestação, aderindo às políticas públicas de democratização do acesso à cultura e, em especial, à cultura do audiovisual. A professora Maria da Glória de Sá Rosa acompanhou o crescimento desse movimento nos outros estados brasileiros e foi quem organizou e fundou o Cineclube de Campo Grande. Sem estrutura física própria, ele funcionava graças à determinação de seus ‘sócios’ em fazer com que ele acontecesse. As projeções eram feitas em locais improvisados; apesar de isso dificultar um pouco sua organização, dava certa liberdade para que o cineclube se popularizasse enquanto ‘percorria’ a cidade. As reuniões aconteciam em casas, salões de colégios e também nas dependências da Faculdade Dom Aquino de Ciências e Letras. Além de projetar filmes alternativos como produções vindas da Itália, da França e de países da América Latina – censuradas pelo regime militar - o Cineclube ofere111
cia cursos de cinema onde era possível aprender técnicas de planejamento e execução de projetos cinematográficos. A partir do movimento cineclubista, muitas pessoas deixavam de fazer atividades ligadas ao comércio e prestação de serviços para se dedicar a atividades de mobilização, articulação e formação de opinião. Em Campo Grande, todo o dinheiro arrecadado com as exibições dos filmes era utilizado para pagar o aluguel e o transporte dos filmes. Era um movimento que não visava o lucro, mas sim a conscientização de quem participava dele, seja na organização, seja como público; e funcionava graças à cooperação e disposição dos envolvidos nos projetos. “As sessões eram divulgadas através de panfletos xerocopiados, obtidos gratuitamente com os ‘patrocinadores’. O dono da primeira casa de fotocopiadora de Campo Grande liberava para o Cineclube uma cota, por mês, de cópias que eram distribuídas nas universidades e nos barzinhos frequentados por intelectuais. As rádios e TVs também divulgavam as sessões. O lambe-lambe (colação de cartazes nos postes da cidade) também era feito pelos cineclubistas.” (Salas de Sonhos, Fisher e Pinheiro) Atualmente, Mato Grosso do Sul conta com alguns grupos de cineclubistas, vinculados com organizações como fundações de cultura, universidades ou organizados em circuitos independentes.
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Referências Bibliográficas BERNADET, Jean Claude. O que é cinema? 1980 GUIZZO, José Octávio. Alma do Brasil. Campo Grande, MS, 1984. LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas Ampliadas: O livro reportagem como extensão do Jornalismo e da Literatura. .2. edição. Campinas, SP: Unicamp, 1995 PINHEIRO, Marinete; FISCHER, Neide. Salas de Sonhos: História dos Cinemas de Campo Grande/MS. Ed. UFMS, 2008. ROSA, Maria da Glória Sá; MENEGAZZO, Maria Adélia; RODRIGUES, Idara Negreiros Duncan; Memória das Artes em MS, Histórias de Vida. 113
COSTA, Thaís. Um nome em registro eterno. Revista Executivo Plus, Campo Grande, Ano VII, número 58, página 22. COUTO, Carlos Magno. O Guizzo é que tinha razão, somos um povo sem identidade definida. Jornal A Crítica, Campo Grande, 13 de junho de 1999, página 2. GUIZZO, José Octávio. Alma do Brasil, o filme e a história 53 anos depois. Revista MS Cultura, Campo Grande, Ano I, Maio/Junho de 1985, página 41. REIS, Elpídio. O Guizzo que eu conheci. Jornal Correio do Estado, Suplemento cultural, Campo Grande, 28/ 29 de setembro de 1996, página 4, caderno B. ROSA, Maria da Glória Sá. Glauce Rocha, atriz mulher guerreira, de José Octávio Guizzo, resgata a vida e a obra da grande figura do teatro brasileiro. Jornal Correio do Estado, Suplemento cultural, Campo Grande, 28/29 de setembro de 1996, página 4, caderno B. VILELA, Moema. MS como locação. Revista Cultura em MS, Campo Grande, 2009, número 2. AGUAÍ, Vinicius. Todo filme do mundo. Revista MS Cultura, Campo Grande, 1985.
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Índice de fotos Pág.: 18 - Alma do Brasil: Acervo/Cinemateca Nacional 21 - Cine Alhambra: Arquivo/Arca 24 - Alma do Brasil: Acervo/Cinemateca Nacional 25 - Alma do Brasil: Reprodução/Revista Folha da Serra 26 - Alma do Brasil: Acervo/Cinemateca Nacional 28 - Paralelos: Reprodução 32 - Sasha Siemel : Reprodução 33 - Pantanal de Sangue: : Reprodução 34 - Comitiva Esperança: Arquivo pessoal/Paulo Simões 36 - Caramujo Flor : Reprodução 40 - Caramujo Flor : Reprodução 41 - Dois Tons: Reprodução 44 - Sasha Siemel : Reprodução 48 - Conceição: Acervo MIS 50 - Tigrero: Reprodução 52 - Los Niños de La Guerra: Arquivo Pessoal/Miguel Horta 55 - Cine Glória: Arquivo/Arca 58 - Los Ninõs de La Guerra: Acervo MIS 62 - Salas de Sonhos: Reprodução 65 - Arquivo Pessoal/Marinete Pinheiro 68 - Arquivo Pessoal/Edson Audi 72 - Agripino: Reprodução 74 - Helio Godoy: Wendy Tonhati 77 - Poeira: Reprodução 84 - Idara Duncan: Wendy Tonhati 92 - José Octávio Guizzo: Arquivo/Arca 93 - Cine Alhambra: Arquivo/Arca 96 - Museu da Imagem e do Som: Arquivo/Arca 102 - Prefeitura de Três Lagoas
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