Depois que o sol se pôs

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Thalya Godoy

DEPOIS QUE O SOL SE PÔS 1


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Projeto Experimental apresentado por Thalya Godoy da Silveira para conclusão do curso de Jornalismo na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) Orientação: Katarini Giroldo Miguel Semestre: 2/2019

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DEPOIS QUE O SOL SE PÔS Abandono afetivo de mulheres no sistema penitenciário

THALYA GODOY

Ilustrações Capa: Raquel Eschiletti Perfis: Larissa da Silva

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Sumรกrio.


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Depois que o sol se pôs ele nasce como?

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Depois que o sol se pôs

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Telescópio

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Tereza

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Ariana

Leonora

Lyra

Úrsula

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Agradecimentos 7


Depois que o sol se pôs ele nasce como? — Eu não sei, acho que é porque as mulheres devem ser mais apaixonadas, sei lá. Homem abandona mulher. Você caiu na cadeia, tchau tio, é abandonada. — Nossa senhora, eu pensei ‘agora vou ter mais responsabilidade, vou dar um futuro melhor para o meu filho, vou estudar’ e não foi nada disso. — Eu já penso que não existe amor da parte deles. É tudo ilusão. As citações pinçadas das estrelas que se revelam aqui em “Depois que o sol se pôs”, refletem as amarguras de um cárcere privado sob a ótica feminina. Ser mulher. Ser infratora. Ser encarcerada. Ser, majoritariamente, pobre e negra. Estar abandonada. Estar condenada. Contar histórias tão duras, tão cheia de contradições, tão distantes da realidade de uma acadêmica de Jornalismo, no auge dos seus 21 anos foi, por si só, um desafio e um compromisso com o outro (as outras). Com o jornalismo fora da ordem do dia. Para tanto, foi preciso ir além da teoria, expandir as experiências e se fortalecer para encarar as burocracias que antecederam o trabalho jornalístico de campo, responder aos inúmeros questionamentos, persistir mesmo diante das muitas negativas, das dificuldades em conseguir dados oficiais e entrevistar as fontes, ou melhor, em dar voz às personagens - no termo jornalístico mais apropriado para esta verdadeira manifestação dos dramas humanos. Orientar este trabalho de conclusão de curso por várias vezes me revelou a beleza da perseverança, da ingenuidade; o esforço da empatia, a necessidade de acreditar e querer contar as dores de mulheres marginalizadas. Nesta narrativa elas têm luz própria, são protagonistas, ainda que de suas próprias constelações. “A intenção aqui sempre foi deixá-las narrar”, bem diz Thalya no início da obra. Assim, enxerguei também o meu lugar de aprendiz como jornalista/professora e leitora que acompanhou, de um lado, o desenvolvimento de um livro-reportagem, de outro, a formação de uma jornalista de excelência. Cinco perfis, cinco trajetórias que se aproximam nas motivações, nos sofrimentos, mas também se distanciam neste fio condutor do 8


abandono afetivo. “Os familiares, filhos e cônjuges. Cabe a eles decidirem se encararão o muro alto da prisão, seguir até o portão de entrada, aguardar e, após a revista, encontrar aquela mulher, seja a sua filha, mãe, irmã ou esposa”. Por tudo isso, “Depois que o sol se pôs” é mais que um projeto experimental para conclusão do curso de Jornalismo, mais que um livro ou uma compilação de perfis sobre mulheres encarceradas. É um exercício de generosidade de tantas partes. É um livro-afeto, de afetação, de excessos e lacunas, como as histórias ouvidas e relatadas. Thalya termina a introdução, ou fixa o telescópio, em um ponto compassivo: estão encarceradas pelas lembranças. Lembranças que enganam, que omitem, que ampliam e ou negligenciam os fatos. Mas a autora apura com sensibilidade e traduz com maestria. “A saudade que abraça cada detenta todos os dias tem o nome de um filho, uma mãe, marido, avó, de uma prima e, de forma menos provável, um pai”. Em uma das nossas últimas orientações/conversas antes da finalização do livro, brinquei com um questionamento ambíguo: “depois que o sol se pôs ele nasce como?” Deixo, então, esta provocação para os próximos e, seguramente, belos trabalhos desta nova jornalista. Encarcerada pelo compromisso humano. Professora Katarini Miguel Orientadora do Projeto Experimental

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Telescรณpio

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Vive pela sombra de alguém que nunca esteve contra aquele sol. E mesmo que tente escapar, pelos incentivos das companheiras de cela, nos remédios para acalmar e pelas constantes desculpas que dá para si mesma, aquela pessoa não esteve ali. O corpo esfriou. Esqueceu-se do toque, não se recorda das manias na fala e nem no jeito. Se foi durante os meses. Ficaram antes do portão alto que engole todo sentido de vida no presente. O pretérito é arrependimento, resgatado diariamente na saudade. Palavra sem conjugação, aplicável a todos os pronomes, tempos, regiões, condições de vida e, em especial, pela distância. Penitenciária. Substantivo feminino que foi estruturado por uma organização institucional sob ótica masculina. Foi construída de forma androcentrista, ou seja, projetada e comandada por homens para atender a homens. Com essa configuração, os direitos e a existência de mulheres nesses espaços foram suprimidos por muito tempo. No Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - INFOPEN Mulheres de 2014, foi observado que em unidades femininas, 49% não possuía cela ou dormitório adequado para gestantes. Em prisões mistas, onde há homens e mulheres, o déficit sobe para 90%. A visita íntima, por exemplo, foi regulamentada às encarceradas apenas em 2001, na Lei de Execução Penal (LEP) de 1984, enquanto para os homens, o mesmo direito foi assegurado 17 anos antes, no ano de criação da LEP. Outro aspecto pertinente a conservação de vínculos afetivos relacionados a mulheres é o tempo de permanência que uma mãe pode ficar com o bebê recém-nascido, em importante fase de desenvolvimento, nas dependências da prisão. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou a partir de 1991 o leite materno como fonte exclusiva de alimentação por pelo menos os seis primeiros meses de vida. Desde 1979, as discussões sobre o assunto oscilavam entre quatro a seis meses. No caso das encarceradas, o tempo mínimo de seis meses que o bebê pode ficar com a mãe foi definido na LEP, de acordo com a instrução da OMS, apenas em 2009. Ao olhar sobre a quantidade de mulheres nesses locais, temos números crescentes e expressivos, tanto de valores como de contextos. 12


Segundo o relatório internacional World Female Imprisonment List, de 2017.

Informações de acordo com a tese de doutorado “Práticas do encarceramento feminino: presas, presídios e freiras”, de Angela Teixeira Arthur, apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP).

O Brasil possui a quarta maior massa carcerária feminina do mundo e a maior da América do Sul. No relatório do INFOPEN Mulheres de 2014, é observada a taxa de crescimento do encarceramento brasileiro no período de 2000 a 2014. Entre os homens, temos alta de 220,2%, enquanto nos presídios femininos o salto foi de 567,4%. Na maioria dos perfis dessas mulheres há um rosto negro, jovem, sem o ensino fundamental completo, mãe e responsável pelo sustento familiar antes da prisão. O primeiro estabelecimento penal destinado a mulheres no Brasil surgiu em 1942 , organizado em uma casa na capital paulista. Foi gerenciado por mais de três décadas pelas freiras da congregação religiosa de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor de Angers, que entre as obrigações contratuais estava trabalhar pelo progresso moral e instrução doméstica das internas. Assim, os trabalhos daquelas encarceradas foram voltados aos cuidados do lar, como lavar, cozinhar e passar, além de atividades manuais como bordado, tricô e costura, reforçando o papel social delas para a vida doméstica. De acordo com a psicóloga Mônica Mendonça, autora da dissertação “Um estudo sobre a mulher e o delito: o amor encarcera?”, a imagem social do feminino reúne elementos idealizados, como de permissividade, afetuosidade e maternidade, levando a uma construção social naturalizada que cabe apenas a elas a função de amar e perdoar incondicionalmente para proteção e conservação da família. Em Campo Grande, capital sul-mato-grossense, operam dois presídios femininos. O Estabelecimento Penal Feminino “Irmã Irma Zorzi”, na região norte, funciona desde 1995 e é destinado às 13


Conforme informações de outubro de 2019 do sistema Geopresídios do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

encarceradas de regime fechado. O outro, Estabelecimento Penal Feminino de Regime Semiaberto, Aberto e Assistência à Albergada, foi inaugurado em 2005 e está localizado na área sul da cidade. Nos estabelecimentos penais, além da mão do Estado com os direitos para essas mulheres, há também o outro lado, de quem ficou fora dos portões. Os familiares, filhos e cônjuges. Cabe a eles decidirem se encararão o muro alto da prisão, seguir até o portão de entrada, aguardar e, após a revista, encontrar aquela mulher, seja a sua filha, mãe, irmã ou esposa. Em Campo Grande, o Estabelecimento Penal Feminino “Irmã Irma Zorzi” abriga 320 internas em uma estrutura projetada para 231, o que representa superlotação de 38,5%. O Estabelecimento Penal Feminino de Regime Semiaberto, Aberto e Assistência à Albergada, de acordo com dados da Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário do estado (Agepen MS), trabalha com 107 encarceradas, onde a capacidade máxima é de 144. Juntos, segundo a Agepen, os dois estabelecimentos penais recebem, em média, 87 visitantes por semana, para um total de 356 internas, desconsiderando as que cumprem pena no regime aberto e semiaberto e tem permissão para ir para casa aos finais de semana. Assim, nos dias de visitação na unidade permanecem apenas 36 mulheres. Estatisticamente, então, temos 24,4% de mulheres recebendo visitas semanalmente. No caso dos homens, no Instituto Penal de regime fechado, há 1.540 internos. Entre sábado e domingo, 540 pessoas realizam visita na unidade, o que representa 35% da massa carcerária. O Centro 14


Penal Agroindustrial da Gameleira de Regime Semiaberto opera com 1.154 internos e recebe 350 visitantes semanais, onde temos 30,3% no mesmo comparativo. No regime aberto masculino, segundo a Agepen, não há visitação. Somados os dois locais, 33% dos encarcerados são visitados semanalmente. Apesar que a taxa de visitas entre homens e mulheres se distanciam em torno de 10%, pelos relatos aqui contados, vemos que o perfil e dedicação se diferem. À elas, a mãe. Os outros, vão desaparecendo com o tempo. À eles, a companheira, os filhos e a mãe, religiosamente na fila para irem ao encontro deles na prisão. Segundo a Agepen, a maioria dos visitantes no regime fechado feminino é composta pelos filhos e familiares, e há apenas 10 processos que autorizam a visita íntima, que tendem a rarear com o tempo. Ainda sobre a visita íntima, no caso do Instituto Penal, “o mínimo de visitante nos finais de semana varia sábado e domingo, sendo por dia aproximadamente 300 visitantes em média, sendo a grande maioria cônjuges e companheiras (não há dado preciso sobre isso) e as visitas íntimas acontecem nas próprias celas”, afirma o órgão sobre o assunto. Diante dessa perspectiva de diferença entre os dois gêneros ao serem presos, cheguei a este trabalho de abandono e de desagregação afetiva. Foi por ele que conheci as mulheres que nas páginas seguintes conto esta parte, entre as várias, da vida de uma mulher encarcerada. Assim como diz a autora Olga Espinoza, em “A mulher encarcerada em face do poder punitivo”, há a necessidade de falar sobre este grupo, tendo em vista a escassez de conteúdo sobre elas. Lembro que o primeiro contato com o tema foi em uma reportagem de um site em que a estrutura da história estava entrelaçada com a letra da música “Não me deixe só”, da Vanessa da Mata. Parecia tão ajustada ao contexto delas ao pedir para não a esquecerem ali. Pelo medo do inseguro e do escuro depois que o sol se pôs. Ele que aquece e traz luz, mas que não nasce da mesma forma para todos pelas diferenças de contextos. No caso do sol destas mulheres, marca o retorno para o estabelecimento penal para as que estão no regime semiaberto e aberto. Traz o calor a face, mas em horas limitadas durante o dia para as que estão no fechado. 15


É capaz de iluminar, assim como as pessoas que são a nossa referência afetiva. Quando ausentes, se vão no horizonte e dão lugar a lua e as estrelas. As mesmas estrelas que formam constelações, que sugeriram os pseudônimos das cinco perfiladas neste livro, que não quiseram se identificar. A constelação da Ursa Maior nomeou Úrsula, Leão deu lugar a Leonora, Taurus deu nome a Tereza, Órion tornou-se Ariana e Lyra permaneceu assim. No caso dos personagens secundários, as identificações foram inspiradas em estrelas que compõe a constelação em questão, indicadas no final de cada capítulo. Depois que o sol se põe, ele nasce no horizonte com as mesmas cores de quando partiu no crepúsculo do dia anterior. A diferença, fundamental entre as duas situações, está na perspectiva de dia e luz. A noite ficou para trás, mas não esquecida. Nos encontros, entrevistas, nas histórias que ouvi, perguntei e aqui conto, descobri mulheres para quem o encarceramento, em níveis diferentes, representou essa quebra de vínculos afetivos. Não teve marido ou namorado que permanecesse a visitar ou que sequer um dia a tenha procurado naquele espaço. Houve filho nascendo ali, mãe religiosamente ao encontro, irmãos desaparecendo com o tempo e nenhum pai que tenha visto de perto nem a filha crescer ou ido regularmente ao estabelecimento penal. Transitei entre os presídios femininos de regime aberto e semiaberto e aberto por dois meses, que resultaram em oito entrevistas e quatro perfis. Encontrei uma ex-encarcerada, distante há doze anos do sistema penitenciário, que compôs o quinto perfil. Além delas, entrevistei duas psicólogas, uma agente e os dados pertinentes às mulheres que, a nível nacional, resumem-se aos disponíveis nas duas edições do INFOPEN Mulheres. O plano inicial de realizar as entrevistas no Estabelecimento Penal Feminino “Irmã Irma Zorzi”, seguiu até a primeira personagem. Após ela, se fecharam. Não queriam falar. Já tinham se frustrado vezes demais com outros trabalhos em que não viram retorno. Quando algumas se recusaram, as outras internas seguiram o sentido de unidade e se negaram a falar também. A recomendação foi tentar no regime semiaberto e aberto, em que 16


boa parte já tinha passado pelo regime fechado. Lá, encontrei mulheres que ficaram no Zorzi por menos de uma semana, assim como por mais de dois anos. São histórias, às vezes, contadas por elas de forma linear, mas também de forma intrincada e corrida. De fala calma até de palavras ligeiras. Em alguns trechos, a memória peca ou se confunde. Não houve forma e nem fórmula. A intenção aqui sempre foi deixá-las narrar. Até sem pergunta, no meio das frases, uma palavra tropeça no nome, fecha levemente a garganta, os olhos ficam um tantinho vermelhos e as lágrimas chegam. Tentam continuar, mas o soluço e as mãos no rosto tentando secar a umidade impedem que saia algo compreensível. São mulheres para quem a saudade e o arrependimento são constantes. Sabem e admitem o erro, a vacilada “no andar certo”. Todas encarceradas por tráfico de drogas. E pelas lembranças.

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Depois que o sol se pĂ´s

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Campo Grande (MS), 05 de outubro de 2019, sábado. Este final de semana antecedia o dia das crianças, celebrado em 12 de outubro. Para as encarceradas do Estabelecimento Penal Feminino “Irmã Irma Zorzi”, este era o dia de ver os pequenos e comemorar, já que para eles a visita é reservada para o primeiro e terceiro sábado do mês, das 09h30 às 16h30. O presídio, segundo o relatório de outubro de 2019 do sistema Geopresídios do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com dados obtidos em seis de setembro do mesmo ano, operava com 318 internas. Ao chegar no estabelecimento penal, vê-se um muro branco coroado com cerca elétrica e o aviso “ÁREA DE SEGURANÇA PRESÍDIO” distribuído por sua extensão. Na frente, há dois toldos azul caneta acima do portão social cinza, que faz par com o de garagem na mesma cor sóbria. Os detalhes, como janelas, outras portas e a mensagem de aviso eram todos na cor azul. Mais próxima a ponta esquerda do presídio, havia uma guarita que assomava-se na estrutura de tijolos e, logo abaixo, uma varanda com cobertura de eternit, com pequenas flores amarelas espalhadas no teto. O colorido era proveniente da árvore que o cobria. No local havia uma casinha de cachorro, com um cão preto e branco de manchas cinzas, parecido com a raça Cofap. O animal estava deitado, de cabeça baixa. Quando se levantou, mancava de uma patinha traseira. No mesmo espaço tinha uma porta que levava para a parte interna do presídio e uma moto estacionada. No posto estava um homem branco, com cerca de 40 anos, careca, uniformizado com calça azul petróleo, coturnos pretos, blusa branca, de boné na cabeça, carregando uma arma no coldre. 09h15: Rua Uruguaiana, nº 563, região norte da cidade. A quadra antes da rotatória que leva para a rua da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do bairro Coronel Antonino estava preenchida por carros ao longo do muro branco do presídio. Do outro lado, alguns veículos. Dois, em especial, estavam de portas abertas com passageiros conversando. Não havia fila ou pessoas aguardando ao lado do portão do estabelecimento penal. 20


O carro cinza estacionado quase na esquina pertencia a pessoas que conversavam entre si. Alguns estavam sentados na calçada, enquanto outros esperavam o horário dentro do veículo. O grupo era composto por uma mulher por volta dos 50 anos, negra, de cabelo preto, blusa branca e outra mulher de meia idade, aparentando estar na casa dos 30 anos, de cor branca e cabelo castanho. Entre os adultos ainda havia um homem negro, com camiseta azul de time de futebol e boné preto, fumando um cigarro. Entre os mais novos estava uma criança pequena, com cerca de dois anos, e uma menina adolescente, negra, de cabelo liso preto e que usava uma camiseta branca. No segundo veículo mais a frente, de cor vermelha, todos esperavam no carro. Levava duas mulheres mais velhas, ambas negras, de cabelos preto e preso. Uma adolescente magrinha, com camiseta do Mickey e uma menina com cerca de cinco anos acompanhavam os adultos. Havia ainda um homem negro, com camisa social listrada em branco e vermelho, que estava como motorista. 09h25: Parte dos membros dos dois grupos começam a se dirigir para o portão do presídio. Do primeiro carro, apenas a mulher mais velha e a adolescente avançam. Levam algumas sacolas e um pote de plástico transparente. — Tchau - grita a menina virando-se para se despedir dos que ficam. Do segundo grupo, todas as mulheres vão para a frente do estabelecimento penal e somente o homem permanece no carro. Levavam bolo de chocolate em uma forma branca com tampa transparente de plástico e dois potes do mesmo material. Com exceção das meninas mais novas do segundo grupo, que usavam calça jeans, todas as mulheres dos dois grupos vestiam saias com altura até o joelho. Depois de alguns minutos, os remanescentes do primeiro carro, o homem e a mulher que pareciam formar um casal, vão embora com a criança. Saem a pé em direção a rua lateral do presídio, a mesma da Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário de Mato Grosso do Sul (Agepen/MS), paralela à da UPA. No caso do motorista do veículo vermelho, ele sai com o carro, faz a rotatória e segue pela rua da Unidade de Pronto Atendimento do bairro. Ficam somente as três mulheres no portão do presídio com as três meninas mais novas. 21


09h43: Uma caminhonete branca estaciona em frente ao portão do presídio, dirigida por um homem branco, de cabelos curtos e grisalhos, usando uma camiseta de listras em branco e azul. A entrada do estabelecimento penal abre-se e, com a ajuda de alguém que estava dentro da prisão, começam a passar sacos de gelo para o carro. 09h45: Um carro no modelo Volkswagen Gol na cor cinza para próximo ao portão social. Um homem jovem, de cabelo preto, usando short tactel estampado com listras em azul e branco com limões verdes e camiseta branca, desce acompanhado por um garoto com cerca de cinco anos, branco, de cabelos loiros, vestido com bermuda cinza e uma regata verde clara. Foram até a entrada e depois retornaram para o carro. O menino sistematicamente, entre alguns intervalos, ia até o porta-malas e tentava abri-lo, o que fazia com que o adulto o advertisse. Depois de algumas tentativas de brincadeira, o menino desistiu e começou a se entreter com um graveto de árvore na calçada. 09h51: A caminhonete branca arranca e vai embora. 10h00: O adulto do Gol cinza vai até o portão de entrada, busca algumas sacolas, volta, ajeita-as no carro e vai embora, fazendo o mesmo caminho do veículo vermelho. Restam apenas as mulheres novamente na frente do portão. 10h13: O portão menor é aberto e as mulheres do primeiro grupo entram no presídio. As outras permanecem esperando. 10h25: A entrada abre-se novamente e as mulheres do segundo grupo são chamadas. 10h29: Após quatro minutos, as que acabaram de entrar saem pelo portão carregando os itens que levaram, o bolo de chocolate e os dois potes de plástico. Atravessam a rua. Vão até uma vendinha que fica em frente ao presídio e chamam por uma mulher. Gritam o nome mais de uma vez. 22


10h32: As três retornam para a frente do estabelecimento penal carregando os mesmos itens e batem no portão social. 10h33: A entrada abre-se e voltam para o interior do presídio. Um homem com camiseta vermelha de uma empresa de sorvetes bate no portão maior e entra também logo em seguida. 10h35: O mesmo homem vai embora. Agora resta mais ninguém na frente do presídio. As únicas visitantes do dia entraram. São duas famílias e, provavelmente, apenas duas internas dirigindo-se para o encontro, contra outras 316 que não terão o mesmo presente.

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Tereza Taurus

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— Mãe, ajuda o pai, por favor. O som do telefone tocando despertou a atenção dos três moradores. Era ele novamente, da prisão. Queria falar com a menina. Após a conversa, a adolescente de 14 anos vira-se para a mãe e faz o pedido. As ligações para o casal de filhos eram frequentes e, para a própria descrença de Tereza depois de tanto tempo separados, para ela também. O relacionamento entre os dois foi conturbado, marcado por brigas e, em três situações, pela agressão física da parte dele. Não denunciou porque, segundo ela, nos anos 90 resultava em nada, sem a Lei Maria da Penha, que protege mulheres vítimas de violência doméstica, promulgada em 7 de agosto de 2006 na Lei nº 11.340. Se conheceram por morarem próximos. Ela então com 14 anos, e Caetano dez anos mais velho, tinha o hábito de ir no horário de saída dos estudantes na escola onde Tereza estudava. Chamou a atenção dela e se se envolveram. Acabou engravidando e, sem a perspectiva de ser pai, ele a convenceu a realizar um aborto. Tempos depois, engravidou novamente, mas desta vez não aceitou a sugestão do namorado e afirmou que cuidaria da criança sozinha se fosse necessário. — Vem morar comigo então - propôs Caetano. Mudou-se para o quarto dele, na casa dos pais. Não deu certo o arranjo. A menina nasceu e, com ela, as responsabilidades do casal. Tiveram outro filho, desta vez, um menino. Foram morar juntos em outro lugar agora. As brigas se tornaram constantes e o cheiro de álcool no namorado delatava o quase vício. A primeira agressão chegou, assim como as outras duas. Tereza tinha ciência das amantes, mas suportava toda a situação porque era dependente. Não tinha para onde ir e ele dava assistência em casa. Aguentou por dez anos enquanto poupava dinheiro para sair do relacionamento. Na primeira oportunidade, quando conseguiu comprar um pequeno apartamento, foi embora com os filhos. Ficaram sem se falar por uma década. Criou as crianças sozinha, sem ajuda de pensão. Quando voltaram a se falar depois que ele foi preso, Tereza, na época com 35 anos em 2007, tinha dois empregos. Era concursada da secretaria de educação da prefeitura, onde terminava o expediente e seguia direto para a Brasil Telecom para trabalhar 26


como agente de atendimento. Largava às 22h e ia para casa, para os filhos que a aguardavam toda noite. Com esse histórico, parte de si não via sentido em voltar a conversar com o ex-namorado e ajudá-lo, após dez anos separados e agora preso. Seu outro lado, mais consciente, sabia porque acatava os pedidos dele. Era tão cômodo aceitar o carro que ofereceu com o argumento de levar os filhos para ir visitá-lo. Bem melhor que a moto de 125 cilindradas que pilotava. Achava tranquilo fazer alguns favores, que lhe beneficiavam financeiramente também. — O Alberto vai depositar um dinheiro na sua conta - ele avisava. — Tudo bem - respondia Tereza que pensava que não tinha nada demais. — Aí você manda para mim o dinheiro. — Tá bom, beleza - concordava. Foi realizando o que pedia e, com isso, ele a ajudava com dinheiro. Sabia que eram ilícitos os assuntos e reconhece a ganância que a moveu na época. Levava os filhos para vê-lo, mas nunca chegou a entrar. Depois de três meses separada de Caetano, Tereza já entrou em outro relacionamento, que completava dez anos em 2007. Ele achou estranho o carro na casa dela e os favores que fazia ao ex-namorado. — Você virou soldadinha desse cara, nunca se deram, por que estão se dando agora? - questionava na época. Caetano ligava constantemente para a casa de Tereza. Em uma dessas ocasiões, avisou sobre uma mercadoria que estava a caminho. — É um aparelho de som que está vindo de Ponta Porã [MS]. Tô mandando de presente para você dar para o meu filho. Essa outra mercadoria é minha particular, e ele só vai te entregar esse aparelho de som que é para você entregar para o meu filho – ele disse. — Tá bom, beleza. No dia combinado, Tereza recebeu ligações de vários homens que perguntavam quando iria buscar a mercadoria do ex-namorado que tinha chegado. — Por que eu tenho que buscar? - questionava já que os planos fugiam do combinado. — Porque o Alberto não apareceu - alegou o outro lado da linha - a pessoa que ia pegar a mercadoria para ele não apareceu, entendeu? 27


— Onde vai ser entregue? - perguntou Tereza que estava no trabalho. — Vai ser entregue na Universidade Federal. À tarde você vai lá buscar. — É um aparelho de som? Eu tenho que pegar só um aparelho de som que é para passar para o meu filho - ela afirmou. — É, você tem que pegar um aparelho de som, é isso mesmo - concordou o homem. Saiu mais cedo do trabalho, deixou os filhos aos cuidados da mãe e se dirigiu para a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), como combinado. Encontrou três homens em um carro estacionado. Foi até eles, imaginando que eram os amigos do ex-namorado. — Você que é a Tereza? Mulher do Caetano? — É, assim penso, né? - afirmou, mesmo não sendo. — Então, nós temos que te entregar uma caixa. — Um aparelho de som? - perguntou Tereza. — Não, é a encomenda do seu marido - afirmou o que falava pelo grupo. — Não, a encomenda do meu marido é um aparelho de som para entregar para o meu filho. É você? - perguntou para saber se era o rapaz que ia buscar os produtos, inclusive os ilícitos. — Não, meu nome é Atlas, eu sou da polícia e você está presa - revelou o homem. — Como assim presa? - questionou Tereza que não acreditava no que estava acontecendo. — Você veio buscar droga - afirmou o policial.

Encontrei Tereza doze anos após esse episódio, em setembro de 2019, na casa dela, na região sul de Campo Grande (MS). Estava no meio de uma pintura na parede da varanda, ajudada pelo filho mais novo. Além dos dois, havia a neta, de três anos, filha dele. A casa era bem arejada, banhada pela luz do sol no final da tarde. Na sala, alguns objetos de decoração na estante da TV, um grande sofá escuro que 28


preenchia a parede direita e, do lado oposto, duas poltronas de fundo creme e estampa floral, onde sentamos para a entrevista. Tereza vestia roupas simples, uma calça legging e camiseta azul, mas demonstrava vaidade em alguns detalhes, como nos brincos ovais com pequenos pontos de luz em marrom, nas unhas pintadas na cor lilás e nas sobrancelhas feitas. A mulher de pele branca e olhos castanhos claros no rosto redondo, tinha os cabelos loiros presos por uma presilha em coque baixo. Falava de modo tranquilo e com firmeza sobre a sua história, ciente das escolhas que fez, apontando considerações que o tempo e certo distanciamento dos acontecimentos a proporcionaram. Quando a procurei para marcar a entrevista, poderia encontrar alguém constrangida pelo passado, para quem o assunto ainda doía. Não foi o caso. “Passado superado” afirmou, concordando em contar a sua história. Trabalha como responsável pela secretaria de uma escola municipal. Chegou a função após recusar por anos as ofertas para subir de cargo, devido aos antecedentes criminais. Na época, após a voz de prisão na UFMS, foi levada para prestar depoimento. Ficou a noite toda na delegacia e avisou a família o que aconteceu. Não conseguiu provar a sua versão contra a da polícia, que a considerou como integrante de uma quadrilha e ainda companheira do ex-namorado. O carregamento veio por um ônibus, destinado a várias pessoas que receberiam mercadorias diferentes. Tereza conta que os receptores não se conheciam, mas por terem o mesmo fornecedor, a polícia associou as ações a uma quadrilha. No caso do ex-namorado, o produto era a lidocaína, creme anestésico, usado na cocaína para aumentar a quantidade. Foi levada para o Estabelecimento Penal Feminino “Irmã Irma Zorzi”, de regime fechado, para aguardar o julgamento e passou uma semana no corró, espaço em que a interna fica somente trancada, como um período de adaptação. Foi transferida para o alojamento dez, espaço que ficava fora do pavilhão onde estão os outros dormitórios. Era próximo à diretoria e nele permaneciam as pessoas com ensino superior e consideradas “melhorzinhas”, segundo definição de Tereza. 29


— A diretora do presídio dizia que eu não tinha perfil das meninas lá de dentro, que não queria me misturar muito para não me corromper, não ficar igual, não gostar do mundo do crime. Foi a versão que uma vez ela me deu - afirma. Foi encaminhada para trabalhar no setor de saúde. Sabia nada sobre o assunto, sempre trabalhou na área de educação. Lá, aprendeu com outra interna a aplicar injeção, remédio e realizou até exame preventivo. A colega estava no local há muito tempo e prestes a sair. Precisava de alguém para substituí-la e quis ensinar a Tereza. — Eu vou treinar você para ficar no meu lugar - ela propôs. — Mas eu nunca mexi com isso, não sei nada - alegou Tereza. — Sabe sim. Você vai falar para a diretora que é técnica de enfermagem lá fora. — Como eu vou falar isso? Eu nunca peguei em uma agulha. — Mas você vai falar isso para ela se quiser ficar aqui, senão vai ficar no pavilhão - alertou. — Mas ela vai me pedir certificado, comprovantes... — Vai pedir sim, vai pedir tudo isso e você vai falar que a sua mãe e a sua família estão procurando. No dia que achar traz e com isso vai enrolando, se quiser ter uma vida melhor, senão você vai para o pavilhão. Continuou no setor de saúde, ajudando a enfermeira e o médico que atendiam a instituição durante o dia e, quando precisavam dela, a qualquer horário, estava disponível. Depois do expediente, à noite, durante os momentos de visita a chamavam para socorrer alguém. Atendia as presas, mas tentava não pesar as suas atitudes para nenhum dos dois lados, nem para a administração e nem para as encarceradas. — Não sei se isso foi sorte ou azar, mas eu coloco como sorte, porque ninguém que está naquele lugar tem, mas a minha foi um pouco melhorada. As meninas [internas] ficavam no pavilhão e eu sempre procurava nem agradar a todas e nem a polícia, porque se ficasse do lado da polícia, elas iriam me punir. Tereza esperou por seis meses o resultado do seu julgamento. Foi condenada por tráfico de drogas, artigo 33 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, e sentenciada em três anos, por ser ré primária e ter emprego fixo. Recebeu ajuda da família durante toda pena e apoio 30


de pessoas que nem esperava. A mãe ia vê-la semanalmente. Os dois irmãos, os filhos, e até o pai biológico, com quem não foi criada e o contato foi pouco durante toda a vida, chegou a visitá-la. — Mas ele não gostou do lugar, se sentiu muito mal e logo já foi embora. O ex-namorado, Caetano, tentou entrar em contato, mas ela recusou as tentativas. Mandava dinheiro para a mãe de Tereza, que agora cuidava dos netos. Posteriormente, conseguiu receber auxílio-reclusão, que garante amparo financeiro aos familiares da pessoa privada de liberdade de baixa renda que seja contribuinte da previdência social. Com o valor do benefício, pode ajudar em casa e a se manter enquanto ficou presa. No começo da pena, o namorado, com quem teve um relacionamento por dez anos ia vê-la. Tereza fez o pedido de autorização para receber visita íntima, mas não deu tempo. As visitas começaram a rarear e, depois de dois meses, cessaram. Foi abandonada. — Fiquei triste porque tinha dele o apoio que queria. Confiava bastante em mim, embora tivesse me avisado que estava errando. A primeira vez que me viu com o carro, porque eu não tinha carro, tinha só uma moto, ele começou a questionar. Ele parou de ir vê-la e, sem a visita íntima que nunca recebeu, Tereza acha que esfriou com o tempo. O contato morreu, não conversaram nem pelo telefone. Retirou o nome dele da lista de visitantes. Sentia falta do contato físico, mas tentava não pensar no assunto, empurrava para o canto da mente. — Mas eu via que as mulheres entre si faziam casais lá dentro, devido essa falta de carinho. Eu acredito na necessidade grande que elas tinham dessa afetividade. — Você sabe se esses casais continuavam depois da prisão? - perguntei. — Só ali dentro mesmo. Inclusive, eu tive uma colega que se envolvia com as próprias agentes penitenciárias. Ela era do mesmo setor que eu de saúde. A polícia fez com ela a mesma coisa que fez comigo. Logo que chegou, foi encaminhada para esse alojamento dez, separada do pavilhão principal e a colocaram no setor de saúde. Lá começou a se envolver com as próprias agentes. 31


Desde a Lei nº 12.121, de 15 de dezembro de 2009, que acrescentou o inciso três no artigo 83 na Lei de Execução Penal (LEP), em estabelecimentos penais para mulheres, o efetivo de segurança interna deve ser composto apenas por agentes do sexo feminino.

— Foi algo que continuou fora dali ou ficou só lá dentro? — Só lá dentro. Essa conhecida aqui fora nunca soube o que era dar beijo em uma mulher e lá dentro acontecia. Depois que saiu nunca mais, diz ela. Eu mantive contato por uns dois anos depois que saí de lá. Ela disse que nunca mais teve atração nenhuma por mulher. Quer dizer, eu acredito que seja a necessidade, a falta de afetividade mesmo lá dentro, do amparo, do carinho. — E era algo que todo mundo sabia, tanto as outras internas como a direção, ou ficava entre as mais próximas? — Ali dentro é muito difícil fazer algo e ficar só entre você, porque é tudo muito junto, muito próximo. As pessoas sabiam, mas ninguém podia falar nada, porque se você comentar um negócio desse referente a uma oficial, você ia ter que provar. Provar como? Com palavra só não prova, então era complicado. Nas datas comemorativas, a saudade apertava. No aniversário, Tereza teve a visita da mãe, que levou um pedaço de bolo, uma velhinha, e recebeu a presença dos dois filhos para cantar os parabéns. Com as outras internas, era raro coisas parecidas. Tereza conta que pareciam esquecidas, especialmente as que eram de outras cidades. — Sentiam-se tristes, arrependidas, torciam para aquele momento passar logo. Além das visitas presenciais, Tereza também escrevia e recebia cartas. Nessas oportunidades de contato, pedia a mãe que comprasse fraldas ou alguma roupinha para ajudar as internas que estavam grávidas. Era com elas que mais se solidarizava, à espera de um bebê que, provavelmente, nasceria e cresceria pelos primeiros meses na prisão. 32


Direito garantido pela Lei de Execução Penal (LEP).

Conforme a Portaria Agepen nº. 16, de 02 de abril de 2018.

— Família? Muitas delas pertenciam a esse mundo do crime. Os maridos, às vezes, também já estavam presos, então não tinha assistência. Pessoas que vinham de outras cidades, tipo uma que a família todinha morava em Rondônia. Ela veio trazer droga, ganhar um dinheiro, caiu, não deu certo. Estava ali gravida, marido lá não sei aonde, família sem amparo e sem ajuda. O Estabelecimento Penal Feminino “Irmã Irma Zorzi”, conta com uma unidade materno-infantil, destinada a receber mães com os filhos recém-nascidos. De acordo com dados de outubro de 2019 do sistema Geopresídios do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o espaço da unidade com capacidade para atender até 15 pessoas estava com duas vagas ocupadas. — Tem outro caso em especial que ficou marcado para você? - eu quis saber. — Tinha o setor dos idosos também e pessoas cadeirantes. Eu via uma senhora cadeirante, velhinha, cheia de doenças, que toda vida mexeu com tráfico, estava nisso até hoje e nunca conseguiu sair. Isso marcava, porque também não tinham o amparo da família, que muitas vezes era do mesmo mundo que ela. Só viviam daquilo que poderia ser dado a elas mesmo. De acordo com a Agepen, são fornecidos kits de higiene pessoal que contém sabonete, absorvente e shampoo. A prioridade são as internas que não possuem visita ou assistência da família. No caso das que são visitadas, os familiares podem levar itens como creme e escova dental, shampoo, desodorante, papel higiênico e barbeador descartável, além de comida e produtos de limpeza. Segundo o Zorzi, em média, 48 internas recebem pertences toda quarta-feira por um familiar com cartão de visita. 33


Tereza reconhece os privilégios que teve durante a permanência na prisão. Sabe que teve tratamento diferenciado, pelo que acreditavam que viam nela, em sua história fora dali. Pode trabalhar, ocupar a mente, e contou com o apoio dos familiares, que não a abandonaram. Conforme se lembra, durante as visitas, quem chegava era encaminhado para a quadra de esportes da instituição para esperar. — Tereza, visita! - avisava a agente penitenciária que passava nas celas chamando. No horário de ir embora, as presas ficavam na quadra, enquanto o visitante dirigia-se para saída. Todas as internas eram recolhidas ao mesmo tempo. Eram nesses momentos de despedida que buscava ser mais forte contra o desejo de ir embora. — Como era ver as pessoas indo embora e você ficar? — Muito triste, é o pior momento. Uma vez, vi uma menina que surtou, queria ir embora, ela grudou e gritava. Vieram duas agentes, uma segurava de um lado e a outra do outro. A policial pedia para sair [visitante] e tinha que sair, não tinha o que fazer. Quando tinha aglomeração, gritos, que foi o caso, a polícia já vem. Vieram três, uma para acompanhar a visita e duas para segurar. Essa menina foi levada para o setor disciplinar até se acalmar. Muitas vezes a gente tinha que dar calmante para a pessoa. — Pela sua observação na época, você acha que a falta de visita prejudica a saúde mental de quem está ali? — Pode ser que sim. Só que na maioria dos casos que eu vi, foram pessoas que estavam recebendo visita, o que acho pior ainda, porque aquelas que não tem visita, nem saem, ficam dentro do alojamento, então não tem porquê surtar. Quando acontecia, elas eram encaminhadas para os psiquiatras, psicólogos. Nesse ponto eu acredito que elas eram muito bem tratadas e cuidadas. Segundo a Agepen, o serviço de saúde e psicologia é fornecido todos os dias na instituição. Também são realizadas duas vezes ao mês atividades com um professor voluntário de educação física com as internas que são obesas, hipertensas e diabéticas. Com o trabalho no setor de saúde, Tereza chegou a atender casos em que a interna precisou de medicação para se acalmar. Tinha que encontrar a veia em um momento de tensão, com a interna sendo segurada por uma 34


Informação obtida no Levantamento de Informações Penitenciárias - INFOPEN Mulheres de 2018.

agente penitenciária. Aplicava o “sossega leão”, um sedativo que apaga a pessoa injetada. — Casos e casos e histórias e histórias de pessoas que foram completamente abandonadas pela família, que se sentiam tristes, muito mal. Eu vi que surtavam, tinham que tomar remédio controlado, ficavam louquinhas, loucas, loucas. Se batiam, queriam se cortar, queriam morrer. A gente tinha que deixar amarrada lá no setor de saúde para não cometer nenhuma coisa pior contra si própria - recorda. Suicídio é a segunda maior causa de óbito entre mulheres privadas de liberdade. Fica atrás de causas naturais. Em comparação com a população brasileira em geral, foram registrados 2,3 suicídios a cada grupo de 100 mil mulheres em 2015, enquanto entre a população prisional foram registradas 48,2 mortes autoprovocadas para cada 100 mil mulheres. No alojamento dez, onde ficavam as mulheres com nível superior e as consideradas diferentes do restante da massa carcerária, Tereza dividiu espaço com uma advogada do Primeiro Comando da Capital (PCC) e com a médica Neide Mota. Em 2007, um telejornal de Campo Grande revelou com uso de câmera escondida a clínica de aborto de Neide. No período de 20 anos, realizou cerca de 10 mil interrupções de gravidez. Foi presa e dois meses depois que Tereza chegou ao Zorzi, saiu em liberdade. Em novembro de 2009, foi encontrada morta, dentro do próprio carro. As investigações concluíram que a médica se suicidou. Na época, ela seria julgada por júri popular, o que não acabou se concretizando. — Como ela era? — Uma pessoa tranquila, ajudava todo mundo, 35


tinha muito dinheiro. Ela distribuía muita comida. Não limpava, tudo ela pagava para as pessoas fazerem, porque tem regras, cada dia da semana alguém tem que limpar. Se você não limpa, tem que pagar para alguém fazer, porque ali elas são muito organizadas. Não pode deixar um negócio fora do lugar. Ninguém pode se sentir incomodado, principalmente nessa parte da limpeza. Então, quem podia pagar, pagava. Pelas lembranças de Tereza sobre a época, Neide recebia visita apenas de uma mulher e da advogada que cuidava de seu caso. Quando as visitantes iam embora, distribuía entre os alojamentos a comida que recebia. Por ter boa condição financeira, foi bem tratada pelas internas e não sofreu discriminação pelo seu caso, conforme se lembra. Após nove meses na prisão, próximo ao final do ano, Tereza recebeu o indulto de Natal e a sua pena foi anulada. Entretanto, não cabia ao caso dela, condenada por tráfico de drogas, proibição prevista pela Constituição Federal, no Art. 5º. “A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem“, diz o texto. — Os advogados não conseguem saber porque fui beneficiada dessa forma. Os psicólogos, a direção, todos que trabalharam comigo fizeram tipo um dossiê ao meu favor que foi encaminhado para os juízes na época. Foi quando fui beneficiada com esse indulto que não cabia a mim. Não sei como, mas fui. Antes de ser presa, Tereza lembra que a relação com a mãe não era boa. Foi criada por ela e seu padrasto, que juntos tiveram dois filhos. Era próxima dos irmãos, mas tinha atritos com o pai deles. Na prisão, encontrava nas visitas o conforto do abraço dela, de quem passou a sentir saudade. — Quando ela chegava eu abraçava e beijava e aqui fora não faço. Eu lembro que a minha mãe falou para mim uma vez ‘quando estava lá dentro você era tão carinhosa’. Quer dizer, aqui fora não tem tempo, não tem espaço para isso, mas lá tinha, é uma coisa muito estranha. Com a ajuda da assistente social do presídio, não foi exonerada do concurso público da prefeitura. Não encontraram justificativas para 36


mandá-la embora por justa causa. Foi transferida para outro colégio, pois a sua vaga tinha sido preenchida durante o período na prisão. — Eu passei por duas escolas. Fui bem recebida, mas cada um que sabia do meu caso já olhava diferente, tinha uma certa discriminação, eu percebia e sofri muito. Retomou o relacionamento com o namorado que havia a abandonado quando foi presa. Tentaram morar juntos, mas não funcionou. Encontraram a solução morando em casas separadas. Ele não gosta de falar sobre a prisão de Tereza. Porém, quando brigam, usa disso como argumento na discussão. — Por que você fez isso? Não precisava, mas deixou acontecer. Acabou com sua reputação, com o seu respeito. Eu vou te respeitar nesse ponto por quê? - relembra dos insultos que ouviu muitas vezes. — Você revida, dói para você? - pergunto sobre o teor das brigas. — Dói bastante, mas eu sou do tipo que revido. Se me machucar, eu machuco também. Sempre fui assim. Se a pessoa está certa, tudo bem. Em um ponto ele tem razão, mas eu acho que isso não dá o direito de jogar na minha cara ainda depois de tanto tempo. Eu paguei. Isso aconteceu várias vezes, mas hoje não acontece mais - ela assegura.

Constelação Taurus: Tereza Estrela Aldebaran: Alberto Estrela Atlas: Atlas Estrela Celaeno: Caetano

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Ariana Órion

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O choro chega e eles se vão. Funga baixinho enquanto as sombras das três pessoas correm em direção a saída do presídio. Se viram, acenam e voltam-se para ir embora. Duas delas com passos firmes e uma pequena, sendo levada no colo pela mulher mais velha. Vão diminuindo até desaparecer. O sol brilha no céu, agora com menos força no fim do dia. No mesmo ano de 2007, o Estabelecimento Penal Feminino “Irmã Irma Zorzi”, acolheu uma interna, de olhos brilhantes, ligeiros e resplandecentes como topázio, que combinavam com a sua íris. Ariana falava sorrindo. A conheci de forma despropositada, em setembro de 2019, no Estabelecimento Penal Feminino de Regime Semiaberto, Aberto e Assistência à Albergada de Campo Grande (MS), onde estava há quatro meses. Encontrei Ariana na sala da psicóloga da instituição, Marilaine Vilarga, que auxiliou no processo de visitas a instituição. Ela ajudou no contato com as internas e na busca por interessadas a falar sobre a sua história. Quando fui me despedir depois de duas entrevistas, que todos os dias precisavam ser realizadas até às 16h30, horário em que terminava o expediente de Marilaine, percebi que Ariana gostava de falar. Às vezes, atropelava as palavras. Tinha ânimo e disparava as frases sem medo, não tinha vergonha. Conversava com todo mundo no espaço e depois de saber por qual motivo que eu estava ali, contou rapidamente sobre a sua vida e aceitou em ser entrevistada. Quando a reencontrei alguns dias depois, a mulher de estatura pequena, pele parda, com cabelos pretos e longos que desciam em ondas até as costas, vestia uma camiseta onde lia-se “Com Cristo o seu barco não vai afundar”. Usava bermuda tactel cinza masculino, com estampa xadrez em preto e branco na lateral. Calçava chinelos e tinha as unhas do pé pintadas. As da mão eram curtas, com esmalte rosa descascado e em um dos dedos usava um anel dourado. Tinha aparelho nos dentes e ruguinhas perto dos olhos que demonstrava a idade de 47 anos. A sala era pequena, de paredes brancas, do lado administrativo da instituição. Haviam duas escrivaninhas com computadores alinhados ao longo da parede esquerda, um deles com uma webcam. Por oito anos, Ariana trabalhou com tráfico de drogas. Foi presa em 2 de 40


janeiro de 2018, no centro da cidade. Fizeram busca na casa dela, na região sudoeste da cidade, onde foram apreendidos dinheiro, drogas, um revólver e as suas 160 jóias de ouro e prata, demonstrando certa indignação no tom de voz quando contou que foram consideradas réplicas. Antes de ser presa, trabalhava como autônoma, vendendo lingerie pela cidade com o próprio carro. No veículo que não dirigia, apenas sendo levada por outras pessoas que dirigiam para ela. “Não sei, medo”, Ariana disse. — Você fica pensando em quê? – pergunto. — Ah, tanta coisa que passa pela cabeça. Ela é um computador, tem que dominar, porque senão fica doida. Eu já não aguento mais, tem que ser forte. De acordo com a responsável pelo setor de saúde, Ana Lúcia Marques, nos dados oficiais, há na unidade seis internas diagnosticadas com ansiedade e/ou depressão. Todas realizam tratamento pelo Centro de Apoio Psicossocial (CAPS). Entre os principais fatores desencadeadores desses quadros, de acordo com ela, está justamente a falta de acolhimento familiar. Segundo a psicóloga do regime aberto e semiaberto, Marilaine, que trabalhou anteriormente no presídio masculino de segurança máxima por oito anos, as presas procuram mais o serviço de psicologia do que os homens encarcerados. — Os internos não vão procurar, é mais difícil do que as mulheres. Elas vêm mais, então a gente percebe a necessidade de conversa. Lá eles recebem mais visitas – afirma a psicóloga. Ariana tem dois filhos. Beatriz de 27 anos, mãe de duas crianças, e Rangel, de 21 anos, preso por tráfico de drogas, que será pai do primeiro filho em breve, segundo a avó. Tem notícias do caçula pela filha, que fica sabendo do irmão pela nora que Ariana não conhece. Não pode receber visita dela porque não é parente de até segundo grau. É visitada apenas pela Beatriz, de maneira esporádica. — Você recebe visita todo final de semana? — De vez em quando. Uma vez ao mês, tem vez que não, mas eu não ligo, porque não posso tirar o tempo dela. Ela tem que ficar com o marido e os filhos - justifica. Quando os netos vão visitá-la, perde o fôlego tentando acompa41


nhá-los nas brincadeiras que inventam. O mais novo, de dois anos, sobe no monte de terra, brinca com o bebedouro da unidade. Ela fala com ânimo sobre eles, em como estão bonitos, espertos e crescendo. — Fico cansada, parecendo aquelas velhinhas gagá - conta rindo. Tem pelos dois um vínculo afetivo extremamente forte. Nas primeiras vezes em que falou dos netos, chorou. Seguiu com as palavras em meio aos soluços. Citava mais eles do que os dois filhos e acha que foi mais avó do que mãe. Na juventude, gostava de ir em festas e, assim, Rangel e Beatriz foram mais cuidados pela avó materna do que por ela. — Meu lado emocional é meus netos. Eu sou tão apaixonada por eles. A coisa que mais peço para Deus é para me tirar desse lugar contou após chorar quando falou deles. — De quem você sente mais falta? - questiono. — Dos meus filhos e dos meus netos. Do meu filho que está preso, o Rangel, e dos meus netos para vê-los - afirma. — Por que você sente mais falta do seu filho que está preso? — Porque eu nunca separei dele. Mesmo morando com a avó, todo dia ia lá de manhã. Pensa em uma mãe boba. Ia levar as coisas para ele comer de manhã e de tarde ligava. — Você já jantou? Você já almoçou? Você já… - Ariana queria saber. — Jááá mãe, jááá mãe, jááá mãe - relembra do filho respondendo. Rangel era a pessoa que a visitava mais regularmente enquanto estava presa pela segunda vez no Estabelecimento Penal Feminino “Irmã Irma Zorzi”. Com a prisão em janeiro de 2018, Ariana foi condenada por tráfico de entorpecentes, artigo 33, em sete anos e dois meses. Cumpriu um ano e cinco meses da condenação no regime fechado e, em 2019, chegou ao semiaberto. Na unidade, Ariana trabalha com a faxina. Além do serviço, segundo a psicóloga do estabelecimento penal, Marilaine, com a finalidade de estimular a reinserção delas na sociedade, são oferecidos cursos, palestras e há convênios com empresas privadas, que contratam as internas para trabalharem fora da instituição. — Em algumas empresas elas são contratadas depois que cumprem a pena e já ficam trabalhando – afirma a psicóloga. 42


Segundo o INFOPEN Mulheres de 2018, quase metade da massa carcerária feminina possui ensino fundamental incompleto, sendo 45%. Em seguida, vem as com ensino médio incompleto, com 15%. Apenas 1% possui graduação.

No Zorzi, Ariana participou das aulas educacionais oferecidas pela instituição. Havia parado de estudar na sexta série e na unidade estudou até o primeiro ano do ensino médio. Não concluiu o terceiro ano porque começou a trabalhar e não conseguiu conciliar os dois. Quando menina, queria ser advogada. Os planos foram interrompidos depois que parou de estudar e foi “para o mundo podre”, segundo ela. Hoje, vê que as amigas do bairro onde morava exercem a profissão. A maioria concluiu o ensino superior. Ariana pretende terminar de estudar quando cumprir a pena e toma como incentivo a mãe de uma amiga para continuar. — Ela é professora, uma senhora que não tinha estudos, não tinha nada. Eu pretendo ser alguém na vida. Não precisa ser advogada, tendo um estudo e um emprego bom. O que Deus preparar para mim é bem-vindo. Espero que Deus prepare alguma coisa boa para mim e um bom marido. — Você quer casar de novo então? - pergunto, sabendo do seu histórico de relacionamentos. — Eu quero. De preferência, com um homem de Deus - assegura. Três anos e meio antes, Ariana foi parar em uma delegacia para registrar um Boletim de Ocorrência. Lei Maria da Penha. O namorado, Alan, havia chegado bêbado de uma pescaria e ameaçou em bater nela. Rangel, seu filho, partiu para defendê-la e quase o matou. Ali, viu que não tinha escolha. O filho e a própria integridade física seriam prioridades. Foi a primeira e a última vez que isso aconteceu entre os dois. O relacionamento de cinco anos tinha acabado. — Deus me livre, só Deus para tirar a vida dos outros. Só que ele é bonito hein menina, só não 43


presta - e deu uma risadinha - ele é bonito, agora que fez 29 anos. Reiterou várias vezes sobre a beleza dele e, ao mesmo tempo, em como não é boa pessoa. Falou rapidamente até que tinha vontade de vê-lo, mas voltou atrás ao lembrar o motivo de estarem separados. Não sabe como ele está atualmente porque perdeu totalmente o contato depois que terminaram. Ariana me passou o nome completo de Alan e fazendo uma pesquisa rápida pela internet, descobri que foi preso em flagrante em junho de 2018 por receptação de drogas. — Ariana, chamada de videoconferência - estava no Zorzi quando a chamaram. — O que é isso? Eu nunca vi isso na minha vida, que que isso meu Deus? - disse o que pensou na época enquanto apontava para a webcam do computador ao lado da parede para ilustrar para o quê a chamaram - fiquei nervosa, minha pressão subiu, parecia que ia sair pela boca. — Ariana, você gostaria de arquivar o processo contra o Alan? perguntou o juiz do outro lado da tela. — Nunca - ela respondeu e, assim, desarquivando o processo. — Você não quer arquivar o processo por quê? - perguntei. — Porque não, ele é agressivo, bruto. — Você gostou dele porque é bonito? — Não, eu achava que não ia ter outro namorado. Eu falava que nunca ia largar do Beto, que não ia me interessar em homem nenhum. Para, quem fala isso é mentira. Vi o cara, já gostei na primeira vez - relembra. Teve um relacionamento com Beto por 12 anos. Nesse período, foi preso diversas vezes por furto e Ariana ia sempre que possível vê-lo, revezando com a mãe dele os dias de visita. Acordava às 4h, arrumava os mantimentos que levaria para ele, embarcava no ônibus circular em seu bairro na região sudoeste da cidade às 5h e seguia até o Estabelecimento Penal “Jair Ferreira de Carvalho”, de segurança máxima, no lado leste de Campo Grande. 12 anos nessa rotina, de tempos em tempos quando ia preso, enfrentando a longa fila que se formava de visitantes. — Assim ó - falando da quantidade de mulheres - a mulherada chega a brigar por causa de visita aos maridos. 44


Conforme informações da Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário de Mato Grosso do Sul (Agepen/ MS)

— Por que elas brigam? — Porque lá a quantidade é grande. No presídio das mulheres são poucas visitas. Pouca, pouca, pouca. Se você contar na quadra em dia de criança, seis, sete visitas é muito. Já de adulto devem ser uns 15, 20. — Por que você acha que tem essa diferença? — Eu não sei, acho que é porque as mulheres devem ser mais apaixonadas, sei lá. Homem abandona mulher. Você caiu na cadeia, tchau tio, é abandonada. Por isso que eu preferi cair sozinha, não tem homem nenhum. Eu nunca tive visita íntima de homem. — E você sente falta? — Nunca, nem quero. No Estabelecimento Penal Feminino de Regime Semiaberto, Aberto e Assistência à Albergada, as internas não recebem visita íntima devido aos regimes da unidade. Duas encarceradas possuem autorização judicial para visitar os companheiros detidos no complexo penal de Campo Grande, no Jardim Noroeste. Por cumprirem pena no aberto ou semiaberto, são liberadas sem escolta policial.

Em 2007, enquanto Beto estava em liberdade, o casal decidiu visitar uma amiga de Ariana. Ele era usuário de drogas e pediu que guardasse uma quantidade em sua bolsa, a qual caiu no fundo falso. Chegando lá, encontraram com a polícia na casa. Revistaram os dois e encontraram 8,5 gramas de cocaína com ela. Beto não soltou um pio sobre de quem era realmente aquilo. Com esse flagrante, Ariana foi presa pela primeira vez. — Ele não falou que era dele? - questionei. 45


— Não, falou que não ia assinar nada porque não ia deixar mulher na rua para ficar com outro homem, mas eu sai primeiro do que ele disse e deu uma risada baixa. — Mas ele foi preso mesmo assim em 2007? — Fomos nós dois. Ele ficou preso e eu sai depois de uns dez meses, eu vim para cá. — Em qual mês aconteceu isso? — 2007, ai em 2008 eu desci [para o regime semiaberto]. — Foi em qual mês? - pergunto novamente. — Ah, o mês não lembro hein miga, faz muitos anos. — Então enquanto você estava presa lá não recebeu nenhuma visita? — Só da minha finada mãe. — Dos seus filhos não? — Meus filhos sim, eram pequenininhos. Era quarta e domingo a visita. — A sua mãe levava eles? — Sim. Perdeu contato com Beto enquanto ficou presa. Ficou com raiva dele por não ter dito a verdade sobre a responsabilidade da droga. Nem ligação pelo telefone público do estabelecimento penal que funcionava a ficha na época não fez. Ele, porém, a procurava. Mandava cartas pela mãe dele que ia ao Zorzi levar o neto, filho de Beto, para visitar a mãe que também estava presa. Ariana a viu algumas vezes. — E você via ela? Era tranquilo? - quis saber como era a convivência com a ex-esposa de Beto na época. — Ela era casada com uma mulher lá. Agora é da Assembleia, batizada, prega no presídio. Eu vi ela no Zorzi quando foi pregar, achei tão bonito. — Você frequenta qual igreja? — Vou na Assembleia, mas eu gosto de ir na verdade na Mundial, mas vou em todas aqui. Só não vou quase na católica - conta sobre as religiões que frequentam o Estabelecimento Penal Feminino de Regime Semiaberto, Aberto e Assistência à Albergada. — Como funciona? O pessoal de cada religião vem uma vez por semana? 46


— É, todo dia tem uma religião, uma vez na semana. Segunda é Assembleia, terça é Pastoral, quarta é a Perpétuo Socorro, quinta é o pastor Marcos e sexta é a Universal. Estou em todas, só não vou na católica, fui uma vez. Em 2007, no regime fechado, Ariana cumpriu a pena recebendo visitas dos dois filhos, acompanhados pela avó, que morreu três anos depois, em 2010. Ela foi a que mais incentivou Ariana nos estudos. Sente muita saudade da mãe para conversar. Foi criada também pelo padrasto, com quem teve uma boa relação. O pai biológico não apareceu nem lá e nem muito na vida dela. Conhecia, sabia o nome, mas o contato era pouco. Dos seis irmãos, recebeu visita somente quando foi presa em 2018, por três ou quatro vezes, como se lembra. Em 2008, chegou ao regime semiaberto e depois ganhou uma condicional. Saiu, fez a carteirinha e voltou a visitar Beto que continuava preso. — Você se arrepende? - pergunto sobre visitar Beto. — Eu não - respondeu rapidamente - ele podia estar errado, ser o que for, mas era bom para mim, não interessa que fazia coisa errada. Não me dava as coisas, não pegava nada que era dele. Bom marido, apesar que era péssimo porque estava na cadeia preso, né amiga. Todo mundo julga, não me arrependo, mas se for para voltar com ele não volto, não gosto mais - afirma. — Não? — Não. — Mesmo ele não assumindo as drogas em 2007 que estavam na sua bolsa, você considera que ele foi um bom marido? — Nesse ponto não, mas também não tenho mais raiva dele, nenhuma. — Você foi casada com ele no papel? — Não, só amasiada. Na carteirinha antigamente não precisava disso, você ia lá, levava o comprovante de residência e fazia. Hoje é mais rígido, mais difícil. — Você ia visitar o Beto todas as vezes em que ele ia preso? — Em toda visita. Se eu não fosse outra iria - contou e soltou uma risada nervosa. Enquanto estava privada de liberdade no regime fechado em 2018 47


e recebia as visitas dos filhos e dos netos, o mais difícil para Ariana não era o trabalho, a convivência com as companheiras ou o ambiente. O mais complicado era se despedir dos visitantes e vê-los partir sem ela. Observar a silhueta em direção a saída até desaparecer e ficar no mesmo lugar. No caso de quem era de fora da cidade, nem mesmo se mover. — As outras internas ficavam olhando na boqueta [abertura na porta da cela] quem ia embora. De onde eu morava dava para ver, morava ali no alojamento três, então dava para ver os filhos indo embora. Ficava chorando quando entravam meus netos, chorava, chorava. — Você acha que a falta de visitas era a coisa que mais pesava sobre a vida lá? — Ah, é sim, muito sofrimento. — A maior parte do sofrimento era a saudade então? — Saudade. Quem não tem saudade não tem sentimento. — E como era passar datas comemorativas, como dia dos pais, seu aniversário, aniversário dos seus netos? — Muito triste, nem sei como explicar. Pedi tanto para Deus para me tirar dali e Deus me tirou, aí rodei com o telefone. Na segunda era aniversário da minha neta e no domingo, dia 11, era o chá de fraldas do meu neto. É bem doloroso. Ariana “rodou” porque foi flagrada com um celular por uma agente penitenciária no regime semiaberto. Ficou sabendo que a sobrinha sofreu acidente pilotando uma moto e quis saber como ela estava. Alugou por R$ 30,00 o telefone de uma colega, mas nem chegou a usar. Tinha senha. Ficou sem o celular, dinheiro, notícias da sobrinha e ganhou o que chamam de “castigo”. Segundo a psicóloga Marilaine, o castigo é a perda de alguns de benefícios por um tempo para quem cumpre pena na unidade, como não poder sair do estabelecimento penal, e, se for ao médico, precisa ser acompanhada por uma escolta policial. No regime aberto, a interna tem permissão para trabalhar fora do presídio, ir para casa aos finais de semana e ir ao médico sozinha. No semiaberto, pode trabalhar fora da instituição, mas precisa cumprir estritamente o horário fixado para voltar após o serviço. Fica de castigo quando descumpre 48


alguma norma, como quando faz desvio de rota indo para um local não avisado antecipadamente ou retorna embriagada. — Depois de cumprir esta pena, você acha que não volta mais a ser presa? - pergunto para Ariana. — Eu não. Agora eu sei o quanto que eu sofri. Tenho os meus netos. Tudo pesa mais.

Constelação Órion: Ariana Estrela Rigel: Rangel Estrela Bellatrix: Beatriz Estrela Betelgeuse: Beto Estrela Alnilam: Alan

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Lyra Lyra

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— O número chamado não está disponível no momento. Por favor, verifique o número e tente novamente mais tarde. Tu-tu-tu-tu-tu. Os dedos finos apertam nervosamente as teclas do telefone durante a nova tentativa. Caixa postal. O suspiro exasperado ecoa no ambiente enquanto, relutantemente, desiste. Ele não atende. E, novamente, a ansiedade e o ressentimento batem em quem foi ignorada. Esquecida por recordá-lo nas memórias vívidas de um passado que ainda a visita. Lyra, 25 anos, reconheceu o abandono do ex-cônjuge após três meses de encarceramento. Parecia tão improvável para ela que foi visitá-lo religiosamente enquanto estava preso. Para quem nunca lhe deixou faltar em sua sentença durante a prisão, a maior condolência foi o envio de uma advogada, depois de 15 dias encarcerada, que tinha dois recados. — Seu marido saiu. — Nossa, isso é maravilhoso. — É, e ele mandou dizer que é para você seguir a sua vida porque ele vai seguir a dele.

Altamira, no Pará, é a cidade brasileira das probabilidades desajustadas. Em 2019, aparece como a que mais desmatou áreas da Amazônia Legal nos últimos sete anos, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e, de acordo com o Atlas da Violência do mesmo ano, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), é o segundo município mais violento do país, com cerca de 133,7 assassinatos a cada 100 mil habitantes. Entre os mesmos versos desta cidade paraense, nasceu Lyra, filha de mãe professora e pai desaparecido. Foi apresentada a ele por meio de uma fotografia e um nome. Nunca chegou a conhecê-lo pessoalmente. Com o padrasto, a relação sempre definhara. A mãe foi morar com ele quando tinha dois anos de idade e a menina foi a única entre os irmãos que não era sua filha. Devido a essa situação, saiu cedo de casa para fugir dos desentendimentos. — O tempo foi passando, fui crescendo e aquilo só aumentando. 52


Eram brigas, ele me batia e dizia que não gostava de mim – relembra, sem conseguir explicar o motivo dessa situação com o padrasto. A família pobre, de cinco filhos, viu a mãe pela vida toda trabalhar como professora no interior do estado para conseguir mantê-la. Cresceram sendo criados por outras pessoas, devido a essa ausência. De uma relação boa com os irmãos durante a infância, o contato foi rareando depois que Lyra foi embora de casa. Mudou-se para Belém, capital do estado, e lá conheceu o ex-marido. Quando ele foi preso por tráfico de drogas, Lyra começou a visitá-lo no estabelecimento penal. Enfrentava a fila de visitantes constantemente, mesmo não gostando da exposição pela qual tinha que passar antes dos encontros. — A cada visita eu me sentia muito nervosa. Era difícil ter que se agachar e tirar a roupa na frente ali das pessoas. Era complicado, mas eu ia por gostar dele. Neste ínterim, ficou grávida de uma menina. Na época, devido à situação em que viviam por ele estar preso, Lyra não ficou contente imediatamente com a novidade. Somado a isso, ainda havia o lado paterno, que também não recebeu com alegria a notícia de que seria pai. — Mas depois que o tempo foi passando e cuidei dela sozinha, a minha filha é tudo para mim – afirma. Entre as visitas no presídio, em uma época de dificuldade financeira ainda durante a gravidez, o marido sugeriu que viajasse para transportar uma quantidade de drogas. A promessa era que, com isso, as coisas iriam melhorar em casa. Aceitou. Como uma prenuncia que delatava o mentiroso, Lyra foi presa assim que chegou ao aeroporto de Porto Velho, em Rondônia, em julho de 2017. Com isso, recebeu uma condenação de sete anos e dez meses. A partir daí, a saga da mulher começava. Longe da família, que morava em outro estado, abandonada pelo cônjuge ingrato, que terminou a relação por intermediação de uma advogada, e grávida, a jovem se viu sozinha naquela situação. — Fiquei triste e sofri muito porque gostava dele. A gente tinha um relacionamento de tempo e ele não fez por mim o que fiz por ele. Lyra desconfiava. Como uma voz que permeia esporadicamente os pensamentos de quem esteve devotadamente toda semana em um 53


presídio masculino fazendo visita e observando histórias semelhantes à dela, já esperava pelo término do relacionamento de cinco anos, com data de validade até a sua prisão. — A mulher está lá todo final de semana, faz visita. Ás vezes, tira da própria boca para levar para o preso. Depois que sai, ou lá mesmo, ele manda dar o bonde. Não quer nem saber. Dar o bonde, ir embora, ir para outro lugar. Mesmo aguardando pelo fim, que chegou parcelado em ligações perdidas e por uma advogada, a notícia foi difícil de aceitar. Ficou presa durante toda gravidez em regime fechado, em Porto Velho (RO). Nesse período, o ex-marido e pai da sua filha nunca a visitou. Viveu completamente só na gestação entre as dúvidas e as dores. Enfrentou o primeiro parto sem a companhia da mãe, irmãos, amigos ou do marido. Ao ver a menina, o mundo de Lyra parou ali, no rostinho da recém-nascida. Toda a incerteza que a acompanhou durante a gestação se desfez ao vê-la. Após o parto, recebeu autorização para ficar com a filha em liberdade com o uso de tornozeleira eletrônica, sem poder sair do estado. Cuidou do bebê em Porto Velho, sem o pai. Mesmo depois do nascimento da menina, o progenitor nunca procurou saber dela ou tentou contato com a mãe para oferecer assistência. — Não sei nada dele, tanto que ela foi registrada só no meu nome, cuidei sozinha mesmo. Depois de receber alta do hospital, Lyra foi forasteira na nova cidade, sem referência afetiva ou material. Iniciou uma nova vida ali, carregando a filha no braço como a única certeza no mundo da jovem mulher. — A minha filha é só um bebê, mas a gente passou por muitas coisas sozinhas em Porto Velho. Ela que me encorajava e me dava forças para continuar. Ao passo que ia construindo uma nova fase, resolveu visitar uma ex-companheira de cela. Lá, conheceu um rapaz, Deltan, que morava nas redondezas. Aproximaram-se e, com o tempo, a família dele, em especial a mãe, ajudava na criação da menina, antes mesmo dos dois iniciarem um relacionamento. Enquanto se aproximava de Lyra, ele se afeiçoava a filha também. Falava palavras de incentivo e tentava apoiá-la para continuar sem recaídas para o crime. Com o tempo, de54


cidiram assumir um relacionamento. — Ele me ajudou bastante e a gente resolveu tentar – afirma. Escolheram morar juntos e, na equação de ex-presidiária utilizando tornozeleira eletrônica e o companheiro com passagem pela polícia e também desempregado, as dificuldades chegaram novamente. Na mesma casa morava ela, a filha, o cônjuge e duas sobrinhas dele. Quando algum trabalho temporário aparecia para Lyra, ele cuidava das crianças e vice-versa. Trabalhou como operadora de caixa, recepcionista, garçonete, atendente e diarista. Conseguiu terminar o ensino técnico em mineração, mas por ter sido presa logo em seguida, nunca conseguiu atuar na área.

Dois meses separam Lyra da filha despertando a noite com fome e a prisão em Campo Grande (MS), por tráfico de drogas. Para aguardar o julgamento e a sentença, foi enviada para o Estabelecimento Penal Feminino “Irmã Irma Zorzi”, o único de regime fechado na cidade. Novamente presa e sozinha, repetia o ciclo de Porto Velho. Em outro estado, sem a mãe, a filha ou o marido, a jovem que saiu de Altamira, no interior do Pará, cruzou o país na vida descabida. — A gente tentava se virar como podia. Eu só vim e fui presa porque foi um momento de desespero. A minha filha acordou um dia a noite, não tinha nada, ela queria comer e eu me desesperei. Acabei não pensando e vim para cá, fui presa de novo e causei um mal maior. Em agosto de 2019, conheci Lyra no Zorzi, uma mulher vaidosa e de estatura pequena. Usava batom rosa e brinquinhos imitando pérolas brancas. Tinha olhos grandes e castanhos e pele parda. Os cabelos com luzes estavam amarrados em um rabo de cavalo, com cachos nas pontas de cada mecha. No dia fazia frio e vestia um casaco cinza claro de gola alta, calça jeans azul com a barra desfiada e calçava meias com chinelo. O rosto aparentava a juventude de 25 anos, sem espinhas ou marcas de expressão. A entrevista foi acompanhada por uma agente penitenciária da instituição e realizada na biblioteca, uma sala pequena, preenchida com seis estantes cinzas de metal, distribuídas em três paredes abar55


rotadas de livros evangélicos, espíritas, autoajuda, língua espanhola, sexualidade, catolicismo, literatura e saúde. Em um canto, um computador antigo e no armário um coração escrito “foco, força e fé”. Na parede, uma placa com os dizeres “gentileza gera gentileza”. Entre gesticular com as mãos e balançar os pés, Lyra foi contando a sua história. O sotaque da mulher delatava que não era de Mato Grosso do Sul e, nas vezes em que falou do estado, disse que estava em Mato Grosso. No dia em que foi presa, ela ligou para o marido. Depois disso, o contato foi pouco e de forma rápida. Na maioria das vezes, com ligação intermediada pela assistente social da unidade, conversava mais com a sogra, que ficou responsável por sua filha. — Vocês continuam juntos? – pergunto sobre o relacionamento. — Ainda estamos juntos – fala e da uma risada – pelo menos eu acho. Estou aqui sem saber de nada, mas acho que sim. Para ela, a falta de contato físico, como a visita íntima durante a permanência na prisão, é um modo de esgotar o sentimento com o tempo. Preocupa-se com isso. É uma perda que chega na vida das mulheres encarceradas e vai tomando conta. — Acho que o contato é o que faz permanecer o sentimento mais vívido. O tempo vai passando e já pensou? Daqui dois ou três meses, o juiz me ouve e fala ‘você vai ter que ficar cinco anos’. E se eu não ter esse contato? Será que vai permanecer dentro de mim? Dentro de mim pode até ser que permaneça, porque estou aqui presa, não tenho contato com ninguém. A lembrança que tenho é dele e da minha filha, de uma coisa que já tinha. E ele? Lá fora não, a vida dele continua - Lyra reflete. De acordo com informações da Agepen/MS, as visitas dos adultos na unidade, feitas apenas por familiares de até segundo grau de parentesco, são realizadas em todos os domingos. No caso de crianças e adolescentes acompanhados por um responsável, são reservados o primeiro e terceiro sábado do mês. Sobre a possibilidade de visitá-la, Lyra pediu que usasse o dinheiro para ajudar a filha que ficou em Porto Velho, sob os cuidados da sogra, mãe de Deltan. Na conversa, ela disse que tudo bem se preferisse seguir para outro relacionamento, mas que não desamparasse a menina, com menos de dois anos de idade. Em setembro de 2019, uma 56


passagem de ônibus de ida e volta de Porto Velho para Campo Grande custava R$ 466,24. De avião, as passagens sairiam em torno de R$ 1.534,00. Quando saiu da capital de Rondônia, o companheiro tinha conseguido emprego há uma semana em obras de pavimentação. — Eu pedi para que não viesse. O que pudesse fazer e teria que gastar vindo para cá, que fizesse pela minha filha lá. Depois de um tempo encarcerada em Campo Grande, outra notícia que repetiria em sua vida. Estava grávida novamente. Desta vez, o pai, na outra cidade, recebeu com alegria a novidade. Seria seu primeiro filho. — Ele falou que estava muito feliz e que eu estava dando o melhor presente - contou sorrindo. Entretanto, a inquietude em saber que passará novamente pela mesma experiência de estar grávida em uma prisão, aflige Lyra. Preocupa-se com o enxoval que, até a nossa entrevista, não existia. Pensa na alimentação para atender o bebê e como seguir corretamente com o pré-natal. Desassossega-lhe imaginar que na hora do parto terá como único acompanhante um policial da escolta. Sofre pensando até em como será depois do parto, quando a criança terá que deixar seu colo. — Depois de seis meses e se não tiver ninguém para vir buscar? Como é que faz? Depois de certo tempo a família tem que ir buscar. E se não vir? De acordo com a recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS), de 2001, o ideal é que a criança seja alimentada exclusivamente pelo leite materno pelo menos até os seis meses de vida. Este direito foi garantido às encarceradas em 2009, com a Lei 11.942, que definiu período mínimo de seis meses na Lei de Execução Penal (LEP). Antes disso, o documento não estipulava o tempo que a criança poderia permanecer com a mãe. Segundo a Agepen, os recém-nascidos podem ficar na unidade prisional por seis a nove meses. Sobre a outra filha, que ficou em Porto Velho, o peito é preenchido pela dor. Antes mesmo de fazer a primeira pergunta para ela, falou da saudade que a visita todos os dias. A voz da mulher fica miúda devido ao choro e conta dos receios pela menina longe, pensando no quanto perde da vida dela ao não acompanhar o crescimento, devido a estar presa. 57


Tráfico de entorpecentes é o principal crime cometido por mulheres em Mato Grosso do Sul, em setembro de 2019, conforme informações da Agepen. Aparece com 67%, enquanto homicídios, em segundo lugar, representa 10%. Em terceiro, com 9%, vem “outros” e, em seguida, furto com 7%. À nível nacional, de acordo com o INFOPEN Mulheres de 2018, 62% das condenações de mulheres foram por tráfico de entorpecentes.

— Eu posso ter cometido o erro de traficar, mas nunca quis o mal dela, foi tudo para o bem, para não ver ela passar fome, para não ter o que vestir, não ter o que calçar. Lyra tenta agarrar-se as boas lembranças, as únicas coisas que restam de quem ficou para trás, lá na região norte do país. As memórias são as suas constantes companheiras na vida dentro do estabelecimento penal. Recorda da convivência com a filha, as primeiras palavras e os primeiros passos que estava dando quando foi embora. — Eu lembro que ela era bem gordona quando bebezinha. A gente estava deitada, dando de marmar e comecei a tirar foto. Ela deu um sorriso e a foto ficou a coisa mais linda porque aparecem os dois dentinhos de baixo. Foi o primeiro sorriso dela – recorda. — Qual foi o momento mais difícil para você aqui? – pergunto. — Foi quando eu passei pela assistente social e pedi para falar com a minha filha e ela já não falava mais ‘mamãe’. Já tem dois meses que estou aqui. Ela vai esquecendo e isso é muito difícil – diz, percebendo que além da distância, a memória da menina também ia a separando dela com a falta de contato. Como grávida, diz que não tem autorização para trabalhar e nem para participar de oficinas. Por já ter concluído o ensino médio, também não lhe resta estudar. Tem apenas o banho de sol, uma vez de manhã e à tarde. Durante o cárcere, a ociosidade a preenche e lhe resta ruminar pelos pensamentos. — Logo que cheguei aqui achei que ia ficar doida. Eu não dormi, não comi e não me alimentava, só pensando na minha filha. ‘Meu Deus, como ela está?’. Ela não sabe se virar, não é que nem a gente, é uma criança. 58


Os finais de semana são os piores dias. Demoram a passar. Pensa na procissão de coisas que tinha em Porto Velho e que, atualmente, não tem. Lembra da filha, da casa e do marido. Agora, de novo em outra cidade, tem apenas o filho que carrega no ventre de proximidade afetiva. O calendário é outro que a tormenta. Os feriados e datas comemorativas machucam devido à lembrança que não será compartilhada naquele dia e pela congratulação que não será ouvida. A boa memória em lembrar aniversários penaliza pela saudade de quem completa mais um ano longe dela. — É horrível. Eu fiz 25 anos aqui dentro. Fui presa no dia 12 de junho e no dia 24 eu fiz 25 anos. Lembrei do aniversário de uma irmã minha também. Veio o dia dos pais e eu queria poder ter falado com o meu marido, desejar um feliz dia dos pais para ele – lamenta. Além das pessoas que ficaram em Porto Velho, Lyra pensa na própria mãe. Com vergonha de admitir a situação em que está novamente, ainda não teve coragem de falar sobre o que aconteceu. Protela a conversa. Guarda para si para evitar o sofrimento que imagina que ela passaria. — Só de pensar em falar ‘mãe, eu estou presa em outro estado de novo com outro tráfico e grávida’, como vai ficar o coração da minha mãe? – imagina. Conversou com ela uma vez e sente a saudade todo dia. Apesar de ter saído nova de casa, por causa da situação com o padrasto, ela mantinha contato com a mãe. No estabelecimento penal de regime fechado, de paredes pintadas de preto e amarelo que representam as cores do brasão da Agepen/MS, Lyra tenta manter-se firme, empurrando para o canto os pensamentos de amargura. Na primeira vez em que foi presa, a mãe implorou que tentasse manter-se bem emocionalmente. — A gente está isolada, não tem mais aquele contato e dá um desespero, uma agonia. Dá vontade de tacar logo a cabeça na parede, ou sei lá, fazer uma loucura no desespero. Não receber visitas é um fator que move a sensibilidade das companheiras de alojamento, que lhe ajudam como podem. Por ser de fora da cidade, as colegas se compadecem da menina paraense de Altamira. Tentam animá-la sobre a situação com a mãe e dizem que o 59


perdão seria dado pela a que tentou pela docência, a duras penas, criar os cinco filhos. — Eu sei que ela pode entender e perdoar, mas vai sofrer mais ainda e não quero dar esse desgosto para a minha mãe. Eu acho que já dei desgosto suficiente para os meus filhos e para a minha família.

Constelação Lyra: Lyra Estrela Delta Lyrae: Deltan

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Leonora LeĂŁo

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O sol no horizonte denunciava o entardecer. 57, 58, 59. Perdeu-se na contagem. Nada. Os segundos que iam esgotando-se se transformaram em horas, que refletiam nas mãos suadas de ansiedade por uma resposta. O portão preto de três metros era a sua liberdade da angústia que a preenchia desde a ligação telefónica. Tinha medo de não estar lá. Tinha passado o dia chorando e recusou todas as ofertas de remédio para acalmar, pois suspeitava que fossem para fazê-la dormir. Virou-se e olhou para o muro da instituição nas cores amarelo e preto. Era a única opção. Deu alguns passos e chegou onde as internas descascavam mandioca. Aproximou-se do obstáculo e subiu. Não se lembra como escalou o paredão de tão embargada pela emoção de vencê-lo. Conseguiu chegar ao topo. Equilibrou o corpo para fora, pendeu o olhar para baixo e ponderou. Era tão alto. Reparou que na rua alguém observava sua ação, equilibrada no muro do Estabelecimento Penal Feminino de Regime Semiaberto, Aberto e Assistência à Albergada da cidade. Pensou novamente no luto em casa. Pulou.

A saudade que abraça cada detenta todos os dias tem o nome de um filho, uma mãe, marido, avó, de uma prima e, de forma menos provável, um pai. Talvez tenha uma cicatriz no joelho proveniente das brincadeiras de infância. Talvez o irmão estava acompahado da menina magrinha, de cabelo castanho cacheado, nariz pequeno e sobrancelhas finas. Em casa, a mãe aguardava as quatro crianças retornando da brincadeira na rua. Em março de 2017, Leonora, com 28 anos atualmente, saltou. “Me arregacei ali na rua”. Devido à altura do muro e pela movimentação de carros, deduziu que talvez morresse. Sobreviveu. Com a ajuda de um rapaz que ficou a olhando pular, foi levada até em casa, para o velório do avô, que tinha morrido no horário de almoço daquele dia. Em troca do favor, o observador pediu que não comentasse com ninguém sobre o nome ou placa do seu carro. Acabou ali. Quando a vizinha da avó ligou no presídio dando a notícia, a vida de Leonora estancou nas palavras que ouviu. A notícia era que o ho64


mem que, além de avô, foi também pai para a mulher de pele parda e olhos pequenos, havia falecido. O filho mais velho dela, Dener, percebeu algo estranho com o senhor que, após quatro derrames e uma cadeira de rodas elétrica quebrada, passava seus dias na cama hospitalar em casa. O garoto pegou o número de telefone do estabelecimento penal no celular do bisavô e, por ser criança e estar sozinho em casa, sem a tia e com a bisavó no trabalho, pediu para a vizinha que telefonasse para Leonora. A mulher que pulou o muro de três metros não retornou no dia seguinte para o presídio e nem no próximo. Permaneceu foragida por um ano e quatro meses.

Conheci Leonora enquanto cumpria a pena no regime semiaberto, em setembro de 2019, na mesma sala pequena e de dois computadores em que encontrei Ariana. O cabelo castanho e cacheado estava preso em um coque e na pele parda haviam sardinhas que lhe pontilhavam no rosto próximo ao nariz. Era magra e vestia uma blusa amarela de babados e uma bermuda jeans. Usava chinelos e as unhas dos pés estavam bem pintadas, com estampa de francesinha. Tinha uma voz calma, mas falava de jeito firme. Filha de mãe nova, quando nasceu, Leonora foi morar com a avó ainda bebê de colo. Nunca conheceu o pai. Pouco tempo depois, a genitora entrou em um relacionamento e casou-se. Desta união, nasceram três meninos. Receosa pelo marido da filha não ser pai da menina, a senhora preferiu criar a neta, com medo da possibilidade de abuso. Apesar dessa perspectiva, a relação com a família sempre fora boa. Foi criada pelos avós, mas todo final de semana a mãe de Leonora a buscava para levá-la em casa. Cresceu brincando com os irmãos na rua e recebia os mesmos presentes que eles, até os que o padrasto dava para os filhos. O avô trabalhou pela criação dela e da família em fazendas por muito tempo. Depois, começou a vender picolés em frente de um hospital na região central da cidade. A avó está no mesmo resturante 65


há 27 anos e hoje lidera a cozinha do lugar. Conforme foi crescendo, Leonora descobriu as aventuras da vida. Gostava de sair a noite, ir para festas. Nisso, a avó sempre a aguardava chegar em casa, às vezes só de manhã, para abrir a porta. Preocupava-se, esperando por notícias e temendo que poderia acontecer algo de ruim com ela. — As meninas saem, acabam sendo estupradas, o povo mata mulher e não está nem aí com nada. A preocupação dela era essa, passava noite em claro esperando eu voltar – relembra. Entre as festas que frequentava, conheceu Reginaldo. Sabia que ele pendia para o mundo do crime, com o tráfico de drogas, mas isso não impediu que se envolvesse. Engravidou aos 15 anos. Entre as melhores lembranças de infância, estava estudar. No colégio, as mães expressaram preconceito pela aluna grávida e, para fugir dos apontamentos, mudou as aulas para o noturno. Entretanto, como a escola ficava longe de casa, desistiu. Parou na oitava série. — É uma coisa que eu quero retomar, os meus estudos – afirma. Começou a trabalhar cedo, enquanto o companheiro continuava no crime. Trabalhou assando frango, salgado e como diarista. Toda sua expectativa de alinhamento com a vida, de resoluções para lutar por um futuro melhor para seu filho, caíram por terra quando Dener nasceu. A menina jovem não estava preparada para a dureza da vida real. — O que você sentiu quando viu o Dener pela primeira vez? – perguntei sobre o primeiro filho. — Na hora de ter o neném chorei muito, não queria ter mais. Pela dor, você acha que não vai nascer agora. O médico falou vai e vai ser normal. Na hora que vi ele, achei que ia mudar muita coisa, teria responsabilidade. Nossa senhora, eu pensei ‘agora vou ter mais responsabilidade, vou dar um futuro melhor para o meu filho, vou estudar’ e não foi nada disso. A mãe de Leonora mudou-se com o marido e, com isso, deixaram vaga uma residência que era dele. Era a sua oportunidade de ter a casa própria. O padrasto a orientou que regularizasse a água, luz, IPTU e os papéis relativos a posse para transferir para o nome dela. Mudou-se com o marido e o filho e conseguiu resolver as pendências de água e luz, faltando apenas a documentação do imóvel. 66


Segundo o INFOPEN Mulheres de 2018, 74% das encarceradas são mães e responsáveis pelo sustento familiar.

Em 2014, aos 23 anos, descobriu que estava grávida novamente de outro menino, Ethan. Durante a gestação, em janeiro do ano seguinte, sem saber que o marido estava foragido, a polícia apareceu de madrugada na residência em que moravam. Foi levado preso. A partir daí, as linhas de uma vida no crime começavam para Leonora. Decidiu traficar. Apesar de certa estabilidade que tinha conquistado sendo sócia com as primas em um pequeno negócio de máquinas de frango assado em quatro pontos da região norte, queria manter o mesmo padrão de vida e não deixar faltar em casa. Além disso, outros fatores pesavam em sua decisão, como o filho pequeno, a sogra desamparada e o bebê que gestava. Começou a visitar o marido no Estabelecimento Penal “Jair Ferreira de Carvalho”, de segurança máxima de Campo Grande (MS), localizado na região leste da cidade. Religiosamente em todo domingo, acordava de madrugada a fim de preparar comida. Era a primeira a chegar. Enfrentava a fila de visitantes, que começa a se formar de madrugada, com a barriga de gravidez do Ethan, que foi gestado ao longo dos meses tendo como pano de fundo a “porta de cadeia”. Quando era dia de visita, deixava Dener na casa dos bisavós. Leonora nunca levou o filho para visitar o pai, tinha medo que criasse trauma ou crescesse marcado pela experiência de ser revistado em um presídio. Nessas ocasiões, era o momento da família confrontá-la novamente por escolher continuar com o marido. — Era briga todo dia – recorda. Para realizar visitas aos estabelecimentos penais é necessário ser parente “em linha reta e colateral” até de segundo grau, como pais, avós, filhos, netos 67


Informações de de acordo com a Portaria Normativa da Agepen Nº 34, de 15 de abril de 2019.

e irmãos. No caso dos companheiros, é necessário apresentar para cadastro a Certidão de Casamento ou Escritura de Reconhecimento de União Estável registrada em Cartório de Notas ou a decisão judicial de reconhecimento de união estável. Além disso, é possível realizar visitação também como parceiro por meio da Declaração de Relacionamento Afetivo, que precisa ser assinada pelo preso e visitante. No presídio de segurança máxima, a visita íntima, segundo relembra Leonora, acontecia nos alojamentos, às vezes até com cinco internos dividindo o mesmo espaço. O mínimo alívio de privacidade era um pano, que funcionava como cortina entre as camas. — Era constrangedor, antes eu não pensava nisso. Fora dali, enquanto trabalhava com o tráfico, o avô por quem foi criada, foi notando a mudança de comportamento. Uma transferência bancária aqui, outra para o fulano. Uma compra grande esporadicamente. Percebeu do que se tratava e pedia que parasse, prevendo o destino da neta. — Você só vai sossegar quando esse seu marido te colocar na cadeia ou lá no cemitério – Leonora relembra, comentando que moravam próximo ao cemintério Cruzeiro. Além das visitas e da comida preparada e levada semanalmente, Leonora bancava o marido dentro da cadeia em outros aspectos, como com celulares, por exemplo. Quando um quebrava, substituia por outro. Entregava o melhor para ele, tudo com o dinheiro do tráfico. — Levava do bom e do melhor. Ele dava gasto lá de R$ 5 mil, R$ 6 mil por mês. Levava tudo. Ele queria tudo e eu levava tudo. — Esses 5, 6 mil reais que você gastava vinham 68


de onde? – pergunto. — Era tudo do tráfico. Eu estava indo para quarta máquina de frango e vendi tudo. Hoje eu me arrependo, vejo o sofrimento quando uma mãe perde o filho para as drogas, é muito triste – afirma. Enquanto a barriga crescia, cuidava do filho, gerenciava o tráfico e visitava semanalmente o marido, o avô de Leonora, que a cuidou como se fosse filha, sofreu o quarto derrame e precisou de cadeira de rodas. O equipamento de locomoção disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) era manual e o fazia dependente de ajuda de terceiros. Para contornar essa limitação, ela comprou uma cadeira elétrica que o possibilitaria transitar para onde quisesse. Pagava a manutenção do aparelho para funcionar regularmente e comprava os remédios e as fraldas geriátricas usadas todos os dias. O dinheiro do tráfico possibilitou dar a assistência que o avô precisava. — Fiz de tudo para dar do bom e do melhor para o meu avô. Tudo que fez por mim, tentei fazer no momento que necessitou. Comprei a cadeira elétrica, cama de hospital, colchão d’água, tudo para dar uma assistência. Se pudesse ter colocado um hospital dentro de casa tinha colocado. Faltava nada para o meu avô, nada. Nada em questão de medicação, fralda e remédio. A farmácia perto de casa já me conhecia. Qualquer coisa que meu avô precisasse era só ligar, depois eu passava lá e acertava – afirma. Depois do quarto derrame, a avó de Leonora cuidou do marido. A chefe de cozinha viu o marido adoecer. O homem assegurava a neta que daria jeito na situação, que um empréstimo resolveria. Terminou com o nome sujo. Dos sete filhos, receberam visitas esporádicas e poucas ajudas. A maior veio da neta, que conciliava as responsabilidades em casa com as demandas do tráfico. — Eles não ajudavam com nada, não queriam saber se a minha vó tinha uma mistura na geladeira, não queriam saber. Em junho de 2015, Ethan nasceu. Outro sopro de vida chegava na família que, após 28 dias do nascimento do menino, foi estremecida. Em três de julho a polícia apareceu novamente. Desta vez, o alvo era Leonora. A ação era resultado de uma investigação de seis meses sobre uma rota de tráfico de drogas que começou no presídio e acabou 69


chegando nela. No início, sabiam apenas que havia uma traficante na zona norte, sem identificação. Por precaução, ela não usava o próprio nome por lá. Levaram o dinheiro e o carro. Com a mesma facilidade e rapidez, todos os bens se foram. Por um mês, foi citada no noticiário local como a maior traficante da região. A associavam com pessoas que desconhecia e especularam sobre uma possível quadrilha de mulheres na zona norte. Algumas internas ela chegou a conhecer quando comentavam que a viram na TV. Com o seu rosto passando todos os dias nos telejornais, solicitou para o advogado que fizesse o pedido para retirada de veiculação de sua imagem. O filho mais velho, Dener, na época com dez anos, estava em idade escolar e algumas pessoas souberam o que tinha acontecido com Leonora. Nos primeiros 40 dias na prisão, ficou presa no corró, sem acesso a televisão e não acompanhou o que era divulgado sobre ela no noticiário. Com o filho longe, sentia-se culpada pela situação que ele enfrentava. — A gente precisou mudá-lo de escola porque sofreu bullying. Criança entende que droga é errado e começaram a falar que prejudicava as pessoas, que eu era ruim, que devia ficar presa e nunca mais sair. Ele sofreu. Meu filho foi o que mais sofreu nessa história. No novo colégio, a avó, responsável agora por cuidar dos bisnetos, contou apenas para a diretora da situação da mãe do Dener. O recém-nascido, Ethan, não pode ficar com a mãe no presídio pelos seis meses que são garantidos na Lei de Execução Penal (LEP) para amamentação, apesar que tinha menos de um mês de vida quando Leonora foi presa. Agora dentro do sistema penitenciário, a devoção por Reginaldo continuava e, desta vez, mais obstinada. Curiosamente, o marido ainda preso na penitenciária de segurança máxima ignorava suas ligações. Fez pedido para assistente social para realizar um telefonema que só seria permitido se fosse para os familiares. Ligou no presídio. — Não me liga mais aqui – ele disse quando ligou diretamente no celular dele. No estabelecimento penal, segundo ela, entravam celulares. Alguém tinha e era por meio desses outros que tentava falar com o marido. 70


— Eu ligava, insistia para falar com ele que trocava de número. Ligava para outro preso e outro preso conhecia outro preso. Foram uns três meses assim – relembra. Depois desses episódios, ela soube que Reginaldo tinha saído em liberdade. Não mandou mensagem, não apareceu. Muito menos compareceu no portão do Estabelecimento Penal Feminino “Irmã Irma Zorzi” para visitá-la. A traição dele chegou logo em seguida. Envolveu-se com outra mulher. — Por quanto tempo você ficou visitando ele? – pergunto. — Eu não faltava um domingo, era a primeira a entrar na cadeia. Levava de tudo e ele nunca mandou para mim nenhum sabonete, nem lembrou para perguntar se tinha advogado. Em liberdade, nunca foi até a casa da bisavó dos filhos para vê-los. Não mandou ajuda. Foi ter notícias quando ele, sorrateiramente, vendeu a casa que o padrasto de Leonora tinha dado para ela. Com a documentação em falta, conseguiu transferir o imóvel para o comprador e ficou com todo dinheiro. — Eu estava lá na rua, tinha dinheiro toda hora, podia colocar meu advogado para correr atrás e não fiz. Quando tive a notícia, tinham outras pessoas morando na casa. Fizeram escritura, pagaram tudo o que era atrasado, fizeram uma fraude com os documentos e provaram que era deles. Perdi uma casa muito boa, hoje não tenho casa própria – lamenta. Do ex-marido nunca recebeu visitas. Dos filhos, não quis que passassem pelo processo de revista e correr o risco de criarem traumas. Nem a visita assistida com a assistente social não quis. Em relação aos avós que a cuidaram, apesar de terem procurado fazer a carteirinha de visitantes, Leonora não aguentaria pensar nos dois, tão idosos, indo até ao presídio todos os finais de semana. — A carteirinha chegou e só me avisaram que ia ter visita no domingo. Para a família não precisa assinar nada, é rápido, mas quando veio a do meu avô e da minha avó eu falei não queria a carteirinha. Trabalhar a semana inteira para depois estar lá na porta e ser revistado? Viveu na prisão em regime fechado longe dos avós e dos filhos, suas relações afetivas mais fortes. De forma revezada aos domingos, des71


tinado aos adultos, recebia visita de uma tia e dos dois irmãos mais velhos. O terceiro era adolescente e não os acompanhava. — Eu não vou te abandonar aqui - a tia disse. Ela acreditava que se a abandonasse, Leonora poderia sair mais revoltada. — Mas se você sair de novo e aprontar, vai ficar sozinha, não vai ter mais família – os irmãos avisavam. Nessas ocasiões de encontro com os familiares, pensava nos filhos. Queria vê-los. Nas visitas, escutava o sermão que se prolongava, as notícias que a família lhe contavam toda semana, cada minúcia de vida. Escutava pela saudade. — Acabava escutando o sermão até acabar a visita - ela conta relembrando da tia. Resoluta em seguir o conselho de uma colega para esquecer o ex-marido, após sair a sua condenação de quatro anos e seis meses por tráfico de drogas, Leonora dedicou-se a todas as atividades que surgiram, como estudar, trabalhar, participar de cursos, para “não pagar de testa fechada”, sem remissão de pena. Estudou durante a permanência na instituição, mas não recebeu e nem mandaram atestado que comprovasse a situação de estudante. Depois que sair em liberdade, ela afirmou que pretende refazer o que já fez e concluir o ensino médio. Começou a trabalhar na cozinha do Zorzi e mandava dinheiro para casa. O avô era o que mais lhe preocupava. Logo após ser presa, a cadeira de rodas elétrica que tinha lhe dado quebrou. Cada carregador custava em torno de R$ 2 mil e o pouco dinheiro que restava, minguou. A cadeira foi deixada em um canto e o avô pasou a viver os últimos meses de vida em uma cama. Quando soube do tempo de condenação da neta, seu coração quase parou imaginando que passaria quatro anos sem vê-la. Não entendia o funcionamento da legislção e que a pena para réu-primário poderia ser reduzida para 2/5, de acordo com a Lei 11.464/07. — Dois anos? Nossa senhora – ele disse quando lhe explicaram quanto tempo ela ficaria presa. Leonora pedia para o advogado mentir e dizer que a qualquer momento poderia ser solta para tentar acalmá-lo. 72


Durante o período que ficou no regime fechado, reparou nas diferenças entre os presídios masculino e feminino. No Zorzi, notou que apenas oito mulheres recebiam visita íntima. Quando o visitante chegava, a interna assinava um documento confirmando que recebeu preservativos. Se engravidasse, parava de trabalhar se fosse o caso e, consequentemente, perdia a remissão de pena. — Lá no presídio passava por exame. Na máxima fazia a carteirinha e já podia ter visita íntima. Às vezes, corria o risco de pegar até uma doença. Vi caso de mulher que conheceu o preso por telefone, foi lá visitar, o preso tinha HIV e passou para ela, não falou que tinha doença. As visitas íntimas no regime fechado feminino são realizadas em um espaço destinado a esta finalidade, diferente do que ocorre no presídio masculino, de acordo com a Agepen. No Zorzi, é necessária a carteirinha de visitante e um cadastro específico, em que são anexados cópias de documentos pessoais, comprovante de residência do visitante, parecer psicossocial e disciplinar, jurídico, médico, termo de responsabilidade assinado pela interna e teste rápido para a detecção de doenças sexualmente transmissíveis. Em resposta sobre a visita íntima em presídios masculinos, a Agepen mencionou apenas a realização da carteirinha, conforme a Portaria Normativa AGEPEN-MS nº 34 de 15 de abril de 2019. Sobre as visitas fraternas, ela notava que boa parte dos visitantes eram mães, irmãs, tias ou amigas. A maioria dos homens eram pais ou irmãos e poucas mulheres recebiam visita dos pais dos filhos. No caso do presídio masculino, o cenário era outro. Longas filas de mulheres que se formavam em frente ao estabelecimento penal. — Você não consegue entrar, é muita gente. A vistoria demora e não acaba passando um dia inteiro lá. Agora no feminino é rapidinho. Visita de criança no feminino você vai lá na porta e conta duas ou três crianças. No masculino é lotado. Eu nunca vi tanta criança em porta de cadeia igual no masculino; e são revistados, tem que tirar a roupinha e o sapatinho. Segundo a Agepen, a revista é realizada com todos os visitantes. Nos bebês é feita a troca das fraldas pelas mães [importante frisar que “mães” foi utilizado pelo órgão] e as mulheres que estão menstrua73


Desde a Lei nº 13.271, de 15 de abril de 2016.

De acordo com o Art. 120 da Lei de Execução Penal (LEP), os internos que cumprem pena em regime fechado e semiaberto tem permissão para sair do estabelcimento acompanhados de escolta no caso de falecimento de cônjuge, companheira, ascendente, descendente ou irmão. Segundo o texto, a autorização para a saída será concedida pelo diretor do estabelecimento penal onde está a pessoa privada de liberdade.

das trocam os absorventes, ambos fornecidos pela unidade penal. De acordo com a entidade, está em fase de implantação scanners corporais nos presídios do estado para transformar a revista em um processo mecanizado. É proibida a revista íntima, também conhecida como vexatória, em mulheres nos ambientes prisionais, além de tramitar na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 7764/2014, que prevê a vedação deste tipo de revista. Após cumprir dois anos e quatro meses da pena em regime fechado, foi transferida para o semiaberto no Estabelecimento Penal Feminino de Regime Semiaberto, Aberto e Assistência à Albergada, na região sul da cidade. Quem cumpre este tipo de regime tem direito a trabalhar fora da instituição e precisa realizar estritamente apenas o caminho de ida e volta entre o presídio e o trabalho, com pena do descumprimento ser considerado desvio de rota e ir para o “castigo”, sem permissão para saídas. Foi por dez minutos que Leonora fez a primeira “quebra” quando se atrasou para retornar. — Eu saí para trabalhar aqui com oito dias e não tinha passe de ônibus, não tinha nada. Eles te dão um papel de autorização e, assim que abrem o portão, você tem que sair doida na rua. Se você tem dinheiro, tem uma pessoa que pode vir te buscar aí dá jeito, mas se não...o meu deu desvio de rota. Por ter acabado de sair do Zorzi quando realizou esta quebra de horário para voltar à unidade, teve que ir para o regime fechado. Com o auxílio do advogado, conseguiu retornar para o regime semiaberto logo em seguida. A segunda “quebra” veio quando recebeu a notícia do falecimento do avô. Pediu autorização para ir em casa vê-lo pela última vez. — Vamos esperar, tem que pedir atestado de 74


óbito, tem isso, tem aquilo – relembra o que lhe disseram enquanto as horas avançavam. Achava que era uma desculpa para deixá-la dentro do presídio quando o portão fosse trancado. Com isso em mente, pulou o muro. Foi levada até em casa pelo desconhecido que a observou saltar e permaneceu foragida por um ano e quatro meses. A avó entrou em depressão depois do falecimento do marido e pediu licença do restaurante que trabalhava há 27 anos e ainda tinha os dois filhos que precisavam de amparo. — Minha avó não queria trabalhar, agir na vida dela. Não tinha como eu voltar e ela nessa situação. Os poucos parentes que ajudavam em casa, como a tia que a visitava no presídio e um tio, ficaram doentes. Leonora acredita que os outros ignoravam a existência dos pais devido à vergonha das origens humildes. Do homem analfabeto que encerrou a vida vendendo picolés e da mulher que não sabia ler. Por Leonora não poder se identificar, não foi ao médico. Tratou dos machucados do muro tomando remédios por conta própria. Essa situação de anonimato era uma preocupação constante para a mulher que, caso necessitasse de ajuda ou socorro, teria a cadeia, provavelmente, como destino. — Se acontecesse alguma coisa comigo, sofresse alguma violência, como iria na delegacia? Eu que ficaria presa. Enquanto estava foragida, o ex-marido a procurou. Foi preso novamente e estava em Três Lagoas (MS), a 326 km de Campo Grande. Mais especificamente, era a atual companheira que pedia a assinatura de Leonora para autorizar os filhos a visitarem o pai e, assim, ter o direito a entrar nos dias de visita das crianças também. Disse para ela que por estar de “quebra” do semiaberto não poderia ajudá-la, mas a verdade é que nunca autorizaria os filhos a passarem pela porta de uma cadeia. Leonora precisava de um emprego que não necessitasse pesquisar seu nome. Encontrou no site OLX a possibilidade de vender lingerie. Começou a trabalhar para Alteir, proprietário da empresa de revenda. Com o tempo, envolveram-se e começaram um relacionamento. Leonora guardava segredo sobre os problemas com a justiça. Por ex75


periência, tinha medo que a abandonasse. Foi morar com ele e, pelas desventuras das possibilidades, engravidou. — Ele perguntava se eu queria tirar cartão de crédito no meu nome e eu sempre evitava, dava uma desculpa. Eu não tinha paz, não conseguia dormir. Quando engravidei que ele ficou sabendo [que era foragida], porque não queria fazer o pré-natal de jeito nenhum, eu sabia como ia ser. Agora, além das preocupações com os filhos, a avó e a possibilidade de ser presa a qualquer momento, tinha a gravidez e um pré-natal pela frente. Desta vez, gestava uma menina. Quando a encontrei no estabelecimento penal de regime aberto e semiaberto, estava acompanhada da filha, agora com dois meses de idade, de braços brancos redondinhos, cabelo preto, usando vestido de verão e um chapéu rosa enfeitado com um laço na cabeça para protegê-la. — Entrei em depressão com essa gravidez. Parei de tomar remédio quando ela nasceu, porque até lá no Zorzi estava tomando remédio controlado. Eu tentei me matar, não fiquei bem na rua porque sentia que estava prejudicando ela. Acordava pensando na polícia, dormia pensando na polícia. Fiquei louca na rua, foi muito difícil. A minha família toda me apoiou. Quando via um camburão passando perto da minha casa, ia para a casa de uma tia minha, prima, primo, meus irmãos, cunhadas, todos abriam a porta para mim. Via a polícia passando, já mudava de endereço de novo. Fiquei oito meses assim e foi muito ruim. Minha sorte é que tenho família, tenho que agradecer muito a Deus e a eles. Quando descobriu que estava grávida, Leonora pensou em como faria o pré-natal, com o agravante de precisar esconder que estava foragida da polícia. Foi a uma unidade de saúde e solicitou a carteirinha de gestante. No sistema constava o endereço do presídio e, para que pudesse fazer o registro, precisava levar o alvará de soltura. Um documento que não tinha. — Tentei conseguir com a agente de saúde, ela explicou a minha situação para o médico e fez a carteirinha. Eu saí com as consultas todas no particular, exame e tudo pago. Realizou todo o pré-natal na rua e faltando duas semanas para o nascimento da filha retornou para o semiaberto. Nesta época, com 76


a avó melhor de saúde, a mãe de volta a Campo Grande e um irmão morando com a avó, ficou mais tranquila para voltar para a prisão. — Eu tinha medo de me entregar e, em seguida, minha vó ficar doente e partir. Ela já é de idade e os meus filhos ficariam sem ninguém e na rua, porque meus irmãos não têm filhos, não têm responsabilidades com criança, só com eles. Quando foi se entregar, Alteir a acompanhou até o Estabelecimento Penal Feminino de Regime Semiaberto, Aberto e Assistência à Albergada. Depois que Leonora contou sua história, ele prometeu que não a abandonaria e apenas pediu para que não voltasse para o crime. Após o nascimento, o companheiro conseguiu autorização do juiz para visitar Leonora e a filha no hospital. Entretanto, a saga começou logo na entrada. Antes de ser liberado para fazer a visita, foi barrado, mesmo com a apresentação do documento que permitia vê-las. O policial que estava nesse horário da escolta, que era trocado a cada seis horas, não deixou logo de cara. Após várias insistências, conseguiu entrar. A menina nasceu na quinta-feira e Leonora teve alta no sábado. Com isso, foram 72 horas revezando entre polícias e os temperamentos de cada um. — Em comparação com as outras duas gestações e com essa, qual foi a maior diferença que você notou? O que te marcou mais? – quis saber. — Ter ela com escolta foi muito ruim. Eu só não fui algemada no dia que ela nasceu porque o meu marido estava comigo. Tinha policial que era tranquilo, de boa, e tinham outros que iam lá saber quem que eu era, se era presa. Até um queria algemar o meu pé quando meu marido tinha saido para comprar fralda. Só não fui algemada por causa das outras visitas. — Por que vai algemar ela? – eles disseram. Na hora, Leonora pensava em como iria levantar da cama com a bebê no colo caso precisasse de alguma coisa. Pelos três dias transitou entre esses momentos. Houve policial que queria que permanecesse 24 horas com o mesmo uniforme que foi para o hospital e outro que barrava a entrada de frutas e roupas enviadas pela mãe de Leonora. Para ela, aparentava que alguns queriam deixar claro para todo o hospital que era detenta e a possível pericu77


losidade que a parturiente poderia apresentar. — Eu falei que não ia vestir o mesmo uniforme, ele queria mostrar que eu era presa, me tratar como se fosse uma bandida perigosa, que podia matar alguém, o bebê, sei lá o que pensou. Com essa situação, a assistente social da Maternidade Cândido Mariano precisou intervir e frisou que ela era detenta no presídio. Ali não era o local para prejudicá-la, seja com o nascimento da filha ou para deter visitas. Na visão da profissional, a autorização do juiz lhe dava legitimidade para ter um tratamento digno. — Quando eu fui para o presídio deu mais alívio. Enquanto estava no regime semiaberto, não podia trabalhar, pois a filha precisava ficar totalmente sob a sua responsabilidade dentro da instituição. Caso acontecesse uma rebelião, por exemplo, e a bebê estivesse com outra pessoa, Leonora seria responsabilizada e perderia a guarda da menina. No dia a dia, recebia ajuda das companheiras com ela, além do apoio da psicóloga e assistente social da instituição. Ela tinha autorização para sair apenas para ir ao médico. Eram nesses momentos que podia ver os outros dois filhos, que iam com o padrasto buscá-la para as consultas. Dener e Ethan ficaram felizes quando souberam que teriam uma irmãzinha, mas houve uma leve esmorecida quando perceberam que a mãe e a irmã ficariam longe. No Estabelecimento Penal Feminino de Regime Semiaberto, Aberto e Assistência à Albergada a visita é feita aos domingos, das 13h às 16h. A interna pode receber até três visitantes adultos por dia. No primeiro e terceiro domingo do mês, as visitas são realizadas pelas crianças e não há limite de quantidade. No caso de Leonora, para as visitas semanais, optou pelo nome do marido. Pelos três primeiros meses de vida da filha, Leonora cumpriu a pena no regime semiaberto. Em novembro de 2019, foi beneficiada com o livramento condicional, que funciona como uma antecipação da liberdade, se atender a alguns requisitos. O arrependimento permeiou a voz da mulher de 28 anos, que viu as escolhas que fez escorrerem pelos dedos, marcando o seu caminho de vida. — Você fica pensando no período que perdeu com os seus filhos? – questiono. — Penso que às vezes compensa nem pensar mais. Você acaba se 78


magoando, que poderia ter feito algo, poderia estar lá. Principalmente quando vejo foto do Natal, de aniversário do Dener. Essa parte foi interrompida e eu não estava lá. Eu não gosto nem de pensar.

Constelação Leão: Leonora Estrela Alterf: Alteir Estrela Denebola: Dener Estrela Regulus: Reginaldo Estrela Chertan: Ethan

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Ăšrsula Ursa Maior

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Aeroporto Internacional de Campo Grande (MS), 01 de maio de 2017, segunda-feira. Pela janela do aeroporto era possível perceber que a noite havia chegado. Úrsula estava tão cansada. Queria voltar logo para casa no Rio de Janeiro. Aguardava com Thalita, sua amiga que a convidou a acompanhá-la na viagem, o momento para despachar as malas e depois seguir para o embarque. Estava mexendo celular quando um homem apareceu ao seu lado e pegou em seu ombro. — Você é a Úrsula? - perguntou. — Sim - respondeu. — Você pode me acompanhar? — Sim – ela disse. Úrsula o seguiu até uma sala pequena do aeroporto em que ele anunciou: — Eu sou da Polícia Federal e você está presa – disse. Repetiram o mesmo procedimento com Thalita e as duas foram levadas para o Estabelecimento Penal Feminino ‘Irmã Irma Zorzi’ para aguardarem o julgamento.

O canto era tão devoto. A cadência desempenhada entre as palavras de esperança, prometiam consolo a quem considera Deus como única fonte de amparo para os temores de sua vida. Quando a encontrei pela primeira vez, em setembro de 2019, Úrsula, com 23 anos, preparava-se para o Louvorzão Gospel, realizado anualmente no Estabelecimento Penal Feminino de Regime Semiaberto, Aberto e Assistência à Albergada, onde está há quase dois anos. A mulher negra, de sorriso largo, com cabelos pretos presos junto a cabeça em um coque, usava chinelos e vestia camiseta e calça branca, o uniforme da cozinha. Seu perfil representa a maior parte da massa carcerária feminina do Brasil. A faixa etária com mais encarceradas é a mesma de Úrsula, 27% têm entre 18 e 24 anos. Metade dessa população é jovem, com o segundo lugar para as idades de 25 a 29 anos com 23%, de acordo com o INFOPEN Mulheres de 2018. Segundo 82


Entre a população maior de 18 anos, existem aproximadamente 40 mulheres brancas presas para cada grupo de 100 mil mulheres brancas, e 62 mulheres negras na mesma situação para cada grupo de 100 mil mulheres negras.

o mesmo documento, quando olhamos os dados sobre raça, é possível observar novamente uma diferença no recorte social no encarceramento. Em todo Brasil, 62% das encarceradas são negras. Em seguida, vêm mulheres brancas com 37%. Na prisão, Úrsula cultiva o gosto pelo canto, o que fazia desde pequena na igreja evangélica. Gosta da cantora gospel Bruna Carla e afirma que sabe todas as letras. Fala da sua vida com calmaria, mesmo nos momentos mais complicados que enfrentou. A mudança mais brusca no tom foi quando cantou versos da música da artista que admirava. Por coincidência ou não, os trechos pareciam um consolo para quem vivenciava o abandono afetivo no sistema penitenciário. Quando perco o chão Tu me levantas E quando não consigo encontrar solução Tu estás ali pra me estenderes a mão E quando a dor aperta o meu coração E fico sem resposta em meio à solidão Escuto a Sua voz me chamando para vencer, pra confiar E em Sua destra descansar E com Seu poder posso ir além das minhas forças Nasceu em Volta Redonda, cidade no interior do Rio de Janeiro. Tem na fé a perspectiva de futuro quando cumprir toda a pena. Quer se dedicar a igreja quando for embora. A data de saída não sabe. Por enquanto, sua rotina no presídio é preenchida na cozinha da instituição, onde cumpre o trabalho no semiaberto. Pretende ficar na cidade e alugar uma quitinete. Caso não dê certo, irá para a casa do namorado, que conheceu em Campo Grande, na formatura do curso de cozinha que re83


alizou no Senac, em 2018, proporcionado pelo presídio. — Aqui é mais calmo, mais tranquilo, quero ficar aqui de boa – afirma. Em outubro de 2019, quando a encontrei novamente, dizia que já não sabia seu status de relacionamento. Quando conheceu o namorado, que trabalha como cozinheiro do exército, ele pediu o telefone de Úrsula. Nem ela sabe o motivo dele estar no evento de formatura. Ficaram conversando por três meses pelo telefone, intermediado pela assistente social da unidade, até ela criar coragem para falar que estava presa. No começo ficou assustado, mas aceitou com o tempo. Agora, não sabe qual rumo dar para a relação, pois não se sente bem namorando à distância. Nem aos finais de semana consegue encontrá-lo nas visitas na unidade, pois ele não é parente de primeiro ou segundo grau. Em novembro, completa um ano de relacionamento. Têm planos para quando for para o regime aberto, gostaria de alugar uma casa. Será o primeiro passo. Depois, pretende o benefício da tornozeleira eletrônica. A partir daí, quer esquecer o passado e seguir com a vida. Úrsula cumpre pena por tráfico de drogas, que transportava de Campo Grande para o Rio de Janeiro, em primeiro de maio de 2017. Foi presa na volta para o estado fluminense e ficou seis meses no regime fechado, no Estabelecimento Penal Feminino “Irmã Irma Zorzi”, esperando pelo julgamento. Quando foi sentenciada, em seis anos e cinco meses, a condenação foi para o semiaberto, onde está até hoje. A única perspectiva sobre o rumo da pena quando a entrevistei em setembro de 2019 é que iria para o regime aberto em outubro. Quando a reencontrei no mês seguinte, a transferência não tinha sido feita. A previsão para julgamento da decisão foi para seis de novembro. Precisava aguardar um parecer do juiz. Durante a rotina na unidade, lê livros de romance. O último que me contou foi “Coração Indomável”. Às vezes, uma agente penitenciária indica ou empresta algum título. Na biblioteca do presídio há duas estantes cinzas de metal com cerca de dois metros, preenchidas com livros religiosos, clássicos e de romance. Iam de “Morri para viver”, da ex-miss bumbum Vanessa Urcah a “2001: uma odisseia no espaço” de Arthur C. Clarke. Quase uma fileira inteira de livros idên84


ticos “A dama da fé”, sobre Ester Bezerra, esposa de Edir Macedo. O acervo da biblioteca era composto por doações à instituição. Desde quando foi presa, em 2017, Úrsula nunca recebeu visitas. Nem íntima ou fraterna. Não conhecia ninguém na cidade e cumpriu a sentença só, tanto no regime semiaberto como no fechado. Todos os vínculos afetivos, como os pais, amigos e os irmãos, estavam em Volta Redonda. Com a falta de visitantes ou de ligações, passou a se perguntar sobre os sentimentos deles. — Você acredita que a falta de visitas te afetou em algum sentido durante a permanência no regime fechado? – pergunto. — Me afetou bastante, porque não sei se é da minha cabeça, mas eu já penso que não existe amor da parte deles. É tudo ilusão – confessa. Reconheceu o abandono quando foi transferida do Estabelecimento Penal Feminino “Irmã Irma Zorzi” para o Estabelecimento Penal Feminino de Regime Semiaberto, Aberto e Assistência à Albergada, os dois únicos presídios para mulheres na capital sul-mato-grossense. Acompanhada da ausência afetiva, a falta material pesava no cotidiano na prisão. — Como foi perceber que não teria mais contato com as pessoas que estão no Rio de Janeiro e que você estava tão longe delas? – pergunto. — Quando desci para cá [presídio semiaberto e aberto] e comecei a trabalhar, vi que a oportunidade que tinha de andar para frente é agora, porque se não me ajudaram lá em cima [regime fechado], aqui que não iam me ajudar. Perdeu totalmente o contato com os pais quando foi presa. O desenlace afetivo foi brusco. Eles não a procuraram e Úrsula não telefonou. Com os cinco irmãos, conversa esporadicamente. Apesar da situação com os familiares, ela deseja ir para Volta Redonda para revê-los. — Se um dia tiver oportunidade de ir, eu quero. Ligar para o meu pai, pedir desculpa, perdão, mas não vai ser a mesma convivência. Lá mudou tudo. Depois que a gente cai na cadeia muda muita coisa – lamenta. Sente mais falta da mãe e dos abraços dos pais. Em alguns momentos, lhe dá vontade de fugir, mas pondera que precisa cumprir a pena. 85


Atribui o abandono, em parte, a achar que com a rotina diária acabaram a esquecendo ali, retomando as atividades normalmente. — Dói todo dia. Eu sinto mais saudade de como eles me tratavam. Um abraço, um carinho, um conselho. Hoje, se a gente passa pavor, dificuldade, tem que se consolar com Deus, pedir para acalmar o seu coração, te dar sabedoria. Tem que chorar sozinha. Se sentir humilhação tem que aguentar. Então não é a mesma coisa de estar com o pai ou a mãe. De acordo com a psicóloga do regime aberto e semiaberto, Marilaine Vilarga, que atua na unidade há três anos, para as mulheres que não recebem visitas, enfrentar a pena é mais difícil em comparação com as outras encarceradas que são visitadas. — Quem tem o apoio da família, por mais que seja difícil, muitas vezes por causa da droga, ainda tenta. Agora outra que não tem apoio da família, que não tem ninguém, ai não tem nem esperança. Ou, então, é muito difícil cumprir o semiaberto porque elas podem, com essa liberdade que tem de ir e voltar, sair pela porta e não voltar mais. Quem tem o apoio da família e filhos, por mais difícil que seja, consegue cumprir – afirma a psicóloga. Úrsula foi criada pelos seus pais adotivos. Além dela, tinham um casal de filhos biológicos mais velhos, dos quais nunca foi muito próxima. As lembranças mais vívidas são com a família. Sente mais saudade da mãe, com quem não conversa desde que foi presa. — Eu convivia com a minha mãe que me criou, com meu pai, curtia meus irmãos por perto e sinto muita falta deles, porque a gente convivia muito juntos. Depois que fui presa nunca mais foi a mesma convivência. Os seis irmãos biológicos foram destinados a famílias diferentes e Úrsula só retomou o contato quando ficou mais velha e os procurou. Conversa com eles até hoje e, no mar de abandono, os considera seu vínculo afetivo mais forte. Foram separados ainda pequenos. Quando sua mãe biológica morreu, o pai entrou em um novo relacionamento e doou todos os irmãos. Não cabiam seus seis filhos ali. Da mãe biológica, não tem recordações de momentos com ela, apenas as várias fotos que uma tia lhe deu. O tempo juntas que foi retirado gostaria de reivindicá-lo agora para o carinho que carece. 86


— Sinto falta dela para conversar – lamenta. Antes de ter a mudança para o regime semiaberto, ficou por seis meses no fechado no Zorzi. Trabalhou como “manga”, cujas funções estavam faxinar, lavar roupa e cuidar das marmitas. Passava o dia trabalhando. No final do expediente, reunia-se com as companheiras para assistir novelas que passavam na televisão. Nas datas comemorativas e aos finais de semana, doía pensar que poderia estar em liberdade e, assim, chorava. — Eu passava chorando – diz e ri de nervoso - dava mais raiva e passava chorando. O dia mais ruim era domingo em que via as meninas recebendo as coisas, ficava vendo e não podia comer. Tinha algumas que jogavam comida fora e não te dava. Doía muito. Fez algumas amizades na época, mas a maioria foi embora, como a amiga do alojamento oito, que foi para Goiânia. Entre as poucas colegas, ouvia sobre a saudade. Dos muitos filhos que não vieram. Dos pais que abandonaram. Da visita íntima que nunca receberam do marido e das suspeitas de traição. — Era ‘saudade do meu marido’, umas eram ‘saudade da minha mulher’. ‘Deve tá me traindo lá fora, e eu tô aqui dentro’. Muitas sentem [falta de visita íntima]. Chegam a casar na cadeia com mulher, mas acho que só prejudica mais porque já brigam, essas mulheres tudo loucas, então não dá bom – e ri pensando na situação. — Como era lá dentro sobre essa questão de casamento entre elas e dessas brigas? – quero saber. — No fechado era tranquilo, ninguém se metia. Casava, cada uma tinha o seu canto e conviviam normal. Só algumas que tinham ciúmes até da sombra e nós queríamos ficar tranquilas. Mas, fora isso, tratavam a gente bem e cada uma respeitava o seu espaço. Úrsula afirma que não sentia falta de visita íntima. Tentava não pensar muito sobre as coisas que não tinha para não se entristecer. Assim como ela, quando percebiam que estavam sozinhas para enfrentar a pena, outras companheiras buscavam maneiras para se sustentarem. — Eu vi muitas meninas caindo na cadeia e o marido lá fora, cheia de filhos – recorda. — E como elas se sentiam? - pergunto — Ficavam mal, ás vezes choravam. Viam que tinham que se virar 87


sozinhas e corriam atrás. Além das dificuldades materiais e emocionais que passou no começo da prisão com a falta de visitas, Úrsula precisou enfrentar outras adversidades. Com o mesmo tom de voz calmo, contou das duas tentativas de assassinatos que sofreu. Uma com dois meses de prisão e a outra após um intervalo de 15 dias. A noite, enquanto dormia, tentaram a sufocar com travesseiro. Lutou contra a pressão do objeto e pediu socorro. As companheiras de cela acordaram e chamaram as agentes, que retiraram a mulher da cela. Úrsula não reconheceu a agressora. A segunda vez foi de manhã no alojamento que dividia com outras 26 mulheres. Uma colega preparava macarrão instantâneo, com o uso de “fervedor”, um ebulidor elétrico de metal, que possui na base redonda com duas hastes que se encontram no cabo protegido por plástico. Estava de costas para a mulher que preparava a comida e, quando se virou, ela ameaçou jogar a água quente em sua direção. — Úrsula, cuidado! - gritou uma companheira de cela. Conseguiu desviar e sentiu o calor da água passando ao seu lado. Na época, atribuiu os dois episódios a antipatia por ela ser de fora da cidade. Depois, descobriu por uma colega que as duas tentativas de feri-la foram encomendadas pela Thalita, ex-amiga de Úrsula e com quem foi detida no aeroporto. As duas foram presas quando voltavam para o Rio de Janeiro transportando a droga. Percebeu somente na prisão a personalidade da jovem que conhecia desde a escola. Foi ela que convidou Úrsula para “fazer o corre”. Ambas são rés primárias, apesar que Thalita era envolvida no tráfico ainda pequena por causa do pai, segundo ela se recorda. — É uma pessoa muito ambiciosa. Se tiver amizade com ela, não pode ter amizade com ninguém. É muito invejosa. Se for infeliz, ela quer que você também seja infeliz. O que puder fazer para te prejudicar para não ter aquilo, ela faz. Quando caí na cadeia que percebi que ela é má pessoa. Eu achava que não era – diz ponderando sobre a ex-amiga. Na época em que fez a proposta, disse que a mãe dela estava com dificuldades financeiras. Úrsula sentiu pena, era mais próxima da mu88


lher do que da jovem. Tinha assegurado a ela que era “pertinho” e não tinha perigo. Que, na realidade, o “corre” era em Campo Grande no Rio de Janeiro, bairro da capital. Na hora do embarque, estava distraída e não conferiu a placa do destino. Dois “detalhes” que propiciaram para desembarcar a 1.382 km da cidade fluminense e quase dois dias de viagem em um ônibus de passageiros. Cerca de um dia e oito horas depois que saíram do bairro Cidade do Aço na capital fluminense, chegaram ao destino. Úrsula diz que soube em qual cidade parou quando a mulher responsável por entregar a droga falou em Campo Grande e que estavam longe do Rio. Era tarde e não poderia voltar atrás. Teria que terminar o serviço. Desta vez, a viagem de volta para o Rio de Janeiro seria de avião, conforme determinou a responsável pelo repasse da droga para as mulheres cariocas. Foram detidas no aeroporto pela polícia antes de embarcarem. Úrsula não entende como isso aconteceu, pois quando o homem aproximou-se não tinham despachado a mala e nem aparentavam nervosimo, apesar que o polícial a chamou pelo nome. Depois que foram presas e sentenciadas, a agora ex-amiga teve que cumprir a pena no fechado, enquanto Úrsula foi transferida para o semiaberto. — Eu sentia tristeza e raiva de mim ao mesmo tempo por saber a loucura que fiz para ajudar uma pessoa que na cadeia não me ajudou. Me abandonou, virou as costas e não reconheceu. Doía saber que podia estar na rua, continuar a vida que tinha, sem sonhar em cair na cadeia e estar lá praticamente jogada – se ressente. Enquanto estavam em Volta Redonda, Úrsula era mais próxima da mãe de Thalita. Tentava ajudar a família que passava dificuldades financeiras quando o dinheiro permitia. A matriarca era casada com um homem envolvido no tráfico de drogas. Acabou preso e tinha várias amantes, mas isso não impedia que a mãe de Thalita fosse visitá-lo ou que o que ajudasse com mantimentos. — Geralmente, quando o homem cresce um pouquinho, esquece da família. Eu falava que a mãe dela era só uma besta porque trabalhava ainda para mandar as coisas na cadeia e ele nem tchum - relembra Úrsula. Além dela, tinha a Tânia, mãe de outra amiga, que mantém contato até hoje. Considerava muito as mães das pessoas mais próximas do 89


seu convívio, em quem encontrava afeto e conselhos depois que ficou mais velha. Sentia-se acolhida na casa das amigas. — Sempre foi muito gente boa e me ajudou quando eu mais precisei. Ela incentivava a gente estudar, para ser uma pessoa melhor e que o estudo valia muito. Úrsula mudou-se para o Rio de Janeiro aos 18 anos. Alugou uma casa em Botafogo e vivia de faxinas e de freelances em bares e restaurantes. Quando um funcionário faltava, era chamada para cobrir. Conseguiu manter-se assim por três anos, o que lhe dava liberdade para ir a Volta Redonda quando quisesse. Ia para a casa dos pais e ficava por algumas semanas. Depois ia para a casa de alguma amiga. Quando avisavam de uma festa que aconteceria por lá, retornava. Adorava sair para se divertir. Tinha um namorado que conheceu na época de escola. Iriam completar três anos juntos quando foi presa. Dentro do estabelecimento penal, Úrsula ligava constantemente. Era sempre ignorada. Imaginava que estava magoado, mas confiava que a apoiaria devido à confiança que tinha no relacionamento. — Como foi terminar o namoro? – pergunto depois que soube do fim do casal. — Bastante ruim, porque ligava toda noite e ele desligava. Um dia, falou que não dava mais e que já estava com outra. Foi aí que a minha ficha caiu, quando realmente acabou tudo e eu teria que seguir em frente sozinha. Tinha otimismo com o relacionamento até essa conversa. Protelou a aceitar pela esperança que a única pessoa que confiava que estaria com ela em qualquer momento, a tinha abandonado. Para ela, a experiência a endureceu para o amor e agora não deposita mais fé em promessas. — Não acreditava que a única pessoa que tinha me deixou. Às vezes, ele [atual namorado] fala as palavras e eu não acredito, já ando com meus pés no chão, não é mais a mesma coisa. Na infância em Volta Redonda, Úrsula era evangélica. Quando ficou mais velha, se interessou pela umbanda, religião que sintetiza elementos indígenas, cristãos e africanos. Voltou a ser evangélica na Assembleia de Deus, mas diz que guarda com carinho as lembranças 90


dessa época. — Como você entrou na umbanda? – pergunto, interessada pela mudança de religião. — Foi curiosidade. Eu passava perto do centro, ouvia aqueles batuques e uma vez fui para poder ver e era uma festa. Eu vi aquelas muvucas, gostei e comecei a frequentar. No futuro, Úrsula quer terminar o ensino médio. Parou no segundo ano. Pretende ter um filho. Se for menino, terá a junção dos nomes bíblicos Pedro e Davi. Acha bonito chamar por esse nome. No caso de menina, será Kerolin. — Eu analisei e eu tenho uma prima chamada Ketelin. Aí eu pensei ‘Ketelin Kerolin’, então vai ser Kerolin.

Constelação Ursa Maior: Úrsula Estrela Thalita: Thalita Estrela Tânia: Tânia

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Agradecimentos Sair de uma ideia e chegar a este produto não seria possível sem o apoio de algumas pessoas. Agradeço, primeiramente, à Deus, que me concedeu a oportunidade e o caminho para chegar até aqui. À minha orientadora, Katarini Giroldo Miguel, por todo conselho, observação, palavra e vírgula direcionada à minha formação, não só nesta etapa, mas durante a graduação. Às mulheres que entrevistei e que neste livro foram personagens. Obrigada por me deixarem conhecê-las, ouvir suas histórias e contá-las aqui. Agradeço profundamente a confiança. À Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário de Mato Grosso do Sul (Agepen/MS), que viabilizou a produção deste livro-reportagem com as autorizações de entrevistas e fornecimento de dados. Aos amigos que me acompanharam até aqui e fizeram esta saga chamada vida se tornar mais leve. Ao Piter, por todo apoio e companheirismo durante este processo. Aos meus familiares, que sempre estiveram presentes nos bastidores me incentivando a continuar, em especial, às mulheres incríveis desta família. Por fim e, mais importante, à minha mãe. Minha lua, estrelas e sol. Obrigada por cuidar de mim e da minha irmã, iluminar nossas vidas e acreditar que a educação vale a pena. Nada disso seria possível sem você.

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