Filhos do coração

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS CURSO DE JORNALISMO

FILHOS DO CORAÇÃO ADOÇÃO TARDIA EM MATO GROSSO DO SUL

BRUNA KASPARY LARISSA PESTANA Campo Grande SETEMBRO/2016



FILHOS DO CORAÇÃO: ADOÇÃO TARDIA EM MATO GROSSO DO SUL

BRUNA NEVES KASPARY LARISSA PAINES PESTANA

Relatório

apresentado

como

requisito

parcial para aprovação na disciplina Projetos Experimentais

do

Curso

de

Jornalismo

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

Orientador(a): Prof. Dr. Marcelo Vicente Câncio Soares

UFMS Campo Grande SETEMBRO-2016

da


SUMÁRIO RESUMO ............................................................................................................................................5 INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................6 1- ATIVIDADES DESENVOLVIDAS .......................................................................................................8 1.1 Execução: .................................................................................................................................8 1.2 Dificuldades Encontradas ........................................................................................................9 1.3 Objetivos Alcançados ............................................................................................................10 2 - SUPORTES TEÓRICOS ADOTADOS: .............................................................................................11 3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................................16 4 - REFERÊNCIAS ..............................................................................................................................18 5 – ANEXOS ......................................................................................................................................20 6 - APÊNDICES..................................................................................................................................24


RESUMO O videodocumentário trata o tema da adoção tardia em 24 minutos. O roteiro foi estruturado com entrevistas realizadas com familiares de pessoas adotadas com idade superior a 3 anos e profissionais que trabalham diretamente com a adoção. O trabalho procura desmistificar esse universo através de relatos de famílias, uma psicóloga e uma juíza e explicar sobre o processo de adoção como um todo.

PALAVRAS-CHAVE:

Comunicação, documentário, adoção tardia, criança, adotados.


INTRODUÇÃO Em Campo Grande, até o último levantamento realizado em março de 2014, eram nove abrigos que estavam aptos a cuidar das crianças que estavam na fila de adoção. Mesmo com este baixo número, em abril duas unidades foram fechadas por conta de dificuldades na administração. De acordo com dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) de 2016, das 7.020 crianças na fila de adoção em todo o Brasil, apenas 597 delas estão na região centro-oeste e somente 225 no Estado de Mato Grosso do Sul. Atualmente, em 2016, segundo dados fornecidos pela juíza da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, Katy Braun, existem 14 abrigos em Campo Grande aptos a receber crianças, sendo 10 destes ONGs e 4 mantidos pela Prefeitura. Durante uma pesquisa prévia para realização do trabalho, foram encontrados inúmeros tabus sobre a adoção tardia, que foram esclarecidos ao longo do processo de produção. Entre eles, estão: a preferência por parte dos adotantes por crianças de pele e olhos claros; recém nascidos são mais procurados por conta do mito de que crianças mais velhas já têm a personalidade formada e podem vir a causar problemas; a necessidade que alguns casais têm de acompanhar e vivenciar cada passo do crescimento de seu filho, a partir do momento que ele chega ao mundo; dentre outros. O objetivo do videodocumentário FILHOS DO CORAÇÃO: ADOÇÃO TARDIA EM MATO GROSSO DO SUL é desvendar por que, além dos motivos supracitados, mesmo com mais de 300 famílias candidatas em Mato Grosso do Sul na fila para adotar uma criança, e outras 37.529 no restante do país, como ainda há dificuldade para que todas as crianças sejam adotadas? O trabalho apresenta relatos de duas famílias que adotaram crianças que se encaixam no perfil da adoção tardia (crianças acima de 03 anos), assim como entrevistas com profissionais, como uma juíza da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso (citada anteriormente) e uma psicóloga que trabalha em instituições que cuidam de crianças na fila de espera para a adoção.


Antes de realizar as gravações, foram feitas visitas a todas as fontes, para que a equipe conversasse previamente com cada um dos envolvidos sobre o tema e como ele afeta a vida de cada um. Foram feitos questionários para nortear as repórteres quanto às perguntas que seriam feitas a cada um dos personagens do documentário, dessa forma evitando repetições ou questões fora do contexto. Além dessas visitas, foram também realizadas idas a um abrigo de Campo Grande, para que as autoras conhecessem e se familiarizassem com a realidade desses locais, além de criar uma proximidade com as crianças que ali vivem para entender melhor como elas se sentem nesse processo de aguardar por uma família. A presença da equipe no abrigo foi ainda de fundamental importância para que a rotina de quem ali vive e trabalha fosse observada e compreendida. Uma vez que o assunto abordado é de extrema delicadeza, preferiu-se entrevistar as fontes em ambientes confortáveis a elas, de maneira que ficassem à vontade para conversar com a equipe. Dessa forma, a juíza e a psicóloga foram entrevistadas em seu ambiente de trabalho, onde poderiam checar informações caso fosse preciso, enquanto as famílias foram entrevistadas dentro de suas próprias casas.


1- ATIVIDADES DESENVOLVIDAS 1.1 Execução:

De início, foram realizadas pesquisas bibliográficas sobre como construir um videodocumentário. As autoras pesquisaram artigos, livros e vídeos que explicassem e deixassem claro como deve ser a criação de um bom produto final. Depois disso, deu-se início à pesquisa sobre o tema. Para tal, foi preciso estudar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ler artigos sobre o tema que explicassem e definissem o que é a adoção tardia e, acima de tudo, procurar profissionais que aprofundassem os conhecimentos sobre a pauta e que viriam a ser personagens no produto final. Após uma pesquisa entre colegas de trabalho, familiares e amigos, as autoras encontraram duas famílias, uma que adotou quatro filhos e outra que adotou um; uma psicóloga e a juíza da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, que foram essenciais para a construção do roteiro do produto final com suas histórias, compartilhamento de experiências e conhecimento da área. Com tudo isso em mãos, foram realizadas reuniões com o orientador, onde se conversou sobre o formato do documentário, a colocação das falas dos personagens, os prazos para que as entrevistas fossem feitas, decupadas e editadas, enfim, sobre as questões técnicas do vídeo. Mais tarde foram realizadas as gravações. Feitas nas casas das duas famílias escolhidas, no abrigo com a psicóloga e no Fórum de Campo Grande com a juíza da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, estas filmagens foram realizadas a partir dos questionários que as autoras construíram ao longo da produção do roteiro do documentário, que foram complementados conforme as entrevistas aconteciam. Após as gravações, deu-se início o processo de decupagem, onde as autoras assistiram às entrevistas e as redigiram por completo, tornando mais fácil assim o


processo de escolher as melhores falas de cada personagem, além de auxiliar no processo de edição do produto final. Posteriormente foi desenvolvido o roteiro que sinaliza todas as falas dos entrevistados e as imagens de apoio; a etapa de edição e sonorização; os textos com créditos, títulos, intertítulos que dividem partes do documentário, a indicação da trilha sonora e da ficha técnica do vídeo. Juntamente com o trabalho de produção do documentário foi redigido o relatório final.

1.2 Dificuldades Encontradas As maiores dificuldades encontradas foram descobrir e localizar fontes, combinar horários e fazer com que elas se sentissem à vontade para conversar sobre o assunto. Como o tema do videodocumentário é bastante delicado, foi preciso realizar um processo de aproximação para que se criasse a confiança entre a equipe e os entrevistados, para que assim a conversa fluísse naturalmente e todas as informações necessárias fossem fornecidas para que o produto final ficasse o mais completo possível. A maior dificuldade foi encontrar um adotado maior de idade que estivesse disposto a falar sobre o assunto. A ideia inicial das autoras era colocar o depoimento de um adotado que explicasse o que muda na vida de uma pessoa que conseguiu um lar adotivo tardiamente, mas notou-se que é doloroso demais para a pessoa falar sobre essa transição. A família adotiva se torna natural para ela com o passar do tempo e não há mais a necessidade de explicar qualquer situação desconfortável que tenha acontecido antes da adoção. Apesar de todo esforço em encontrar uma pessoa com esse perfil não foi possível encontrar alguém que se dispusesse a dar entrevista e participar do vídeo. Ocorreu também uma dificuldade em decidir incluir ou não no trabalho o depoimento de outra profissional. Inicialmente pensou-se também em entrevistar uma assistente social que pudesse comentar sobre o acompanhamento de famílias e de adotados. Posteriormente percebeu-se que não seria necessário entrevistar uma assistente social, pois o trabalho dessa profissional é extremamente interligado com o


dos psicólogos dos abrigos, o que transformaria a entrevista em algo redundante para o videodocumentário.

1.3 Objetivos Alcançados O objetivo principal do projeto era levar a público as dificuldades pelas quais as crianças acima de 03 anos passam para conseguir uma família adotiva após serem desligadas ]de sua família natural. Este objetivo foi concluído a partir do momento em que foram encontradas as pessoas certas para retratar o tema de maneira incisiva e, ao mesmo tempo, que fosse de fácil entendimento para leigos no assunto. Como objetivos secundários, alçamos a conclusão do próprio vídeo, a busca e entrevista com fontes, a melhor compreensão do assunto e a utilização de técnicas de produção de vídeo e jornalísticas para a finalização do trabalho. Todos os objetivos foram concluídos com sucesso. As dificuldades que surgiram no caminho apresentaram às autoras novas formas de encarar o tema e concluir o produto.


2 - SUPORTES TEÓRICOS ADOTADOS: Foi usado como base para a realização desse projeto o documentário 33, de Kiko Goifman (2003), que saiu em busca de sua mãe biológica. No trabalho realizado por ele, as pessoas envolvidas direta ou indiretamente em sua adoção foram entrevistadas na tentativa de encontrar a mulher que lhe entregou à família adotiva. Apesar de utilizar a mesma técnica de entrevista, no documentário realizado a intenção foi de não haver a presença de um narrador ou entrevistador. A ideia foi de que as respostas completassem umas às outras, fosse por meio dos depoimentos complementando as fontes oficiais, fosse a partir da relação entre as histórias apresentadas. Enquanto se pesquisava sobre o tema desenvolvido, foram encontradas algumas pesquisas e trabalhos realizados na área. Um deles foi a dissertação de conclusão da pós-graduação de Jaqueline Araújo (2009), onde trata as vivências das crianças adotadas e que retrata exclusivamente o tema abordado neste projeto. Em seu trabalho, Araújo (2009) se vale da experiência de duas adolescentes, que retratam como que elas veem a família biológica, o abrigo e adoção, realizando inclusive críticas sobre estes itens. O tema deste documentário foi também sustentado pelo Código Civil, assim como todos os termos relativos ao tema. Em sua dissertação, Araújo (2009) chega à conclusão de que o principal motivo para que as crianças permaneçam na fila de espera são as escolhas dos candidatos à adoção, que preferem aquelas com menores idades possíveis. Durante sua análise, Araújo (2009, p. 33) chegou a conclusão de que “quando os requerentes optam pelas crianças com a idade menor possível para adotar com a justificativa de que estes são mais fáceis de serem moldados, na verdade, revelam um desejo de apagar a história passada da criança”. De acordo com o Cadastro Nacional de Adotantes (2016), a maioria dos adotantes prefere crianças brancas e ainda muito novos e isso seria um dos maiores motivos para que a lista de crianças não diminua, mesmo com um número muito maior de adotantes do que de aptos para serem adotados.


Neste sentido, várias práticas arbitrárias que contrariam as diretrizes propostas pelo ECA foram observadas, como o abrigo, que deveria ser um local de passagem e acabou se tornando um local permanente para a maioria das crianças com quem as autoras tiveram contato durante a produção do vídeo. Conforme a obra de Vânia Pinheiro Rodrigues (2010, p.50), o objetivo da adoção é “acolher a criança ou o adolescente, que por algum motivo, viu-se privado de sua família natural e para isso não importa a idade”. Os dois trabalhos mencionados retratam a adoção na questão jurídica, por se tratarem de trabalhos de conclusão do curso de direito, mas o capítulo Psicologia: Reflexão e Crítica, de Sumara Gusmão Ibrahim (2001), trata da questão psicológica e se utilizou de um questionário para poder avaliar as diferenças entre os pais que adotaram as crianças com mais de dois anos (idade que a pesquisa passa a considerar adoção tardia) e outros que preferiram a adoção de bebês. O psicólogo Mário Lázaro Camargo (2005), explica a respeito dos problemas psicológicos que as crianças com mais de três anos sofrem nos abrigos. Para o autor (2005, p.77) Os mitos que constituem a atual cultura da adoção no Brasil, apresentam-se como fortes obstáculos à realização de adoções de crianças “idosas” (adoções tardias), uma vez que potencializam crenças e expectativas negativas ligadas à prática da adoção enquanto forma de colocação de crianças em famílias substitutas.

A construção do videodocumentário foi baseada nas teorias de Bill Nichols (2007). O autor defende que todo filme pode ser classificado como um documentário, sendo subdivididos em aqueles que devem satisfazer desejos pessoais, normalmente classificados por “ficção”, e os de representação social, definição esta que foi usada como base para estruturar este trabalho. Os filmes de não-ficção, como Nichols (2007, p. 26) nomeia, “representam de forma tangível aspectos de um mundo que já ocupamos e compartilhamos”. Nichols também defende que a principal função do documentário é fazer com que se dê a devida atenção a questões oportunas, e estes também tendem a acrescentar uma dimensão diferenciada à memória popular e à história social, mostrando “novas versões de um mundo comum”. Para ele, a característica mais


evidente de um filme de não-ficção é fazer com que o expectador acredite que esteve no local e vivenciou o que está assistindo, crendo também que, se está na frente da câmera, é a realidade. Um dos primeiros documentários já assim denominado, Nanook, o esquimó (1922), também é citado na obra de Nichols, demonstrando o que ele afirma de fazer com que o espectador acredite que a realidade que aparece no vídeo, onde a família inuit luta pela sua sobrevivência, é verídica. Adotado como forma de desenvolvimento do documentário, o modo expositivo, também definido por Nichols (2007, p.142), “agrupa fragmentos do mundo histórico numa estrutura mais retórica”, ou seja, no produto em questão, são utilizados os relatos dos personagens para que possa ser construída de forma mais dinâmica a realidade do cenário da adoção no estado. Para o autor (2007, p. 144), “o comentário representa a perspectiva ou argumento do filme” e, neste caso, esse é o próprio depoimento das personagens. E as imagens passam a não ser de extrema importância, servindo apenas como um suplemento para o que se é dito, como no caso das imagens em abrigos, onde não há uma significância além de ilustrar as falas, quando se é relembrada a instituição. Também foi adotado como material de pesquisa o livro Documentário no Brasil, organizado por Francisco Elinaldo Teixeira (2004), com a participação de outros 12 autores. No capítulo escrito por Luciana Corrêa de Araújo, intitulado Beleza e poder: os documentários de Joaquim Pedro de Andrade, a autora relata sobre o documentário de Joaquim Pedro, intitulado O mestre de Apipucos e o poeta do castelo, de 1959. A autora explica sobre o processo de construção do perfil das personagens que seriam utilizadas em seu produto final. Araújo (2004, p. 227) define que O mestre de Apipucos e o poeta do castelo tem como ponto de partida o registro dos hábitos cotidianos do sociólogo Gilberto Freyre, o mestre, e do poeta Manuel Bandeira. Para isso, Joaquim Pedro contou com a colaboração dos próprios "retratados", que lhe mandaram por escrito descrições de sua rotina diária.

Essa passagem confirmou para as autoras a importância de uma conversa prévia com as fontes do documentário, uma vez que foi imprescindível saber da rotina das famílias e dos profissionais que lidam com a adoção tardia diariamente para que


um questionário personalizado fosse criado para cada pessoa que participou das entrevistas. Araújo (2004, p. 228) ainda expôs o pensamento de Joaquim Pedro acerca do assunto: Sobre a parte que será dedicada a Manoel Bandeira, Joaquim Pedro escreve: "A documentação não se deve limitar ao aspecto exterior, material do assunto. A principal tentativa a ser feita é a de captar no filme a personalidade espiritual de Manuel Bandeira, provocando no espectador um desenvolvimento contínuo de emoção à medida que for sentindo evoluir e se afirmar cada vez mais no filme o clima espiritual do poeta".

Essa passagem deixou claro para as autoras que um assunto delicado como a adoção tardia deveria tocar o público que o assistir. Então foi importante criar toda uma atmosfera que aproximasse aqueles que o assistem das personagens ali retratadas, criando uma empatia e uma real emoção naqueles que estão assistindo àquelas histórias e conhecendo mais sobre o assunto a partir do vídeo. Para criar a ambientação perfeita para transmitir as sensações que as autoras desejavam, foi preciso também estudar a trilha sonora e o som ambiente de cada local visitado, para que isso complementasse de maneira positiva as imagens do documentário. O livro de Claudio M. Valentinetti (2004) aborda a importância dos sons na construção de um bom produto final. No capítulo escrito no qual descreve o trabalho de Alberto Cavalcanti, importante cenógrafo brasileiro, Valentinetti (2004, p.299) explana sobre a teoria de Cavalcanti em que seria necessário, além de um som sincronizado, um som que complementasse a imagem. Assim como, lembra Francesco Savio, ele elaborou a teoria segundo a qual, depois da primeira fase do som sincronizado, era preciso passar à do som complementar à imagem. Mais do que assincronismo, cujo manifesto Cavalcanti conhecia bem, sem, no entanto, concordar completamente com as propostas, tratava-se de pegar sons naturais como matéria-prima, de separá-los em elementos possíveis de serem remontados e orquestrados livremente, a fim de estilizar a atmosfera. Como a palavra, reduzida ao mínimo, deveria estender-se ao som e a imagem se encontrava reforçada por este acompanhamento acústico, é fácil compreender que esse campo de aplicação se adaptava mais ao documentário do que à ficcão [...]


A partir dessa citação, as autoras entenderam a importância da ambientação sonora para criar a atmosfera que desejavam, de aproximação entre público e personagens do documentário. Todo o estudo realizado pelas autoras a partir deste levantamento bibliográfico foi importante para a construção do vídeo de forma a compreender melhor o tema e saber transformá-lo em um bom videodocumentário, assim levando o assunto tratado a mais pessoas e em um formato acessível e bem construído.


3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS As autoras descobriram, ao longo da realização do documentário, que o tema era mais difícil de ser tratado e mais emocionante do que se esperava. As profissionais da área, tanto a juíza quanto a psicóloga entrevistadas, alertaram sobre a delicadeza de conversar sobre a adoção tardia com famílias que passaram pelo processo, mas a realidade foi mais dura que o esperado. As crianças não quiseram falar, os adultos choraram e as autoras se emocionaram junto. É através de todo esse sentimento que se tentou passar através da lente da câmera que as autoras esperam sensibilizar o público acerca de um assunto que é tão presente e ao mesmo tempo tão pouco discutido em nossa sociedade. É importante levar a conhecimento público que ainda há crianças em abrigos que estão esperando apenas por uma família que quebre as barreiras do preconceito e ofereça a elas o amor, carinho e compreensão que qualquer criança merece. Durante todo o processo de elaboração do trabalho, muitas dificuldades foram ultrapassadas e algumas, em respeito às fontes, foram contornadas para que se achasse outra alternativa que não fosse tão agressiva a elas. O desespero das crianças - visitadas no abrigo - por uma família que quisesse leva-las tocou tanto as autoras, que muitas vezes se questionaram sobre a necessidade de mexer em feridas que ainda estão abertas. E mesmo assim, cada sorriso dado por elas fez com que a chama da esperança de que o projeto pudesse ajudar, de qualquer forma que fosse, cada uma dessas crianças, se acendesse e permanecesse instigando as autoras a continuar realizando o trabalho. Outra situação que chocou as autoras foi durante a realização da última entrevista, onde a criança, de apenas quatro anos, explicitava constantemente o medo que ainda tinha de voltar para o abrigo, falando o tempo todo que não sairia da casa onde mora nunca mais. A realidade do abandono ainda assombra a criança, por mais que ela tenha a segurança dos pais de que ela nunca mais sairá de lá. Quando questionadas sobre o motivo de realizar o trabalho com esse tema, de prontidão a resposta mais óbvia era a necessidade que a sociedade tem de saber o drama dessas crianças, que muitas vezes perdem as chances de serem adotadas por


conta de pré-conceitos dos adotantes, que em sua maioria preferem a adoção de recém-nascidos que tenham características físicas parecidas com as suas. Acredita-se que o objetivo foi alcançado e espera-se que este produto converse com o público, alerte-o sobre a situação e ajude a propagar os problemas e a solução para os mesmos.


4 - REFERÊNCIAS Artigos: ARAÚJO, Jaqueline. Adoção de maiores: Preparação e Vivência das crianças adotadas. Minas Gerais, 2009. Disponível em: <http://www1.pucminas.br/documentos/dissertacao_jaqueline_araujo.pdf>, acessado em 14 de dezembro de 2014. RODRIGUES, Vânia Pinheiro. Adoção Tardia. Santa Catarina, 2010. Disponível em: <http://repositorio.unesc.net/bitstream/handle/1/359/V%C3%A2nia%20Pinheiro%20Rod rigues.pdf?sequence=1>, acessado em 14 de dezembro de 2014. IBRAHIM, Surama Gusmão. Adoção Tardia: Altrísmo, Maturidade e Estabilidade Emocional, de Psicologia: Reflexão e Crítica. Paraíba, 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/prc/v14n1/5208.pdf>, acessado em 10 de dezembro de 2014. CAMARGO, Mário Lázaro. Adoção Tardia: Representações sociais de famílias adotivas e postulantes à adoção (mitos, medos e expectativas). São Paulo, 2005. Disponível em: <http://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/97679/camargo_ml_me_assis.pdf?s equence=1>, acessado em 3 de novembro de 2015. Matérias: MACILEVICIUS, Paula. Ao completar 18, menina se despede de abrigo voltando para agradecer juíza. Campo Grande News. Campo Grande, 25 de agosto de 2016, Lado B. On-line. Disponível em: <http://www.campograndenews.com.br/ladob/comportamento-23-08-2011-08/ao-completar-18-menina-se-despede-de-abrigovoltando-para-agradecer-juiza>. Acessado em 26 de agosto de 2016. Filmes: GOIFMAN, Kiko. 33. Brasil, 2003. Documentário, 77 minutos. Documentos: Cadastro Nacional de Adoção. Disponível em <http://www.cnj.jus.br/cnanovo/pages/publico/index.jsf>, acessado em 29 de outubro de 2015. Lei 8.069 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e 13 de Julho de 1990, disponível no site <http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/camara/estatuto_crianca_adolescent e_9ed.pdf>, acessado em 30 de outubro de 2015.


Livros: NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário: Papirus Editora, 2ª edição, 2007. TEIXEIRA, Francisco Elinaldo (Org.). Documentário no Brasil: Tradição e Transformação. Summus Editorial. São Paulo, 2004


5 – ANEXOS ROTEIRO

ADOÇÃO IMAGENS

SONORA FADE OUT

Sobe som "A adoção... um estranho" (Katy)

Hoje no Brasil são

quase 6962 Crianças aptas para Brinquedos vazios / GC dados

adoção

crianças/adotantes

Enquanto isso, no país são 37365 adotantes Em MS são 328 Adotantes para as 214 crianças. Cai Sobe Som

Katy Braun juíza vara da infância e Juventude - cobre com imagens no abrigo

"Uma criança para ser adotada... em outras famílias"

das crianças fazendo dever Simone de Lima Psicóloga

"Quando a criança... novos vínculos"

"Geralmente... mais jovem" "Nós sempre damos...

Volta Katy

pretendentes estrangeiros" "A grande maioria das adoções... aceitam crianças maiores"

Ana Rosa Nantes

"você vai conhecer... dar

Prof. Aposentada

atenção, carinho"


"Esses Mitos... em relação a seus filhos''

Volta Katy

"A adoção deve ser... propriamente dita" "A maior necessidade...

Volta Simone

processo de formação" "Podem adotar... do mesmo

Volta Katy

sexo ou sexo diferentes" FADE IN

DESTITUIÇÃO FAMILIAR FADE OUT IMAGENS

SONORA "até a criança estar apta... esse

Volta Simone

é o primeiro passo" "Situação em que eles... perda

Volta Katy

do poder familiar" "A legislação... essa criança"

Marcos Roberto dos Santos

"Como ele tinha parentes...

Servidor Público Federal Volta Katy

família, não é infância" "Quando a criança... das crianças e dos adolescentes" "Quando nós conversamos...

Volta Simone

exclusivamente familiares" "Mas a gente sabe... nesse processo" FADE IN


PROCESSO FADE OUT IMAGENS

SONORA "No começo é difícil... o que é

Volta Ana Rosa

fundamental" "o primeiro dia ... é muito bom "Assim como quando nasce...

Volta Simone

vivenciada pela criança" "mas a gente sabe... próxima"

Maurício Paulino

"No primeiro dia... Né Hugo?"

Educador Físico

"eu adquiri um livro... tanto quer

Volta Marcos

ter um pai" "o melhor jeito... daquilo que

Volta Katy

passa" "inicio nós conhecemos eles... falta da gente"

Anderson Nantes Militar

"ali já era certo... nenhuma dúvida" FADE IN

FAMÍLIA FADE OUT IMAGENS

SONORA Imagem vem comigo

Volta Marcos

Volta Simone

"de vez em quando... sem família de novo?" "Há sim uma perda...sua personalidade"

Volta Anderson

"a mais velha... ela se fechou"

Volta Ana Rosa

"ela cuidava... vou ser criança"


"A transformação... da gente"

Volta Katy

"também há...em suas Família"

Volta Ana Rosa/Anderson

"A Rafa... conhecer o abrigo" "No dia que... é como se tivesse

Volta Maurício

saída da gente mesmo" Fade in (Simone)"a adoção... essas crianças"

"isso é algo... aceite, que cuide"

Imagens Crianças Brincando

(Anderson)"meus filhos... é a cara de vocês" (Katy) "porque há pais... seja feliz"


6 - APÊNDICES Entrevistas Psicóloga SIMONE DE LIMA FERNANDES – PSICÓLOGA Bruna: Como que a gente pode diferenciar as crianças que vivem em abrigos daquelas que passaram a vida toda com famílias? Simone: A maior necessidade de uma pessoa que está em formação, de uma vida que está em formação é justamente a do convívio família, porque uma personalidade em formação precisa de pessoas de referência, como pai, mãe, os componentes da família, porque a personalidade justamente está nesse processo de formação. Uma criança que não está com sua família durante essa idade tão importante, que é justamente o processo de formação da personalidade, ela acaba sofrendo uma série de rupturas, né?! Uma série de perdas emocionais, psicológicas, pois é a família que transmite os valores, os princípios, as crenças... é a família que vai formar o indivíduo. Então uma criança, por exemplo, que é submetida a algum tipo de violência, então vai para uma situação de abrigamento, ela acaba perdendo todo esse processo, que é justamente feito pela família de origem, pela família que a criança nasce. Bruna: Então a gente pode dizer que durante a formação da criança abrigada, existe um vácuo no meio da formação da personalidade... existe, assim, um “buraco”? Simone: é, quando nós conversamos a respeito de uma criança abrigada, ela acaba sim tempo uma lacuna. Ela não tem ali, dentro do abrigo, uma figura paterna, uma figura materna, que é o que ela precisa para o seu desenvolvimento saudável. Dentro do abrigo, ela tem sim umas figuras de referência, que são os cuidadores, que são as pessoas que estão ali ao seu redor, mas essas pessoas não conseguem substituir de maneira efetiva os vínculos que são exclusivamente familiares. Ninguém consegue substituir um vinco que é exclusivamente da família. Então há sim uma diferença no desenvolvimento de uma criança que cresce com a sua família e de uma criança que cresce dentro de um abrigo, ela tem uma série de perdas psicológicas, emocionais e também no desenvolvimento da sua personalidade.


Bruna: Então com essas perdas, a gente pode dizer também que afeta o desenvolvimento pessoal, a figura da criança sobre ela mesma: Simone: Com certeza, afeta a imagem que ela tem sobre si, a autoestima, a segurança, a auto-confiança que ela vai demonstrar, a formação dos seus valores, das suas crenças, dos seus princípios. Ao invés disso estar sendo transmitido pelas figuras naturais, que são os pais, isso acaba sendo transmitido por uma instituição, que é regida por alguns valores, muitas vezes, diferentes do que aqueles que a criança nasceu, então isso pode afetar sim todo o seu desenvolvimento, emocional, psicológico, muitas vezes até físico, porque os problemas podem ser somatizados, podem vir para a parte física. Afeta muitas vezes o desenvolvimento escolar, também. A imagem que ela tem de si, também, muitas vezes até como alguém sem valor, “puxa vida eu fui abandonado, ou eu fui negligenciado, eu fui violentado”, isso afeta diretamente a construção da imagem do indivíduo, ou seja, da sua identidade. Bruna: E isso afeta também a segurança que ela vai ter com outras pessoas também, né?! Simone: Com certeza. Afeta os seus relacionamentos, porque, como ela já perdeu várias pessoas de referência, várias figuras que eram importantes para ela, ela muitas vezes tem medo de se relacionar, ela tem medo de se abrir para um relacionamento justamente pelo medo de perder novamente. Fica sempre aquele medo da perda, da ruptura, da mudança, então isso interfere sim na segurança para estabelecer novos relacionamentos ~toca telefone~ Bruna: A senhora está falando da dificuldade de construir novos relacionamentos, isso pode também ser levado em consideração à família, à uma nova família? Ela também pode ter essa dificuldade com essa nova família, apesar de ser o que ela mais espera? Simone: Quando uma criança está em uma situação de abrigamento, o que ela mais deseja é estar em uma família, então é aquilo que que quer, aquilo que ela espera, aquilo que ela almeja, mas com certeza, como toda a história que ela já viveu, podem existir dificuldades quando se começa a estabelecer esses novos vínculos, né?! Porque, principalmente quando se fala de adoção tardia, a criança já tem a personalidade formada, ela já passou por várias rupturas, ela já passou por traumas, de repente dela já passou pela questão da violência, então tudo isso acaba indo junto no


pacote, digamos assim, para que ela possa construir uma nova família, uma nova identidade familiar. Então muitas vezes existem dificuldades nesse processo, e isso, vale salientarmos, que é um processo, não é uma coisa que acontece da noite para o dia, assim como quando nasce uma criança há um processo de se conhecer, de amar, de construir vínculos. E quando nós falamos da adoção, isso também acontece, precisa se conhecer, precisa construir vínculo, precisa haver carinho... então é um processo que sim, pode ser influenciado pela história vivenciada pela criança. Larissa: Se existe uma rejeição por parte da criança, nesse primeiro momento, com a família, como é feito o acompanhamento? Se a criança deve continuar no abrigo ou se deve ir para a família, porque a criança é ouvida, né?! Se ela não se sente segura no ambiente, se sente desconfortável. Como acontece quando ela deve ir para aquela família mas ela está tendo uma rejeição por medo do desconhecido? Simone: Até a criança está apta para ser adotada, ela já passou por uma série de estudos, de acompanhamentos, por uma série de questões, porque ela só vai para a adoção quando não há mais nenhuma chance dela estar com a sua família, então ela está disponibilizada para uma nova família. Esse processo acontece progressivamente, então primeiro se tem um preparo do lado emocional da criança. Ela já sabe, ela é informada de que a família não pode mais ficar com ela, e de que então nós vamos procurar uma nova família, que vai acolhê-la, que vai amá-la, que vai cuidá-la... Esse é o primeiro passo. E a criança muitas vezes já espera por isso, mas quando chega na hora, a criança muitas vezes sente medo, às vezes ela sente o medo do desconhecido, às vezes ela sente o medo da aproximação, então mesmo quando acontece, que a família chega para buscar essa criança, a gente faz todo um acompanhamento: Vai num passeio, vai num final de semana, depois vai todos os finais de semana, daqui a pouco ela vai passar um feriado, vai passar as férias, vai passar o natal... até que a gente diz assim “não, esse vínculo foi estabelecido, esse vínculo foi criado e essa criança já pode então viver com esses novos pais”. Então é feito todo esse acompanhamento, é feito tudo para ver se existe uma rejeição, pela criança, o que pode acontecer, mas a gente sempre trabalha para que ela aceite, para que ela se abra para essa relação. Para que ela esteja assim, aberta para receber esses novos pais,


esses novos irmãos... então a gente faz esse trabalho. Podem acontecer imprevistos, podem, mas é muito bem acompanhado também. Bruna: Em relação às crianças que são adotadas mais grandinhas, é mais comum elas serem mais arredias ou não, elas estão é mais ansiosas? Simone: Geralmente, o que nós observamos, com a nossa experiência nessa área, é que as crianças mais velhas estão ainda mais ansiosas por serem adotadas, porque muitas vezes elas já vêm de muito tempo dentro do abrigo. Elas já vem de uma série de experiências, de rupturas de relacionamentos, então elas geralmente estão mais ansiosas, e na verdade elas também tem consciência de que a situação delas é um pouco mais difícil, de que aconteça uma adoção, então quando há uma possibilidades, elas encaram isso como algo extraordinário. Elas aguardam ansiosamente, “eu já tenho, 13, 14, 15 anos, e tem alguém interessado em mim”, só que, claro, quanto mais velha, mais chances nós temos de ter algumas dificuldades nesse processo. Esse processo pode acontecer, ele dá certo na maioria das vezes, mas há algumas possibilidades de ter, algumas vezes, algumas dificuldades, porque a criança já tem uma experiência muito maior vivida anteriormente do que uma criança mais jovem. Bruna: E isso não pode ser um dos principais fatores dessa dificuldade tão grande de se conseguir adotar uma criança mais velha, de ser, talvez, o medo dos pais? Simone: Com certeza. O medo e o pré-conceito que existe, dentro da nossa sociedade com crianças mais velhas, de que vão dar problema, que serão problemáticas, de que terão muitos traumas, isso eu acredito que é o que mais trava quando se trata de termos pessoas disponíveis para adotar essas crianças. Mas a gente também sabe que um coração aberto para amar, para receber, para aceitar essa criança do jeito que ela é vai fazer toda a diferença nesse processo. Bruna: A senhora, anteriormente, falou sobre a idealização da família, que a criança, quando mais velha, mais ansiosa ela tá, mais aguarda a família. Durante o processo de adaptação, há o risco dela virar e falar assim: “ah, não era o que eu esperava, quero voltar para o abrigo” Simone: Quanto mais velha, muitas vezes, quando a criança fica, mais ela idealiza esse momento da família, como que vai ser, que vai ser tudo perfeito, porque não vai ser como no abrigo, mas, primeiro que a gente já trabalha a desconstrução dessa família


ideal, tentando substitui-la por uma família real. O que é uma família real? É uma família que tem seus conflitos, tem seus momentos difíceis, tem seus entraves, assim como qualquer família, porém quando ocorre o processo em si, pode haver sim, digamos, uma decepção, “poxa, não era o que eu queria”, mas por isso a gente faz todo esse acompanhamento. Por isso que ele é progressivo, que a gente vai descontruindo uma imagem que foi criada na cabeça, no imaginário dessa criança. Por isso que a gente não manda assim: “Agora você vai pra lá e pronto”, a gente vai descontruindo essa imagem progressivamente para que ela vá aceitando esse espaço, que a família vá aceitando ela como ela é, para que esse processo possa acontecer com maior sucesso. Larissa: Com essas crianças mais velhas, como vocês tratam o assunto? Vocês tentam manter a esperança ou são francos...Como que é esse processo com as crianças mais velhas, de 14, 15 anos? Simone: Nós temos, por via de regra, dentro do abrigo, sempre trabalhar de forma muito transparente com as crianças, desde as mais novas, até as mais velhas. Então a equipe técnica sempre trabalha sendo muito sincera com a criança, então, cada um de acordo com sua linguagem, cada um de acordo com o seu tempo, mas a gente sempre deixa bem claro: “Você tem pessoas da sua família que estão interessadas, vamos trabalhar... ou você não tem possibilidade dentro da sua família, então agora você vai encaminhar para um processo de adoção...” ou também “não temos pretendente de adoção para você no momento então você vai aguardar...”. Então de que maneira a gente vtenta trabalhar, sempre visando um trabalho muito equilibrado, não tentando colocar esperanças que não vão acontecer na cabeça dessa criança, mas também não tirando a esperança, porque isso pode acontecer em algum momento. Então a gente tenta manter um discurso muito transparente e equilibrado com as crianças, sempre trabalhando que há possibilidades, mas trabalhando também as reais possibilidades dentro do quadro dessa criança, dentro da sua idade, dentro do caso dela em si. Bruna: E em relação à readaptação à família, a criança continuar incluída no núcleo familiar dela, qual que é a importância psicológica dessa reintegração? Simone: Sempre trabalhamos, em primeira mão, visando uma reintegração familiar. Primeiro no núcleo familiar, que são os pais, e quando não há sucesso, então, na família extensa. Quando nós falamos da questão psicológica, né?!... Por que nós


trabalhamos assim? Porque a família biológica, né? A nossa família consanguínea, ela tem um peso muito grande sobre a nossa formação, sobre a formação da nossa identidade, da nossa opinião, então a gente sempre faz o possível, e muitas vezes quase o impossível para que essa criança continue com algum dos seus familiares. Qual a importância disso para a personalidade dela? É preservar a sua história, é preservar a sua identidade, é preservar os seus valores familiares, as suas raízes, porque isso faz diferença na constituição final do indivíduo. Bruna: Em relação às crianças que ficam, porque o abrigo aqui aceita apenas crianças até os doze anos, e conforme maior foi a idade, menor a probabilidade delas serem adotadas, como que é essa relação? Há uma ansiedade? Chega uma hora que elas querem desistir? Simone: O trabalho com as crianças que permanecem por mais tempo, geralmente os adolescentes, é um trabalho que precisa de bastante perseverança, bastante investimento, porque sim, muitas vezes elas têm vontade de desistir. Cada vez que uma criança vai embora, isso traz à tona aquele sentimento de que “poxa, mais um está indo embora, mais uma vez eu fiquei”. Ela sofre muito com isso, quando elas veem que mais uma criança está indo embora e mais uma vez elas estão ficando. Então sim, nós temos sempre que trabalhar de maneira muito unida, a equipe técnica, a área social, a área psicológica, para que a gente possa dar um caminho, dar um direcionamento para essas crianças. Elas vão se tornando adolescentes e vão se tornando adultas, dentro da casa. Então, na área psicológica, a gente trabalha a construção de uma identidade, uma identidade profissional, uma identidade pessoal, de valores de moral, de princípios, para que, quando ela sair daqui, caso não aconteça uma adoção, ela possa seguir sua vida como um cidadão que possa ter sucesso posteriormente. Bruna: E em relação à criança já adotada, há a necessidade de um acompanhamento psicológico dessa criança, por que essa necessidade tão grande? Simone: Porque, quando a criança é adotada, começa ali um relacionamento, uma constituição familiar do zero. Quando a gente nasce, a gente começa isso automaticamente, você já nasce dentro da família e esse processo já acontece. Quando você começa isso numa nova família, aos oito, nove anos de idade, você está começando um processo, que de acordo com o ciclo natural das coisas, já tinha que ter


começado lá atrás. Então automaticamente você tem perdas, você tem lacunas que precisam ser preenchidas, você tem relacionamentos e vínculos que precisam ser estabelecidos. Então por isso a importância do acompanhamento psicológico, para que a criança possa lidar mesmo com toda essa realidade, conseguir elaborar tudo isso, “Eu tinha um pai, que agora não tenho mais. Eu tenho um novo pai, eu tenho uma nova mãe, eu preciso construir essa identidade novamente. Eu preciso saber que eu sou filho novamente, mas de pessoas diferentes, que têm são outros valores, outros princípios, de repente, daqueles que eu nasci”. Então ela precisa trabalhar e elaborar todo esse processo, e isso, muitas vezes, psicologicamente e emocionalmente, não é tão simples. É um processo que requer um acompanhamento bem restrito. Larissa: Foi o que a juíza falou para a gente, que esse processo, muitas vezes, é comparado com o processo de luto, porque a criança perde os pais biológicos e tem todo esse processo de ter uma vida nova. Como que é essa comparação, nessa elaboração das fases até a pessoa ficar bem? Simone: Nós consideramos como luto, qualquer perda que nós temos, seja de uma pessoa, seja de um estado, seja de uma família... tudo isso é um processo de uma elaboração de uma perda, que nós chamamos de luto. Quando a criança perde a sua família, ela passa por esse processo de luto, ou seja, todo esse processo de elaboração de que “eu não tenho mais isso”, da perda, de que “minha vida é outra a partir de agora”. Então ali também tem umas fases, onde, primeiro, ela nega, “não isso não está acontecendo comigo. Não pode ser verdade. Tudo vai ficar bem”, e a gente observa esse processo nas crianças quando elas chegam aqui. Primeiro vem aquela negação, depois vem a culpa, depois vem a barganha, “deixa eu negociar”, até chegar na aceitação. Que é um processo que leva de seis meses há um ano, esse processo de elaboração de um luto. É justamente o que as crianças passam, é justamente o que as crianças sentem. Elas perderam uma situação familiar, pessoas do seu círculo familiar, elas perderam, de repente, aquela pessoa a quem ela era mais apegada. Essa pessoa não morreu, mas ela perdeu. Então por isso que a gente compara ao luto, onde existe todo aquele processo emocional e psicológico a ser vencido. Bruna: Mesmo as crianças estando abrigadas, ainda existe uma ligação dela com a família? Como a senhora disse, no caso dessas crianças ficaram até completar dezoito


anos, vão aproximando elas aos poucos de volta à família. Mas quando ela está abrigada, há esse contato, ao menos por parte dos funcionários? Simone: Nós sempre trabalhamos buscando sempre manter pelo menos um contato com a família biológica. Quando as crianças vão para a adoção, por exemplo, quando são grupos de irmãos, que por algum motivo são separados, são colocados em famílias diferentes, a gente tenta manter o vínculo entre irmãos, né?! Para que ela tenha uma ligação com suas raízes, com suas histórias, com sua identidade familiar. Então se uma criança, por exemplo, fica até os 18 anos aqui, e há a possibilidade de que ela tenha algum contato com algum familiar, o abrigo sempre vai fazer o possível para que isso aconteça, então pode aconteça. Pode passar o final de semana na casa de um familiar, mas não pode morar, não tem condição, mas ele pode vir visitar, a criança pode ir de vez em quando, a gente sempre incentiva isso, desde que isso seja benéfico para criança, na maioria das vezes é, mas tem casos e casos. Tem algumas famílias que às vezes acabam influenciando negativamente, mas sempre que é possível que tenha algum tipo de vínculo com as crianças que estão há mais tempo aqui, a gente mantém sim. Raimundo: Você acha alguma coisa interessante que você não falou? Fundamental assim, que conclua isso tudo? Simone: Eu acho interessante colocar que a adoção, ela é assim, o caminho de salvação para essas crianças. Nós ainda temos muita dificuldade, exclusivamente com adoção tardia aqui no Brasil. Até no exterior isso é um pouco mais tranquilo, mas aqui isso ainda é muito difícil. Eu gostaria de colocar que para um ser humano, para o emocional, para o psicológico, isso é algo que pode salvar uma vida, apesar, e além de todos os preconceitos que existem, tem muitas crianças que só querem amor, que só querem uma família, que só querem um lar, alguém que ame, que aceite, que cuide. Então, dentro da nossa prática, nós vemos todos os dias isso, pessoas que estejam com o coração aberto para que recebê-las. Existem dificuldades? Sim, existem com os filhos naturais também. Nós temos, muitas vezes dificuldades de adaptação, sempre vão existir, mas às vezes você vai estar, com toda a certeza eu afirmo, salvando a vida de uma pessoa, dando uma nova perspectiva, um novo futuro, dando a possibilidade d’ela ser alguém. Então eu queria colocar isso, que a adoção tardia, por mais que às


vezes complicada que possa parecer, ela tem sim muitas perspectivas de dar certo, porque tem muitas crianças apenas esperando alguÊm que as receba.


Juíza da Vara da Infância KATY BRAUN – JUIZA DA VARA DA INFÂNCIA, JUVENTUDE E DO IDOSO Bruna: O que é a adoção na legislação? Katy: A adoção é o ato jurídico pelo qual alguém traz para a condição de filho alguém que é um estranho. Bruna: A partir do convívio... há todo um processo em si, né?! Como funciona o processo? Katy: Uma criança, para ser adotada, ela precisa estar disponível para a adoção, e essa disponibilidade deve ser declarada por um juiz. Ela ocorre em duas circunstâncias, a primeira pela orfandade, aquelas crianças que são órfãs de pai e de mãe, então elas estão livres do poder familiar, né? Dos seus responsáveis, então elas podem ser colocadas à adoção. A outra hipótese é a perda do poder familiar dos pais porque eles praticaram alguma violação aos direitos dessa criança e é uma violação tão grave, que é irremediável, e o juiz declara então a perda do poder familiar desses pais, e a criança fica liberada para ser filho em outras famílias. Bruna: Em que situações os pais perdem o poder sobre os filhos? Katy: Situações em que eles praticam atos que colocam a criança em situação de risco, o abandono é um deles, a prática de atos contrários à moral e aos bons costumes, a negligência grave, então uma série de descumprimento dos deveres do poder parental é o que leva a perda do poder familiar. Bruna: A partir do momento que o pai perde os direitos sobre a criança, existe uma outra tentativa de que a criança continue, não necessariamente no núcleo, mas na sua família? Katy: A legislação sempre dá a preferência a alguém da família extensa. Então, por família extensa, ou estendida, são aqueles parentes, tirando o pai e a mãe, com quem a criança tenha vínculos de afeto e parentalidade. Então podem ser os avós, os tios, irmãos mais velhos, qualquer pessoa da família, que de alguma forma comprove essa relação de parentesco e prévio laço de afeto, que havia já uma convivência, havia já uma intimidade, em relação com o afeto com essa criança. Bruna: E como se dá essas tentativas de fazer com que a criança permaneça com a família?


Katy: Quando a criança chega pro serviço de acolhimento é o marco inicial. Significa que a violação dos direitos por parte dos pais foi tão grande que ela precisou ser afastada do convívio familiar. Então pra nós do judiciário começa uma corrida pra essa criança poder exercer o direito ao convívio familiar, porque a convivência familiar só vai ser útil, o acolhimento institucional só vai ser útil para a criança se ele durar pouquíssimo tempo. Se ele se perpetuar no tempo ele vai ser tão gravoso quanto é ficar na família de origem sofrendo violações de direito. Então nós fazemos em primeiro lugar um diagnóstico social e psicológico daquela situação para levantar a causa que levou a criança a se afastar do convívio familiar. Se é uma situação que permite que os pais sejam recuperados por meio de um tratamento médico, de uma orientação, nós fazemos isso, marcamos um prazo com esses pais para que eles correspondam a essas orientações. Além disso, uma criança pode permanecer em um abrigo por, no máximo, dois anos e a situação dela deve ser revista de 6 em 6 meses, no máximo de 6 em 6 meses. Então estamos sempre reavaliando esses casos, se é possível voltarem para os pais. Se não é possível ficar com os pais então já temos um levantamento de todos os parentes que podemos procurar e geralmente realizamos o que chamamos de audiências concentradas, que são audiências onde vamos para as instituições de acolhimento e ali a gente reúne a equipe técnica da instituição, a criança. A equipe técnica do judiciário, também os parentes interessados na criança para que eles cheguem a um acordo sobre qual é o melhor arranjo familiar. E aí nós temos também o cuidado de avaliar esses parentes, porque infelizmente ate as pessoas da família também violam os direitos das crianças e dos adolescentes. Bruna: E todo esse trâmite também faz com que a criança fique muito tempo na “fila de espera”, se é que podemos chamar assim, e em algumas situações ela não consegue ser reintegrada à família, né? Katy: Enquanto a família está sendo avaliada, enquanto ainda há uma possibilidade de colocação na família extensa, a criança não pode ser encaminhada pra adoção. A Lei diz que a adoção só pode ser deferida depois de esgotadas as possibilidades de manutenção na família extensa. Agora, chega um momento em que nós já avaliamos todas as pessoas, já podemos dizer se é possível e benéfico pra criança ou não à casa de um parente. Se não for possível ou conveniente, a criança é declarada disponível


para uma adoção nacional ou estrangeira conforme o caso. Nós sempre damos preferência para a adoção nacional, mas quando não encontramos dentre os mais de 30000 pretendentes nacionais alguém que aceite a criança com aquelas características, aí nós somos autorizados a procurar os pretendentes estrangeiros. Bruna: E a adoção para estrangeiros é mais comum por conta da faixa etária da criança, quando já é considerado muito velho para os pretendentes daqui do país, né? Katy: A grande maioria das adoções é praticada por nacionais, mas quando se trata de crianças mais velhas nós temos muitos estrangeiros adotando. Porque a gente observa da parte deles um preconceito menor com uma criança que já tem uma vivência, já tem experiência, e também há alguns países que estipulam uma idade de diferença que os pais devem ter dos filhos, então casais mais idosos não podem naqueles países pleitear um bebê, por isso eles aceitam crianças maiores. Bruna: E esse processo de tentativa de reintegração na família também atrasa um pouco a possibilidade de a criança entrar logo para a fila de adoção também? Katy: Uma das causas da demora para a criança ser disponibilizada para a adoção são as nossas tentativas de recolocação dessa criança na família extensa. Bruna: E isso infelizmente também pode prejudicar a criança, né? Pelas inúmeras tentativas, o tempo vai passando, a idade vai aumentando e isso também pode prejudicar a criança? Katy: Se nós tivermos dificuldade de localizar a família, se a família não for muito cooperativa durante os atendimentos, essas tentativas podem se prolongar no tempo e o tempo vai passando e a criança vai ficando mais velha. E cada dia a mais de vida torna mais difícil uma futura adoção. Mas infelizmente a legislação sacraliza a família biológica. Há para o legislador uma opção muito clara em entender a família biológica como a melhor para aquela criança. E muitas vezes nós vemos que essa família biológica não tem as melhores condições psicológicas mas por ser alguém da família, por haver um breve vínculo, nós somos obrigados a dar essa oportunidade para a família extensa porque a Lei assim exige. E é muito comum que os parentes devolvam as crianças. Há muita crítica contra adotantes que devolvem as crianças, porque isso realmente acontece, mas os parentes devolvem muito mais. Então é muito comum que eles aceitem a criança naquele momento de desespero da família quando a criança


está no abrigo ou até mesmo por pressão dos seus filhos que já perderam o poder familiar e passado algum tempo, quando, eles veem que não receberam ajuda financeira dos pais ou que não houve uma melhora nas condições dos pais que haviam prometido se regenerar para ficar com a criança, e especialmente quando a criança está entrando na puberdade, que começa a manifestar um comportamento mais opositor é aí então que eles vêm e devolvem a criança para nós, quando ela já é considerada uma criança velha para ser adotada. Bruna: E aqui em Campo Grande, quais são os padrões da adoção tardia? Muitos teóricos afirmam que a partir dos 3 anos já há uma dificuldade muito grande de adotar as crianças. Qual é a realidade aqui? Katy: Em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, nós podemos afirmar que até 5 anos de idade nós não temos dificuldade em colocar uma criança em uma família substituta. Depois dessa idade nós vamos ver uma facilidade ainda para as meninas, mas os meninos passam a ser rejeitados a partir dessa idade. Bruna: E isso se deve talvez por conta de conceitos, acreditar que o menino vai dar mais trabalho, vai ser mais rebelde? Katy: Existe um mito de que as meninas são mais fáceis de criar e educar. Então as pessoas acreditam que as meninas são mais dóceis e que as meninas trariam menos influência dos seus familiares, menor influência genética. Então elas trariam menos problemas para a nova família, e isso é um mito. Bruna: A senhora falou de 30000 adotantes no Brasil. E o número de crianças para adoção é algo muito menor, ultrapassa mais ou menos 10% desse número. Por que há essa discrepância tão grande? Katy: Nós temos mais de 37 mil pretendentes para menos de 7 mil crianças. E essa conta não fecha, apesar do número grande de pretendentes habilitados, ou seja, são pessoas declaradas por um juiz aptos para construir uma família por meio da adoção, essa conta não fecha porque essas pessoas preferem crianças menores, eles querem crianças de até 5 anos de idade em sua maioria. E as crianças que nós temos disponíveis não têm esse perfil. Elas são mais velhas do que isso, costumam ter algum problema de saúde e não raro pertencem a grupos de irmãos. E a Lei também exige que a gente, na hora de entregar a criança para a adoção, mantenha os irmãos unidos,


então não são todas as famílias que têm a disponibilidade para adotar um grupo, como nós temos aqui em Campo Grande, de sete. Então a gente até procura separar os grandes grupos em pequenos grupos para eles manterem o vínculo entre os irmãos, mas ainda assim a maioria dos pretendentes quer uma única criança. Bruna: É aquela história de começar com um passo de cada vez, né? Katy: Exato, e assim, uma das causas que leva alguém a se habilitar para a adoção é a infertilidade. Então essas pessoas desejam passar com o filho por todas as primeiras etapas do desenvolvimento. Eles querem ver falar a primeira palavra, dar os primeiros passos... e isso só é possível com uma criança menor. Então a culpa não está nos adotantes, eles têm o direito de também estipular um perfil. Mas demonstra que na nossa cultura nós sempre pensamos na adoção como uma forma de solucionar o meu problema, enquanto que para o juíz a adoção é um modo de garantir para a criança o direito à convivência familiar. Então a gente poderia dizer que existe o direito de ser adotado, mas não existe o direito de adotar por parte dos pretendentes. Bruna: Depois do momento em que a criança está disponível para a adoção ela vai para um abrigo, como funcionam os abrigos aqui em Campo Grande? Katy: A criança vai para um abrigo tão logo ela é afastada da família dela, e ela permanece no abrigo enquanto dura o processo de destituição do poder familiar. Então quando ela finalmente é declarada apta para adoção, pode ter transcorrido um prazo entre seis meses e dois anos. Então os abrigos precisam ter uma estrutura muito boa para poder, nesse período, atender todas as necessidades básicas de uma criança, inclusive as afetivas, porque a criança que está afastada de sua família sofre muito esse abandono, essa separação. Então é importante que o abrigo tenha pessoas bem preparadas, pessoas afetivas e que sejam também habilitados para trabalhar em pequenos grupos, para que aquela convivência em um abrigo seja a mais próxima possível de uma convivência familiar. Bruna: Isso tanto na relação das crianças com os funcionários quanto entre as crianças em si? Em outra oportunidade, a senhora disse-nos que os quartos têm poucos leitos, para poder gerar essa aproximação das crianças? Katy: A estrutura física de um abrigo, ou de uma casa lar, deve ser bem parecida com a estrutura de um ambiente familiar, antigamente, esses abrigos eram chamados de


orfanatos, e eram grandes galpões, com centenas de camas, onde essas crianças eram identificadas por números, então, esse tratamento impessoal deixou de existir porque também era uma forma de violar o direito das crianças. O que se pretende é que ela more em um ambiente mais intimista, o quarto dela será um quarto onde ficam poucas crianças, as refeições serão servidas numa mesa de refeição comum, como aquelas que a gente tem em nossas casas, tudo vai ser providenciado de um modo que ela se sinta bastante confortável, em um ambiente familiar, e não um ambiente institucional. Bruna: E qual a diferença entre o abrigo institucional e a casa lar? Larissa: Quantos são os abrigos em Campo Grande e quais as diferenças entre eles? Katy: Em Campo Grande nós temos catorze instituições de acolhimento, sendo seis da modalidade de casa-lar. A Casa-lar é dirigido por um casal, ou um adulto residente, que assume uma posição de “pai social”. Nessa modalidade de acolhimento podem ficar dez crianças apenas. Já nos abrigos institucionais, eles não têm essa figura do “pai social”, eles têm educadores, que se revezam conforme a legislação do trabalho exige, e admite-se até vinte crianças por instituição. Bruna: Nessas instituições estão abrigadas tanto as crianças que estão para a adoção quanto aquelas que estão ainda no processo de perda do poder familiar? Katy: Nós não separamos as crianças já disponíveis para a adoção das demais crianças em abrigos diferentes, porque isso geraria uma espécie de marginalização, então a ideia do abrigo é que as crianças convivam sem serem diferenciadas por cor, por gênero, por condição de saúde... Elas convivem todas juntas, como seria na nossa casa também se nós tivéssemos pessoas com características especiais. Bruna: E até que idade a criança pode ficar dentro do abrigo ou de uma casa lar? Katy: Ela pode permanecer acolhida até os 18 anos incompletos. Quando ela completa os 18 anos, ela deveria ser encaminhada para o que nós chamamos de república juvenil, é um equipamento da assistência social que os municípios deveriam ter para acolher esses adolescentes que completaram 18 anos dentro das instituições, então eles poderiam permanecer nesse local por três anos, com o acompanhamento de um assistente social e de um psicólogo, para que nesse período de três anos ele consiga adquiri ainda mais autonomia em uma vida independente. Infelizmente Mato Grosso do Sul nós não temos nenhuma instituição como essas, então as crianças, ao completarem


18 anos, são despedidas e encaminhadas, na maioria das vezes, para suas próprias famílias de origem, aquelas próprias que anteriormente violaram os direitos delas. O que muda é que já com 18 anos, a gente presume que a criança tem alguma capacidade de se defender de eventuais violências ou negligências, mas isso tudo ocorre justamente por falta desse equipamento, que é a república juvenil, que garantiria uma formação de mais independência e autonomia para o jovem egresso da instituição. Bruna: Nos abrigos, a gente vê normalmente, crianças um pouquinho maiores, com idades de uns dois/ três anos, porque não existe os bebês? Katy: Existem. Nós temos em Campo Grande mais de 30 bebês acolhidos. Bruna: Mas daí são os bebês que foram retirados da família, né?! E para adoção? A senhora, em outra ocasião, nos disse que quando a mãe não quer, entrega o bebê e ele não chega nem a ficar na fila, a entrar em um abrigo... Katy: Quando um bebê se torna adotável, demoramos meia hora para encontrar uma família para ele, porque aqui mesmo em Campo Grande, nós temos pretendentes para esses bebês, então o modo de chegar um bebê para a fila de adoção é, ou a perda do poder familiar, ou a mãe reconhecer que não está apta para criar esse filho, e entrega voluntariamente para a adoção. Nós temos em Campo Grande um programa de acolhimento e orientação dessas gestantes, chamado “Dar a Luz”. É uma maneira de tentar iluminar o caminho dessas mulheres que estão enfrentando uma situação de gravidez indesejada. Muitas delas sofreram abusos, perderam o apoio de seus companheiros, tiveram, às vezes, uma experiência muito difícil com seu companheiro... isso tudo as impede de exercer bem aquele cuidado materno sobre a criança. Então elas nos procuram, ainda gestantes, nós damos acolhimento social e psicológico, até que então o bebê nasce, e elas novamente são avaliadas, porque elas podem a qualquer momento mudar de ideia. Mas o que acaba acontecendo, é que metade das mulheres que nos procuram manifestando o interesse de entregar o filho para a adoção mantém esse desejo até o final, e a promessa que nós fazemos para elas, diante desse procedimento, é que elas não precisam temer que seu filho vá para uma instituição, porque, geralmente, eles saem do hospital diretamente para o lar desses pretendentes que já estão habilitados.


Bruna: Já que os bebês vão direto para o lar dos pretendentes não há, vamos dizer assim, um “prazo para desistência”? Katy: A mãe pode se arrepender de ter entregue o filho para a adoção até o momento que sair a sentença de adoção. Esse é um drama para nós, juízes porque, para a sentença de adoção ser deferida, ser realmente publicada, nós precisamos que essa criança tenha convivido com os pretendentes, então nós só vamos poder dar essa sentença de adoção quando essa convivência gerou um vínculo de pai e filho, quando a gente observou que essa criança está delegando para os adotantes a função de pai e de mãe. E apesar dessa situação estar já solidificada, a mãe biológica pode se arrepender, então essa é uma dificuldade que nós temos com a legislação, porque se a mãe se arrepende, depois de criado esse vínculo, o sofrimento da criança é muito grande, porque ela, desde que saiu da barriga dessa mãe, nunca mais a viu, não tem nenhuma convivência. E às vezes, essa mãe adotiva está até amamentando a criança, porque isso é possível, com a ajuda da ciência. Então essa relação afetiva que surge, para retornar a uma relação baseada na biologia é até complicado. Por sorte, não é comum que mulheres que façam isso, aqui mesmo em Campo Grande nunca aconteceu, porque elas são muito bem acompanhadas durante a gestação, então elas têm muito tempo antes da criança ser entregue para uma família para ela se arrepender, então quando elas entregam o filho, elas estão bastante determinadas a realmente não cria-los. Diferente são essas adoções que ocorre às margens do poder judiciário, onde essas pessoas, sem prévias habilitação, sem o juiz declarando a criança adotável, pegam os filhos uns dos outros para criar. É aquela mãe que deu, e aquele outro que pegou para criar. E essas situações são muito perigosa, porque a mãe pode alegar que houve uma má fé daquela família, e a chance desse tipo de adoção ser revertida é muito grande. Bruna: A senhora falou dos bebês que estão em abrigos, que aqui são cerca de 30 crianças. Esse processo de reintegração à família, no caso de outras crianças, que atrasa o processo de ela estar apta para a adoção, também acontece com esses bebês. Há uma possibilidade de, no momento que ela está apta para a adoção, já não ter mais chances tão significativas?


Katy: A busca pelos parentes é independentemente da idade das crianças. Então pode chegar aqui para a gente uma criança de 16 anos, 14, de 5, ou recém-nascido, nós temos que cumpri todas as formalidades da lei: avaliar os pais, avaliar os parentes, para ver se a criança pode ficar no âmbito de sua família biológica. A legislação diz que nós podemos aguardar até dois anos para definir isso, mas nós, aqui em Campo Grande, o judiciário, o promotor de justiça, e a equipe de psicólogos e assistentes sociais, entende que dois anos é um prazo muito longo, então nós nos esforçamos muito, para conseguir decidir sobre isso em um prazo de seis meses, então ao final de seis meses, a gente já tem uma convicção de que essa a criança pode ou não voltar a sua família de origem, e isso então dá início ao processo de destituição do poder familiar propriamente dito que, segundo a legislação deve dar mais ou menos 120 dias. Por sorte, em se tratando de um bebê, com menos de um ano a situação vai estar definida e ainda haverá muitos pretendentes para ele, não é o que acontece com as crianças maiores. Bruna: em relação aos abrigos, há um tempo atrás teve algumas casas que fecharam, e a senhora disse-nos que, sustentados pelo governo são só quatro aqui em Campo Grande. Esses abrigos dependem muito de ajudas, são ONGs. Qual a maior necessidade? Por que essas ONGs precisam de ajuda? Katy: O serviço de acolhimento institucional é um dever do município, então todas as prefeituras deveriam executar esse programa de acolhimento institucional. Muitas delas preferem fazer convênio com instituições não governamentais, transferindo para elas um recurso financeiro mensal por meio de convênio. Então em Campo Grande, das nossas 14 instituições, quatro são mantidas e administradas totalmente pelo poder público, as outras dez são convênios que foram celebrados com o governo municipal para executar esse serviço. O que ocorre é que as exigências para o funcionamento de uma instituição de acolhimento são muitas, a vigilância sanitária, o conselho de assistência social, o conselho municipal de direitos da criança, todos fiscalizam e vão fazendo cada vez mais exigências para que esse serviço seja impecável e que, de maneira alguma ofereça riscos para a criança. Há também uma demanda muito grande por funcionários, porque como eles trabalham 24 horas com uma criança, o repouso deles também é bastante prolongado, então a folha de pagamento dessas entidades é muito cara, e os convênios não permitem que as entidades paguem os encargos


trabalhistas e nem as rescisões trabalhistas com o dinheiro dos convênios. Por isso padecem de tantas dificuldades financeiras. Porque a parte de alimentação, de medicação, de transporte das crianças para as escolas, postos de saúde, tudo isso é mantido, mas o pagamento dos funcionários é que é a parte mais delicada. Bruna: A senhora disse que os abrigos institucionais podem abrigar até 20 crianças e, casas-lar, até 10. Em casos de superlotação dessas instituições, como é administrada essa situação? Katy: Eventualmente o numero de crianças que precisamos acolher excede o numero de vagas que nos temos, então normalmente as instituições governamentais, os 4 abrigos da prefeitura são os que ficam com a superlotação das crianças Bruna: daí eles se responsabilizam por essa situação? Eles têm que arrumar uma forma de gerenciar isso? Katy: é, se nos temos uma superlotação nos abrigos isso e sinal de que estão faltando vagas no serviço de acolhimento, então e o momento do administrados municipal pensar de que modo ele vai conseguir mais vagas. e normalmente é pela criação nos nossos abrigos, embora nos diariamente estejamos também reintegrando crianças às suas famílias e entregando crianças para a adoção. Então a gente percebe que ha determinadas épocas do ano em que o movimento de crianças para acolher e maior, geralmente no inverno, e em outras épocas é mais tranquilo, e campo grande não tem sofrido com essa questão da superlotação. Bruna: pra essas crianças que ficam muito tempo em abrigos. a senhora diz que o ideal é ficar até dois anos, mas infelizmente há situações que ultrapassam. Há um acompanhamento psicológico para essas crianças? Katy: sim. Nós temos em Campo Grande um projeto chamado Projeto Padrinho e, por meio desse projeto, voluntários da área de psicologia se cadastram para atender crianças gratuitamente ou ainda pelo valor da tabela social. Por outro lado, ha pessoas da sociedade civil que também desejam auxiliar essas crianças e se dispõem a pagar esse valor reduzido de um atendimento psicoterapêutico. Então nossas crianças quando são declaradas adotáveis vão para um atendimento de psicoterapia, tanto para serem preparadas para uma nova família, porque elas precisam elaborar o luto pela perda de sua família biológica, ou então elas permanecem nesse atendimento para


elaborar um projeto de vida sem contar com uma família, o que é mais difícil. Então é muito comum que nossas crianças que tenham crescido num abrigo saiam dele com a saúde física e mental em boas condições e normalmente também trabalhando, porque desde os 14 anos eles são incluídos em programas de menor aprendiz, para que possam ter uma autonomia financeira ao atingir a maioridade. Bruna: Então a forma com que a gente consegue fazer com que essas crianças tenham seus traumas tratados é através de ajuda de pessoas que se solidarizam com a situação delas? Katy: É, o melhor jeito de curar uma criança que sofreu graves violações dos seus direitos é entrar em uma nova família. Essa convivência familiar, o carinho que elas recebem, os cuidados que ela passa a ter em uma nova família têm um poder terapêutico incrível, e a maioria delas somente com esse amor já se recupera daquilo que passou. Outras crianças, quando os traumas foram mais graves, precisam sim de psicoterapia, e a psicoterapia tem demonstrado muito valor no tratamento emocional dessas crianças. Bruna: A senhora falou também de casos em que os adotantes devolvem as crianças, apesar de aqui não ser muito comum. Mas existem casos em que as crianças depois de já fazendo parte de uma nova família falam que não era isso que queriam? Porque antes de ser adotada, a senhora escuta ela né? Existem casos de a criança se arrepender? Katy: Não, nós não temos casos de crianças que recusaram a adoção ou que se arrependeram de terem sido adotadas depois. Pelo contrário. As crianças têm uma capacidade muito grande de se adaptar aos valores dessa nova família e a ruptura desse novo relacionamento familiar para elas é muito penosa. Elas já enfrentaram um abandono inicial em sua família biológica, provavelmente também enfrentaram um abandono de seus parentes, então quando essa família adotiva eventualmente rejeita essas crianças é um sofrimento quase incurável pra elas. E não é comum que as crianças se arrependam. É mais comum que os adultos se arrependam, quando a criança começa a mostrar alguma dificuldade, ou um problema de saúde que vem com o passar dos anos, ou aquele comportamento típico da adolescência. Porque os pais adotivos as vezes idealizam demais essa criança, acham que vai vir alguém perfeito,


um anjinho feliz e agradecido por estar recebendo uma nova oportunidade, e aí não chega um anjo, chega um ser humano com todas as suas complexidades. Bruna: então a questão dessa dificuldade em adotar as crianças está realmente nos pré-conceitos dos adotantes? Katy: Exatamente. Esses mitos a respeito da adoção prejudicam muito essa cultura da adoção no Brasil. Segundo os estudiosos, tudo isso se deve ao fato de que no passado escravocrata do país as crianças migrarem de uma família para outra para trabalharem no serviço domestico, e dizia-se que elas foram adotadas por padrinhos, e na verdade isso nunca foi adoção, porque adoção confere para os filhos o nome, o direito de herança, o tratamento igualitário com os outros irmãos, mas no passado escravocrata do Brasil geralmente famílias mais abastadas pegavam crianças pequenas, primeiramente nas senzalas e depois nos lares de pessoas pobres e levavam para casa dizendo que ia dar comida e em troca disso explorava o trabalho das crianças. Tudo isso era disfarçado numa relação de apadrinhamento, ou quando se diz "eu peguei pra criar", algo assim. Então essas experiências não foram bem sucedidas e acabaram gerando esse sentimento que algumas pessoas têm hoje. "Ah, minha avó pegou alguém pra criar e não deu certo", ou "a minha mãe tinha um irmão de criação e não deu certo". Não deu certo porque era irmão de criação, não era filho. Agora, as adoções costumam dar certo, elas têm o mesmo índice de felicidade de qualquer pai em relação a seus filhos. Não é porque o filho é biológico que os pais estão isentos de ter qualquer problema com ele no futuro. De rebeldia, de não querer estudar, de ter envolvimento com más companhias e tudo mais, os filhos adotivos estão sujeitos às mesmas dificuldades, não há um índice maior de famílias infelizes por causa dos filhos infelizes. Pelo contrário, como as famílias adotivas desejam demais aqueles filhos e elas foram avaliadas, receberam orientação até psicológica para adotar, costuma dar muito certo Bruna: E sobre o processo de adoção, como é feita a aproximação da criança com a família pretendente? Katy: A adoção deve ser precedida de uma aproximação gradativa, para a gente não provocar também um susto na criança retirando ela de um ambiente de segurança, que é a instituição, e entregando para dois desconhecidos, que seriam os novos pais. Então nós ouvimos a criança para ter certeza de que ela quer dar aquele passo e começamos


a aproximá-la com encontros, com visitas que as pessoas fazem à instituição. Mais tarde essas visitas evoluem para pequenos passeios e, conforme a idade da criança, desses passeios já é possível levar para residir em casa. Se forem crianças muito maiores, nós damos um tempo também maior de aproximação permitindo que a criança passe os fins de semana na casa dos pretendentes ate que haja uma segurança e uma adaptação mutuas e então começa o estagio de adoção propriamente dita

Larissa: O que é o Projeto Padrinho, qual a importância dele na vida de uma criança e como isso pode vir a se tornar em uma adoção futura? Katy: O projeto padrinho é o modo como os membros da sociedade descobriram de apoiar as crianças que estão na instituição, então todo mundo que tem amor por essa causa, que tem preocupação por essa causa, pode procurar uma instituição e oferecer o tipo de ajuda que tem pra dar. Essa ajuda pode ser uma ajuda financeira, custeando alguma despesa dessa criança, como por exemplo vestuário, medicamentos, um curso profissionalizante. O auxílio também pode ser profissional. Profissionais liberais oferecem seus serviços para as crianças. Então os profissionais liberais podem oferecer seus serviços de psicologia, fisioterapia, fonoaudiologia, pedagogia, para as crianças que estão acolhidas. Nós temos médicos, dentistas que nos ajudam também. Temos jardineiros, temos cabeleireiras... pessoas que oferecem não o seu dinheiro, mas o seu tempo, o seu trabalho. E há aquelas pessoas que mesmo não tendo o interesse de adotar aceitariam se responsabilizar pela criação de uma criança maior. Então sabendo que aquela criança não vai mais ser adotada em razão da sua idade, essa pessoa se dispõe a apadrinhar, levando para casa e cuidando da criança como se fosse um guardião. Ele vai se responsabilizar pela vida escolar, pela alimentação, por todos os cuidados que uma criança necessita, e quando a criança faz 18 anos ele não tem a obrigação de ficar com essa criança, embora a gente observe que quando há um apadrinhamento esse laco de amor surge com o tempo, e depois de estabelecido é muito provável que a família que antes acolheu como um voluntario passe a cuidar dessa pessoa como um membro da família, e em muitos casos acontecem até mesmo as adoções de adultos, porque é possível adotar um adulto. Então a criança completa


18 anos e a família chega à conclusão de que eles estabeleceram ali um laço de pais e filhos e efetuam então a adoção Bruna: Então esse apadrinhamento pode ser também uma nova esperança para essas crianças que estão há mais tempo em abrigos? Katy: Sim. Aquelas crianças que não podem voltar pras suas famílias encontram no apadrinhamento afetivo aquela oportunidade de ter uma convivência familiar, de ter orientações de uma família, de conhecer a rotina de uma casa. Ele vai ciente de que aquelas pessoas não são seus pais, de que ele não está encontrando irmãos nem tios, mas são pessoas de referencia, e é uma referencia boa, porque nos avaliamos também esses pretendentes. E ali a criança desenvolve habilidades que vão ser indispensáveis pra ela quando ela atingir 18 anos e tiver que enfrentar a vida. Larissa: É comum em Campo Grande haver a adoção aberta? Katy: Existem dois sistemas de adoção, um é a adoção fechada e o outro é de adoção aberta. A adoção aberta é quando a mãe consente com a adoção e em troca disso ela passa a ter alguns direitos de acompanhamento da vida daquela criança. Isso é muito comum nos EUA, a gente vê nos filmes aquela mãe biológica recebendo cartas com fotografias da criança em determinadas fases da vida dela. E também há previsão de que às vezes haverá encontros para que a mãe biológica continue tendo contato com a criança que ela entregou. No Brasil isso não é previsto pela Lei. As nossas adoções são necessariamente fechadas, então quando o pai perde o poder familiar, ele não fica sabendo pra qual família a criança dele foi entregue. Então por meio oficial ele não tem como entrar em contato com aquela criança. Eventualmente acontece por causa das redes sociais, por causa do convívio nas cidades menores, de as pessoas acabarem se reencontrando. E os bons pais adotivos encaram isso com muita tranquilidade. encaram a família biológica como um elemento importante da historia daquele filho e juntamente com o filho ele enfrenta essa situação dando as informações que ele entende que são cabíveis dar e também protegendo a criança se ele vê que essa família vem com alguma má intenção de modo a colocar a criança em situação de risco. As adoções abertas no brasil ocorrem ao arrepio da Lei. São justamente essas adoções onde uma mãe pobre normalmente é abordada por pessoas com melhor condição financeira que querem ter um filho e fazem mil promessas pra essa mãe. "Eu não tenho filhos, deixa


que eu crio essa criança e em troca disso você sempre vai saber onde ela está, vai poder visitar, e tudo mais". E as pessoas fazem então esses arranjos e esses arranjos permanecem valendo ate que essas famílias obtenham a adoção. Depois de anos de convívio, quando elas obtêm a adoção, então elas desprezam totalmente com a família natural e rompem com esses acordos que elas fizeram. Bruna: A senhora disse que muitas vezes as crianças que tem alguns traumas só o fato de elas passarem a integrar uma família esses traumas já são curados ne. Quais são as principais diferenças percebidas a partir do momento em que a criança é adotada? Katy: A transformação das crianças que saem dos abrigos e vão para uma família é uma das coisas mais bonitas que a gente pode observar na vida da gente. primeiramente elas passam a ter um desenvolvimento físico diferente. Elas crescem. As que são magrinhas ganham peso. As que estão acima do peso regularizam seu peso. Então é muito evidente que esse novo ambiente, essa nova convivência traz pra ela saúde. Não é que no abrigo elas tenham má alimentação ou que falte alguma coisa. Mas o que muda é realmente a convivência, é o afeto nas relações. A gente observa também que muitas crianças que tem doenças de cunho psicossomático quando vão pras novas famílias saram sem precisar de tratamento medico muitas vezes. Então problemas respiratórios, problemas de pele automaticamente são sanados quando a criança passa a conviver em família. Também há muitas crianças quanto às quais havia queixa de mau comportamento. Então a criança era bagunceira, muitos taxavam a criança de hiperativa, alguma coisa assim, e na verdade aquela reação dela mais exacerbada era só uma maneira de mostrar o seu descontentamento com aquela situação que estava vivendo. Quando vão para as famílias também elas encontram um equilíbrio para o seu comportamento. Então a gente observa que o afeto que é talvez o diferencial de uma vivência num ambiente coletivo com um ambiente familiar, ele é preponderante para a saúde física e emocional das crianças. E até aquelas que enfrentam algum problema de saúde respondem melhor ao tratamento quando estão em suas famílias. Bruna: Como acontece o processo de adoção, a aproximação da família em casos à distância? (Família em uma cidade, crianças em outra)


Katy: Todos os juízes de infância no brasil trabalham de maneira interligada por intermédio do cadastro Nacional de Adoção. Esse cadastro reúne a lista de todas as crianças disponíveis e de todos os pretendentes interessados. Então quando eu declaro uma criança adotável em Campo Grande o nome, o registro dessa criança é disponibilizado para os juízes de todo o pais, que podem facilitar a obtenção de uma família adotiva. De igual modo, uma pessoa que nós habilitamos em Campo Grande também se torna disponível para os juízes de todo o pais. Então é muito comum que pessoas da nossa cidade sejam convocados por juízes de outras localidades para irem lá receber os seus filhos. E nós fazemos o mesmo, buscamos em outras localidades pais para os nossos filhos e aí os juízes trabalham de uma maneira solidaria para que um acompanhe o processo do outro Bruna: E a aproximação de pais e filhos nessa situação, como funciona? Katy: Caso uma família pretenda adotar alguém de um município diverso do seu ele tem que estar preparado emocional e financeiramente para se deslocar para essa cidade, custear suas próprias despesas de permanência nela, o tempo que for necessário para haver essa vinculação inicial, essa adaptação pelo menos superficial para que o juiz confie dessa família trazer a criança para a sua cidade. E isso varia conforme a idade da criança. Crianças pequenas, bebês, rapidamente se adaptam. Crianças em outras idades, em outras faixas etárias às vezes precisam de um pouco mais de tempo. Então é muito comum que as pessoas tenham que se deslocar durante finais de semana, feriados para manterem o contato. Outros preferem tirar um mês de férias e mudar para aquela cidade durante 30 dias para ficar convivendo com a criança. Mas nós também podemos utilizar hoje dos recursos tecnológicos para manter esse contato, como por exemplo pelo Skype, pelas redes sociais, as crianças vão mantendo contato com os pais dessa maneira também. É claro, intermediado pelo poder judiciário, nós é que promovemos esse intercâmbio. Larissa: Existe algum problema hoje na Lei do Brasil para casais homossexuais adotarem? É mais difícil para eles? Katy: O Supremo Tribunal Federal equiparou as famílias homoafetivas às outras famílias, então não é permitido que o juiz tenha algum tipo de reserva ou de preconceito com as famílias que tem uma composição diferente. Então podem adotar pessoas


solteiras, pais solteiros, mães solteiras, podem adotar os viúvos, os separados, e os casais, de mesmo sexo ou de sexo diferente. Bruna: Esse tabu que existia até pouco tempo, de que apenas uma das pessoas no casal homoafetivo poderia entrar com o processo de adoção, um é o pai e o outro só cuida... não existe mais isso? Katy: Não, antigamente um dos membros daquela relação se habilitava e recebia a criança por meio da adoção, e o outro membro permanecia como curador, mas sem ter na legislação o seu direito garantido de pai ou mãe. Depois o legislador observou que isso era um prejuízo para a própria criança, porque no caso de morte daquele pai que tinha o nome no registro, a criança ficava sem uma razão jurídica para permanecer com o outro que era apenas cuidador. Era muito comum que parentes obtivessem a guarda dessa criança, desprezando assim a relação de afeto que já havia com o companheiro ou companheira homossexual de seu pai ou mãe. Então hoje as certidões de nascimento têm um campo onde aparece o nome de dois pais ou de duas mãe, ou de um pai e uma mãe, como é mais comum. Mas a criança tem garantidos os seus direitos a um nome, à herança, de pensão alimentícia e todos os outros em relação a ambas as pessoas que exercem a função parental. Larissa: Quais são suas considerações finais sobre o tema? O que a senhora tem a dizer para quem gostaria de adotar, ou que tem algum receio... o que tem a dizer sobre a adoção hoje em dia? Katy: Os juízes lidam no seu trabalho diário com muitas coisas difíceis, muitos conflitos para tentar solucionar imediato. E talvez a área de adoção seja uma das poucas boas atividades que a gente exerce, aquilo que a gente vê alguma coisa de bom sendo construído, e ao longo de 17 anos de carreira eu nunca encontrei um pai ou mãe que se tornaram pais e mães por adoção que vieram me dizer que estavam arrependidos daquela decisão. E também nunca encontrei uma criança que tenha saído de sua família natural pra ir viver numa condição mais infeliz na sua família adotiva. Isso me dá muita esperança na construção de uma família por meio desse vínculo. Nós somos habituados a entender como muito forte o vínculo de sangue, a supervalorizar a mãe biológica como aquela pessoa que já teria os instintos todos para criar bem uma criança. Mas o que a gente observa é que as relações entre pais e filhos elas se


constroem, vai por decisão desses pais que querem ter filhos e são responsáveis o bastante para pagar o preço de criar e educar uma criança, isso é muito difícil para qualquer um que queira ser pai, tanto biológico quanto por adoção, e o relacionamento, esses vínculos se constroem e se tornam tão fortes e tão valiosos quanto os vínculos que são construídos entre pais e filhos biológicos. Porque os filhos biológicos só são felizes também com seus pais biológicos se forem por eles adotados. Porque ha pais biológicos que não adotam seus filhos biológicos. Deixam as crianças em situação de abandono, privam essas crianças daquele afeto necessário para que alguém seja feliz. Então nós temos aprendido a dar menor valor para a genética, para a questão do sangue, e passar a ver com muita satisfação as construções que podem surgir a partir do afeto. São relações de amor, de respeito e de cuidado que fazem muito bem para essas crianças que precisam de uma família, e normalmente também faz muito bem para aqueles que decidiram exercer o papel de pais e mães. Então meu pensamento hoje é que de qualquer pessoa que deseja formar uma família... ela tem várias vias para formar essa família. E uma não exclui a outra. Uma é a via natural, por meio de uma gestação natural. E a outra via é por meio da adoção, e no final das contas a felicidade de um pai e de um filho não vai depender da consanguinidade, mas do afeto que eles criaram nessa relação.


Casais Ana Rosa e Anderson ANA ROSA NANTES - PROFESSORA APOSENTADA, ATUA COMO MAQUIADORA ANDERSON DIVINO NANTES - MILITAR DO EXERCITO Bruna: Eu queria que vocês explicassem, inicialmente, por que deram início ao processo de adoção Ana: Nós tínhamos muito desejo de ter mais filhos, eu tenho uma filha que é a Luise, que tem 28 anos, nós nos casamos e não tínhamos filhos em comum e sempre pensamos na ideia de ter filhos. Alguns empecilhos acabaram impedindo a gente de ter um filho biológico. Desde o instante que a gente soube que não teria um filho biológico se não fosse por fertilização in vitro, nós tínhamos uma percentagem mínima, bem baixa de ter uma criança saudável, mesmo com fertilização, então nós descartamos essa opção. Então vamos pra adoção. Logo fizemos um curso e optamos por 2 crianças, irmãs, até 5 anos. Uma até 2 anos e uma até 5 anos, porque queríamos um bebe. Aí passou toda a fase, fizemos o curso, nos inscrevemos, levamos toda a documentação, houve a aprovação e com 2 meses nós fomos chamados pra ver algumas crianças, que não eram eles, mas as crianças que nos sugeriram eram crianças... lógico, o fórum coloca sempre as crianças maiores que estão disponíveis, pra ver se acaba comovendo a família e acabam sendo adotadas. E eu fui clara com a assistente social e falei "olha, nós queremos uma criança menor, porque meu marido não teve essa experiência com bebê, não precisa ser recém nascido, pode ter até dois anos e pouquinho, mas não tem problema se tiver irmãos". Aí minha filha falou "não, nossa casa é bem grande, cabe até três crianças". Aí ela falou assim "ah, dá licença um pouquinho", aí foi lá dentro, voltou e falou assim "olha, acabou de entrar um grupinho na lista, só que são 4 crianças e tem um bebê de um aninho. Quer conhecer?" Aí a gente: "queremos". Anderson: Você vai sem compromisso Ana: Sem compromisso, porque você vai conhecer mas não é obrigado a adotar a criança no primeiro impacto, até que tem que ter aquela empatia também com a criança. Não só dos pais, principalmente da criança com a gente, porque a criança tem que se identificar com os pais adotivos. Aí no dia seguinte a gente foi mudar o cadastro,


passar pra adoção de 4 crianças e passamos pra primeiros da lista. No que a gente passou pra primeiro da lista, choveu de criança pra gente adotar. De grupinho de 4. 4 a 5. Então a gente estava lá na cidade onde eles estavam e o pessoal falava assim "olha, se não der certo com essas crianças tem outras", o pessoal já corria atrás porque não é todo mundo que quer realmente adotar 4 crianças. Quando a gente chegou na cidade e foi passar o período de adaptação, que foram 20 dias... seriam 20 dias, mas como a gente ficou na cidade vizinha então nós ficamos alguns dias com eles, aí depois nós viajamos, eles foram, ficaram conosco no feriado de 4 dias, aí depois nós voltamos, ficamos mais dois dias com eles, aí depois nós viemos embora e no final de semana posterior eles vieram pra cá passar com a gente. Eles ficaram com a gente no final de semana e aí houve já a total ligação familiar. No começo é difícil porque né, são quatro crianças diferentes que você nunca viu, e pra eles também são duas pessoas... são todos estranhos. Você tá se conhecendo ali. Mas houve empatia à primeira vista, que era fundamental. A mais velha, que era a que a gente tinha a maior preocupação, de ter afinidade mesmo, que por intermédio dela a gente saberia que teria conquistado os menores. Mas a mais velha era a nossa maior preocupação, de aproximar, de ter aquele contato mais intimo, de ficar mais próximo Anderson: Até o fórum nos orientou, né Ana: É, até o Fórum nos orientou a isso. Anderson: A gente poderia ter problema com ela, porque outros casais já haviam tido contato com eles, e os casais demonstraram querer só os pequenos, então ela se fechou. Bruna: e quantos anos ela tinha? Anderson: Oito. Ela era a protetora deles Ana: Ela era bem mais nova, né. Ela falava assim "eu não posso ficar longe dos meus irmãos porque senão eles passam mal, eles ficam doentes longe de mim" sabe, assim? Meio que uma tentativa de "não leva eles sozinhos sem me levar junto", tadinha. Era medo de ficar lá no abrigo, porque uma criança acima de 5 anos a tendência é que ela fique lá até completar a maioridade e saia pra viver sua vida independente. Mas deu tudo certo, foi uma acolhida excepcional da família, de todos... muitos falaram que a gente era maluco, mas no geral, 90% apoiou


Anderson: Ninguém nos criticou Ana: Nos ajudara bastante na adaptação até da casa, porque em menos de 20 dias a gente tinha 4 crianças dentro de casa e nada pra criança. O primeiro dia que saí com as crianças, que fui pra casa da vó eu não levei fralda, não levei mamadeira, não levei água, não levei leite, não levei nada, só levei as crianças! Com a roupa do corpo! E meu filho não sabia, ele fazia cocô, ele andava tudo... ele não... sabe quando você não pensa, assim, criança vai precisar de fralda, roupinha, trocar se sujar, não... aí todo mundo ria da gente sabe? Era muito gostoso, porque a gente estava passando realmente tudo que os pais passam quando a criança chega, o medo, o temor, se a criança geme de noite você sai correndo, é muito legal, muito bom. E é até hoje, é isso aí que você escutou, é o dia todo todos os dias. "Mãe faz isso, pai faz isso, mãe, pai, mãe, pai, mãe" o dia inteiro. É uma rotina... eu não sei se é uma vantagem ou desvantagem, mas eu como professora e meu marido como militar, a gente é bem acostumado com rotina, né. Então nós temos rotina de hora de estudar, hora de comer, hora de tomar banho, hora de dormir, então eles têm hora pra tudo. A gente aproveitou que eles já tinham um pouco essa rotina e deu continuidade, pra facilitar pra gente. Então eles tomam o café da manhã, almoçam, lancham, jantam, dormem no horário pra não prejudicar na escola, né, porque todos estudam de manhã. Agora eu tive licença maternidade, como toda mãe, só que foram só 6 meses, foi só de um filho. Ele também teve licença paternidade, as crianças tiveram alguns benefícios, em função do tipo de situação em que eles viviam, facilidade de conseguis escola, de conseguir creche, isso tudo é mais fácil, o governo agiliza isso pra gente pra não estimular o retorno da criança ao abrigo. Então eles facilitam da maneira melhor possível para que a criança fique mesmo. O acompanhamento psicológico, o acompanhamento psicossocial isso é, assim, diuturno, quase. E até hoje, né, via redes sociais a gente é acompanhado. Eles estão lá "olha, como cresceu, que lindo! Tô de olho", sabe? Bruna: Onde eles estavam? Eles não moravam aqui, né? Anderson: Em Três Lagoas Bruna: Aí vocês foram lá... Ana: É, um abrigo chamado Poço de Jacó, não sei se funciona ainda, creio que sim. E todos os dias a gente ia pro Fórum, a juíza abria um documento que permitia que a


gente passasse o dia com as crianças, mas havia um psicólogo e um assistente social que iam juntas, elas ficavam o tempo inteiro com a gente. A gente não ficava sozinho com as crianças, nunca. Bruna: e vocês falaram da preocupação, que a mais velha tinha em relação aos irmãos, que outros casais tinham demonstrado interesse em levar apenas os irmãos. Passou alguma vez pela cabeça de vocês levar os dois mais novos... Ana: Não Anderson: Não, em momento algum Ana: Nunca Anderson: Foi justamente por causa dela, a mais velha, que a gente ficou com eles. Em momento algum, nós não questionamos, não discutimos... Larissa: Tanto que vocês entraram na fila para dois, né? E aí acabaram ficando com os quatro... Anderson: é, foi, quando falaram deles a gente... Ana: É porque às vezes o casal fala assim, eu aceito até três, ou aceito até dois... aí você fala que tem quatro, "vai lá, conhece, passa um tempo junto..." e não, no nosso caso a gente foi pra adotar 4. então na nossa cabeça... Anderson: Nós não pensamos no dia seguinte, como é que ia ser, roupa, quarto, não pensamos em nada. Ana: Todo mundo fala assim "ah, você vai entrar na lista de adoção, vai ficar anos esperando... meses..." nós terminamos a casa, recebemos a visita em casa, nós arrumamos tudo... e de repente... Anderson: nós entramos em agosto e em outubro eles chegaram! Foi muito rápido Ana: Nós entramos no final de agosto, e no começo de outubro fomos pra conhecer eles e no dia 24 de outubro eles já estavam em casa. Morando em casa. Anderson: Foi um processo muito rápido, até porque são 4 crianças, né, então o trabalho é muito rápido Ana: É, nós fomos dia 6, dia 24 eles já vieram de mudança Anderson: se a gente não tivesse adotado de repente outro casal até poderia. Aparecer outro casal e adotado os 4. Ou eles seriam separados ou mandados para a adoção estrangeira.


Ana: É, o estrangeiro gosta da criança maior e de grupinho. Anderson: Já o Brasileiro é aquilo que você mesmo falou, né. Só quer as crianças menores, pequenas Ana: Mas é por uma questão cultural mesmo, de você ter que falar pra família que aquela criança é adotada, e a criança parecer ou não com você, é uma questão mesmo de preconceito, eu falo, eu penso. Porque tem criança que nasce de pai e mãe e não é igual, né. Nem parece às vezes. Anderson: e você não escolhe quando você vai ser mãe, como é que vai ser seu filho, se é branco, se é negro... Ana: nós somos 4 filhos na minha casa. Meu irmão é bem moreno, quase negro posso dizer, e eu tenho uma irmã bem branca, branca, branca, branca e duas, que somos eu e a do meio, que somos quase da mesma cor. Somos quatro filhos totalmente diferentes. Se você olhar assim tem uma vaga lembrança, mas dizer que parece assim um com o outro é muito difícil de falar assim que parece. Eu pareço com outros parentes. Eu saía assim com parente do meu pai ou com parente que não era parente mesmo, a pessoa dizia "você é a cara do fulano" e eu não tinha nada a ver com fulano, de sangue. Agora, meus filhos, todo mundo fala "nossa, parece tanto com vocês, é a cara de vocês" Anderson: eu nunca tive assim essa preocupação de alguém achar se parecia com a gente ou não. Nunca Ana: inclusive tem um casal de amigos nossos que está adotando um menino de 12 anos que é a cara do pai. A cara. Idêntico. Aí você fala assim "ah, mas escolheu porque é parecido" não. Quando vai ficando perto, vai pegando o jeitinho, aquele jeito da família, acaba criando um laço, parece natural. Anderson: Quem não conhece a nossa história não imagina que eles são adotados, porque acham que parecem com a gente. Ana: é, porque a minha família tem bastante afrodescendente. Bruna: Vocês nunca tiveram receio de ter que explicar para os outros? Anderson: jamais Ana: nunca Anderson: nunca


Larissa: Vocês perceberam algum tipo de medo por parte das crianças, quando elas foram adotadas? Ana: Medo de não serem aceitas. Anderson: Com certeza Ana: Não serem adotadas. Bruna: Medo de não serem aceitos por vocês? Ana: É. Larissa: Eles já tinham passado por aquela fase de ir para uma família nova? Dessa vez eles queriam uma família nova? Ana: Eles queriam ir, mas eles tinham medo de ir e voltarem. Anderson: Tipo, “é mais um casal que a gente vai conhecer e... Ana: E não vai dar certo? Anderson: E vai saber se vai dar certo ou não?!”. Até que a mais velha, a Gabriela, quando sentiu que a gente realmente queria adotar eles, ela se soltou e se entregou. Ana: É, que ela era super mãezona Anderson: Até o pessoal do abrigo estranhou. Ana: Ela cuidava, protegia, de repente ela nem olhava mais para os irmãos, tipo assim “se vira, cuida vocês, que agora vocês são os pais, que eu vou brincar, vou me divertir, vou ser criança...” Anderson: Ela sentiu uma segurança tão enorme na gente que, como você falou, ela se entregou. Foi, nossa, maravilhoso. Bruna: Como a juíza disse para vocês que poderia acontecer alguma trava por ela, né?! Vocês chegaram a temer isso? Anderson: De jeito nenhum. Ana: Dela não querer? Bruna: É, dela ser um pouco aversa, de querer ficar muito na dela. Ana: Ah não, eu acho que tem que respeitar. Cada pessoa é de um jeito, e por mais que ela tenha os problemas que ela vai ter, com certeza, somos humanos, nós temos conflitos internos, coisas que precisamos resolver. Isso eu acho que um bom profissional vai estar ajudando, sempre ajuda. E eu não tenho esse problema de falar que vou levar minha filha no psicólogo e no psiquiatra porque ela é adotada, eu vou


levar se precisar. Se ela precisar de tratamento, assim como minha filha biológica precisou, eu vou levar. É uma questão de respeito a ela também, e a mim, a nós todos, porque é natural que ela tenha os problemas dela, os conflitos internos dela que ela trouxe, de rejeição, de saber que a mãe não conseguiu superar um vício em nome deles, e entender que aquilo é uma doença. Uma vez ela me perguntou porque que ela não ficou três dias sem usar droga? Eu falei assim, que isso era uma doença. Ela falou “não, não é uma doença, ela é drogada”. Eu falei “não, não é. É doente. Hoje eu posso ajudar vocês, quando você crescer, quando você estudar, se formar na faculdade, tiver uma profissão e quiser ajudar, aí você procura ajuda, porque hoje a gente só pode ajudar você”, então deixa claro para ela que ela está aqui como filha e que é amada, mas que ela tem a opção sim de procurar a história dela, e tentar resolver isso dentro dela, ela tem e ela também vai pra isso. Não tenho medo nenhum, porque eu sei que o amor que a gente dá para ela, mesmo que ela for, eu sei que ela vai voltar, ela vai ser sempre a nossa Gabriela, e eles vão ser sempre os nossos filhos. Anderson: Eles não se lembram mais, hoje em dia, dos pais. No começo ela falava muito. Natural, né?! Ana: Fala muito. Fala o nome... Confunde, troca o nome... Normal, porque já era maior... Anderson: Os pequenos sabiam também, hoje em dia já apagaram... Ana: A Rafa perguntou esses dias se eu fiz chá de bebê dela. Anderson: A Rafaela, sete anos. E ela tinha dois aninhos... Ana: Quando ela veio ela tinha dois aninhos... Anderson: E sabia o nome do pai e da mãe dela, e sabia que estava sendo adotada. Com o passar dos anos ela esqueceu, ela apagou. Ana: Ela apagou totalmente. Bruna: E as crianças, os menorzinhos, principalmente, você acabou de dizer que a Rafaela perguntou se foi feito chá de bebê. Eles, às vezes não querem fotos? Anderson: Não. Bruna: Da mamãe grávida, eles nunca pediram? Ana: A Rafa esses dias perguntou por quê que eu não tinha foto dela, grávida, aí eu falei “filha, você não veio da minha barriga...


Anderson: Nós não escondemos nada Ana: “...você não nasceu da minha barriga, mas a mamãe esperou você do mesmo jeito”, né? Aí o Maurício falou esses tempos para mim, que eu acho que a Rafa tinha comentado com ele “mamãe, eu nasci da sua barriga?”, eu disse “não, meu filho, mas você é meu filho querido” Anderson: Tanto é que ele já sabe. Ana: Ele já sabe. Ele perguntou “onde é que eu morava?”, “você morava em um abrigo”, “mas como que eu vim parar nessa casa?”, eu falei assim “é que a mamãe e o papai foi lá, e olhou pra vocês, viu que vocês eram as crianças mais lindas que tinham lá, e nós escolhemos vocês”. Eu não contei nada pra ele, naquela correria, eu trabalhando e não sei o que, aí no outro dia ele falou assim “papai, o senhor sabia que eu morava em uma abrigo?”, “Claro, né filho”. “Você sabia que vocês escolheram a gente porque a gente era os mais lindos do abrigo?” E agora ele quer conhecer o abrigo. Anderson: Ele quer conhecer o abrigo. Bruna: E que idade ele tem hoje? Anderson: seis. Ana: Tem seis anos agora. Larissa: E vocês vão levar eles lá? Anderson/Ana: Com certeza. Bruna: Vocês não têm nenhum receio de que, como a juíza alertou, que a mais velha podia querer, ter alguma restrição. Vocês não têm nenhum receio que, sejam os mais novos, eles virem para vocês e digam “não, vocês não são meus pais”? Ana: Pode até ser que isso aconteça... Anderson: De repente... Ana: Às vezes, qualquer filho que mora com a avó e tem um pai, mora com o pai, vira e fala assim “ah, eu vou morar com a minha avó”, então pode ser que eles virem para a gente e fale assim “você não manda em mim, você não é meu pai, você não é minha mãe...”, pode vir a acontecer, a gente está preparado, porque a gente sabe, tá, biologicamente não, mas “A gente te cuida, a gente te educa, somos responsáveis por você. Tem um documento que diz que a gente é responsável por você, então até que


você fazer 18 anos, até você ter a maioridade, nós somos responsáveis por você, e além de sermos responsáveis por você, nós te amamos, e é isso que no une. Agora quando você ficar maior, quiser viver a sua vida, aí a opção vai ser sua”. Então a gente tem que jogar... A criança gosta que trabalhe com a verdade, então, uma vez que você jogou com a verdade com a criança, com o adolescente, você tem ali 90% do caminho aberto para você viver uma vida mais tranquila, é assim que a gente vive aqui. Bruna: E sobre o processo de adaptação, você uma vez me contou, Anderson que vocês chegaram a viajar, e quando voltaram para o abrigo, o caçulinha chegou a ficar doentinho. Como essa ligação aconteceu tão rápido assim entre vocês? Anderson: Nós conhecemos eles numa quinta, tivemos mais um contato na sexta, o próximo contato seria apenas numa quarta-feira, que era depois de um feriado. Aí a psicóloga e a assistente social conversaram com a juíza para que liberasse as crianças para que passasse o final de semana com a gente. Como ela disse, a gente estava em uma cidade vizinha, porque eu tenho parentes lá, e eu sou do interior de São Paulo, e aí as crianças foram, a juíza liberou as crianças e elas foram com a gente no sábado... Ana: E o Fórum levou as crianças Anderson: O Fórum levou. Aí chegou lá, foram muito bem recebidos pela minha família e aí passou o final de semana com a gente ali. Ana: Passaram Sábado, domingo, segunda, terça... Anderson: A recepção na nossa família foi surpreendente. Não, foi sábado e domingo. Ana: Sábado e domingo. Anderson: Então passou o final de semana com a gente ali, a convivência já foi melhor, se soltaram... o menino aprendeu a andar nesse final de semana com a gente. Aí no domingo à tarde a assistente social chegou com o carro do fórum para levar eles. Aí ela entrou na casa... Ana: Ela viu que ele estava andando, aí ela chorou... Anderson: Ela entrou na casa, conversou um pouco com a gente, aí eu fui na cozinha buscar uma coisa, e o menino foi atrás de mim andando... Nossa, aquilo ali foi uma cena extraordinária, aí até a assistente chorou. Ela falou “gente, ele tá andando... Como é que pode? Ele tá alegre que só”. Mas nesse dia também foi muito triste, foi doído. Aí ela ficou ali um pouco e ele dormiu e estava na hora de ir embora. Aí foram pra Kombi,


eu peguei ele e coloquei na cadeirinha... menina, nós desabamos ali... Porque parecia que estavam tirando os nossos filhos da gente, parecia que eles já eram nossos filhos e estavam levando embora. Aquilo... as crianças já chorando, o menino dormir, e eu me acabei, eu chorei, não aguentei, não aguentei mesmo. Aí a van foi embora, nós ficamos, nós dois em prantos, porque foi terrível, é como se alguém chegasse hoje e tirassem eles da gente. E aí a gente só foi ver eles na quarta-feira, né?! Passou domingo, segunda e terça, e o menino chegou lá, ele acordou e acordou já com febre, passando mal, nos contaram depois. Levaram para o médico, o menino, fizeram todo tipo de exame que poderia ser feito, mas não descobriram o que o menino tinha. Era uma febre emocional. Ele estava sentindo falta da gente. Bruna: O laço de vocês, pais e filhos, começou já naquele final de semana Anderson: Ali já era certo que eles seriam nossos, não tinha mais nenhuma dúvida. E nós só fomos ver eles na quarta à tarde. E quando eu fiquei sabendo dessa história? Meu Deus! A gente encontrou eles ainda no abrigo, né?! Não, em uma festa do abrigo. Ana: Na quinta, né?! Anderson: Não, na quarta. Ana: É. Na quarta, a gente não podia ir vê-los, daí a juíza liberou para a gente para ir em uma festinha. Anderson: Ah, menina, mas eu bati o pé aquele dia heim! Ana: Estava tendo uma festinha com todas as crianças do abrigo... Anderson: Eu quero ver meus filhos, quero ver meus filhos... Era o dia das crianças Ana: Era o dia das crianças, aí nós chegamos lá e... nossa, a criançada toda em volta perguntando “tia, você vão levar os quatro?”, “tia, vocês não vão deixar nenhum?”, “Tia, leva eu também...”, é muito triste, gente. É uma coisa... Anderson: Quinta e sexta nós vimos eles de novo, e no final de semana seguinte eles vieram para cá, né!?, fazia parte do outro estágio de adaptação. Bruna: E aí, aqui eles conheceram o resto da família? Anderson: Conheceram o resto da família aqui. Também foram muito bem acolhidos, nossa, a família... até hoje, eles são primos normais sobrinhos, netos não tem diferença nenhuma... Bruna: E como eles se sentiram com o resto da família?


Anderson: Ah, também. Muito bem acolhidos né?! Ana: É, eles são muito bonzinhos. Anderson: São, demais! Ana: São crianças ótimas, se adaptam, brincam, respeitam as regrinhas... Anderson: São quatro estranhos que chegam na sua vida, e para eles nós somos também estranhos, e a gente procurou, assim, lapidar da nossa forma, dizer o que é certo, o que é errado, o que pode e o que não pode, então isso vem até hoje, eles não pegam nada... Ana: é, não é fácil, não vou falar que é fácil... Anderson: É, não é fácil... Ana: ...você ter quatro filhos dentro de casa, pequenos, um vai pra lá, outro vai pra cá, mas é uma luta diária, todo dia você tem que dizer, todo dia você tem que falar, “tira a roupa dali...” Anderson: são crianças, né?! São crianças... Ana: Normal! “Já fez dever?”, “Já penteou o cabelo?”, “Já tomou banho?” Bruna: Isso aconteceria com outros filhos também... Anderson: Eu acho que isso também e papel de pai e mãe, né?! Larissa: Você tem uma filha biológica também, né?! Não tem diferença nenhuma dela com os outros filhos? Ana: Ela é apaixonada por eles, alucinada por eles. Anderson: e foi com o aval dela também que a gente adotou. Ana: Ela que falou com a menina, com a assistente social que a a gente tinha uma casa grande, que cabia bastante criança. Anderson: Ela é apaixonada por eles. Os irmãos, assim, ela trata... Ana: Gasta o salário todinho com eles... Estraga... nossa... estraga, estraga... nossa. Estão ficando burgueses já os meus filhos... É... aí ele fala assim “Mamãe, vamos ali comer um sushizinho?”... sushizinho... Ele falou “vamos lá comer um sushizinho? Adoro um sushizinho”, desde bebê, desde um aninho ele come no palitinho, acredita? Coisa mais linda! O rapaz lá do sushi ficava olhando para ele, rindo assim... Coisa mais fofa... até hoje, todos são! Anderson: Eles conheceram o mundo, né!? Tudo... A gente sai bastante.


Ana: Eles têm uma vida social bem intensa... A gente sai bastante, a gente recebe bastante visita... Anderson: Onde a gente vai, eles estão juntos... Ana: A gente tem muitos amigos Anderson: Eu não deixo, não deixo. Às vezes quando ela não pode ir, eu vou com os quatro. Esses dias atrás eu viajei e ela não pôde ir, eu fui com os quatro Ana: Eu tinha muito trabalho e não pude ir, ele foi com os quatro para Bodoquena. Foi pedalar e levou os quatro. Bruna: Ah, eles vão pedalar com você? Anderson: Nossa, eles vão acompanhando... Ana: Eles vão acompanhando, eles vão brincar. Anderson: E vão felizes da vida, e eu mais ainda. Eles falam assim “Anderson, mas você vai deixar? Eles vão ficar em casa”, eu falo “Eu não vou... Não vou”. Não deixo. Nossa, é uma alegria enorme. Bruna: Vocês sentem que era o que precisava para completar vocês? Ana: É, porque nossa casa, era uma casa linda, totalmente organizada, limpa, bem decorada... Anderson: Não era essa, era outra Ana: É, outra casa, uma casa menor... Tudo no lugar, um silencio, a gente chegava, tomava banho, ligada a TV uma coisa assim... uma rotina... todo mundo falava assim “maluca... essa vida que vocês têm... viaja todos os anos, vão para não-sei-pra-onde, vão pra tudo quanto é canto... gastar com o que quiser... vão fazer com quatro crianças...”, mas a gente viveu bastante, a gente passou nove anos vivendo, passeando... Anderson: Ela viveu sozinha, eu vivi sozinho, depois que casamos vivemos juntos, aproveitamos... Ana: aproveitamos bastante, viajamos muito... Anderson: A gente colocou o pé no chão e falamos “ó, casa nova e as crianças...” Ana: Essa casa nova é assim... metade dela criança já danificou...é copo que não para, prato que não para, quintal que você tem que consertar, carro que tem que comprar, um carro de oito lugares, senão não cabe todo mundo...


Larissa: Era a pergunta que a gente ia fazer agora, o carro também foi pensado para isso? Ana: Foi... Nós compramos o carro... Durante bastante tempo a gente ficou com um carro, de cinco lugares, daí a gente ia de carona, o restante ia de carona com outra pessoa... Anderson: Um ia com a tia... Ana: Outro com a avó, e ia assim, até que a gente conseguiu comprar a doblô, a gente adaptou, colocou para oito lugares, aí a gente consegue ir para qualquer lugar. Viaja e carrega tudo, a renca. E é assim... Bruna: E tem muita gente que tem medo de adotar crianças mais velhas por conta dos traumas, “ah, que elas vão trazer consigo os traumas delas... Larissa: a personalidade dela... Ana: Fica revoltada.. Bruna: Vocês não sentiram isso? Ana: Eu falo que a criança pode desenvolver essa revolta mesmo, não tô dizendo que é a receita, mas enquanto menos você encucar na cabeça da criança de que ela foi abandonada, de que ela foi largada, de que ninguém quem queria, então ela cria isso mesmo, o que ela vai pensar? “eu sou um estorvo”, né?! Mas se você falar que “não, aconteceu isso, mas isso não significa nada, significa que você teve a oportunidade de ter outros pais, é isso que significa”. Minimizar, eu acho que a gente tem que minimizar o problema. Não potencializar, não deixar nada muito exagerado, não criar aquele drama, porque a criança vai canalizar esse drama, e aí já era... Mas se você minimizar a situação, falar “não, aqui tá bom, aqui tá legal, aqui que é a tua família, você é criado com carinho e com amor”, eu acho que você ganha terreno aí, sabendo lidar com a situação, e não tratando a criança com uma criança adotiva. “Ai tadinho, não pode brigar. Não pode pôr de castigo. Não pode isso. Tem que dar tudo porque não teve”. Não é por aí... Se eu comer arroz com feijão, vai comer arroz com feijão, seu eu comer pão murcho, vai comer pão murcho, se eu comer pão fresco, vai comer pão fresco, se der para dar presente vai dar, se não der, não vai. Tem que ser igual. Tem que ser igual. Eu acho que a forma que você tratar é que vai fazer, mais para frente, que você tenha uma pessoa melhor resolvida, capaz de entender o que aconteceu com ela.


Porque, o que faz, lá pra frente, a criança se tornar um adolescente, um adulto incapaz de se entender ou entender a sua situação? É a forma como aquilo foi colocado para ela... Então se a gente tentar fazer essa passagem deles ser a mais facilitada possível, a mais tranquila possível, a gente vai fazer. Anderson: Questão de personalidade é mito difícil, né?! Ana: Não ne mexe com personalidade. Anderson: Por isso que as pessoas têm medo de adotar uma criança de cinco anos, porque já vem com uma personalidade. Ana: E as pessoas também não têm, às vezes, a maturidade para lidar com esse outro ser... Se hoje os relacionamentos entre homem e mulher, digamos, casais, são complicados, imagine com uma pessoa que vem de fora, que é um estranho, que vai se tornar seu filho. Anderson: E isso cheio de manias, de jeitos... Ana: hábitos... Anderson: Se você não mostrar, “ó, isso aí tá errado”, “ó, o que você está falando está errado”, “isso daí não pode falar”, se você mão mudar isso, não tem como. Ana: É, eu acho que você não pode ter medo de viver, se você tem medo de viver, você não pode falar pro outro “ó, vamos viver juntos”, “vamos fazer as coisas juntos”, “não, vamos fazer, vai dar certo”... os meus mesmo ás vezes acontece umas coisas assim “ah mãe, deixa eu fazer um bolo?”, vai! Faz!, “Ah mãe, deixa eu fazer um café?” Faz... “Ah, eu quero cozinhar tal-coisa”, faz!! “Ah, quero ir na casa do vizinho”, Ahh!!! Vai não!! Heheh. Brincar na rua, não!!! Ò o tamanho do quintal. Deus me livre! 600 m² pra vocês brincarem, vocês vão brincar na rua? Não... É assim, é normal... Anderson: E a Gabriela, hoje a mais velha, ela é um amor... Ela é uma grande menina... Ana: Companheira... Anderson: Companheira da mãe... Ana: Educada... Esforçada... Anderson: ...menina esforçada... Ana: Aí acaba servindo de exemplo para os mais novos, sabe? A Rafinha, ela já é ginasta, sabe? Ela já está estudando ginástica artística, apaixonada por ginástica. Ela passa o dia inteiro dando pirueta nesse quintal, o dia inteiro, dia inteiro... Foi uma luta


até pra conseguir uma vaga para ela, mas conseguimos já, adora... Então segunda e quarta levo ela na ginástica. A Gabi, de 13, ela faz futebol americano, no final de semana... E a Mari que a gente ainda tá tentando uma coisa pra ela, porque ela é muito menininha, você viu ela com florzinha no cabelo, essas coisas? Ela adora coisa de vaidade, então estou procurando uma coisa que se encaixe no perfil dela... O meu filho, ele não joga futebol nem amarrado, se der uma bola para ele, ele tenta arremessar lá em cima daquele troco lá, do pergolado, vai ser um jogador de basquete, ou de vôlei... futebol ele não põe a bola no pé nem... Mas cada um a gente vai encaixando aí, conforme dá... Larissa: Encontrando o que se encaixa melhor para cada um... Ana: Para eles não ficar muitos ociosos, né? Não ficarem pensando muita coisa também... Deixa pra pensar no que é de valor... Bruna: A questão da idade que vocês estavam falando, do preconceito... a família de vocês também foi um pouco relutante quando vocês falaram que seriam quatro de uma vez. Vocês disseram antes que questionaram, “mas vocês estão ficando doidos, é muita coragem...”, né!? Anderson: Foi um susto... Ana: Foi um susto, não falaram não... Anderson: É... “Não façam isso”... Ana: Não, ninguém falou isso... Anderson: Ninguém falou! Ana: Minha família apoiou totalmente, minha sogra ficou com um pouco de medo, assim, um monte de criança... Anderson: Mas ninguém falou “não faça isso”, “não vai dar certo”, em momento algum, nem amigos e nem parentes, pelo contrário, nos apoiaram, e isso foi fundamental. Ana: A gente recebeu muito apoio... Anderson: e até hoje... Bruna: Vocês estavam falando das crianças, dos esportes que cada um pratica, o que eles mais gostam de fazer no tempo livre? Ana: Brincar. Bruna: Brincar? Sair rolando por aí?


Anderson: Tem um parquinho no fundo, né!? Ana: eles se sujam muito, gastam muita roupa, né?! Eles não são crianças que têm muita tecnologia... Eu até falei que esse ano eu vou dar um tablet de presente para cada um, mas aí tem um horário para jogar. Então às vezes eu deixo jogar um pouquinho no meu celular, ou o Anderson, ou a própria Lu, deixa jogar no celular, mas não aquela coisa de ficar o dia inteiro, não! Eles gostam é de brincar... Tem um parquinho ali no fundo. Anderson: Tem um parque em casa, eles se divertem... Ana: Some a grama, aparece tudo... papel, isopor, tudo quanto é coisa... daqui a pouco eles juntam tudo. Anderson: Eles juntam tudo, deixa limpo... Bruna: A sujeira que eles fazem, eles limpam? Ana: Ah, Claro... Com certeza... Anderson: Não entra pra dentro de casa enquanto não estiver limpo. Ana: Não entra... Enquanto não estiver limpo eles não entram. Tem que arrumar. Ué, não sujou? Aí às vezes eu dou uma olhada assim, eles já falam “não mãe, a gente vai arrumar, não precisa falar nada”... Anderson: Já sabem... Ana: Pode deixar, mãe, pode deixar, a gente já vai arrumar... Bruna: Mas do que eles mais brincam? Qual a maior diversão deles? Ana: Cada um é de um jeito... Anderson: Cada um gosta mais de uma coisa... Ana: Tem dia que eles estão com os coleguinhas aí e eles gostam de brincar de pular, correr, jogar, jogar a bola pro alto assim, brincar no parquinho, dar pirueta... Ou às vezes eles estão cada um em um cantinho, aí é cada um numa casa, o Maurício fala assim, ainda agora ele falou assim “mamãe, hoje eu sou seu papai tá?”, “Mas ué, você vai virar seu neném?”, “não, eu sou seu papai”, “Ah, então você é o Seo Maurício?”, “Isso, eu sou o Seo Maurício, sou o seu papai”. Então ele quer ser o meu pai, quer ser o pai de fulano, brinca de casinha... Larissa: São muito unidos? Ana: São.


Anderson: São. São demais. Ana: Eles dormem juntos, ficam brigando para dormir juntos... Ao invés de brigar para não dormir juntos, eles brigam para dormir juntos. Anderson: Eles não são irmãos que brigam... Ana: E também, se tentar a gente não deixa... Anderson: “mamãe, fulano fez isso”, é só isso, mas brigar, eles nunca brigaram, de sair no tapa? Nunca. E a gente sempre pede o respeito de um com o outro, principalmente dos pequenos com a mais velha, e da mais velha com os pequenos. E eles acatam. Ana: é eles gostam de brincar, e brincam muito, aqui eles gostam de brincar. No verão a gente joga o sabão aqui e eles brincam... Eles gostam de ajudar também na casa, gostam de lavar a louça enquanto eu passo o pano, “ai mamãe, deixa eu ajudar aqui, ajudar a fazer não-sei-o-quê”, o Maurício esses dias, ontem né?! “Ai mamãe, deixa eu ajudar a fazer a janta, deixa eu ajudar” Anderson: Eu vou pro quintal limpar, eles vão comigo... Ana: Quer ajudar nas coisas da casa, porque eles querer ficar juntos com a gente, então quando a gente tá arrumando as coisas da casa eles querem ajudar, quando a gente está sossegado, tranquilo, aí eles se soltam e brincam... Mas se eles veem que a gente está fazendo alguma coisa relacionada a casa, eles querem fazer também. Bruna: E como que é o desempenho das crianças na escola? Ana: Eles são muito inteligentes. Eu até fico impressionada, porque o Maurício fez seis anos sábado, e ele já está lendo e escrevendo. E ele já sabe contar até cem, até bem mais de cem ele sabe contar... E a Rafa também é muito inteligente, hoje ela consegue fazer o dever sozinha, sem precisar de ajuda, então ela já senta aqui, faz o deverzinho dela, e tudo, antes quando ela era dependente da gente, ela chegava da escola e “mamãe, meu dever”, aí dava dois minutos “mamãe, eu tenho dever”, “mamãe, eu tenho dever”... assim, o tempo inteiro ela tinha deve, e enquanto ela não fizesse... E a Mari ela teve dificuldades, assim, de alfabetização, porque ela já veio com cinco anos, quase, quatro pra cinco, e ela teve dificuldades de alfabetizagem, na verdade ela tem até hoje, mas ela é muito esperta, o que ela tem de dificuldade, ela tem de esperteza. A Gabriela é muito inteligente, ela é uma das melhores da sala, sempre muito elogiada, excelente, essa noite a gente ficou até meia noite fazendo o trabalho com ela, e ela me


falou assim “mas isso aqui eu não tô entendendo nada, o professor mandou copiar e apresentar lá na sala, mas eu não estou entendendo nada”, e eu fui explicar tudinho para ela, o que era uma república, o que era o presidencialismo, poder executivo, legislativo, judiciário, para ela poder explicar na escola. Aí ela hoje chegou toda orgulhosa, “mãe, fulano chegou lá e leu o papel, o professor perguntou se ele estava entendendo, ele não entendia é nada. E olha o meu trabalho, olha, perfeito”. É destaque, ela gosta de ser o destaque. Larissa: Eles se ajudam também quando veem que tem dificuldades? Anderson: Nossa! Ana: “Pode deixar, mamãe, eu ensino.” Anderson: A Gabriela, Gabriela consegue muito. Ana: A Mariela também já está assim, né?! “Pode deixar mamãe, eu ensino” Anderson: Vai e ensina, desde de pequenininho. Ana: “Eu sei fazer esse, não precisa me ensinar”, e o Maurício tem uma memória excelente também, porque ele fala assim “mamãe, tenho dever, senta aqui pra me ajudar?”, “mas meu filho, o que você quer que eu faça?”, “não, mamãe, só senta aqui, a professora já me explicou o que tem que fazer”. “Mas porque que você quer eu sente aqui?”, “não, mamãe, você sentava com a Rafa, agora vai sentar comigo também”. O negócio é sentar, porque ele não quer nem que eu dê palpite no dever. Bruna: Quer ficar junto, só... Ana: É, ele quer ficar junto. Bruna: Tem alguma consideração que vocês têm a fazer? Ana: Você vai conhecer um ser que você nunca viu antes, assim como um bebê que nasceu e você nunca viu, você tem que aprender a lidar com esse bebê, assim como nós tivemos que aprender a lidar com as nossas crianças. Como elas já vieram maiores, então elas têm uma carga cultural que elas já carregavam, psicológica, social, tudo, desde o vocabulário, desde o jeito de sentar, andar, tudo elas já vieram, duas pelo menos já vieram um pouco formatadas, o que é que você vai fazer? Dar amor, mostrar amor, dar atenção, cuidado, ser firme na hora de dizer as regras, e fazer cumprir as regras, porque não é só criança que gosta de regra, adultos também gosta pra poder se situar. Se eu sei que aquele negócio funciona assim, porque é que eu vou... Agora se é


assim, depois assim, depois assim, depois assim, eu me sinto insegura, imagina a criança, “minha mãe fala que é assim, no outro dia ela ala que é assado”, então se o pai dizer que é A, tem que ser A, se o pai disser que é B, então tem que ser B. Não subestime o poder de inteligência dessa criança, ela é capaz de entender o que você está falando e ela é capaz de entender as regras que você impuser a ela. Parece que criar filho é sabotar regra, não, é um conjunto, você tem que brincar, tem que conversar, tem que cuidar, tudo, mas tem que colocar os limites. Tratar com respeito, tratar com carinho, dar atenção, colocar os limites, não subestimar as crianças, não pensar que porque ela é adotada, ela tem que ser excluídas de algumas atividades, ou incluídas em outras por causa disso, não, ela tem que ser tratada como outra qualquer, mesmo carinho, mesmo respeito, tudo, normal. E acho que isso que é difícil, porque uma vez que uma criança olhou pra você e disse “putz, vou ter que fazer isso, vou ter que por de castigo... Será que essa criança depois vai me odiar? Será que essa criança não vai ficar revoltada comigo? Será que essa criança não vai deixar de me amar? Como que a gente vai ser?”, vamos fazer né? Depois a gente vai ver, vamos fazer igual ao que a gente falou que ia fazer. A gente não falou que ia fazer assim? Então vamos fazer. E tem dado certo, tem dado certo, então é assim que a gente vai conseguir. Eu acho que acima de tudo, não ter medo de ser pai e ser mãe, porque algumas pessoas falam que não conseguem porque “ah, porque a criança ficou mimada demais”, eu não tenho receita para mimados, os meus filhos são mimados, são, mas eles são cobrados, e mesmo sendo cobrados, eles são mimados. Então não é ser cobrado que faz a criança deixar de ser mimado, são mimados porque são acarinhados, porque são abraçados, porque são beijados, porque são amassados, sim. Ser mãe e pai, acho que é isso que você deve ser. Ter medo, medo a gente tem de qualquer coisa desconhecida, e a partir do momento em que você passa a conhecer aquela criança, e ela passa a viver no seu universo, você vai cuidando, podando daqui, abrindo pra lá, assim, normal, como qualquer filho...


Marcos e Maurício MARCOS ROBERTO DOS SANTOS – psicólogo/servidor público federal MAURÍCIO PAULINO DA SILVA – educador físico Bruna: Como é que foi o processo de adoção? Quando vocês resolveram adotar uma criança? Maurício: Foi numa noite de réveillon, que eu conversei com o Marcos, acho que de 2013, né?! Marcos: Acho que sim. Maurício: Acho que foi em 2013, em Florianópolis. No dia 31 eu conversei com ele, porque eu estava com uma grande vontade de adotar uma criança, né?! Aí eu conversei com ele nesse dia, aí ele também conversou comigo, e nós falamos “vamos conversar durante seis meses, até o meio do ano, para ver se era isso mesmo que a gente quer”, daí deu seis meses, e decidimos. Bruna: E vocês tinham alguma preferência por idade? Maurício: Assim, nós colocamos de dois a oito anos, podia ser menino, podia ser menina, independente de cor, de raça... Bruna: Então a questão é que, não necessariamente fosse um bebê pequenininho, mas que fosse um bebê para que vocês pudessem aproveitar? Marcos: A gente não queria que fosse um recém-nascido. A gente colocou no requerimento para a adoção, na faixa etária de dois a oito anos de idade por que? A gente achava que um recém-nascido traria muitas dificuldades e cuidados, e a gente trabalha, então achamos que uma criança um pouquinho maior seria melhor. E o Hugo veio com três anos, dentro da faixa que a gente tinha colocado. Bruna: E quanto tempo vocês ficaram na fila de espera? Marcos: A gente entrou no processo de habilitação para a adoção em maio de 2014, e em novembro desse mesmo ano, 2014, a gente já tivemos a guarda provisória do Hugo. Nós ficamos com a guarda provisória dele até... a guarda provisória é renovada com seis meses, né?! Então a gente renovou uma, duas... antes da terceira renovação a saiu a adoção definitiva dele. Porque o processo dele, ele estava ainda com o processo de destituição familiar ainda correndo. Ele era uma criança que, juridicamente, ainda estava em risco, poderia haver uma reversão daquele processo. Então por isso


que demorou esse tempo, a guarda provisória dele foi mais de um ano, foi um ano e alguns meses de guarda provisória. Aí, não lembro exatamente a data que saiu a adoção dele... Você lembra a data? Maurício: Acho que foi em Março... Marcos: Foi de novembro a maio, e depois de maio a novembro novamente, aí depois... é, acho que foi mais ou menos em março mesmo... Maurício: Deste ano... Marcos: de 2016, né?! Que a gente teve a... que finalizou o processo da adoção dele. Porque dependia desse processo de destituição do convívio familiar. Esse é o processo mais demorado. Porque a justiça precisa ouvir a família original, os parentes ver se há possibilidade de reinserção... Mas a gente tinha a informação do pessoal da vara da infância, que o processo era praticamente irreversível, que a família não teria possibilidade de reverter esse processo, por conta das dificuldades sociais. Então a gente estava tranquilo, sabíamos que teria que esperar... Do ponto de vista psicológico da convivência, quando você pega a criança em guarda, você não pensa que ela vai embora, né?! Desde do primeiro dia você assume como alguém que vai permanecer sempre, porque não tem como trabalhar isso na criança, né?! Então a gente tem essa consciência da questão jurídica, mas sabia que isso era... do modo que isso não foi tratado, de forma nenhuma, absolutamente natural. É claro que em alguns momentos a gente encontrava formas de dizer que isso foi realizado, né?! A gente pegava a certidão de nascimento dele, ele ainda não sabe ler, mas nós mostramos a ele “aqui tá escrito o seu nome, o nome dos papais... Você vai ser sempre o nosso filho...”. A gente sempre encontra um jeito de transmitir essa mensagem do nosso meio de adultos para o dele. Então foi assim, foi relativamente rápido, porque a gente não colocou restrições quanto à idade, à origem, à etnia, esse tipo de coisa, então acho que isso facilitou a agilidade do processo. Ele era uma criança que já estava há muito tempo abrigada, então era uma criança que precisavam encontrar rápido uma família. Ele estava já há mais de um ano em um abrigo, para a idade dele é um período muito logo. Uma criança, se você considerar que ele tem três anos de vida, e ela tem mais de um ano no abrigo, significa que quase metade da vida dela ela passou em uma instituição. Não que o abrigo seja


ruim, mas definitivamente não é o melhor lugar para o desenvolvimento, para a construção de afetos, para um desenvolvimento de um ser humano. Bruna: Eu iria questionar... O senhor disse que ele ainda estava em processo de destituição familiar, né?! Mas então ele já estava há bastante tempo no abrigo? Marcos: Estava. O que nós temos de informação da vara da infância, é que ele teve algumas idas e retornos ao abrigo, mas da última internação dele, da última vez que ele entrou no abrigo, tinha mais de um ano que ele estava lá sem ter voltado para a família original. Porque a justiça tinha praticamente intendido que tinha riscos ele ficando com a família original, então já estava há mais de um ano e estava correndo esse processo de destituição do poder familiar. Como ele tinha parentes em outras comarcas, então esse processo acaba sendo mais demorado, porque a justiça precisa mandar ofício, carta precatória para que a pessoa seja ouvida naquela comarca, aí chega o pedido lá da vara da infância, daí depende da dinâmica daquela comarca, do tipo de preocupação que aquele juiz tem com a situação, às vezes tem outras situações que ele precisa resolver. Tem municípios que nem comarca tem, às vezes é outra comarca que atende ali. Então essas coisas que acabaram demorando. Nós temos que pensar que o estado não tem a mesma condição em todos os municípios, então o juiz que manda naquela comarca cuida de todas as causas, não é só família, não é só infância... Maurício: E o pedido de espera para a chegada dele era como se fosse uma gestação, né?! Marcos: É, quando a gente fez o curso, na preparação inicial, a gente participou de vários grupos de apoio para a adoção, que foram muito bons para a gente firmar o que a gente queria. O que a gente já queria. Maurício: Porque assim, quando a gente diz “vamos adotar uma criança”, é lógico que surge aquela ansiedade, aquele medo. Esse curso que eles oferecem agora prepara a gente para isso, vai tirando dúvidas. E cada reunião que a gente voltava para casa, a gente ficava mais consciente que a gente queria um filho. E assim, é emocionante, é ansioso, a espera... No dia que soubemos que ele iria vir para nós, que foi no dia do aniversário dele, dia 19 de novembro, nesse dia à noite, do dia 18 para 19, eu senti que ele estava para chegar, porque eu não dormi direito... É engraçado, né? Era uma ansiedade mesmo. Aí eu falei assim “Marcos, eu acho que a gente vai receber algum


presente especial hoje”, que a juíza estava marcando uma reunião para nós, mas a gente achava que era uma reunião normal, mas “tem uma coisa especial para nós hoje”. Aí chegamos lá, eles conversaram com a gente, falaram né, aí no finalzinho da reunião eles apresentaram a foto do Hugo para a gente. Aí o Hugo estava dando um beijo assim na foto, e quando eu vi essa foto assim, aí “não, esse é o nosso filho”, aí nesse dia já conversamos e tudo lá no fórum, no outro dia fomos conhecê-lo, daí depois desse dia... é como se tivesse saído da gente mesmo. Bruna: E como é que foi o processo de adaptação dele? Marcos: Foi muito tranquilo, a gente até nos assustamos um pouco, porque quando ele veio com a gente pra cá, obviamente ele nos chamava de tios, né?! Assim, no início, no primeiro dia, nas primeiras horas, digamos assim. Aí a gente falou que não era, né?! Falamos que éramos os pais dele e aí logo em seguida... Maurício: No mesmo dia, praticamente. Marcos: No mesmo dia, no dia seguinte, ele já não chamava mais de tio. Maurício: Pai. Papai Marcos, papai Maurício... Marcos: A gente teve muita ansiedade. No começo ele tinha muita dificuldade para sair de casa com a gente. A gente conseguiu entender que a ansiedade provavelmente era por conta do medo de voltar para a instituição. Ele não queria sair. A gente falou que iria comprar roupas, ir no shopping, e ele ficou todo animado querendo ir no shopping. Aí na hora agá... Maurício: Entrando no carro, ele colocou a mão assim, deu um desespero nele para não entrar no carro, achando que ia voltar. Marcos: Ele achou que ia voltar posteriormente. E a gente foi trabalhando isso posteriormente, fomos trabalhando aos poucos com ele, até que essa ansiedade foi diminuindo, e ele foi acreditando efetivamente que essa era realmente a casa dele, que ele não iria mais daqui. Não foi uma coisa assim, imediata, para ele também é um processo, ele também precisa adotar esses pais. Eu sabia teoricamente sobre isso, mas na prática, é só a vivência que via tirando isso. Então foi um período de alguns meses para ele conseguir dormir tranquilamente, a impressão que dava pra gente é que muitas vezes ele não quisesse acreditar, quisesse acordar daquele sonho, porque se ele dormisse, ele ia desaparecer.


Maurício: Ele ia perder... Marcos: Era isso que a gente consegui sentir, aí ele foi ficando tranquilo, e obviamente hoje ele fala do abrigo, mas mais como uma lembrança. A gente já voltou ao abrigo com ele em outras oportunidades, e ele brincou tranquilamente com os brinquedos ali, como se ali fosse um local comum para ele, e não mais uma referência. Agora, tem uma coisa que eu acho interessante, quando a gente estava no processo de preparação, indicaram alguns livros de adoção. Então eu adquiri esse livro que é de uma professora, que é psicóloga comportamental, e professora da federal do Paraná. Ela é especialista nessa área de adoção, uma referência no Brasil. E nesse livro ela falava uma série de coisas, da preparação dos pais, e ela dizia que tinha uma pergunta que faziam para ela, que era a seguinte, as pessoas perguntava para ela “o quanto que eu preciso estar decidido a adotar uma criança?”, aí ela disse que a resposta mais coerente que ela conseguiu dar para eles é assim “você tem que querer tanto ser o pai de uma criança, na mesma medida que essa criança tanto que ter um pai”. No início eu achei muito... “Como que eu vou saber? Será que eu quero tanto quanto ele quer ter um pai?”. Eu não conseguia ver com clareza isso, se efetivamente isso era possível, mas hoje eu não tenho mais dúvida, acho que eu não consegui enxergar naquele momento o quanto eu queria ser pai, parece que não era na mesma intensidade que ele precisava de um pai, na minha visão. Mas hoje eu tenho absoluta certeza de que nós queríamos tanto quanto ele. Inicialmente não era minha opção, não partiu de mim essa decisão, foi do Maurício, mas eu só tenho a agradecer a ele por isso, porque deu um sentido a nossa existência, a nossa vida, que não se encontraria em outro lugar. Então com certeza, hoje eu tenho absoluta certeza de que nós tínhamos uma necessidade tão grande de tê-lo, quanto ele tinha de ter a nós. Eu consigo pressentir isso que ela coloca no livro. E eu acho que isso é essencial, você tem que realmente estar... porque nós demos sorte, porque o Hugo é um bom menino, é um menino tranquilo, sim, mas se não fosse a gente também teria que lidar com isso, né. Teria que... a gente quando adota uma criança você não tá pegando um produto no supermercado, que você liga pro SAC e reclama de como o produto veio, etc e tal. Então você tem que estar preparado para suportar eventuais dificuldades. E não foi tudo às mil maravilhas, né, houve momentos difíceis, né. No início assim ele tinha um


pouco mais de dificuldade de aceitar autoridade, né. A gente... porque ele também tava testando o quanto a gente efetivamente era... né... os seus pais de verdade. Então hoje ele aceita muito mais facilmente o controle do que no início, né. No início ele tinha dificuldades pra deixar a gente desligar o chuveiro do banho, né, e a gente que tinha ir colocando os limites... hoje o banho dele... é muito... tranquilíssimo, né. Normal... liga a hora que a gente quer, toma banho mais rápido, mais devagar como a gente determina com a necessidade do momento, sem nenhum problema. Então assim, mas isso vem por quê? Porque hoje o vínculo está formado. Ele sabe que se ele falar algo que nos magoou, algo que é ruim, né? Há uma reação, né. Então... a gente tem que estar preparado pra isso. Tem uma outra coisa que é colocado na preparação, no curso, que é a gente estar realmente consciente em ser pai, e não ter uma criança. É uma diferença muito grande. Muita gente procura a adoção porque quer ter uma criança, mas você quer ser pai? Maurício: É a diferença, né, querer ter um filho e querer ser um pai. Aí é que tá a diferença. Marcos: Assumir todos os compromissos que isso significa, mudar seu estilo de vida, mudar sua rotina... é, deixar de pensar em você no primeiro plano... porque não tem jeito, a criança faz com que o seu propósito de vida seja colocado em segundo plano, né? Porque ela tem o tempo dela, ela tem a necessidade de brincar, ela tem a sua agenda. E ela vai se impor à sua. Não tem como você falar pra ela "olha, agora eu não posso falar com você porque eu estou..." eventualmente você vai dizer isso, né, você não vai ter o tempo todo para ela. Mas você vai ter que ter um espaço que ela vai ocupar na sua vida que vai determinar, você não vai poder "ai, eu preciso... eu tinha uma vida noturna agitada e saía todo fim de semana", por exemplo, e agora tem a criança e vou sair do mesmo jeito. Né? Não tem como. Então... a gente tem ainda uma dificuldade maior porque a gente não tem família aqui com a gente, não tem como deixar com parente pra ir pra algum lugar, enfim, ou seja, você vai ter que fazer programas que ele possa participar. Isso muda completamente o seu modo de vida. Os valores, e você passa a fazer coisas que a criança curte. Vai fazer uma viagem tem que pensar no planejamento naquilo que agrada a ela, né?


Maurício: Mas assim, eu não sinto falta do antes. Quando era só eu e ele. Parece assim que não faz parte mais da minha vida ou da dele. Porque aquilo ali parece que não existiu mesmo. E parece que ele tá desde bebê com a gente, porque parece que esses dois anos que vai fazer agora... é anos que ele tá com a gente. Então parece que apaga, o antes apaga né. Eu não sei se acontece com todos os outros casais, né... Larissa: E pra ele, vocês acham que é assim também? Que ele apaga o que aconteceu antes e pra ele a vida dele começou com vocês? Maurício: É engraçado, teve uma vez, teve um momento em que eu senti isso. Essa semana passada eu perguntei pra ele "qual foi a primeira palavra que você falou?" e ele falou assim "ah, foi 'papai'". "Papai, papai". Então, quer dizer, então na verdade o antes tá se apagando pra ele. Porque ele... a primeira palavra não foi "papai", né? E ele falou que foi "papai", porque tem a nossa referência. Entendeu? Isso é interessante. Bruna: E vocês antes comentaram que ele chegou, assim que veio pra cá chegou a ter os receios de entrar no carro... Marcos: Não, é, de sair de casa... Bruna: Sim... ah, sim... Maurício: Com medo de que ia voltar pro abrigo... Bruna: Ele trouxe outros medos com ele também? Marcos: Eu acho que ele tem assim outros, a gente vê né, sente algumas coisas assim, é... ainda existe um processo nele psicológico de consolidação desse vínculo, né? Então é ele ainda de vez em quando ele ainda fala né que sonhou que teve um sonho que teve um pesadelo ele fala Maurício: Que tava sem família Marcos: Que tava sem família. Então outro dia uma vez assim eu tava... falei bobagem com ele né, eu tava na rede com ele brincando na sacada e aí tinha umas


estrelas e eu comecei a contar umas histórias pra ele, uma lenda de que as estrelas, é, que as pessoas quando morrem viram estrelas e tal, e aí ele perguntou "isso vai acontecer com você?" e eu, ingenuamente, acabei confirmando, né, e ele começou a chorar... chorou muito, porque ele disse "eu vou ficar sem família de novo?". E eu precisei, né, dizer "ó, isso é uma coisa que é uma lenda, não quer dizer que vai acontecer agora, né". Eu não tinha avaliado ainda o quanto que isso ainda é... né, é complicado pra ele. Não era a hora de falar isso ainda. Eu sei que ele ainda não tem a noção de que todos nós vamos, né, a criança não tem noção nessa idade ainda, mas ele sabe que existe, né, eventualmente assim pra alguma "ah, aquele morreu, aquele outro morreu" mas não tem essa noção ainda dessa coisa, né, não tem idade pra isso ainda. Então achei que era meio tranquilo falar assim, mas aí não... quando eu falei que eu iria ele "ah, eu vou ficar sem família de novo?". Aí eu tive que meio que dar uma conversada e tal e né, dizer que era uma lenda, que não necessariamente é daquele jeito, que não ia ser agora... então a gente percebe que tem isso, esse medo de perder o núcleo familiar. Eu particularmente assim eu não fui adotado, né, nasci em uma família normal, um pai e uma mãe mas eu me lembro que eu também tinha medo de perdê-los, porque eu era, meus pais eram bem mais idosos assim, quando eu nasci minha mãe já tinha mais de 40 anos então quando eu tinha uns 10 anos por aí eu lembro que eu tinha um pouco de fantasia de perdê-los, né. E o meu medo era assim "quem vai cuidar de mim?". Porque eu também não tinha família próxima assim, tios que morassem na mesma cidade por exemplo, tinha parentes mas moravam em outras cidades, né? Moravam distantes. Então eu tinha essa fantasia né, mesmo sendo uma família natural eu tinha a fantasia de que pudesse acontecer algo desse tipo. Felizmente não aconteceu, os dois estão vivos até hoje e nós é que cuidamos deles agora. Maurício: Outra coisa também... no primeiro dia que nós fomos no abrigo para conhecer ele ele tava brincando com a turminha dele lá no abrigo de trenzinho, e ele foi o único de todas as crianças que olhou pra nós. Ele olhou e ficou olhando assim. Aí quando eu cheguei na parte de brinquedos eu falei assim "quem que é o Hugo?". Aí ele fez assim, a mãozinha assim e subiu, no momento que ele subiu ele abraçou tão forte,


e nesse primeiro dia ele não queria descer mais do colo. Eu lembro muito disso. Né Hugo? Hugo: Fica quieto! ~risadas~ Maurício: Mas é muito legal isso. Ele foi o único. E quando nós... sabe, tava longe, mas eu já achava que era o Hugo que estava olhando para nós. Ele ficou olhando assim... parece que sentiu, né? Bruna: Então teve aquela conexão, já? Maurício: Teve. Ele olhou pra nós assim e ficou olhando, olhando, olhando pra trás, e a turma foi indo longe e ele ficou olhando pra nós. Eu falei assim "eu acho que é ele". Porque apesar da foto, quando você vê distante, e um monte de criança ali né... Foi. E ele também assim, ele fala de boca cheia que tem dois pais. Ele não tem assim esse problema. Ele fala... então, ele fala assim "ah, eu tenho dois pais, papai Marcos e papai Maurício". E fala mesmo, e parece que ele fala assim de "eu tenho dois pais e você não tem", né. Para ele é assim... "oba!". Larissa: Ele tem orgulho né? Da família Maurício: E a nossa família também adora ele. Quando nós falamos que queríamos adotar uma criança todos apoiaram. Quando ele chegou pela primeira vez no primeiro natal dele com a família em Maringá lá parecia que era... todo mundo queria tirar foto com ele. Flashes... flashes... foi bem legal. Então com a família foi tranquilo. Minha mãe adora ele, a mãe dele, os pais... Os amigos nossos também apoiam bastante. Larissa: a gente falou dos medos né que ele tinha. E vocês? Tinham algum medo antes de ele vir, sobre a personalidade já estar formada...?


Maurício: Não, eu acho que o maior medo é de aceitar a gente como pais, ainda mais como dois pais, então a gente ficava naquele medo né, como ia ser na visão dele... Marcos: Não, eu particularmente não tinha esse medo, até porque eu sei que a criança não tem esse tipo de percepção ainda, né. Então eu não tinha esse medo de que ele fosse ter qualquer leitura diferente da relação afetiva com a gente, né. Acho que haverá esse conflito quando chegar a adolescência e tal, esse tipo de coisa. Mas não foi, não tive preocupação com isso. Eu tinha medo assim, a gente sempre tem né, de se ele vai conseguir ser uma pessoa feliz, se ele vai conseguir aproveitar as oportunidades que a vida vai dar pra ele, né, o que eu acho que todo pai tem né, de que ele seja uma pessoa que se encaminhe bem na vida né. Fora isso não, assim não tinha... eu tinha um certo medo também, claro, que se ele fosse uma criança maior, assim, por exemplo, de 5, 7 anos de idade, se ele tivesse tido muitas vivências, sofrimento, né? Fosse mais difícil essa adaptação com a família. Quanto maior a criança, quanto mais idade ela tem, óbvio, ela passa por mais problemas, entende melhor as coisas né, então eu tinha um pouco de receio nesse sentido, a criança um pouco maior ela pode trazer um pouco mais de dificuldade para a adaptação né. Eu digo assim que ela leva mais tempo para formar esse vínculo, esse vínculo familiar né, porque ela passou por outras experiências, então acho que é mais difícil. Quanto mais nova, mais fácil desse vínculo se formar. Né? Mas também saberia que seria um processo, que uma hora iria acontecer, né? Assim como foi com ele, só que foi mais rápido né. Eu tive a certeza de que estava consolidado esse vínculo o dia que eu estava arrumando ele para ir pra escola de manhã e ele disse que eu morava no coração dele. Foi o dia assim que... tava já definitivo. Realmente eu não sou só um cuidador dele. É algo diferente. Bruna: Nesse momento você sentiu que ele já tinha te adotado. Marcos: É, ele tinha me adotado. Demorou alguns meses pra ele fazer isso, eu tava preparando ele. É bem interessante que a criança fala as coisas na hora em que você menos espera. Não faz uma reunião, um programa pra dizer, comunicar alguma coisa. Eu estava ali naquela correria de... arrumando, que, né? Escovar o dente, tomar café, colocar a roupa, pentear cabelo, aquela correria toda de chegar na escola na hora


certa. E aí eu estava até meio brabo com ele assim pra ele andar depressa, porque ele fica assim enrolando sempre né. E aí ele falou assim "papai, você mora no meu coração", bateu assim, e aí... foi um dia fantástico esse dia pra gente. Bruna: E como é que foi construída essa... vocês perceberam que havia momentos assim em que ele se soltava mais a partir daquele momento, se ele mostrava ter mais confiança, ou foi que nem por exemplo o processo de chamar vocês de pai? Marcos: Eu acho assim que eu, pela minha formação, eu sou formado a ver o real, assim, o que se apresenta né, como todas as pessoas, mas a minha formação me dá alguma condição um pouco diferenciada, de observar coisas que de repente outra família não observaria, né. Então assim, ficou muito claro que era um processo gradual de vinculação, né, com a gente. Então muitas vezes, por exemplo, esse medo que eu falei de perder a família e tal, eu vejo em alguns momentos assim essas coisas, né. Então aparentemente olhar assim no geral você vai dizer que está absolutamente tudo tranquilo né hoje. Mas a gente sabe que tem algumas coisinhas que ainda não estão, que internamente ainda estão sendo trabalhadas, que o tempo é que vai fazer isso fechar totalmente. Então a gente, eu percebo que foi assim, a criança vai se ligando a você, e conforme ela vai se ligando a você ela vai mudando o comportamento, tipo ela vai começando a te reconhecer cada vez mais como pai e a partir daí ela passa a te obedecer mais, a se sentir mais filho, entendeu? Uma coisa vai puxando a outra. Então no geral, aparentemente, o plano social assim, tá tudo perfeito, a integração dele tá ótima, tranquila, mas a gente ainda vê algumas coisinhas do inconsciente dele ali aparecendo, né, então algumas fantasias de perda da família, essa coisa da, por exemplo, o ano passado, quando a gente fez o dia das mães na escola, ele foi de um jeito. Passar por isso foi uma coisa. Esse ano agora o dia das mãe pra ele já foi uma outra coisa. Já foi diferente, né. E foi diferente no sentido que assim no ano passado ele vivenciou mais tranquilamente isso. Esse ano já foi um pouquinho mais difícil. Por quê? Porque ele está tendo mais consciência de que ele não tem essa figura efetivamente. Então a gente vai participar mas não somos mãe. Entendeu? E o comportamento dele naquela semana ficou diferente. Porque de ouvir falar, de ver a propaganda na


televisão, a professora comentando, tudo isso, então assim, os pais vão vir aqui, mas não é a mãe. Então isso que eu quero dizer, a minha formação me dá uma condição melhor de ver esse tipo de coisa, dá pra ver que ele ficou, então qual é a nossa estratégia para o próximo ano? É trabalhar isso, né, quer dizer, não ficar dando ênfase nessa coisa, porque o que ele diz é isso, ele diz claramente "eu não tenho mãe". Porque ele não consegue entender, né, ele vai entender que ele tem, um dia. Ela só não está com ele. Porque todos nós viemos, nascemos de uma mãe. Então é tipo assim, as coisas não são assim resolvidas de uma hora pra outra. Isso é uma realidade que ele vai ter que lidar com ela. Então efetivamente, psicologicamente ele não tem por que não estar aqui né. Mas ele vai ter que um dia entender que tem uma mãe, que nasceu de uma pessoa, que essa pessoa deixou e tal. E ele sabe que a rejeição da família paterna pra ele é difícil. No início ele sempre teve mais facilidade de se aproximar dos nossos amigos e tal, de figuras masculinas. Então sempre que a gente se encontrava com os amigos assim e tinha as mulheres ali e os homens ele sempre se aproximou mais dos homens. Por que? Em razão dessa vivência negativa que ele teve com essa figura, né. Porque evidentemente que a maternidade é uma coisa dada né, a criança nasce da mãe, era um ser só. A paternidade vem depois, o pai vem depois e se coloca. A paternidade de certa forma é sempre adotiva, porque o pai vai adotar essa criança efetivamente. Por isso em muitas culturas se dá o nome do pai, inclusive na nossa, cultura, se dá o nome do pai pro filho. Porque se diz o seguinte, o pai traz a criança do mundo da natureza para o mundo da cultura, para o "mundo dos homens", "da lei", enfim. Por isso que dá o nome dele, pra reconhecer que "é meu filho". A mãe não tem dúvida né, quanto à origem, mas o pai em tese sempre tem a dúvida, porque pode não ser o filho dele efetivamente, não tem como ele garantir isso. Então dar um nome é dizer "é meu filho", é reconhecer, ou seja, é algo que vem depois do nascimento. Ainda que você possa participar, hoje em dia os pais participam efetivamente, isso é muito positivo, dá muita segurança para a mãe, mas no real no real mesmo o pai vem depois. Porque ele vai criar esse vínculo quando a criança estiver com ele, não tem como fazer isso antes efetivamente, né? Então assim, a rejeição paterna em tese não teve. A relação dele com o pai tende a ser mais fácil, mas teve essa rejeição materna, não tem como negar isso. Então assim são coisas que ele vai


ter que trabalhar ao longo da vida dele, na adolescência, enfim, e terá nosso apoio pra isso. A gente tá sempre de olho no comportamento pra ajudar ele a passar por isso. Bruna: Em relação às brincadeiras dele, como ele brinca? Ele conviveu com bastantes crianças, hoje ele é a única criança, como ele brinca, como ele gosta de fazer? Marcos: Ele brinca de tudo, na verdade o seguinte, fazendo uma escala assim eu diria que tem três... quando você olha assim aparentemente você acha que ele só gosta de brincar com o computador, né, com o celular, mas ao contrário. Essa é a terceira opção. A primeira opção de brincadeira dele é com outra criança. Sempre. Se tivesse outra criança aqui eles estavam brincando. A segunda opção é com os brinquedos dele, brinquedos de montar, de Lego, de fazer teatrinho, e a terceira opção é o celular. Quando ele não tá em nenhuma dessas duas ele tá no celular, então ele brinca naturalmente com essas três coisas, esses três tipos de brincadeira. É claro que isso aí a gente acaba usando muito para dar um tempo pra gente, não sei o que, mas não é a preferência. Se ele chegar em uma festa por exemplo de aniversário que tenha outras crianças brincando ele vai brincar o tempo todo. Tem dias que ele passa a tarde toda, assim, sábado, domingo, brincando com fazendinha, com carrinho, com montagem de Lego, essas coisas. Maurício: Canta... às vezes tá brincando, tá cantando... Marcos: ele é uma criança que tem muita necessidade de expressar as coisas fisicamente. Então ele gosta muito de dançar, de música, ginástica, de fazer cambalhota, esse tipo de coisa, sabe, então ele é muito voltado pra coisa física, tem muito equilíbrio, um equilíbrio muito bom, de movimentos assim, nunca caiu essa escada, sobre com celular na mão, com copo, nunca houve nenhum acidente Bruna: Uma criança bem animada Maurício: Bem animada.


Marcos: A gente uma vez estava no Fórum, a gente já tava com ele, ia acontecer... não, a gente foi lá pra ver a juíza, tava tendo um encontro lá da Vara da Infância e a gente foi lá pra conhecer a juíza, pra ver se conseguia uma agilidade no processo, falar pra ela, conversar com ela. Não dependia dela, dependia da Vara do interior né, onde tá o processo de destituição e aí a gente encontrou, por acaso a gente encontrou, a gente tava estacionando o carro lá no Fórum e encontramos os meninos do abrigo em que ele estava. Meninos maiores que ele. E quando eles viram o Hugo conversando com a gente assim eles falaram pra assistente social que estava com eles "nossa, como ele tá conversando né? Como ele tá alegre" e aquela hora cortou o coração, porque a gente viu que eles queriam também ser adotados né? Maurício: Eles queriam uma família Marcos: Eram crianças maiores, de 8, 9 anos. Aí, tipo assim "ele não falava nada lá" ele falava assim "ele não falava nada lá, ele não conversava, ele era tão triste", algo assim. E depois a gente confirmou que parece que ele demonstrava sentimentos muito de depressão assim no abrigo. E aí assim a assistente social falou pra ele assim "é porque agora ele tem uma família, né, tá bem cuidado, por isso que ele tá diferente assim", então... não sei, a gente não vivia com ele lá, mas aparentemente parece que fez muito bem efetivamente pra ele isso né. Larissa: Vocês pretendem algum dia adotar outra criança? Marcos: Acho que não Larissa: Ou o Hugo tá bem? Maurício: Assim, é, eu fico a maior parte do tempo com ele assim, às vezes eu sinto que ele precisa de outra criança Marcos: A gente sente que pra ele seria bom um outro irmão, pra qualquer criança é bom ter irmão, né Maurício: Acho até que seria bom pra consolidar a família assim


Marcos: Mas no momento a gente não está cogitando essa hipótese não. A gente acha que ele vai ter muitos amigos, que vão fazer as vezes de irmãozinho. De vez em quando ele falava assim, há um tempo atrás, de bebê. Falava assim "eu quero ter um bebê", né, falou várias vezes. Não falava "ter irmão". Falava "ter um bebê". Que na minha leitura na verdade não é a vontade de ter um irmão. Na minha leitura é a vontade de ele ser um bebê. Então o bebê que ele fala que ele queria ter na verdade é ele mesmo. Pra que fosse desde o início. Então o bebê seria "eu volto ao início e nasci nessa família". Como se pudesse apagar o passado. Porque ele nunca falou que queria ter um irmão, ele falou que queria ter um bebê. Na verdade é um desejo de que ele tivesse vindo pra cá enquanto bebezinho. É muito comum por exemplo ele gosta de dormir de vez em quando entre as nossas pernas, como se estivesse nascendo da gente, então a gente vê essa coisa de... Maurício: "Eu vou dormir no berço" o berço pra ele às vezes é que ele quer dormir no meio da minha perna. O berço é aqui. Marcos: É óbvio que seria bom, é bom ter irmãos, acho que é bom, mas tem que ser uma decisão também não porque ele quer um irmão, tem que ser uma decisão de todo mundo. Outra coisa também, óbvio que ele não tem condição de decidir isso. Ter um irmão significa dividir os pais, os brinquedos, uma série de coisas também. É ganho de um lado e perda de outro. Não é só vantagem, digamos assim. Mas é óbvio que seria bom né, agora a gente tem que avaliar se a gente realmente quer, e a idade, enfim. Mas no momento eu acho que não. Eu particularmente acho que não. Bruna: E ele, o que mais surpreendeu vocês nesse tempo, quase dois anos que vocês estão com ele, o que mais surpreendeu? Maurício: A felicidade que ele passa em certos momentos, de assim... uma criança que veio do lugar que veio e às vezes quando eu vejo ele cantando, brincando e sorrindo e chamando a gente de papai Marcos e papai Maurício, acho que isso assim... nem precisa comentar em relação a essa sua pergunta. Já diz tudo.


Marcos: É, eu acho que assim, em termos de... pra mim surpreende muito a capacidade de superação que ele tem, que a criança tem, que ele tem. De acordar sempre muito bem, ele acorda sempre muito alegre, acorda sempre de bom humor, o acordar pra ele, o dia assim pra ele é sempre uma coisa muito boa, ele acorda sempre feliz, sempre animado. Então ele é um... ele dá muita coisa pra gente, assim. Ele dá mais coisa pra gente do que a gente pra ele. Então assim ele preenche com a existência dele ele preenche essa nossa existência completamente. Maurício: Teve um momento também em que eu fiquei surpreso. Nós estávamos no shopping e ele estava no meio da gente e ele pegou a minha mão e a mão do Marcos em público e encostou na gente. Isso mostra também a aceitação de ter dois pais. Eu fiquei vermelho, eu fiquei com vergonha porque ele estava no meio da praça de alimentação do Shopping Campo Grande, ele pegou e fez questão de... trazer pra fazer assim. Ele dizia "segura". Pra mostrar assim "eu tenho dois pais, e daí?". E fui eu que fiquei com vergonha. Eu fiquei assim vermelho porque ele fez isso Marcos: Outra coisa que ele faz muito é em relação à aliança, né, coisa que bem no início já, bem no início, logo ele percebeu, a gente nunca falou isso pra ele né, e ele começou a pedir pra ele porque ele queria ter uma aliança igual a essa. Então eu não sei de onde que eles tiram essa ideia mas ele sabe que isso aqui significa algo além do que um anel propriamente. Então ele faz frequentemente isso, aproxima assim a nossa mão, fica "vem aqui junto comigo", beija um e beija o outro, então é muito tranquilo isso pra ele. Acho que ele tá muito bem com isso. Quando ele vê, por exemplo, já aconteceu que surpreendeu a gente. A gente tava aqui, tava passando um programa na GNT sobre famílias "homoeróticas" e ele chamou a gente pra assistir ao programa. Eu não estava na sala, eu estava aqui embaixo e ele veio me chamar "vem aqui, papai, é igual a gente!". Uma família igual à nossa. A gente nunca falou isso pra ele. Maurício: Três filhos, né Marcos, adotivos? Marcos: Não sei, era uma situação de família como a nossa. E ele queria que a gente assistisse, né. Também tem uma situação, eu tenho uma prima que também tem a mesma situação, né, que tem uma família também homoafetiva e ele conheceu o


priminho dele e tudo e ele sente, dá a impressão pra ele, pra gente que ele se sente bem quando encontra algo assim. Na escola dele também tinha uma outra situação, de uma outra família que também é homoafetiva, que a própria escola apresentou pra ele as crianças "olha, o fulano também tem dois papais como você", né? Tem uma outra família que a gente conhece que tem 3 crianças adotadas, a gente foi no aniversário da filhinha deles e tudo, então quando ele encontra assim ele se sente muito bem, sente que não é só ele que tem essa situação. Mas é óbvio que ele sabe que não é a situação ordinária. Porque todas as crianças da escola dele não tem essa situação. Mas enfim, ele tá muito tranquilo com isso. Não é problema pra ele não. Bruna: De tudo que vocês viveram, que vocês tiraram até agora, tem algo que vocês sentem a necessidade de passar pra quem vai assistir a este documentário? Marcos: Então, eu acho que se a pessoa tem interesse em adotar, eu tenho observado o seguinte, eu acho que existe uma, muita dúvida né, porque o pessoal pensa em adoção, né, é óbvio que os motivos que levam alguém a adotar são vários, né. N motivos, alguns motivos são reais, verdadeiros, outros são fantasiosos né. Por exemplo, não posso adotar uma criança pra salvar um relacionamento. Né? "Ai, eu tô mal com o meu marido, não consigo dar um filho pra ele então vou adotar uma criança pra salvar o casamento". Isso é furada total, absoluta. Você não deve adotar uma criança pra fazer caridade. Né? Eu vou adotar uma criança porque "ai, tadinha, ela tá lá" realmente, isso é um fato, ele tá lá, num abrigo, pagando por um crime que não cometeu. Mas isso não é motivo pra você adotar. Adoção é outra coisa, você pode colaborar, você pode contribuir, você pode doar, você pode fazer N coisas que eles precisam. Doação material, né, etc. Mas adoção não tem a ver com isso. Você não pode fazer por caridade. Porque se você adota uma criança com essa perspectiva você vai ser um cuidador, não vai ser um pai. Então é uma coisa completamente diferente. A necessidade de adotar não parte de quem tá lá no abrigo, ela parte de você, você precisa de alguém pra ser seu filho. E aí por acaso existe a realidade dos abrigos. Então você vai se aproximar dessa realidade. Outra coisa assim, os medos né, as pessoas falam "quero adotar mas não sei o que fazer. E aí várias pessoas, depois que nós adotamos o Hugo, nos perguntaram, como que era, já teve até vizinho aqui nosso


que perguntaram, a gente vê que a pessoa tem a vontade mas não dá o passo definitivo. Ela fica simplesmente alimentando a vontade, o tempo vai passando e a perspectiva que a gente tem hoje é de "por que a gente não fez antes?" essa é a pergunta que a gente se faz todo dia "por que a gente não fez antes?". É tão bom que poderíamos ter feito muito tempo antes, muitos anos antes. Então se você quer adotar, não espere pra amanhã. Óbvio, você tem que se preparar pra isso, tem que estar consciente dessa realidade, mas não adie isso por muito tempo, porque chega uma hora que seu sonho vai se perder em outras coisas e você vai acabar perdendo a oportunidade. Então eu acho que não tem que esperar a hora ideal, né, como que vai ter um filho, "eu preciso resolver toda a minha vida profissional pra depois ter um filho" e aí descobre que não pode mais ter eventualmente, né, então ninguém tá totalmente pronto, ser pai é uma coisa que você aprende todo dia, todo dia, nunca vai estar totalmente pronto. E outra coisa é ter que estar disponível pra aceitar uma criança que traz uma história, que tem um conteúdo emocional, que não é um bebê de onça, e que vai se transformar, vai trazer dificuldades como qualquer criança traz, criança dá trabalho efetivamente, então você tem que estar preparado pra isso, pra ter, pra vivenciar esse trabalho e ter prazer com isso, pra que ela se sinta não um peso na sua vida, e sim uma dádiva, um presente. Acho que é mais ou menos isso que eu diria pra quem quer adotar e assim, se prepare, né, obviamente, procure informações, procure se preparar e faça isso, se for um casal, né, se for um casal adotar, faça isso com muita consciência dos dois lados né. Porque não dá pra dizer mais depois que a criança está em casa "ah, foi você quem quis, eu só avalizei", não existe isso. Maurício: Porque tem casos assim que, não só em Campo Grande mas no Brasil inteiro, de crianças que foram adotadas, ficam um período de uma semana, um mês às vezes aí são devolvidas. Então tem que ter certeza que vocês querem ser pais, isso é muito importante. E pra quem quer adotar, não tenha medo, porque seu filho tá lá, à sua espera. Não se importar com a raça, com a idade, com a cor, então isso é importante. Porque a realidade do abrigo é assim, bebezinho raramente você vai ter no abrigo, é de dois anos, três, seis, sete, irmãos de 2, 3... irmãos ali. Essa é a realidade do abrigo. Não é igual a quando passa na televisão, na novela, que aquele bebezinho nasce ali, então é outra realidade, tem que conhecer , por isso que esse curso prepara


a gente pra conhecer essa realidade. Tem pais que chegam querendo bebê e acabam adotando de 3, 4, 5 e até irmãos. Então muda a visão.


3cm. 15 3cm.

APRESENTAÇÃO GRÁFICA 2cm

Apresentamos a seguir, a título de ilustração, algumas indicações para a apresentação gráfica de seu projeto. 

Utilizar papel branco, A4.

Fonte ARIAL ou TIMES NEW ROMAN, estilo normal, tamanho 12.

Citações com mais de três linhas, fonte tamanho 11, espaçamento simples e recuo de 4cm da margem esquerda.

Notas de rodapé, fonte tamanho 10.

Cada capítulo deve começar em folha nova.

O espaçamento entre linhas deve ser 1,5.

O início de cada parágrafo deve ser recuado de 2cm da margem esquerda.

As margens das páginas devem ser: superior e esquerda de 3cm; inferior e direita de 2cm.

O número da página deve aparecer na borda superior direita, em algarismos arábicos, somente a partir da Introdução, embora devam ser contadas a partir da folha de rosto. Não contar a capa para efeito de numeração.

2cm


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