Portão 2

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - HABILITAÇÃO EM JORNALISMO

PORTÃO 2: A VIDA E A ROTINA DO PRESÍDIO FEMININO DE CAMPO GRANDE

CYNTHIA PALUDETO EDUARDO RAFAEL FREGATTO SUELEN SOARES BUZINARO

Campo Grande NOVEMBRO / 2013

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PORTÃO 2: A VIDA E A ROTINA NO PRESÍDIO FEMININO DE CAMPO GRANDE: CYNTHIA PALUDETO EDUARDO RAFAEL FREGATTO SUELEN SOARES BUZINARO

Relatório apresentado como requisito final para aprovação na disciplina Projetos Experimentais do Curso de Comunicação Social / Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

Orientador: Prof. Dr. Marcos Paulo da Silva

UFMS Campo Grande SETEMBRO/2013

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SUMÁRIO

Resumo ..................................................................................... 6 1 - Alterações no plano de trabalho ........................................... 7 2 - Atividades desenvolvidas ..................................................... 8 3 - Suportes teóricos adotados ................................................. 16 4 - Objetivos alcançados .......................................................... 18 5 - Dificuldades encontradas .................................................... 20 6 - Despesas (orçamento) ........................................................ 22 7 - Cronograma ......................................................................... 23 8 - Conclusão ............................................................................ 24 9 - Apêndices ............................................................................ 26

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RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo retratar, por meio de um livro-reportagem, com a linguagem do jornalismo literário, como vivem as reeducandas do Presídio Feminino Irmã Irma Zorzi, de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. No produto retratamos a vida das internas conforme seus próprios depoimentos, e nossas experiências durante visitas à instituição penal. Com os relatos foi possível tomar conhecimento do trabalho que fazem, como se sustentam financeiramente, se é possível ter somente essa fonte de renda, quais os problemas diários enfrentados, os motivos e expectativas em relação ao trabalho e futuro. A intenção é dar maior visibilidade a esta categoria e desmistificar alguns dos principais estereótipos criados pela sociedade em geral. Portão 2 é dividido em dez capítulos, separados por temas coincidentes às vidas das mulheres entrevistadas, como a entrada na prisão, a família desestruturada, drogas, entre outros. Todos os nomes das personagens foram substituídos, para preservar nossas personagens. No relatório final os nomes verdadeiros foram mantidos. . PALAVRAS-CHAVE: Comunicação; Livro-reportagem; Jornalismo Literário; Reeducandas; Presídio Feminino; Campo Grande.

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1- ALTERAÇÕES DO PLANO DE TRABALHO A metodologia do trabalho sofreu alterações. A intenção inicial era utilizar um roteiro de perguntas para entrevistar as mulheres presas no Presídio Irmã Irma Zorzi. Entretanto, devido à liberdade que nos foi concedida pelas agentes penitenciárias, resolvemos não utilizar perguntas pré-formuladas. As entrevistas foram realizadas no formato de diálogo, com os três integrantes do grupo presentes, com questionamentos espontâneos que surgem de acordo com os fatos mais interessantes compartilhados pela entrevistada. As agentes penitenciárias nos deram total liberdade, e não havia ninguém para monitorar as conversas. O formato de diálogo possibilitou maior conforto e intimidade com a detenta, que se sentiu segura para compartilhar detalhes proibidos sobre a vida dentro do presídio, como o uso de drogas e celulares. Inicialmente, o livro-reportagem teria como fio condutor uma linha cronológica da vida das detentas. No entanto, ao nos depararmos com as complexidades das histórias que nos foram contadas, decidimos mudar a construção do livro e não seguir a cronologia dos fatos. A ideia inicial era fazer uso de uma personagem complexa, que representaria todas as mulheres entrevistadas, e durante a narrativa, personagens secundários iriam interagir com a principal. Após os questionamentos das professoras presentes na pré-banca, sobre o gênero do livro-reportagem ter disposição para a ficção, o grupo optou manter cada personagem com seu próprio relato. Devido ao fato, o livro foi separado por temas que mais chamaram atenção, em cada uma das histórias. As detentas receberam nomes fictícios, para preservar sua identidade real. Optamos durante a diagramação do Portão 2, por utilizar fotografias ilustrativas a cada início de capítulo. As imagens são de autoria do grupo. No inicio do projeto a proposta seria entrevistar os familiares das presidiarias, conforme as visitas, e a notável ausência da presença familiar, optamos em manter somente a versão das mulheres entrevistadas.

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Apenas uma entrevista foi realizada fora das grades. Jéssica, 19 anos, estava cumprindo seu último dia de pena, quando conversou conosco. Para saber sobre como foi cair no mundo em liberdade, entramos em contato um mês após sua saída do presídio. Seu relato deu origem ao capítulo de encerramento do livro-reportagem. Antes de iniciar a redação do Portão 2 a intenção era redigir cada capítulo a seis mãos, porém com o tempo curto, e a dificuldade da proposta, optamos por dividir os temas, e realizar uma revisão final para padronizar a escrita.

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2. ATIVIDADES DESENVOLVIDAS 2.1 Período Preparatório: Escolher um tema para realizar o trabalho de conclusão de curso não é algo fácil, diversos assuntos e abordagens nos foram apresentados durante os quatro anos em que estivemos em sala de aula. No jornalismo a escolha vai além. Diante das opções de formato, a princípio escolhemos o documentário. Mais adiante, porém, a liberdade de formato que o livro-reportagem oferece nos chamou atenção e optamos por essa modalidade de narrativa. No início de 2013, nos foi apresentado o tema “Presídio Feminino”. O grupo era formado apenas por Suelen e Cynthia, até o momento em que tivemos que nos apresentar para a sala e expor nossas ideias. Após a apresentação, Eduardo mostrou interesse em fazer parte do projeto. O surgimento do livro-reportagem “Portão 2” se deu, a partir da percepção de que as internas acabam por ser prejulgadas pela sociedade além do estereótipo transmitido pela mídia. Com a ausência do Professor Doutor Mario Ramires, ficamos em dúvida quanto à escolha do orientador, até que iniciamos uma nova disciplina com o Professor Doutor Marcos Paulo da Silva e sentimos segurança em pedir sua colaboração durante o mês abril. Após a primeira conversa, conseguimos perceber sua afinidade e interesse pelo tema. Com sua orientação, o processo começou a ser mais rápido. Durante as reuniões, marcadas de 15 em 15 dias, sempre às quintas-feiras, discutimos sobre o formato que usaríamos durante a redação do livro-reportagem e os documentos necessários para o acesso ao presídio. Nosso orientador indicou uma extensa bibliografia que foi consultada e foi útil na elaboração do trabalho. O mais difícil da preparação foi a documentação exigida pela Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário (Agepen), pois tivemos que elaborar todo o projeto antes da data oficial de entrega para encaminhar ao órgão e recebermos a liberação de entrada.

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2.2 Execução: Após recebermos a liberação da Agepen, fomos pela primeira vez ao Estabelecimento Penal “Irmã Irma Zorzi” no dia 3 de setembro para uma conversa inicial com a Diretora Mari Jane Boleti Carrilho. Durante essa primeira reunião, repassamos para a diretora os perfis escolhidos para as entrevistas e recebemos as orientações sobre como nos portar e vestir. O Estabelecimento Penal Feminino Irmã Irma Zorzi (EPFIIZ) está situado no bairro Coronel Antonino, na Capital de Mato Grosso do Sul. A figura da Irmã Irma Zorzi foi escolhida para nomear o local devido ao trabalho humanitário dedicado à população carcerária. O primeiro Presídio Feminino da Capital foi criado em 1986 para abrigar as mulheres presidiáris que crescia consideravelmente no Estado, e possuía capacidade para apenas 50 detentas. A atual sede foi inaugurada em 1994 e só então batizada como EPFIIZ, sua primeira capacidade era de 180 vagas, em 2005 o número subiu para 216, e atualmente possui 231 vagas, mas abriga uma média de 400 internas, divididas em 13 celas. Os dados sobre o histórico do Estabelecimento Penal foi fornecido pela diretoria do mesmo. Durante um mês, visitamos o presídio todos os dias, com exceção das terçasfeiras e finais de semana. Os três integrantes estavam presentes em todas as entrevistas. No dia 4 de setembro iniciamos as entrevistas. Uma agente penitenciária nos encaminhou até a sala de psicologia, onde as conversas são realizadas. A primeira detenta foi Camila Francisco Macedo, 24 anos, gestante presa por tráfico de drogas e receptação. No livro-reportagem Camila recebeu o nome de Carol, o apelido demonstra a intimidade desenvolvida durante a conversa. A entrevista durou uma hora e meia e todos os diálogos foram gravados, e observações registradas em um caderno. Esse procedimento foi adotado em todos os encontros. De modo geral as entrevistas duraram por volta de uma hora. No dia 5, conhecemos Inês Serra, de 61 anos, tratada no livro como Irene. Presa também por tráfico de drogas é a segunda vez que a idosa está atrás das 10


grades. Mãe de cinco filhos, ela não recebe visita de nenhum familiar. Nesse dia conversamos por cerca de uma hora. No terceiro dia de entrevistas, a personagem foi Sirlei Maia, 41 anos, que sofre com um câncer de mama. Devido ao desespero da personagem durante suas falas, em Portão 2 ela recebeu o nome de Socorro. Pega transportando drogas de um Estado para outro, estava presa há menos de um mês. No dia seguinte, encontramos Sandra Soares, 39 anos que está na cadeia pela quinta vez. Acusada de tráfico de drogas e assalto à mão armada, ela é portadora do vírus HIV há 21 anos. Sandra será Sabrina no livro-reportagem, optamos por um nome moderno para a personagem, pela peculiar história que nos contou, se auto denominando “Vidaloka”. No dia 11, uma segunda-feira, entrevistamos a primeira detenta que não foi presa por tráfico de drogas. Elda Costa, conhecida como Barreto, 40 anos, foi acusada de homicídio. Elda vira Elza e Barreto vira Baltazar durante nossos relatos. Ela é uma das internas entrevistadas que recebe visita. E foi apontada pelas agentes como um perfil “problemático”. No dia 13 retornamos ao presídio e entrevistamos Naywsany da Costa, 24 anos, encarcerada por crime de sequestro e roubo. Por ser conhecida pelas colegas de cela como Sany, recebeu o nome de Samy. A entrevistada é vencedora do concurso “Miss Penitenciária MS 2012” e trabalha no ambulatório do presídio. A reeducanda recebe visita de seus familiares. No dia 14, entrevistamos Érica Godoi, 29 anos, reclusa por tráfico de drogas, ex-prostituta ela mora com seu filho de quatro meses dentro do presídio. Nesse dia conhecemos a creche que fica dentro do estabelecimento, e abriga atualmente três crianças. Mas segundo informações extraoficiais das Agentes Penitenciárias já houve 15 crianças convivendo ali. Por sua história ter sido marcante, Érica recebeu o nome de Estela, que para nós significa estrela. No dia 16, conversamos com Jéssica de Lima Ferreira, 19 anos. Presa por tráfico há um ano, no dia seguinte à entrevista ela receberia sua liberdade de volta. Com nome fictício de Juliana, aparece para nós como vínculo com a vida das expresidiárias, já que descobrimos por meio dela como é a rotina após a cadeia.

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Em 18 de setembro conhecemos Mônica Tenório da Silva, detida em flagrante por atear fogo à amante do marido. A detenta apresentava nítidos problemas psicológicos, e afirmou ser controlada por remédios. Em Portão 2 ela foi chamada de Moira. Nossa última entrevista foi com Lidiane Ribeiro Machado Nunes, Agente Penitenciária que trabalha no setor de identificação. Em nenhum momento seus relatos foram utilizados no livro-reportagem. O objetivo da conversa foi entender o processo burocrático pelo qual as presas passam ao chegar no Estabelecimento Penal. Ainda nesse dia, tivemos acesso ao interior do presídio. Conhecemos as celas, a quadra de esporte, o restaurante e os locais de trabalho. Não foi autorizado fotografias do local. Utilizamos nossas percepções para dar veracidade à nossa redação. Todas as entrevistadas aceitaram ser fotografadas e suas vozes gravadas. Nenhuma se negou a responder às perguntas feitas, mas por muitas vezes percebemos que contavam uma versão distorcida dos fatos. A autorização assinada pelas reeducandas foi disponibilizada pela Agepen. Após o final de cada entrevista, nos reuniamos e debatíamos tudo o que foi ouvido, comentando e documentando nossas impressões sobre a detenta e a veracidade de sua história. Com o término das entrevistas, e o prazo de entrega próximo, optamos por dividir a redação dos capítulos, sendo que cada integrante do grupo ficou responsável por três deles, e aquele considerado mais polêmico recebeu uma atenção especial. Ao finalizar cada capítulo, trocávamos os textos via email, para aprovação e possíveis alterações por parte dos outros membros. Encerrado esse processo, o material era enviado ao orientador, para correção e possíveis sugestões. Ao fim dessa etapa, todos os capítulos passaram por uma revisão final para adequação de linguagem, e unificação de dados. A versão final, ainda passou por outra aprovação do orientador. Cada capítulo foi intitulado com uma expressão, que para nós resume as histórias relatadas. Começamos pela introdução, intitulada “O desafio é olhar para baixo”, pois nos desfizemos de todos os esteriótipos, e preconceitos para conseguir aceitação por parte das mulheres, e entender com propriedade aquela realidade tão 12


diferente da nossa. O primeiro capítulo que narra a entrada no presídio recebeu o nome de “Corró”, uma gíria conhecida pelas presas, para identificar a cela de isolamento e adaptação, na qual elas permanecem no primeiro mês de pena. “Manga” é o segundo capítulo. Retrata a desigualdade social presente naquele universo, em particular. O nome “Manga” é usado para classificar as presidiárias que prestam serviços para as outras detentas. Entre esses serviços estão: lavar a roupa, limpar a cela e fazer café. O dinheiro é usado para comprar materiais básicos, como higiene pessoal e algumas guloseimas que vem de fora da prisão. O terceiro capítulo foi nomidado “As forasteiras” gíria usada para as mulheres presas que não recebem visitas, ou que vem de outro Estabelecimento Penal. O texto retrata a pouca convivencia familiar, tida no período de detenção e a estrutura familiar a qual cada uma delas cresceu. O seguinte é “Parto”, nesta parte retrataremos a dificuldade de uma gravidez levada dentro da prisão. Em especial abordamos o relato de uma delas, sobre a violência sofrida durante sua Cesárea. No quinto abordamos as histórias, e o cotidiano de quem já morou nas ruas. Um conto, em especial, chamou nossa atenção que foi a do “Robin Hood das ruas” uma criança viciada em drogas, que roubava lojas e dava dinheiro para os seus companheiros. O capítulo que aborda os crimes cometidos por nossas entrevistadas foi intitulado “Artigo 33”. De acordo com a legislação, esse é o número que designa o tráfico de drogas, crime cometido por sete das nove entrevistadas. “Chuncho” faca produzida artesanalmente dentro do presídio. Esse foi o nome escolhido para o sétimo capítulo. Nele retratamos a vida dentro da prisão, e algumas ilegalidades internas que foram expostas pelas detentas durante as conversas. Nesse capítulo a dificuldade, foi passar ao público a realidade da prisão, sem colocar em risco a integridade das personagens, e até mesmo nossa, por não termos provas para corroborar com as denúncias. O capítulo oito é um dos mais leves do livro-reportagem, e destoa dos demais por contar um relato de felicidade genuína atrás das grades. “Miss” conta a história de 13


uma detenta, que se emagreceu dentro da prisão e se tornou a Miss Penitenciária 2012. O penúltimo texto, intitulado “O ciclo” abordamos as expectativas das reeducandas para sua vida fora da prisão, e para o futuro de seus filhos, pois todas eram mães. O Ciclo faz uma ligação entre o sofrimento vivido diariamente, e os sonhos ainda mantidos por elas. A preocupação de que seus filhos não tenham o mesmo futuro, se contrapõe com o fato, de que eles também fazem parte de uma família sem estrutura. “Portão Aberto” fecha o livro com um breve relato, sobre como uma ex presidiária retoma seu convívio social, e busca novas alternativas para seu futuro. O título do livro-reportagem também tem um significado especial. “Portão 2” é como as presas se referem às visitas feitas por seus familiares, toda quarta-feira, para levar produtos alimenticios e de higiene, e também dinheiro. Dentro da sociedade carcerária o Portão 2 é o que define a desigualdade social, quem recebe é considerada “rica”.

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2.3 Revisão Bibliográfica:

2.3.1 Livros: ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas. NBR 14724: Informação e documentação. Trabalhos Acadêmicos - Apresentação. Rio de Janeiro: ABNT, 2002. LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas Ampliadas. São Paulo: Manole, 2004. LAGE, Nilson. A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística. Rio de Janeiro: Record, 2001. RODRIGUES, Aroldo. Psicologia Social. 18. Ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1992. KLOCH, Henrique. MOTTA, Ivan Dias da. O sistema prisional e os direitos da personalidade do apenado com fins de res(socialização). 1. Ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008. SOARES, Bárbara Musumeci. ILGENFRITZ, Iara. Prisioneiras- Vida e violência atrás das grades. Rio de Janeiro: Garamond, 2002. ESPINOZA, Olga. Mulher Encarcerada em face do poder punitivo. São Paulo: Ibbrim, 2004. THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. Boas, Sergio Vilas. Biografismo- Reflexões sobre as escrita da vida. São Paulo: Unesp, 2008. Varella, Draúzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras,1999. Varella, Draúzio. Carcereiros. São Paulo: Companhia das Letras,2012. 2.3.2 Redes, sites, e outros: Girardi Jr, Liráucio. A reportagem como experiência etnográfica. Disponível em < http://academia.edu/1023244/A_reportagem_como_experiencia_etnografica> Acesso em: 4 jul.2013. 15


3. SUPORTES TEÓRICOS ADOTADOS 3.1 Jornalismo O projeto experimental “Portão 2” é apresentado por meio de um livroreportagem. Este formato nos permite abordar temas atemporais e buscar explicações para as origens dos problemas enfrentados pelos personagens escolhidos, já que – como percebemos durante as entrevistas –, a maioria das detentas possui uma família desestruturada e sofreu abusos na infância, tanto psicológicos como físicos. De acordo com Lima (2004, p.29), “o livro-reportagem é o veículo de comunicação impressa não-periódico que apresenta reportagens em grau de amplitude superior ao tratamento costumeiro nos meios de comunicação jornalística periódicos”. O projeto teve como base o gênero livro-reportagem-retrato, pois possibilita aos autores prestar um serviço educativo ou explicativo para a sociedade. O teor educativo serviu de auxílio na aproximação e identificação do leitor com os personagens descritos na história, trazendo o leitor para o universo do personagem, assim como aconteceu conosco no início das visitas. Esse método de apresentação tem base no jornalismo cotidiano, de entrevista e observação, mas amplia o campo de atuação do mesmo. Ao mesmo tempo em que ouvíamos os relatos na posição de jornalistas, não foi possível nos manter alheios aos sofrimentos vividos por aquelas mulheres, portanto o processo de entrevistas nos despertou uma observação mais sensível – isto é, tal como no livro “Prisioneiras – Vida e violência atrás das grades” (2010), de Barbara Musumeci Soares e Lara Ilgenfritz, que analisa a trajetória das detentas com foco na violência sofrida. O livro produzido é voltado para o convívio social das reclusas e as impressões transmitidas a nós, mostrando também os motivos que levaram essas mulheres à prisão e como foram suas experiências desde o momento de chegada ao presídio. Ainda nesse contexto, utilizamos também como fonte de pesquisa o livro de Aroldo Rodrigues (1999), “Psicologia Social”, publicação na qual são abordados temas como racismo, sexismo e segregacionismo, que podemos afirmar continuam a fazer parte do cotidiano das reeducandas de Campo Grande. O autor traz discussões sobre estereótipo, rotulação, racismo moderno, discriminação e causas sociais do preconceito. 16


Outros livros utilizados para a produção do projeto foram “Carcereiros” (2012) e “Estação Carandiru” (1999), ambos do autor Dráuzio Varella. Varella é médico oncologista e durante 13 anos foi voluntário na Casa de Detenção de São Paulo, popularmente conhecida como Carandiru. O livro “Carandiru” expõe o cotidiano dentro do presídio a partir de histórias contadas por detentos, além das vivências do autor. “Carcereiros”, escrito treze anos depois, narra os acontecimentos sob o olhar de funcionários. Nesse ponto, tomadas as devidas proporções, nos aproximamos do autor Dráuzio Varella, pois utilizamos apenas as versões dadas pelas detentas durante as entrevistas. Para o desenvolvimento da estrutura do livro-reportagem, o livro “Páginas Ampliadas”, de Edvaldo Pereira Lima (2004), foi consultado no que diz respeito à modalidade livro-reportagem-retrato e à entrevista de compreensão. Ambos os termos são explicados por Lima como formas de se integrar ao ambiente do entrevistado e traduzir em palavras todas as nuances e detalhes observados durante a entrevista. Apesar de entrarmos no presídio acreditando no contrário, as presas se sentiram à vontade em nossa presença para contar detalhes do sistema interno da cadeia. O trabalho de Cremilda Medina (2008) também foi pesquisado para estruturar o projeto. Em “Entrevista: o diálogo possível”, a autora afirma que o entrevistador deve insistir “na sua própria personalidade para melhor atuação no relacionamento entrevistado-entrevistador”. Nosso desafio foi fugir dos padrões e evitar as estruturas básicas de entrevista, permitindo que se ouça, pergunte e se converse com o entrevistado. Fomos até o estabelecimento penal com um roteiro de perguntas pronto, porém após a primeira entrevista descobrimos ser ineficiente. Os fatos relatados geravam questionamentos alheios ao programado.

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4. OBJETIVOS ALCANÇADOS O objetivo de construir uma narrativa jornalística no formato de livro-reportagem com a proposta de oferecer uma visão diferenciada sobre o universo da prisão feminina de Campo Grande, retratando em detalhes as trajetórias de vida das mulheres reclusas, foi atingido.  Por meio de entrevistas, que poderiam ser classificadas como conversas, conseguimos utilizar as técnicas jornalísticas aprendidas ao decorrer do curso, e ouvir das reclusas depoimentos realistas sobre o cotidiano prisional.  Identificamos personagens com histórias complexas e interessantes. Nas entrevistas, nos aprofundamos nos detalhes das trajetórias de vida das detentas Camila, Inês, Sandra, Sirlei, Naywasany, Barreto, Érica, Jéssica e Mônica. Utilizamos a técnica de entrevista de compreensão para adentrar no universo das nove mulheres e descobrimos como eram suas vidas antes da prisão.  Com a observação direta, identificamos o comportamento das entrevistadas. Desvendamos seus sentimentos e conseguimos informações extraoficiais sobre a realidade dentro do presídio de Campo Grande. Ouvimos relatos sobre detentas gestantes e abordamos a questão da falta de visitas das mulheres presas (apenas duas entrevistadas recebem visitas frequentes). Ouvimos histórias marcantes de violência e abandono. Por muitas vezes, duvidamos da versão contadas por elas, pois percebíamos seu nervosismo e irritabilidade ao desenrolar os episódios.  Verificamos que o levantamento “Relatório de Mulheres Presas”, realizado em 2010 pelo Ministério da Justiça, se aplica à realidade vivida no Presídio de Campo Grande no que diz respeito à falta de visitas e ao fato da maioria das mulheres terem cometido tráfico de drogas.  Fotografamos todas as entrevistadas, algo que não estava nos objetivos do préprojeto entregue em agosto, devido à grande aceitação por parte das internas. Julgamos as imagens importantes, pois ilustraram as emoções vividas no momento em que elas decidem compartilhar suas histórias.

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 O último objetivo alcançado foi redigir um livro-reportagem, a seis mãos. A diferença entre as linguagens, e a repetição de fatos, foram desafios vencidos por meio do diálogo, e das revisões finais.

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5. DIFICULDADES ENCONTRADAS: Nossa primeira dificuldade foi conseguir se deslocar até o Presídio Feminino no horário ideal. A direção da instituição nos permitia realizar as entrevistas até às 16h. Por conta de compromissos diários, como o estágio, só chegávamos ao presídio por volta das 15h. Devido ao pouco tempo para trabalho, fomos ao presídio todos os dias úteis da semana, com exceção das terças-feiras. Durante as entrevistas não houve rejeição por parte das personagens, e não houve restrições para nossas perguntas. Apenas uma reeducanda se recusou a conversar conosco. Conter nosso envolvimento emocional também foi difícil. Pois, muitas histórias nos deixaram uma marca, em especial a entrevista com Érica, que nos abalou emocionalmente. Em vários dias, levamos uma carga emocional diferente para casa. Em termos práticas, ainda dentro do presídio, tivemos algumas dificuldades com as fotografias, e o acesso. O primeiro por não termos autorização para fotografar a realidade a partir do segundo portão, que dá acesso às celas, e à convivência das detentas. O segundo porque fomos barrados em uma ocasião, onde a Agente Penitenciária, que nos acompanhava, não estava presente. As outras agentes não permitiram a realização da entrevista, mesmo com a nossa presença frequente no EPFIIZ. Por duas vezes a tecnologia nos prejudicou nas entrevistas de Jéssica e Mônica, o gravador utilizado não salvou o áudio das conversas, e por isso dependemos das anotações para utilizar seus relatos. Em relação ao atendimento da diretoria do Estabelecimento Penal, nossa dificuldade foi a pequena quantidade de dados disponibilizados. Apenas o histórico e os nomes das diretoras nos foram concedidos. Ainda na parte prática, o nossa maior desafio durante todo o projeto, foi a redação dos capítulos. Mesclar três estilos, e adaptá-lo para que não tivesse grandes nuances de redação, consumiu um tempo importante para o prazo final.

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Mesmo dividindo os capítulos por temas, que foram distribuídos entre os integrantes, a programação foi falha. Ao final, percebemos que haviam informações repetidas inúmeras vezes, e faltava o toque literário que propusemos. Sendo assim, todos os capítulos tiveram que passar por mais de uma revisão, até que o objetivo final fosse alcançado. Com a aproximação da data de entrega, sentimos a pressão, pois o material ainda não estava totalmente pronto, e finalizado. Outro agravante foi o feriado do dia 15 de novembro, ser um dia útil antes da data de entrega. Pois, as gráficas solicitam até três dias úteis para a impressão de livros.

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6. DESPESAS (ORÇAMENTO)

DESPESA

VALOR

Gasolina

R$ 100,00

Gravador

R$150,00

Câmera Fotográfica

R$950,00

Gráfica

R$550,00

Refeições

R$100,00

Total

R$1.550,00

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7- Cronograma MES/ETAPAS Mês 1 Mês 2 Mês 3 Mês 4 Mês 5 Mês 6 Mês 7 Mês 8 Mês 9 Mês10 Mês 11 Escolha do

X

X

tema Levantamento

X

X

X

bibliográfico Elaboração do

X

X

anteprojeto Apresentação

X

do projeto Coleta de

X

X

dados Análise dos

X

X

dados Organização do

X

roteiro/partes Redação do

X

X

trabalho Revisão e

X

redação final Entrega da

X

monografia Defesa da

X

monografia

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8. CONCLUSÕES Quando decidimos pelo tema sobre mulheres no sistema penal procurávamos mostrar como é a vida dessa população geralmente esquecida pela sociedade e até mesmo por seus familiares. O Relatório de 2010, Mulheres Presas, realizado pelas organizações Pastoral Carcerária, Conectas Direitos Humanos e Instituto Sou da Paz, aponta o abandono sofrido pelas internas. Ao discutir sobre o tema percebemos também o abuso dos estereótipos da mídia, em relação à população encarcerada, o que nos despertou interesse. Antes de entrar no presídio nossa visão também era construída a partir de estereótipos de que as presidiárias eram masculinizadas ou violentas. No decorrer da pesquisa jornalística, no entanto, percebemos que as mulheres atrás das grades são pessoas comuns, com desejos, medos, arrependimentos e expectativas. Concluímos que a instituição penal não é um espaço de reeducação, apesar dos diversos programas sociais ali presentes. As entrevistadas nos relataram uma rotina de violência física e psicológica, falhas na assistência dos cuidados básicos de higiene e alimentação e ausência de perspectivas para a vida fora do presídio. De acordo com nossas observações 90% das presas cometeram crime de tráfico de drogas. A maioria não recebe visitas e tem medo do futuro. Segundo a pesquisa Mulheres Encarceradas, realizada pelo Ministério da Justiça em 2008, os presídio femininos brasileiros, já estavam superlotados. Segundo os relatos das entrevistadas a situação não mudou. O presídio possui capacidade para 231 detentas, e abriga 400 mulheres, divididas em aproximadamente 30 por cela, apenas a cela das mães com bebês menores de seis meses e gestantes não é superlotada. Chegamos a conclusão de que existe um universo particular, como se fosse outra sociedade, dentro da prisão. Lá existem gírias, sistemas de opressão, comércio, desigualdade social, criminalidade, religiões, outras formas de preconceito e relações afetivas. As entrevistadas não tiveram restrições em nos introduzir nesse outro sistema de convívio social. Elas representam, cada uma, um perfil que juntos formam a identidade da detenta de Campo Grande.

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Apesar das dificuldades encontradas durante as entrevistas, e na redação do livro, acreditamos ter atingido o objetivo de retratar as detentas de maneira humanizada, e permitir ao leitor entender que por trås dos uniformes azuis, existem mulheres batalhadoras, que buscam novas chances na vida.

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9. APÊNDICES

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8.1 Decupagem de Entrevistas

8.1.1 Sandra

Sandra: Vou contar um pouco da minha vida torta pra vocês. Eduardo: Não tem problema Suelen: Porque torta? Sandra: Porque é, eu sempre fui assim torta... Como dizem hoje em dia, eu falo torta, o povo fala vida louca, não é? Eduardo: É (risos). Quantos anos a senhora tem? Sandra: 39 Eduardo: Você é nova ainda. E foi presa quando? Sandra: Eu tô presa há um ano e três meses. Fui presa ano passado. Eduardo: E a pena vai até quando? Sandra: A mina pena vai até 2016, pra mim poder entrar no direito do semi-aberto, mas a minha cadeia realmente termina em 2025. Porque eu não tenho somente a condena do 33, eu tenho a condena de um roubo também, que é o 157. Um assalto. Eduardo: 33 é o que? Tráfico? Sandra: tráfico de drogas. Eduardo: E um assalto a mão armada? Sandra: É um assalto à mão armada. 157. Eduardo: Você fala que sua vida é torta, como foi sua infância? Quando começou isso? Sandra: Minha infância, pra mim, não foi tão boa, mas também não foi ruim. Tem aquele ditado que diz que Deus sabe o que faz né? Eduardo: Você nasceu aqui? Sandra: Sim, sou nascida e criada aqui dentro de Campo Grande. Nasci aqui mesmo, nessa vila aqui, fui nascida e criada aqui na Coronel Antonino. Eu não tenho mãe já tem 31 anos. Desde os meus oito anos de idade eu não tenho mãe. Eduardo: Ela morreu? Sandra: Minha mãe é falecida Eduardo: Morreu como? 27


Sandra: Câncer Cynthia: Bem novinha né Sandra? Tinha alguém pra cuidar de você? Sandra: Arram... A minha vó que cuidou. Nós éramos entre cinco irmãos vivos, e dois falecidos. Eduardo: E o seu pai? Sandra: Não sei, não conheço e nem quero. Eduardo: Nunca conheceu? Sandra: Não, nunca conheci e também nem desejo conhecer. Eduardo: O que sua mãe falava dele? Porque você não quer conhecer? Sandra: Não sei, porque... não falava nada, eu não lembro muita coisa, era criança. Minha mãe eu só me recordo cuidando da gente. Eduardo: E você não quer conhecer ele porque ele nunca foi atrás de vocês? Sandra: Não. Porque quando minha mãe mais precisou dele, que ela tava no hospital internada, que ela precisava de um remédio, de um dinheiro ele não ajudou. Eduardo: E você lembra disso? Sandra: Arram. Desse fato eu lembro. Eduardo: Foi um sofrimento grande pra você? Sandra: Pra mim foi, e é até hoje. Eu acho tão bonito quem tem mãe. Não gosto que maltrata mãe, ou alguém fala alguma coisa. Muitas vezes eu já discuti dentro do alojamento por causa disso. “Ah minha mãe não trouxe”- toma vergonha na cara, porque sua mãe não tem obrigação. Sua mãe não obrigou você errar, e vir parar dentro da cadeia. Você fumar, você roubar... ninguém obriga ninguém a fazer as coisas. Eduardo: Você acha que se sua mãe tivesse viva, ela vinha visitar você? Sandra: Com toda certeza. Eu fui criada pela minha vó, que também é falecida. Faleceu com câncer... Minha vó me criou muito bem, inclusive na minha primeira cadeia aqui em 95, há 18 anos atrás, minha vó não falhava uma visita. Teve uma rebelião nessa cadeia em 97, que nós fizemos, eu fui transferida. Fui parar lá em Três Lagoas, falaram pra minha vó que eu tinha ido pra Ponta Porã. Ela foi com meus dois filhos menor pra Ponta Porã, aí chegou lá, falaram que eu não tava lá. Procuraram e falaram que eu tava em Três Lagoas, ela foi parar lá atrás de mim. Eduardo: Sua vó sempre foi muito amorosa então? 28


Sandra: Arram... Cynthia: Hoje em dia você tem visita? Sandra: Não. Não tenho visita. Cynthia: E seus irmãos? Sandra: Meus irmãos não vem, e eu nem quero que eles venha. Eles nunca foram assim... não que eles me recriminam, mas eles também não me apoiam. Só que eles tem a casa deles, tem os filhos deles, tem as coisas deles. Então, não é pra ficar gastando comigo. Eles não pediram pra mim errar. Pra mim traficar, pra mim roubar e vim parar dentro da cadeia. Eduardo: Mas se fosse um deles que estivesse preso, você ia visitar? Sandra: Com toda certeza. Suelen: Você falou que tem filho Sandra: Tenho Suelen: Quando filhos a senhora tem? Sandra: três. Uma é falecida e dois vivo. Cynthia: Faleceu como? Sandra: A minha filha morreu naquele campeonato na roda de tereré. Eduardo: Como era o nome dela mesmo? Sandra: Luana Priscila Suelen: E como você ficou sabendo? Sandra: Eu fiquei sabendo, tinha acabado de chegar do hospital. Eu tinha feito uma cirurgia do Apêndice, e em caso de emergência. Aí quando eu cheguei não me falaram, naquele mesmo dia que cheguei, me falaram só no outro dia. Veio minhas duas irmãs, minha irmã caçula e minha irmã mais velha. Eduardo: E sua filha visitava você? Sandra: Minha filha vinha me visitar todas as vezes que eu vinha presa, ela vinha me visitar. Eduardo: E os outros filhos? Sandra: Meu filho Alexandre de 20 anos tá preso, e o caçula mora em Bela Vista. Eduardo: Mora com quem? Sandra: Mora com a minha ex sogra, e com o pai dele. 29


Eduardo: E o pai dos seus filhos? Você não tem relação com ele? Sandra: Não, nenhuma. Nem quero também, tô de boa. Eduardo: Você foi casada? Sandra: Não, amasiada. Suelen: Porque seu filho tá preso? Sandra: tráfico, porte de arma e formação de quadrilha. Eduardo: Com você? Sandra: Não, comigo não. Inclusive quando eu tinha saído a outra vez, em 2010, eu tinha saído de condicional. Quando eu saí, minha irmã falou pra mim que ele tava desembestado em droga, se envolvendo em muita coisa. Procurei bastante meu filho lá pelo vida nova, não achava, aí um dia eu andando de carro com meu cunhado achei. Daí eu parei e conversei com ele. Falei Alexandre você andou usando doga, ele falou não mãe, eu falei tá, não tenta me enganar porque eu não sou boba. Eu conheço, larga mão, isso aí não é vida, cadeia não é vida. Você não vai viver, você vai vegetar. Entrar é fácil, agora você sair é difícil. Eduardo: E ele não te ouviu... Sandra: Não. Ele pediu pra ir pra Bela Vista, dei o dinheiro, ele não aceitou. Pedi pro meu cunhado me levar na rodoviária, porque ele tem carro, comprei a passagem, nós colocamos ele dentro do ônibus, comprei as coisas que ele queria, dei dinheiro pra ele pegar uma moto. Ele tem uma casa em Bela Vista, a minha casa mesmo, montada, tudo no meu nome. Tudo certo. Mandei ele pra lá porque ele queria se alistar lá, porque lá tem aquele quartel que eles ficam em cima do cavalo, e ficam jogando aquele ‘bagulho’ lá, não sei o nome do negócio. Cynthia: Polo Sandra: é, esse negócio aí. Lá ele se envolveu também. Ele conseguiu se alistar tudo certinho, só que não foi. Suelen: Sandra, quantas vezes você já foi presa? Sandra: puxa... aqui no presídio? Três vezes. Quatro, acho. É quatro. Suelen: e teve mais algum outro? Sandra: Várias passagens pela polícia. Desde menor. Eduardo: Com quantos anos você começou com essa vida? 30


Sandra: desde os 12 anos de idade. Eduardo: E como é que você se envolveu? Sandra: Eu era estudante, nunca aceitei a morte da minha mãe, eu nunca aceitei a morte do meu irmão. Eduardo: Ele morreu como? Sandra: Leucemia. Nunca aceitei a morte deles, e eu acho. Eu tinha quatro anos quando meu irmão, que era pra ser o caçula faleceu. Mas eu lembro a morte dele, eu lembro enterro... lembro de tudo. Eu fugia de casa quando criança. Eduardo: E com 12 anos com o que que você se envolveu? Sandra: Ah... eu comecei , era jovem, tava entrando na adolescência né? Comecei a andar com um povo assim, comecei a me enturmar com as pessoas, e assim foi indo. Suelen: Você começou a usar droga? Sandra: Não, não usava tanta droga. Eduardo: E onde você encontrava essas pessoas? Sandra: Nos clubes. Aqui no Ipê mesmo. Naquela época era época boa de discoteca. Tinha matinê...tinha discoteca naquela época. Eduardo: E mesmo com 12 anos você ia? Sandra: ia... eu fugia da minha vó, eu pulava a janela e fugia. Eduardo: E daí se envolvia em que? Em assalto? Sandra: não, não me envolvia...nessas épocas eu não me envolvia nisso. Eu passei a me envolver com droga mesmo, nesse negócio de roubo, esse assalto aí foi um grande desacerto mesmo na minha vida, foi mais por causa de um... Amor não, vamo falar uma ilusão na minha vida né? Eduardo: Que aconteceu? Sandra: porque não foi bem eu mesmo, foi o meu namorado quem fez, só que como eu estava do lado dele, e ele era fugitivo da Máxima, tinha fugido mesmo, de dentro do presídio, e a polícia ia pegar ele, pra dar tempo dele fugir eu fui e me entreguei. Eduardo: Você se arrepende de ter feito isso? Sandra: Não, não me arrependo. Porque eu gostava muito dele. Suelen: E perderam o contato? Sandra: Não, ele tá preso. 31


Eduardo: E vocês mantém contato? Por cartas? Sandra: É por cartas. Não gosto de falar no celular não, daqui de dentro da cadeia. Esse negócio não é comigo não. Não gosto mesmo não. Eduardo: Você não gosta de se envolver em coisas erradas aqui dentro? Sandra: Não, me envolver não tem essa, presa que não se envolva. Se envolve, seja de um jeito ou seja de outro envolve. Não adianta uma presa falar que é santa, porque não é. Falar que aqui dentro não tem é mentira, tem. Falar que eu nunca peguei num celular, já peguei pra falar, mas falava com minha filha, falava com alguém diferente, nunca pra ficar com, que nem passa nas televisão, negociação, essas coisera. Gosto dessas coisa não, isso aí não é pra mim. Tem várias pessoas também que usam, mas usam pra falar com família, pra saber dos filhos. Suelen: E é bem escondido o uso de celular aqui? Sandra: é bem escondido, você acha que nós vai deixar pegar mais um ano de cadeia? Nunca... Eduardo: Sandra, esse assalto, era um assalto do que? Sandra: foi de carro. Eduardo: Flagrante? Sandra: Foi flagrante. Suelen: qual era o fim do carro? Sandra: Ah sei lá, ele tava envolvido com esse pessoal desse... esse povo aí que é irmão. Irmão que pra mim irmão do cão, do capeta. Não tem irmão certo não. Eduardo: Eles se chamam de irmão? Sandra: Irmão...irmão.... é o PCC que eles falam. Ele era envolvido com esse pessoal. Eduardo: E como é que você conheceu ele? Sandra: Eu conheci ele lá na Estação Ferroviária, na antiga ferroviária, num bar. Cynthia: E quando você sair daqui? Quer mudar de vida? Sandra: Eu quero muito mudar, e eu tenho certeza que Deus vai me ajudar a mudar, porque eu perdi tudo que eu mais amo na minha vida. A única pessoa que eu tinha, meu amor mesmo, era minha vida, era minha Luana. Eu dei tudo...tudo... amo meus filhos, mas era a única menina. Pra mim ela era tudo. Era a que eu tinha mais apego. Ela falava mãezinha quero isso, eu ia e comprava. 32


Eduardo: Ela deixou um filho né? Sandra: Deixou, uma menina. A minha neta. Eduardo: Ela tá com quem? Sandra: Tá com o pai dela. Cynthia: Quando você sair daqui quer ir vê-la? Sandra: eu quero ir ver minha neta, cuidar dela, porque ela é a cara da minha filha. Eu fui no velório, eu vi minha neta, é a cara da minha filha quando ela era bebezinha. Eduardo: Você pôde sair daqui pra ir ao velório? Sandra: Pude. Fui autorizada pelo juiz, pelo bom comportamento, pela disciplina que é boa. Eduardo: Como foi a criação dos seus filhos? Foi tranquila? Sandra: Foi graças a Deus. Eduardo: Na época já tava envolvida com o crime? Sandra: Já tava envolvida. Suelen: As vezes que você ia presa, quem cuidava deles? Sandra: A minha vó. Ela que criou eles, aí quando minha vó faleceu, quem passou a cuidar foi meus irmãos. Eu nunca fui uma mãe presente, mas tudo que eu tinha, que eu adquiria... também nunca fui assim uma mãe que tirava de dentro de casa, que tirava da boca dos filhos, pra usar droga, nunca fui assim. Eu era o contrário, eu não tirava deles, eu tirava na rua, eu roubava na rua, mas eu levava pra eles. É o que minha vó falava. “ a minha fia pode ter todos os defeitos, mas ela nunca tirou uma bala dos filhos dela”. Eduardo: Você é usuária de drogas? Sandra: Sim Eduardo: E o vício nunca tomou conta de você, a ponto de roubar dentro de casa? Sandra: não, eu acho que quem controla o vício, não deixar que o vício seja, porque isso pra mim é sem vergonhice. Eu quando roubava, sempre roubei mesmo, mas só que eu roubava assim, era o 155. Era só furto, entrava dentro das lojas, mercado, essas coisa assim que eu roubava. Aí quando chegava a noite que eu queria usar droga, eu ia cuidar carro e assim ia juntando. Eduardo: Tinha alguma profissão? 33


Sandra: Doméstica. Nunca gostei de estudar, desde criança. Eduardo: E nunca teve o sonho de trabalhar em alguma coisa? Sandra: Não. Cynthia: Você parou de estudar com quantos anos? Sandra: não sei, sei que parei na sexta série, agora com quantos anos eu não sei. Sei que quando tive minha filha tava estudando ainda. Eduardo: Teve filha bem cedo né? Sandra: Tive, com 15 anos. Eduardo: Se você pudesse voltar a ter 12 anos, faria sua trajetória diferente? Sandra: Se eu pudesse sim. Suelen: Você já foi presa outras vezes, quando saiu procurou emprego? Sandra: Não, não procurei emprego. Eduardo: Voltou pra mesma vida? Sandra: Não, não voltei a roubar, voltei a traficar. Aí voltei pra cadeia de novo. Eu tinha ido pro semi-aberto, fugi, voltei a traficar. Voltei pra cá, não fui presa pelo tráfico, mas sim pela quebra. Fiquei, saí em 2010 de condicional, cumpri uma certa parte da minha condicional, depois eu fiquei doente. Não conseguia levantar, não conseguia fazer nada, eu tava traficando e não conseguia fazer nada. Não tinha força. Eu fiquei muito doente, cheguei a pesar 20 kg. EU peguei uma tuberculose, que se eu to viva hoje, é por Deus. Eu já passei muitas coisas, sou portadora do vírus HIV, há 21 anos. Eduardo: Seu filho também? Sandra: Não, quando eu engravidei do meu filho caçula, eu já sabia que era portadora e larguei de fumar, procurei fazer o tratamento, parei de tomar bebida alcólica pra seguir o tratamento, porque o meu modo de pensar é assim eu tenho um anjo dentro de mim, eu posso me matar, mas eu não podia matar aquele anjo que tava dentro de mim. Porque era uma vida, e ele não tinha culpa do meu vício, e nem tinha pedido pra vim ao mundo. Eduardo: Você se infectou por seringa? Sandra: Não, detesto, nunca gostei, eu tenho pavor de agulha. Cynthia: Você tem contato com seu filho caçula? Sandra: não 34


Cynthia: Ele nunca te procurou? Você não quer ele aqui? Sandra: Não, não é que eu não quero ele aqui, eu não quero que meus filhos venham aqui. Eduardo: Aqui dentro eles dão os remédios que você precisa? Sandra: Sim, tomo todas as medicações. Eduardo: nunca faltou? Sandra: Não, nunca faltou, quanto a isso eu não posso reclamar. Cynthia: Você tem portão 2? Sandra: Não, eu não tenho. Cynthia: E como você faz pra se virar aqui? Sandra: Faço uma faxina, lavo uma roupa, eu tenho uma aposentadoria. Um auxilio doença do governo, que quando eu tava grávida de cinco meses do meu filho caçula, eu consegui, por ser portadora e eu tá gestante e não poder trabalhar. Pra poder ir seguindo o tratamento, eu morava em Bela Vista. Suelen: E você recebe até hoje? Sandra: é, meu cartão fica aí, eles levam eu no banco, pra retirar. Eduardo: Quanto é esse auxílio? Sandra: um salário Eduardo: Você trabalha aqui dentro, como que funciona? Sandra: Você chegou, você fica um mês no corró, que é a observação, depois de trinta dias, você muda e passa pro convívio. Aí depois de três meses que você está presa, você marca uma audiência no setor de trabalho, pra pedir um serviço. Aí eles fazem uma ficha, te chamam, fazem um CTC, e colocam você na lista de espera pra ver onde que vai te encaixar. Eduardo: E porque você se interessou pelo trabalho? Sandra: Porque eu gosto, adoro mexer com água, limpar as coisas. Eduardo: Traz algum beneficio pra pena? Sandra: Traz, a remissão. Diminui. Eu tenho um ano trabalhado, já tenho quatro meses remidos. Eduardo: E a maioria das detentas se interessa?

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Sandra: Não, Elas falam que se interessa, mas não é verdade. Eu trabalho no meu setor, que é limpar a frente da cantina e a sala da Dona Leila. Eduardo: A senhora acha que o sistema reeduca? Sandra: Não, a questão não é o sistema, a questão é que aqui dentro aprende quem quiser. Eu não aprendi porque eu não quis. Não tive vergonha na minha cara mesmo, a realidade é essa. Isso aí não adianta de nada, só dá mais revolta na pessoa. Se alguém me aprisionar mais ainda, eu vou ficar mais revoltada, aí que eu não vou querer mudar mesmo. Eduardo: O que pode melhorar aqui? Sandra: Eu não sei nem te dizer o que que tem que fazer, porque várias coisas são feitas, aqui tem tanta coisa, eles traz tanto curso pras meninas fazer aí. É unha, é cabelo, é tanta coisera que tem aí. Eduardo: Mas é fácil de se inscrever? Sandra: É fácil, eles saem perguntando. Tem as meninas que trabalham no portão dois, a disciplina pede pra ir perguntando. A presa que tem que se interessar, porque eles não podem obrigar as pessoas a fazer. Trabalha, estuda, faz o curso quem quer. Procura sua melhora quem quer. Eduardo: Como é saber que você vai passar mais tantos anos aqui? Sandra: Algumas vezes dá angústia, da gente tá presa né? Eu não gosto de ficar muito tempo trancada, que nem muita gente no alojamento. O alojamento é feito pra 18, nós tamo em 34 mulher. Eduardo: E como é que é isso? Sandra: É horrível. Parece uma caixinha de abelha. Isso pra mim é uma tortura. Então prefiro mil vezes sair pra fora pra trabalhar do que ficar lá dentro. Eduardo: E os dias passam devagar? Sandra: Não, pra mim não porque eu saio pra fora. Agora ficar lá dentro, parece que nunca tá passando as horas e isso dá uma agonia muito grande na gente. Cynthia: Você é apegada a alguma religião? Sandra: Eu já fui evangélica, tô desviada da igreja, mas pra falar a real eu ainda sou evangélica. Cynthia: E você acha que a religião te ajuda a suportar aqui dentro? 36


Sandra: Sim. Porque todas as vezes que eu to agoniada, que eu to com aquela revolta, que vem um e atormenta, e dá vontade de você pegar e fazer alguma coisa, eu abaixo a cabeça e peço pra Deus, isso foi uma grande mudança na minha vida, eu aprendi a abaixar a cabeça e começar a cantar. Peço a bíblia pra alguém, só que não consigo ler, porque minhas vista embaça. Eduardo: Já se envolveu em alguma briga aqui dentro? Sandra: Já. Eduardo: Aconteceu alguma coisa séria? Sandra: Ah, quase que eu cortei o pescoço da menina. Suelen: Porque? Sandra: Porque a guria tava falando de viciado. Ah porque viciado é isso, viciado é aquilo, aí eu tava fumando uma droga lá na minha cama, isso aí foi em 2007, fui lá e grudei, não sei como porque a guria era um monstro, eu era raquítica, agora que eu engordei, eu tava bem magrinha mesmo de tanta droga. Levantei e grudei o pescoço dela, e encostei ela na parede do banheiro, aí depois que eu soltei ficou vermelho, pra mim tinha ficado só a marca do meu dedo, que ela era branca. Mas não, no outro dia vieram perguntar se eu tinha alguma coisa na mão, de tão feio que ficou o pescoço dela. Eu era o demônio em gente. Eu era terrível, rebelde mesmo, hoje em dia eu não tenho vontade de voltar a ser aquela pessoa. Suelen: Você comentou de uma rebelião em 97, como que foi? Sandra: Essa rebelião foi uma superlotação que teve naquela época, e tava demais. E umas outras coisa mais. Nós começamos a rebelião e deu certo, quebramos todinha a cadeia, colocamos uma parte no chão, a cadeia era menor, não tinha tanta coisa. Nós começamos a quebra o tijolo que tem em cima da grade, de lá nós fazia a Tereza, amarrava os lençol tipo uma corda, pra descer pra fora do pavilhão. Naquela época pagavam marmita de alumínio, nós jogamo tudo, acabamo com tudo, colocamo fogo em colchão, tudo que tinha. Cynthia: Hoje em dia não é tão lotado? Sandra: Não é? Hoje tá mais lotado ainda. Eduardo: Você tem medo de começar uma rebelião? Sandra: Nem participo. 37


Eduardo: Porque não? Sandra: Pelo simples fato de que antes tinha umas guria que falavam vamo fazer? Vamo fechar essa batida? Vamo! Começou, começou. Era todo mundo junto. Hoje em dia vamo fazer? Eu não, eu cruzo os braços e fico olhando, porque não adianta. A minoria vai fazer, e a minoria não vai. Eduardo: Você acha que Deus entende sua vida torta? Sandra: Entende minha vida torta, Deus me entende, porque já era pra mim ter morrido. Olha, eu sou portadora, bem dizer há 21 anos, já tive treze pneumonia, três pneumonia com tuberculose, e vários tiros que eu já levei. Cynthia: Já apanhou de policial? Sandra: Já. Muito. Olha minhas unhas todas estourada de tanto levar choque por baixo da unha, que eles enfiam tipo um grampinho e dão choque. Pau de arara, pendurar a gente amarrado pelado pra levar choque no bico do peito, no greto. Eduardo: Quando que foi isso? Sandra: Existe tudo essa tortura ainda com a gente Eduardo: Isso aconteceu quando? Sandra: eu tinha 19 anos, sei lá, era nova ainda. Suelen: Hoje ainda acontece? Sandra: Acontece... Muito que nem Garras, Derf, Defurv. Você acha que o povo não apanha? Lá é hora que o filho chora e a mãe não vê. Apanha bonito, é muito choque. Eles dependuram, o pau de arara que eles falava é isso aí, amarra a pessoa de cabeça pra baixo, afogamento e choque. Tanto pra homem quanto pra mulher. É tortura mesmo, é choque no bico do peito, no greto da mulher. No homem mesma coisa, pega a cabeça do pênis, naquele buraquinho, alí da choque também. Suelen: E você já levou muito choque? Sandra: Eu já levei. Pra falar, só que eu sempre tive um opinião, pode me matar, mas eu não falo. Eduardo: Era pra entregar seus companheiros? Sandra: Era. Nessa última cadeia, eu tava bem magra por causa da droga e apanhei pra caramba. Cheguei aqui quebrada. Eduardo: É pasta que você usa? 38


Sandra: É Eduardo: Como é que você aguenta tanta dor? Sandra: Não sei, é opinião. Cynthia: Sandra, nas outras vezes que você saiu, pra onde você ia? Sandra: Pra rua Cynthia: Você tem casa? Sandra: Eu tenho. Tenho casa aqui, tenho casa em Bela Vista. Cynthia: Mas sempre ia pra rua? Sandra: Arram Cynthia: Hoje em dia você não quer mais isso? Sandra: Não, não quero. Antes eu não tinha vergonha na cara, hoje em dia eu tenho vergonha. Vocês acham que eu acho bonito falar tudo que eu já fiz? Não, não acho bonito. Cynthia: O que te fez mudar? Sandra: Eu já tava nessa de mudar, bem antes da minha filha falecer, aí depois dela morrer eu fiquei mais determinada ainda. Eu não suporto mais cadeia, não tenho mais psicológico. Cynthia: É muito difícil a convivência aqui dentro? Sandra: É. Você é obrigado a conviver com pessoas que você não gosta, ainda bem que no meu alojamento não tem ninguém que eu não goste. Suelen: Você já viu alguém morrer? Sandra: Eu já. Suelen: Como foi? Sandra: Feio, horrível. Não quero ver nunca mais na minha vida. Cynthia: Mas foi aqui dentro ou lá fora? Sandra: Lá fora. Aqui dentro só vi uma colega minha que morreu de tuberculose. Foi na cela forte. Antigamente o governo não oferecia melhores condições aqui dentro. Deu uma melhoradinha bem básica. Eduardo: Como você conseguiu conquistar duas casas? Sandra: Eu trabalhava. Quando eu entrava num emprego eu parava de ficar na rua, juntava dinheiro e dava pra minha vó, ou às vezes eu roubava e dava o dinheiro pra ela. 39


Eduardo: Já fez roubo grande? De bastante dinheiro? Sandra: Teve uma vez que eu consegui, mas não lembro o valor. Suelen: O que você mais roubava? Sandra: Loja Suelen: roupa? Sandra: Roupa, jóia...entrava por cima assim dos telhados da loja. Cynthia: Como são as relações homossexuais dentro da cadeia? Você já viu? Sandra: Eu já vi, e já tive. Já fui casada dentro da cadeia em 96, na minha primeira cadeia. Eduardo: Como foi essa experiência? Sandra: Sei lá, eu sei que lembro, agora você vai fazer eu dar risada, porque eu queria jogar uma jarra de água quente nela. Quando eu vim pra cá eu trabalhava né, e naquela época o corró era no alojamento 8, não era lá no 5. E eu já morava no 7 e trabalhava na lojinha, que tinha uma porta de correr voltada pra rua, onde as pessoas vinham fazer pedido pra presas fazerem e vender. Daí pediram pra esquentar uma água pra fazer um café, aí esquentei no rabo quente, aí chamei a menina. Daí ela falou, nossa que menina linda, porque eu já fui muito bonita na minha vida. Já aprontei muito. Daí eu falei que ia jogar a garrafa de água quente nela, depois disso comecei a ter ideia com ela, conversar, daí rolou um beijo, e nós tivemos relação. Eduardo: Quanto tempo vocês ficaram juntas? Sandra: Muito tempo, só que eu larguei dela porque ela era muito Exú, grudava muito no meu pé, e eu sempre fui assim gosto de brincar, conversar, ter amizade. Nunca gostei de ninguém querer me prender. Aí um dia ela ficou me enchendo, aí eu peguei e cortei a mão dela. Eu revi ela na rua, ela foi me procurar, falei pra ela sumir da minha vida. Eduardo: Você sempre teve relações conturbadas? Sandra: Eu já tive, sempre fui assim. Era sem vergonha. Eduardo: Você esperava que ia te ruma relação com uma mulher ou foi uma surpresa? Sandra: Não, não foi uma surpresa porque eu nunca tive esse negócio de preconceito. Nem mesmo quando criança. Cynthia: Mas foi só ela? Ou teve mais em outras cadeias? 40


Sandra: Na cadeia foi só ela, lá fora já tive várias mulheres. Tô de boa dessas mulher de cadeia. Meu ex marido falava cadê a Sandra, aí tinha uma colega minha que chamava Tiana, quando sumia as duas, era porque tava junto. Nós tinha um caso. Cynthia: E seu marido sabia? Sandra: Sabia, meu ex marido não ligava, só queria saber de brigar. Eduardo: Sandra, você acha que se sua mãe não tivesse falecido tão cedo, sua vida teria sido diferente? Sandra: Eu acho que sim. Cynthia: Você acha que isso te fez começar na vida louca, como você diz? Sandra: Revolta pela morte da minha mãe. Eu nunca aceitei ninguém dar conselho pra mim. Cynthia: Nem sua vó? Sandra: Nem minha vó, eu fugia da minha vó. A Minha vó ia me buscar na rua. Nunca apanhei da minha vó, nunca tive maus-tratos pra falar, a minha vó sempre criou nós, com carinho, amor, o que ela dava pra um, ela dava pra outro. Eduardo: Vocês eram pobres? Sandra: Sim Eduardo: A maioria das pessoas aqui não recebe visita, você acha certo? Sandra: É legal você receber visita, dá um incentivo bom. Tá aí uma iniciativa boa pra uma pessoa mudar, muitas vezes a pessoa se revolta mais ainda aqui dentro pelo fato de se sentir abandonada. Cynthia: Você acha que no presídio masculino tem mais visita? Sandra: Sim. Eduardo: Porque? Sandra: Não sei. Eduardo: As mulheres são mais abandonadas né? Sandra: Sim Suelen: Você visitaria seu filho se pudesse? Sandra: Com toda certeza, eu ia até o fim do mundo atrás do meu filho. Se souber que ele tá ali, e eu tiver condições de ver meu filho eu vou. Cynthia: Como você ficou sabendo da prisão dele? Já tava aqui? 41


Sandra: Já. Eu telefonei pra falar com minha filha, e ela me falou. Cynthia: Sabe quantos anos ele tem de pena? Sandra: Ele sai agora em março, abril. Ele já tá saindo. Cynthia: O que você acha de trabalhar? Sandra: Me deixa bem, meu psicológico tem que ficar pra fora. É aquele ditado, mente vazia, oficina do diabo, e lá dentro fica aquele zunzunzun. Suelen: E os cuidados médicos. Como é aqui dentro? Sandra: Vem um médico especialista, todo mês, o infectologista atende que é portador do vírus, e doenças infectocontagiosas. Eduardo: Tem biblioteca aqui? Sandra: Tem. Suelen: Você tem advogado? Sandra: Tem, a dona da droga paga advogado. Suelen: Então ela dá assistência pra você? Sandra: Só com o advogado. No começo da cadeia ela dava assistência, mas só no começo. Se eu não tivesse esse dinheirinho e não me virasse, e as pessoas aqui dentro da cadeia não me ajudassem. Muitas vezes eu peço mesmo, sou cara de pau. Suelen: E a comida aqui dentro? Sandra: A comida é até razoável, melhorou muito. Cynthia: Porque essa pessoa te ajuda com advogado? Sandra: Com medo de eu arrastar ela pra dentro da cadeia. Coisa que eu nunca fiz. Por isso que sou tudo estourada desse jeito. Suelen: E eles cobram depois? Sandra: se eles cobrarem eu mato aquela velha desgraçada. Aí eu volto com gosto pra cadeia. Suelen: O que te dá força pra esperar esses anos? Sandra: A minha neta. Eduardo: Obrigada Sandra. Sandra: Obrigada também, tava meio agoniada. Gostei! 8.1.2 Sirlei 42


Eduardo: Sirlei, porque você está presa? Sirlei: Eu tenho câncer, e para fazer meu tratamento eu precisava de dinheiro, foi quando me pediram pra transportar uma mala há 20 e poucos dias atrás de Dourados para Campo Grande. Eu ia ganhar mil real. Eu aceitei porque eu tava sem nenhum dinheiro pra nada mesmo, e sentindo muita dor. Meu câncer de mamas, ele dói demais. Então como eu tinha que custodiar o remédio e não tinha condição, aí eu fiz isso. Eduardo: Entendi Sirlei: Aí na rodoviária que me prenderam Eduardo: Você mora aonde? Sirlei: Eu moro em Sinop, não conheço ninguém daqui. Não tenho ninguém. Eduardo: Ah, então não é daqui... Cynthia: Você conseguiu falar com seus familiares? Sirlei: Tem uma filha minha, mas é difícil pra ela vim, até porque ela tem minha neta pequena, mas não tem condição de vim. Cynthia: Você entrou com defensor? Sirlei: Entrei, mas até agora nada né? Eu pedi pra ele ver se precisa alguém interceder pra poder fazer o exame né? A mamografia de volta pra anexar ao processo, pro juiz me dar domiciliar. Eduardo: E você sabe quanto tempo vai ficar presa? Sirlei: Eu não tenho nada, o juiz ainda não me chamou. Eduardo: E a senhora tinha alguma profissão? Sirlei: Eu trabalhava como diarista né? Doméstica. Eduardo: Lá em Sinop? Sirlei: Sim, Sinop. Eduardo: E é casada...solteira... Sirlei: Não eu sou sozinha, eu criei meus filhos sozinha. Eu tenho quatro filhos. Um é pastor da igreja Universal, ele mora em Curitiba. E a mais velha mora em Cascavel no Paraná e é evangélica. E lá eu só tenho uma filha e um filho que eles moram juntos, ele tem 16 anos e ela tem 20. Eduardo: E nenhum desses quatro filhos podem vir pra cá? Sirlei: Não tem como eles vim, eles trabalha e é difícil pra vim né? 43


Cynthia: E nenhum deles podia te ajudar Dona Sirlei? Sirlei: Não tem nem como eu me comunicar com eles aqui. Eduardo: Mas aí quando a senhora precisava de dinheiro, eles não tinham como ajudar? Sirlei: Não, eu trabalhava, sempre eu trabalhei. Eu criei eles sozinho e sempre ajudei eles, nunca foi possível eu chegar neles e pedir alguma coisa. Eduardo: Nem o pastor? Sirlei: Então, pra mim é difícil até sobre a minha doença comentar com eles. Eduardo: Eles sabem que a senhora tá doente? Sirlei: Sabe... minha filha sabe, mas é tipo assim, eu prefiro nem comentar muito com eles. Suelen: A senhora já passou por algum tratamento no SUS? Sirlei: Sim, eu já fiz a mamografia, a biópsia. Só que a cada seis meses, era pra refazer os exames de volta, e eu não fiz mais entendeu? Já tem seis anos que eu descobri o câncer, então ele tá enraizado e eu não posso amputar os peitos. Porque ele é daquele maligno, que se amputar meu peito, ele estoura em outro lugar, e é nos dois.Ele tá enraizado, tipo uma couve flor, na mamografia mostra bem isso. Eduardo: A senhora precisava de dinheiro para fazer a quimioterapia? Sirlei: É, pra mim fazer a quimioterapia. E pra fazer os exames mais rápidos, porque demora muito pelo Sus. E eu tenho medo de esperar (Choro) porque a gente já tem poucos dias né? Eduardo: Quantos anos a senhora tem? Sirlei: Eu tenho 41, e se deus permitir no final do ano faço 42. Eduardo: Como foi a vida de diarista, e criar quatro filhos sozinha? Sirlei: Eu tinha bar em Nova Bandeirantes, no Mato Grosso, aí eu criei eles construí meu bar, trabalhei. E aí dei uma educação pra eles, assim... eles eram preferência na minha vida. Eu eduquei, tanto que tão tudo estudado, bem criado. E agora aconteceu de eu ter essa doença, mas depois de eu ter criado meus filhos, já tava morando só eu e Deus. Eduardo: E a senhora nunca tinha se envolvido com coisas irregulares? Sirlei: Nunca, na minha vida pensei em fazer isso. 44


Suelen: E a senhora estudou? Sirlei: Eu estudei até o 3º ano do 2º grau. Eduardo: e não pode continuar o estudo? Sirlei: eu não pude, porque eu tive filho muito nova. Eduardo: Com quantos anos? Sirlei: Com 16 anos eu tive a primeira filha, foi cesárea, todos os quatro filhos meu foi cesáres. Eduardo: E o pai? Sirlei: O pai dos meus filhos mora em Cascavel no Paraná. Eduardo: E vocês separaram? Como foi? Sirlei: Tem 18 anos que eu sou separada. Eu vivi onze anos com ele. Eduardo: E porque que deu errado? Sirlei: Ele era alcólatra. Eduardo: Ele batia nos filhos? Sirlei: Batia em mim mais, os filhos eram pequenos né? Aí eu larguei dele e vim embora. Pra Mato Grosso. Eduardo: Mas eram agressões sérias? Sirlei: Eram...não era fácil, e eu trabalhava. Toda a vida eu trabalhava com carteira assinada. Meu sogro me aconselhava pra mim largar dele. Cynthia: A senhora já tentou tratamento aqui dentro da prisão? Sirlei: Eu tenho médico né? Só que tá demorando muito, e tem noites que eu não durmo. Eu não dou conta de torcer roupa, torcer pano, e aqui eu não tenho nada. Eu tenho que trabalhar pras meninas que estão presas pra mim ganhar algum dinheiro, porque não tem nada. Papel higiênico, sabonete essas coisas assim que a gente necessita. Roupa, calçado eu não tenho nada, então eu tenho que trabalhar pra elas. Eduardo: E o presídio não oferece nada? Sirlei: até agora eu não recebi nada. Nem coberta, eu ganhei uma, aí tive que lavar lá, daí fico dormindo sem coberta. E eu durmo no chão, ainda não tenho jéga, sem travesseiro. Nesses dias de frio doía muito meus peitos, que dói muito daí, é pior ainda a dor. E a febre...a febre dá 24 horas e demora a passar, porque todo dia de febrão alta eu tomo o mesmo remédio. E aí vai indo e não faz mais efeito. O corpo acostuma. 45


Eduardo: E como foi chegar no presídio, você que nunca tinha sido presa? Sirlei: pra mim foi uma experiência horrível, não desejo nem pra um cachorro. A humilhação, as pessoas de muito baixo nível, pessoas que não entende ninguém né? E eu sempre fui humilde, trabalhadeira. Eu vim de uma família pobre, desde criança trabalhando. Então, é difícil, mas nunca perdi meus valores. Eu ensinei o que tive, que é a educação, o respeito e a educação pelo ser humano. Eduardo: E a vida aqui dentro é difícil? Sirlei: É muito difícil. Suelen: que que a senhora acha mais difícil? Sirlei: tudo, minha filha, porque ninguém quer ser preso. Principalmente com a doença, porque se você não é doente, você passa, mas se você é doente e com a dor ter que fazer é muito triste. Eduardo: Eu quero entender essa questão do papel higiênico e sabonete. O presídio não dá isso e você tem que conseguir de outra forma? Sirlei: é... a gente faz entendeu? Eu já pedi, mas não tava tendo, entendeu? E com as presas que tem visita, vem portão 2 pra elas na quarta-feira, aí você faz serviço lá dentro você ganha um do um, outro do outro. Cynthia: E cada um tem o seu lá dentro? Sirlei: Cada um tem o seu, desde uma toalha de banho...tudo, tudo, tudo. Sabonete, papel higiênico, creme dental. Tudo...shampoo, condicionador. Eduardo: Alguém aqui tentou arrumar briga com a senhora? Sirlei: Não... graças a deus não. Todo mundo me respeita, e eu também respeito todo mundo. Quando alguém altera comigo, eu fico quieta, porque eu não conheço nada daqui. As leis né? Então eu fico no meu cantinho. Eduardo: e nesse um mês, quando a senhora acorda aqui dentro, já parece que você tá no lugar onde mora? Dá essa sensação de acostumar? Sirlei: não, nunca deu a sensação de acostumar nesse lugar...nunca eu acordo já em pânico, eu penso que to na minha casa, e quando acordo tô nesse lugar, é horrível. Eduardo: ainda sem receber visita... Sirlei: Ainda sem receber ninguém né? Suelen: e a senhora sente falta? 46


Sirlei: (Choro)... Muita... meus filhos que eu criei né? Sofri muito pra criar eles. Eduardo: você acha que eles tão muito preocupados com a senhora? Sirlei: não sei, deve tá né? Minha neta... tenho duas neta. Uma vai fazer cinco anos agora no dia 12 de setembro. E a outra tem três anos. Então, pra mim é muita triste, porque eu sempre fui muito mãe. Eu sempre fui muito apegada né? Eduardo: e não tem como a senhora se comunicar com eles nem por carta? Sirlei: eu não tenho o endereço certo de cabeça, então fica difícil pra mim. Mas a psico já entrou em contato com minha filha pra mim, porque o único número que eu lembrava era o dela, porque meu celular ficou preso né? E lá que eu tenho os contatos. E aí eu não tinha, até que eu fiquei tentando, e Deus colocou na minha mente. Mas eu queria me comunicar mesmo era com meu filho pastor em Curitiba. Ele é da Igreja Universal, porque ele pode me dar uma força, porque ele é solteiro, e ele não tem criança. Eduardo: e sua filha, que a senhora tem o número, não pode falar com ele? Sirlei: Eu não sei, porque não entro em contato com ela. Tá difícil. Cynthia: Você pediu pra psicóloga ligar? Sirlei: Não, acho que é a psico que fala ali na assistência, que acho que é social né... eu pedi uma vez, e deixou o número pra minha filha ligar quando quiser falar comigo. Então a gente tem que esperar. Tudo aqui a gente tem que esperar. Às vezes minha filha liga e eles não podem ir lá me chamar. Daí fica pra outro dia, e vai indo...passando o tempo né? Suelen: E a angustia? Sirlei: é horrível, eu só me apego com Deus, estudando a bíblia e orando...só. Eduardo: quando a senhora aceitou fazer esse transporte, a senhora ficou com medo disso acontecer? Sirlei: Na hora eu não fiquei com medo porque eu pensei na minha doença. Eu precisava urgente né? E como eu tava sofrendo muito, eu não fiquei com medo, mas eu não tinha nem visto o que que era, porque eu não conhecia. E eu falei: Mas não tem problema eu levar essa mala?...não a senhora leva, lá na rodoviária em Cuiabá, eu ligo pra uma pessoa e ela vai lá buscar pra senhora, e já paga a senhora. Eu falei tá bom. E eu coloquei dentro do ônibus e vim né? Eduardo: Veio de Sinop pra Campo Grande? 47


Sirlei: Não, eu vinha vindo lá do Paraná pra Dourados, e embarquei pra vim, desembarquei e peguei outro ônibus que ia pra Cuiabá. E eu já tava vindo do meu pai, entendeu? Porque lá eu peguei pra mim saber... Lá no Laboratório Álvaro como que eram os exames certinho, pra mim poder pagar né? Então eu já vinha vindo, pra mim já conseguir o dinheiro e voltar pra mim poder pagar meus exames. Lá em Cascavel tem o laboratório Álvaro, e é rápido, pra fazer todos os exames de novo e começar a quimioterapia. Suelen: E como foi a abordagem? Sirlei: eu tava entrando no ônibus pra ir pra cuiaba. Eu já tinha embarcado, a mala tava lá embaixo no bagageiro, e a policia me chamou pra mim descer, e perguntou de quem era a mala. Eu falei é minha... eu não ia esconder né, porque que eu ia esconder? Aí ele disse então a senhora tá presa. Eduardo: sabe que droga que era que tava lá dentro? Sirlei: era maconha. Ele me falou que era maconha. Eduardo: Era bastante? Sirlei: Era 16 kilos, eles pesaram lá na DENAR Eduardo: Como foi a infância da senhora? Trabalhou desde criança? Sirlei: Desde criança, eu trabalhei muito com meu pai na boia fria, pra ajudar meus irmãos. A gente era em bastante irmão né? E aí trabalhei...sempre trabalhei e estudei. Eduardo: Mas tinha problema com a família? Sirlei: não... Graças a Deus. Eduardo: E seus pais? Sirlei: Eles são separados. Mas a minha falecida madrasta tratou eu como uma filha. Então eu não tenho nada do que reclamar. Cynthia: Seu pai não tinha condições de te ajudar? Sirlei: meu pai não...meu pai é aposentado né? Coitado, já tá bem velhinho já. E ele nem sabe que eu tenho câncer, porque eu não quero fazer ele sofrer. Não tenho coragem de contar pra ele. Cynthia: Sua família não sabe então? Sirlei: Só minhas filhas e meus filhos que sabe. Suelen: E essa pessoa que entregou a mal pra senhora, como foi o contato? 48


Sirlei: Não, eu vi ela lá na rodoviária em Dourados. Assim...foi de repente, ela chegou a mim e começou a conversar comigo né? E aí ela pra eu levar uma mala pra ela pra Cuiabá, eu falei que levava e perguntei o que tinha. Ela falou que era droga, mas que eu não precisava abrir, era só levar e entregar em Cuiabá. Mas eu não conhecia essa mulher. Eduardo: Você aceitou na loucura né? Sirlei: Sim, não é nem tanto na loucura, é na precisão mesmo de ganhar esse dinheiro. Ela falou, eu dou mil real pra senhora, se a senhora levar essa mala, e foi o que eu fiz. Não pensei duas vezes né? Eduardo: Qual é a renda mensal da senhora como diarista? Sirlei: Como diarista toda semana eu ganho 60, 70, que eu faço duas vezes, três vezes. É 50 real cada diária lá em Sinop. Aí eu tenho fixo assim duas, três vezes na semana. Aí com esse dinheiro vou pagando aluguel, água, luz, telefone. Mantendo a comida, custodiando os remédios daqui e dali, e vai indo. É assim a minha vida. Eduardo: Mora sozinha né? Sirlei: Moro sozinha. Suelen: a senhora falou que tá tomando remédio pra febre. Eles que dão? Sirlei: Quando tem eles dão, quando não tem fica passando febre mesmo, toma um banho e espera passar a febre. Eduardo: A senhora já imaginou que um dia seria presa? Sirlei: Eu nunca imaginei... nunca, nem passava pela minha cabeça, ainda mais dessa maneira né. Cynthia: O médico vem uma vez por semana? Sirlei: Eu nem sei quantas vezes ele vem, eu sei que eu fui atendida uma vez. Cynthia: Você pede pra ser atendida? Sirlei: A gente marca audiência com um médico né? Clínico Geral, aí eles chamam a gente, mas ele nem examina. Ele só pergunta. Ele pediu pra eu fazer mamografia, mas tá demorando muito. Quanto mais rápido ele fizesse pra mim, seria melhor né? Porque aí eu já tomava os remédios certos, e aí ia anexar ao processo, e daí também dava pra mim entregar logo pra ir embora né? Eduardo: Você acha que sua doença pode colaborar para sua sentença ser mais leve? 49


Sirlei: Eu tenho esperança em Deus que sim, né? Porque que nem as meninas lá falam, foi a primeira vez que caí, então tudo ajuda. Tomara que Deus abençoes e tudo dê certo, de eu ir embora. Eduardo: A senhora fez alguma amiga aqui dentro? Sirlei: Eu tenho as meninas tudinho que mora lá na cela, todas são minhas amigas. Uma ajuda a outra né? Suelen: arram...Quantas meninas tem na cela? Sirlei: Ai, acho que...nem sei quanto que tem. Acho que tem umas 30, acho né? Cynthia: Existe cumplicidade dentro das celas? Sirlei: Existe, porque todas elas sabem que eu sou doente. Se vê minha febre forte, uma vai e empresta o remédio da outra, e dá pra mim. Quando é meu dia de fazer faxina, que nem eu tava fazendo, eu não tenho muita força, porque dói muito meus nervos do braço e da mão. Aí eu não tenho força pra torcer o pano, elas me ajudam, lavo as roupas das outras, faço cafezinho pra outra menina. Eduardo: Você esperava que no presídio existisse isso? Essa amizade...ajuda Sirlei: Eu não esperava não, aliás eu não tinha noção de nada né? Suelen: Antes de ser presa, o que achava do presídio? Sirlei: Eu nunca parei pra pensar sobre isso, porque eu nunca pensava que isso ia acontecer. Eduardo: Entendi Sirlei: É mais uma lição que Deus dá pra gente né? Suelen: A senhora tem alguma religião? Sirlei: Eu sou evangélica. Nunca fui batizada, mas com cristo sou evangélica. Eduardo: Tem alguma igreja que a senhora gosta mais? Sirlei: Eu gosto da Deus é amor, mas meu filho é pastor da Universal. Eduardo: E lá em Sinop a senhora era amiga do pessoal da igreja? Sirlei: Sim Eduardo: Na sua opinião se eles pudessem te ajudariam? Sirlei: Ah...com certeza né? Se eu entrasse em contato. Cynthia: Como foi seu primeiro dia aqui dentro?

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Sirlei: Foi horrível, porque até as pessoas conhecerem a gente, aceitar a gente. Muitas pessoas despreza, falta educação. Só que a gente não conhece, não sabe. Teve um momento ali que eu pedi pra Deus tirar minha vida, porque não tinha lugar pra mim aqui dentro. Aí depois com o passar dos dias, foi vendo a maneira que eu sou, conversando comigo foi normalizando né? Eduardo: O que você acha das outras meninas que moraram na rua, com vícios? Sirlei: Cada uma tem um plano, cada uma é diferente da outra né. Cada uma tem uma maneira de agir e de pensar. Tem uma humildes, tem outra que já pensam o contrário, tem outras que já é mais duras né? Eduardo: E como é ficar dentro de uma cela tantas horas seguidas, sem ver o sol? Sirlei: É horrível, é tipo assim que você... é o fundo do poço. A melhor afirmativa é o fundo do poço. Porque aquele pedacinho pra você conviver com 30, 40 presas, cada uma de uma maneira diferentes. Às vezes falam tudo ao mesmo tempo, e você não entende nada, aquele griteiro. Tem horas assim, que você não sabe aonde vai, aonde se enfia de tão apavorada que você fica. Isso que quando dá uma a briga, algum desentendimento aí que as coisas pioram mais. Não é fácil. Eduardo: e a alimentação? Sirlei: A alimentação até que é boa, não é ruim, dá pra gente comer, só que as vezes vem pouco, e a gente...que nem... as vezes tá com dor e não pode comer, daí tem que jogar fora, lavar a marmita pra guardar, pra eles levarem embora. Quando chega de madrugada, ou mais tarde, você tá com fome, com vontade de comer uma bolacha, aí você não tem dinheiro, tem que ver os outros comendo, e não te oferece. Você tem que ficar quietinho, na sua. Eduardo: Os funcionários tratam vocês com respeito? Sirlei: Tratam a gente muito bem, os funcionários daqui. Cynthia: A senhora já presenciou alguma situação de briga? Sirlei: Já. Discussãozinha, eu fiquei pavorosa. Suelen: E os cuidados básicos? Sirlei: Eu tenho o que trouxe comigo. Quando menstruei pela primeira vez, uma ou outra me ajudava com absorvente, entendeu? Eu pedia, falava que lavava uma roupa em troca, aí elas me forneciam. 51


Eduardo: Então, o presídio não tem pra dar? Sirlei: Não tem, por enquanto eu não ganhei nada. E eu necessito de papel higiênico, sabonete, pasta de dente, shampoo, prestobarba, porque a mulher não vai ficar sem higiene né? É difícil. Um creme das axilas que é necessário pro ser humano. Cynthia: Não tem nenhum kit? Sirlei: Diz que dão, mas eu não seu. Até agora não me deram. Eu nunca recebi, e não vi ninguém receber, desde que eu tô aqui. Suelen: Depois da senhora, chegou mais gente? Sirlei: Chegou...todo dia chega gente. Eduardo: Supondo que a senhora vai passar mais um tempo aqui, qual o sentimento que te causa? Sirlei: Pavor, quando eu ouço as pessoas dizer que tem quatro anos, cinco anos aqui, aquilo me dá um aperto no coração assim. Desespero, me dá desespero. Porque eu não quero que Deus me deixe nesse lugar um ano não. Eu peço todos os dias da minha vida, todas as horas, que até o fim do ano Deus me tire desse lugar. Que eu não queria... Entreguei nas mãos de Deus. Eduardo: A senhora é bem unida com seus filhos que moram em Sinop? Sirlei: Sou. Suelen: Do que tem mais saudade? Sirlei: Dos meus filhos e da minha neta. De poder ter uma cama decente. Suelen: a Senhora acha que foi ingenuidade vir presa? Sirlei: Eu acho que foi um pouco assim, foi um ato sem pensar e de desespero. Tentando fazer o melhor, eu piorei muito as coisas. Tô muito arrependida. Eduardo: Você acha justo ter tanta gente presa aqui por essa questão das drogas? Sirlei: Eu digo uma coisa pra você, no meu caso e no caso de outras, não todas é um ato de desespero sim, agora tem gente que sai a primeira, a segunda, a terceira e voltas 500 vezes. Pra mim já não é desespero, pra mim é já é costume ou sem vergonhice, porque se você errar uma vez tá certo, você é humano e errou. Mas permanecer no erro, de novo voltar nesse lugar que você viu que é o verdadeiro inferno. Daí não tem jeito de dizer que é inocente, não tem como, não tem justificativa. Cynthia: A senhora recebeu algum tipo de apoio psicológico? 52


Sirlei: Não, até agora ninguém conversou comigo. Suelen: E lá fora a senhora tem algum namorado? Sirlei: Não Eduardo: Desde que separou a senhora tá sozinha? Sirlei: Não, eu tive um ex marido, que foi embora de Sinop. Cynthia: Acredita que o presídio reeduca? Sirlei: Eu acho que não. Não reeducada nada não, você no meio de 30,40 presas, cada uma com um jeito diferente. Ali quem tem dinheiro, quem tem condição pode, quem não tem não pode. Então, não pe educar, é uma maneira mais de sacrificar. Eduardo: Que que vai mudar dentro da senhora depois dessa experiência? Sirlei: Vai mudar minha experiência de vida né? Pra mim foi uma lição. É muito mais fácil você sair batendo de porta em porta pedindo serviço do que cair numa besteira dessa. E continuar, se Deus me deu essa cruz pra mim ficar com essa doença, procurar ficar de outras maneiras né? Eduardo: E o que a senhora viu aqui dentro vai melhorar alguma coisa na vida da senhora? Sirlei: Com certeza, aqui você aprende a dar valor em um simples papel. Tenho que ir terminar meu serviço, e fazer o café das meninas que chegam da escola. Eu trabalho pra três, limpo marmita a jéga, faço café. Eduardo: Quanto a senhora acha que gasta uma mulher aqui dentro? Sirlei: Uns 350, 400 reais. Eduardo: Quase um salário mínimo Sirlei: É verdade, quase um salário mínimo. E eu que não tenho isso, tenho que ficar dependendo de favor em tudo. Cynthia: A senhora já procurou algum curso? Quer fazer? Sirlei: Eu quero fazer, mas diz que enquanto a gente não faz 30 dias não pode fazer nada. Eu quero trabalhar pra mim ocupar a mente, e pra ver se eu ganhava alguma rendinha pra poder me manter ali dentro, e aprender alguma profissão. Eduardo: Muito Obrigado, Dona Sirlei. Boa Sorte.

8.1.3 Elda 53


Cynthia: Elda porque você está aqui? Elda: Eu estou aqui porque eu estou cumprindo um crime, um homicídio 121, artigo 121. Eu era vigilante, eu matei um policial porque ele tentou me estuprar na época que eu trabalhava para a Fortesul, é a Protege e a tal da GSP, que eram três associações em uma só, ainda estavam se levantando, mas eram muito famosas. Eu tinha quase seis anos de serviço; sou aposentada pelo serviço, por problemas psicológicos, não que... mas, graças a Deus estou bem. Eduardo: E quando foi isso? Faz tempo? Elda: Em 2005. Eduardo: 2005; e sua pena é de quantos anos? Elda: É de 12 anos, só que eu já tinha descido para o semiaberto, mas até lá então, eu me envolvi em uma briga, que não tinha nada a ver comigo, onde eu puxei uma arma branca para outra interna e deu esse tal de desacato também; subi para cá de novo na hipótese de ficar somente um ano, mas conforme minha revolta foi aumentando por eu estar aqui e também por causa de outras internas que não tinham nada a ver, eu fui só desacatando as autoridades né?! Achando que era o rei da cocada branca igual o pessoal fala, e fui só ficando, ficando, ficando... E agora que Deus mudou minha vida. Eduardo: Faz quanto tempo que você está mais calma? Elda: Faz sete meses que eu estou calma, que eu estou de boa, porque aqui dentro é um lugar onde mexe muito com o psicológico da gente, não muito as agentes que são umas ótimas pessoas, mas os internos, um quer ser melhor que o outro, quer pagar de bandido, um linguajar assim: ai bata na minha cara, que não sei o que, sabe?! Então tem muitas coisas que nem dá para falar, para não prejudicar a mim mesma. Suelen: Você está aqui desde 2005? Elda: Não, em 2008 foi meu julgamento, no tribunal de justiça aqui de campo grande. Eduardo: E você se apegou a alguma religião, por isso que você falou que Deus mudou a sua vida? Elda: É, eu ia para a universal e não sentia nada, se bem que eu cresci na evangélica, me sentia muito bem na evangélica, mas até então quando eu me desviei, parece que veio uma maldição na minha vida né?! A própria bíblia fala, que aquele que se afasta de 54


Deus, recai sobre ele uma maldição, então eu creio que a minha vida foi amaldiçoada. Então conforme eu voltei para a igreja católica, que é uma igreja que eu nunca conheci na vida, eu me apeguei muito com Deus e a partir daquele momento começou a mudar minha vida, eu comecei a ser uma nova pessoa, da água para o vinho, que foi uma transformação assim que os próprios agentes não acreditavam. Eu fiquei super feliz com isso, principalmente com a confiança deles, e das próprias internas que residem aqui nesse presídio. Eduardo: Você começou a ir às missas aqui da prisão né?! Tem missas aqui? Elda: Têm três tipos de missas, a missão das grades, atrás das grades, a católica e a universal, essas são as que eu conheço. Cynthia: Mas foi alguém que chegou e te apresentou à católica? Ou você que procurou? Elda: Do meu alojamento teve uma senhora que falou: você não quer ir para a católica, ai eu falei eu vou para eu espairecer um pouco a minha mente, eu fui em questão de espairecer minha mente, sendo que Deus não quer isso, Deus quer que você vá de corpo, alma e coração né?! Livre e espontânea vontade. Mas naquele momento eu fui para refletir a minha mente, sai um pouco do alojamento, porque são muita gente no nosso alojamento. Ai a partir daquele momento em diante, Deus, fui indo, fui indo, fui gostando, sentindo uma alegria dentro do meu coração, uma coisa, eu só vivia rindo, o pessoal até perguntava se eu estava usando droga alguma coisa, eu só vivia rindo, e falava: gente eu não tenho explicando para o que eu estou sentindo... Gosto de mulheres entendeu?! Então eu tive uma namoradinha que me ajudou mais ainda, e eu estou super feliz. Cynthia: Teve ou tem? Elda: Eu tenho, nome dela é Vanessa, mora lá no alojamento 8 Suelen: Se conheceram aqui? Elda: Eu a conheci aqui. Eduardo: E a pessoal aqui aceita bem? As internas? Não enchem muito o saco? Elda: Isso aqui vai ser gravado? Para outro? Todos: não, não. Elda: Não, tipo assim, as internas daqui, se chega gente de fora elas já procuram saber o que foi feito lá fora, o que se procedia, dependendo da pessoa é cobrada muita fita 55


sabe, tipo assim briga sabe?! Xunxada que eles falam sabe?! Furar... Então aqui é o pior lugar que tem, se alguém falar que aqui é bom, as agentes falarem que é bom, falar para vocês eu que estou lá dentro, eu mesma fui vítima de um espancamento, por causa de cachaça, porque, faz tempo isso, me embriagaram, e como eu recebia muito dinheiro, a diretora sempre deixou autorizado muito dinheiro para mim, e me roubaram, e foi na hora que eu já fiquei nervosa, eu nem tinha Deus, eu nem morava nesse alojamento, eu morava no 1, onde é o alojamento de pessoas problemáticas né?! Ai eu vi que eu não tenho problema nenhum, porque a partir do momento que Deus muda a vida da gente né?! Ai eu falei não, não quero ficar nesse alojamento, ai foi quando eu briguei, falei que me roubaram, não consegui recuperar meu dinheiro, porque todo mês eu tenho, mas eu uma coisa eu recuperei, a minha qualidade, a minha vontade de viver entendeu?! Sai viva, inclusive isso aqui é de um corte, esses negócios de... Não tem aquele apontador, que eles queimam assim. Cynthia: Aquele de gilete? Elda: Isso para quem sabe brigar na rua, porque eu não sei brigar na rua, como eu era vigilante eu só mexia com arma, então quando vinha para cima eu já dava... Então esse negócio de falar vamos brigar de soco, oh sinto muito, não vou nem com mulher, nem com homem, eu apanha mesmo, mas é isso ai. Eduardo: E como é que foi? O que aconteceu no crime que você cometeu? Tentaram te estuprar? Um policial é isso? Elda: Tentaram não, me estuprou senhor, porque não época assim... Eu gostava de mulher né, eu trabalhava para um dos coronéis, fiz a minha aula na “cetar”, o curso de tiro, e ele mexia com negócio de arma, era corrupto entendeu?! E eu nem sabia né?! Então às vezes ele me dava carona, e falava: mas você não queria ficar comigo? E eu falava assim: eu não gosto de homem moço, e ele falava: mas você vai ficar nessa até quando? E eu falava: não, mas eu não quero saber de homem, não quero... Ai teve um dia que eu estava indo, eu estava de folga, eu em um domingo, dia 26 de 2005, até hoje não esqueço a data em que ele morreu, às 18 horas e 10 minutos, eu trabalhava na saída de são Paulo, na Sotef, ai tinha a Blindex né?! Ai tinha a Sotef, é onde entra para aquele mato, e bem lá na frente tem uma guarita e atrás tem uma guarita que é onde entra para o casarão, que é onde faz poste de iluminação, era ali que eu ficava, 56


eram dois guardas, eu chegava as 18 e o outro guarda chegava às 22 horas, então ele me levou, em questão de ele me levar, como ele estava alcoolizado, que eu percebi pelo cheiro, eu falei: Anderson esse não é o caminho; um homem bonito sabe?! Não merecia nem ter morrido, ele só morreu pelo desaforo, entendeu, que ele fez comigo, e por ter passado soro para mim, só que na mesma hora em que eu descobri, eu já fui atrás dos médicos, já fiz meu tratamento certinho, e os médicos falaram que se até novembro desse ano, para honra e glória de meu Deus e salvador Jesus, se até novembro não aparecer eles vão suspender meus remédios. Então tem coisas as que às vezes as pessoas falam assim: ah matou, matou, mas a gente sempre tem um motivo, ninguém nunca mata ninguém de graça entendeu?! uma família maravilhosa, classe média eu sou, minha família é tudo policial, sempre vem me ver, e eu tinha altas fotos moço, meu sonho era ser da CIGCOE, meu irmão é da CIGCOE, eu ia ser policia, faltava pouquinho sabe, mas o que atrapalhou foi esse homicídio. Eduardo: Ele abusou de você nesse dia? Elda: Abusou, bateu na minha cara, entendeu?! Falou agora você não gosta de mim, você vai morrer comigo, mas eu não tinha entendido até então, ai o coronel falou que ele portador, mas ele mexia com o tráfico de arma, as armas que a gente usava era dele. Só que a arma que eu atirei, ai foi assim, me deixa explicar, era para eu ter ido trabalhar, ai era folga, ai falaram olha o Anderson vai, eu ai falei: ah é, eu vou então também, ai na hora em que ele foi, eu peguei e já tinha ido depois. Eu o conheci assim moço, eu conheci ele em um dia, ai no outro dia ele ficou no meu pé, no meu pé, no meu pé; ai quando foi no outro dia aconteceu isso, eu falei que não gostava e ele não aceitou, eu estava de boa, nunca vi aquele homem no meio, eu estava trabalhando e ele estava na viatura, mas naquele dia ele foi de pampa, ai na pampa que eu peguei a carona ele fez isso comigo e ainda voltou lá para tirar um sarro da minha cara, e também para pagar o coronel, mas ele nem imaginava que o coronel era meu patrão. Ele me xingou, ai eu falei poucas palavras, na hora que ele via que eu estava armada, eu falei: se você não sair daqui eu vou atirar na sua cara, ai eu falou assim vagabunda, sapatão, inseto, sabe, tipo uns nomes muito bruscos para mim... Ai o coronel gritou: ele vai atirar ai o outro vigilante gritou: ele vai atirar; que até ai eu não tinha pulado da cerquinha, mas de longe eu percebi que ele olhou assim para a minha cintura, ele viu 57


que eu estava de couto, só que eu tinha dois revolveres, um estava na perna e eu tinha um na cintura, meu mesmo, que eu andava com ele aqui atrás e era fardada né?! Ai foi quando ele correu, pulou a cerquinha, para abaixar, na hora que ele abaixou eu já estava lá, ai eu falei: você tem que sair daqui, ai ele olhou, quando ele olhou eu já dei o primeiro tiro, ai o segundo não saiu, mas mesmo assim ele ficou estrebuchando, ai a outra arma que estava aqui não pegava, e esse 32 que era meu eu nem usei, ai eu peguei a pistola, dei dois tiros, era para ter dado um, mas ela e automática, ai saiu tum tum de uma vez sabe?! Ai o coronel falou: sai fora, que ele era comandante da PM na época, ajudei muito ele, então eu falei: olha coronel é o seguinte, o senhor sabe que eu não vou poder mais trabalhar né, então o senhor me ajuda que eu ajudo o senhor. Então foi isso, tenho tristeza por isso ter acontecido, me arrependo demais, mas... Se eu pudesse trazer aquele moço de volta, se eu pudesse olhar para ele e para a família dele, e falar assim: olha me desculpa pelo que eu fiz, mas Deus sabe o que faz. Eduardo: E foi no mesmo dia em que ele abusou de você? E você decidiu isso na sua cabeça naquele momento? Elda: Naquele momento eu... Eu falei para ele: você não pode entrar aqui, ele falou assim quem era eu para não deixar ele entrar lá dentro, sendo que ele era autoridade, só que ele não estava de policia, ele estava à paisana, até hoje ninguém sabe se era militar, se era civil, o que que era aquele homem, só sei que ele estava meio afastado da guarnição, não sei o que ele era não... Ai foi quando eu atirei no rosto dele, um tiro de bala da tum dum, e aquele revólver que nós treinávamos todo dia, nunca saia bala, ele sempre enterrava, eu falava: o coronel, demorou o senhor trocar de revólver para gente para nós, porque não está dando não. Às vezes eu ia até de a pé do Paulo coelho machado ao meu serviço, tanto é que eu vendi minha casa, não tenho mais nada, morei no nova lima, também vendi, entendeu moça?! Então eu matei por causa disso. Cynthia: No seu julgamento não levaram o abuso em consideração? Elda: Não, se eu tivesse falado que foi por acidente, porque um tiro só é questão de legítima defesa, que nem eu fui orientada, mas como a família dele estava me procurando, eu falei que não, que eu atirei porque eu quis atirar e matar mesmo, porque

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na realidade teve um pouco sim, teve um pouco de atitude, mas teve um pouco depois de arrependimento e medo. Eduardo: Mas você contou no julgamento que ele abusou de você, contou tudo? Elda: Nem tudo, porque eu fiquei com medo né, porque eu achei que eu ia ser, tipo assim... Porque depois que eu fui ouvida, eu fiquei ainda mais uns dois anos na rua, e esse irmão dele atrás de mim, só que esse irmão dele desapareceu. Cynthia: Isso que eu queria saber, como assim atrás de você? Ele te cobrava? Te ameaçava? Elda: É claro eu matei o irmão dele, ele estava em todas as guaritas, da Sotef, da Blindex, da brilhante, onde o coronel major silva neto, que eu trabalhava para ele, ele até aposentou agora, tem outro capitão da CIGCOE que vem ai, entendeu, tem o maior respeito por mim... E, eu tinha o cabelo comprido sabe moça, eu era bem reservada, ai um dia eu falei quer saber eu vou assumir o que eu sou e já era entendeu, porque como eu morava com a minha mãe, eu tinha a minha casa, mas eu não saia da casa da minha mãe, porque a gente ia para a igreja e tal, eu escondi uma coisa dentro de mim que eu tinha medo de deixar sair entendeu, por causa da minha família também que me ajudava muito em questão de estudos, de estudos de policia, eu tenho veterinária, tenho enfermagem, entendeu, isso tudo. Eduardo: Você fez curso de veterinária? Elda: Tenho, curso de veterinária, tenho habilitação, tenho curso de tiro. Eduardo: A sua carreira estava certa então? Elda: Minha carreira estava certa. Eduardo: Você queria ser policial? Tinha tudo planejado? Elda: Tinha tudo planejado, e eu ia conseguir, mas... Eu creio que foi Deus que às vezes assim que me livrou de alguma coisa lá na frente, que de repente eu como polícia poderia levar um tiro, não sei, porque a bíblia fala assim que nada cai, nada acontece se não for permitido por Deus, então significa o que, se aconteceu isso foi porque Deus permitiu, senão isso não tinha acontecido, e eu faço muito o estudo da bíblia e eu leio cada trecho, que muitas pessoas não entendem e Deus... Suelen: Mas essa consciência você tem agora? Você não tinha antes?

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Elda: Não, antes eu não tinha, até às vezes... Uma vez eu apanhei ai sabe, ai eu falei eu vou matar essa mulher, olha eu tinha tudo para matar ela, tudo... Porque me bateram, chutaram minha cabeça sabe: ah você é cagueta porque você já foi polícia, você sabe essas coisas... Ai não sei o que fizeram lá, faz uns tempo ai, no natal do ano passado, machucaram demais, fui jogada igual um porco da sala, assim oh zup, eu conto mesmo, não tenho medo não, ai depois passou sabe, e aquilo até hoje.. Agora que está saindo, porque quando eu saísse lá fora, porque tem um irmão meu que é da CIGCOE, tem outro irmão meu que é da civil e uma irmã que é da civil, e tem uns primos meu que é malandro também, então tudo que acontece comigo eles ficam sabendo, entendeu, por mais que eu esteja sozinha aqui, entendeu então aqui a gente procura viver da maneira possível, graças ao meu bom Jesus eu sou de boa, nunca usei droga, já vi nego usar, mas eu não, eu tenho esse problema porque eu tenho muita depressão, eu choro demais, às vezes eu sonho com esse moço sabe ai as meninas já... Tem umas que gostam de mim, porque na cadeia tem aquela lei, ninguém é obrigado a gostar de ninguém, você veio sozinho para cadeia, então é onde faz parte né, do sistema. Eduardo: Isso é um lema que vocês repetem ai dentro? É uma frase que você repetem ai dentro? Elda: É, sempre, ninguém é obrigado a gostar de ninguém, porque tanto é que tem uma senhora que chega né, abre a porta e fala: para quem gosta cheguei, para quem não gosta cheguei também. É uma mulher, que é até do comando ela. Eduardo: O que é o comando? Elda: Comando é o PCC, e eu corro com eles. Agora eu faço parte, tipo assim como eu sou homossexual, sapatão, porque sapatão nunca existiu, isso ai é um ditado que o ser humano colocou no outro para zuar mesmo a gente, então eu corre com eles é uma coisa, cunhada eu não posso ser, irmã eu não posso ser, por quê? Porque eu sou assim e eles não aceitam, mas ser companheira leal eu posso ser. Eduardo: E porque você se identificou com o comando? Elda: Ah porque, tipo assim, eu não gosto de coisa errada sabe. Tipo ali rola muito entorpecente, a tal da pasta base sabe, e esses tempos chegaram e eu na mesma hora já me perguntaram e eu falei assim chegou sim e na memória agora não tem mais 60


entendeu, e só, nada mais, outras coisas... Não é que eu vou ser eternamente, não significa que eu tenho um compromisso sério com eles, eles tipo assim me protege ai né de alguma coisa que queiram fazer comigo, se, graças a Deus todo mundo me respeita, mas... Coisas erradas tipo base, porque através da droga dá roubo, briga, dá até morte, dá xunxada... Esses dias teve uma festa ai, não sei se vocês lembram, de pagode que veio, saiu uma briga e o povo achando que o pessoal queria pegar eu do outro lado. E ai, Elda, Barreto, sai para o sol que a gente quer falar com você, não sei o que. Eu falei hum é minha ex, porque eu tinha brigado com a minha ex-namorada, ai eu falei não vou sair, não porque eu tinha medo não, porque a diretora me chamou e falou: olha, por favor, não cause no meu... Porque eu sou terrível senhora, eu puxei 32 fortes, é que eu não estou com o papel aqui, 36 desacatos... Fora né... É nervoso, é muita pressão psicológica de preso na cabeça da gente entende... E eu sou feliz pelo que Deus tem feito na minha vida, e o sistema é esse que eu estou falando para vocês. Nem tudo aqui, diretora, disciplina, não sabe o que acontece ali, só eu sei o que acontece em todos os alojamentos, todos, muitas das internas não falam a verdade, agora se vocês quiserem saber alguma coisa é a chance, porque eu falo tudo. Suelen: Elda, você é casada? Estou vendo ai? É uma aliança? Elda: Não, esse aqui é da minha mãezinha que mora em Glória de Dourados, e ela está velinha já, ai ela pegou e veio velinha, e falou eu vou deixar isso aqui para você. Só a aliança que é ouro tá porque esse aqui não é, mas, eu mandei fazer já um de ouro já para eu colocar esse aqui. Eu fico pensando, estava aqui desse tempo todo né, minha mãe estava tão boa, tão novinha, hoje, quando eu vi ela fiquei com vontade de chorar porque ela já estava já se acabando né, o tempo, a vida, um dia vai ter que . Então isso refletiu muito também, por isso que eu mudei um pouco, pensando na minha mãe, na minha família. Cynthia: Eles vêm te ver sempre? Elda: Vem, traz meu pagamento, só que eu não conto para ninguém não, porque todo mundo fala: ah empresta dinheiro para mim, eu falo: não tenho, é e não paga, o povo que assim que usar entorpecente, tóxico. Eduardo: Quem que vem te ver? Elda: Vem a Elza Costa Santos. 61


Eduardo: É sua irmã? Elda: É, minha irmã, eu tenho uma filha também, porque eu quis ter ela assim para ver se, porque desde pequeninha eu dou muito problema, e eu não conheci meus pais biológicos, e eu descobri que eu tenho 18 anos a menos da minha idade, depois que eu comecei a morar em Glória de Dourados eu comecei a dar muito problema para a minha mãe, tacava pedra nos carros, e eu ia para os shows, esses shows de bailão, com 14 anos 15, ai eu falava vamos tacar pedra naquela mulher vamos tacar pedra naquela banda sabe, e só saia coisa errada. Ai eu falei, nossa, mas tem alguma coisa errada na minha vida, eu não tive infância, eu tenho 38 anos, eu sou de 73, 38 né? Então, tenho 38 anos, os outros não dão essa idade para mim, porque qualquer coisa que a pessoa fala comigo, dependendo do que fala, eu choro, mas também na hora da minha fúria eu já sou outra pessoa e assim vai, mas eu sou ótima pessoa, eu sou uma boa pessoa, me arrependo sim, se eu pudesse ver a mãe desse rapaz, falar para ela que me perdoasse, era um presente que Deus ia me dar. Cynthia: Mas não te dói o que ele te fez? Elda: Doer dói né, mas tipo assim, quem sabe Deus não me curou e eu não sei. Cynthia: Não te livrou de uma coisa pior assim? Elda: Quem sabe Deus não me livrou de uma coisa pior entendeu, mas tem uma coisa também, eu tive uma mulher aqui na cadeia, ela foi de bonde para Ponta Porã, estava devendo para alguém ai, ai tem uma traficante que fica me ameaçando, só que claro que eu não sou besta, já avisei minha família, já avisei meus irmãos, então quem mata, morre, então é isso ai, quem relar o dedo aqui dentro da cadeia também o comando cobre. Entendeu, é assim a lei, a lei da cadeia é assim irmão... Cynthia: Lei de sobrevivência né? Elda: A lei da sobrevivência, aqui você vale pelo que você tem, se você ganha mil e pouco, se você ganha dois mil, beijam até seus pés, você pode ser feio, horroroso, o que for, beijam até seus pés, agora se você não tem nada meu irmão, você não é nada. Suelen: E sua filha você falou que tem uma filha, como que foi? Elda: Tenho, é, minha filha foi assim, eu sempre tive vontade, mas falei será que eu tenho problema mesmo, que eu sou assim porque eu sou, ai eu fui para Cuiabá fazer um curso da policia, onde conheci um rapaz lá e eu que cheguei nele e falei olha eu 62


quero ter uma filha, e ele falou assim: mas eu gosto de você, e eu falei: mas eu não gosto de homem, só quero ter minha filha mesmo... Fui sincera, falei eu quero ter uma filha, tanto é que ela é registradinha, bonitinha, linda, linda, linda, linda, só que eu que sou desajuizada por causa dos meus problemas. Mas eu gostei sabe assim de ele ter me ajudado nessa parte, porque ela é linda, é registrada no meu nome e no dele, recebe o que tem que receber certinho. Eduardo: Como é que é o nome dela? Elda: Otílio Rodrigues Amorim Filho, mora lá em Cuiabá, bairro Tijucal, já é casado né, ele. Eduardo: É um filho? Ou esse é ele? Elda: É ele. Eduardo: Como é que é o nome da sua filha? Elda: Elizama Costa Rodrigues. Eduardo: quantos anos ela tem? Elda: Ela tá com 15 agora. Cynthia: Ela mora lá com ele? Elda: Não, ela mora comigo, com a minha irmã, Elza Costa Santos. Cynthia: A Elza cuida dela? Elda: Cuida, ela tira meu dinheiro, cuida dela também, tanto é que ela falou assim: mãe, eu quero tirar a saveirão, ai eu falei: mas o que é isso? Saveiro é um carro que faz tum tum, aqueles barulho lá, ai eu falei: ah então tá, nós vamos tirar um; mas meu sonho mesmo sempre foi ter um palio, porque eu nunca tive um carro, eu trabalhava já para ter um, o dinheiro que vem para mim e o que sai vai para ela, o que sobra eu coloco sempre na poupança. Eduardo: De onde você tem esse dinheiro todo mês? Elda: Eu trabalhei de vigilante moço, eu sou aposentada pelo INSS, carteira de trabalho. Eduardo: Tranquila então? Elda: Tranquila, sossegada. Eduardo: E você sai da cadeia quando? Elda: Já era para eu ter ido em fevereiro desse ano. 63


Eduardo: Para o semiaberto? Elda: Não, condicional, por causa do benefício da menina né?! Às vezes ela vem ai e chora; só que ela veio de boa, ela olhou me abraçou falou nossa como você está linda mãe, ai nem sei se te chamo de mãe ou de pai, porque, né, eu falei para ela: de qualquer jeito eu amo você, você me chama do jeito que você quiser você para mim é tudo, tudo o que você quiser você vai ter lá fora quando eu sair. Suelen: Ela vem te visitar direto? Elda: Vem na visita de criança, direto, direto não, quando pagamento sai, agora nesse domingo agora a outra minha irmã vem né, para trazer alguma coisa para eu comer e a gente conversar. Eduardo: E você quer fazer o que quando sair daqui? Elda: Eu pretendo entrar na guarnição, nem que for de bico. Eduardo: E eles vão te aceitar? Elda: Eu tenho uns camaradas meu, porque posso entrar tipo assim de folgista, tipo se um guarda folga eu posso entrar para pegar o lugar dele, tanto é que até o coronel falou que quando eu saísse da cadeia que eu fosse procurar dele, se é claro ele não estiver fazendo uma casinha para mim, mas com certeza não está, porque ele gosta muito dos meus serviços, eu fui muito útil para ele, eu sou uma boa pessoa moço. Eduardo: E quando você fala que não teve infância, por quê? Como é que foi? Elda: A minha infância foi muito judiada, minha mãe prendia muito a gente, porque essa minha mãe não é minha mãe verdadeira, eu não conheci nem minha mãe nem meu pai verdadeiro. Eduardo: Eles te largaram? O que aconteceu? Elda: Não, eu nem sei direito, a mulher não podia cuidar de mim porque eu sou gêmea com outra, gêmea idêntica, a outra não pode ter filho entendeu, ai ela cuida da menina também, vai lá, só que não tem muito juízo não, trabalha tudo, mas tem a mente meio problemática, mas é uma ótima pessoa, vai para igreja, tudo. Eduardo: Ai a sua infância foi como? Elda: A minha infância, eu apanhava muito de uma irmã minha, de um irmão meu, quando era pequeninha assim, mais ou menos tinha um seis anos, às vezes eu chagava da escola e não sabia o que era 2 mais 2, 3 mais 3, e era cada cascudo que 64


eu levava e aquilo ia me enfurecendo. Uma vez eu pulei a janela para ir ao baile, quando eu voltei essa minha irmã que é policia hoje me pegou e me deu altas chineladas na cara. Ai me pegou beijando uma moça, com 12 anos eu estava beijando uma moça, ai que o pau torou mesmo, quando eu cheguei a casa ai que eu apanhei de mangueira, e aquilo me revoltou, falei: um dia eu vou embora daqui desse lugar, vou abandonar todo mundo. Depois eles começaram a se formar, casar, fiquei sozinha com a minha mãe, ai foi quando eu vim para Campo Grande, me formei nos meus estudos do segundo grau e comecei a tentar entrar no polícia, todo concurso da policia militar eu já estava lá no jornal: espera ai, me deixa ver onde é, descia até do ônibus se eu estivesse no ônibus e visse um anúncio, pedia para descer para eu poder ver onde é, então ai minha vida é essa, eu sempre fui muito judiada. Eduardo: E você nunca teve pai? Pai adotivo? Elda: Meu pai eu não conheci não, meu pai adotivo, porque quando ele já tinha morrido eu tinha o que, uns 4, 5 anos. Diz que ele morreu com uma facada, ele trabalhava em um negócio da prefeitura, caminhão né, caçamba, na época falava caçamba de terra, ai ele morreu com uma facada nas pernas, porque ele chegou para pedir pinga e o homem falou assim que não ia dar, ai ele falou então tá bom, ai depois o homem falou assim não vem aqui tomar um gole de pinga, ai depois o cara pediu de novo para o meu pai, isso é o que me contam né, para ele pagar, ai ele falou que não tinha, ai nisso foi quando começou a briga lá no barzinho, ai foi quando o homem tirou a faca e enfiou assim na perna dele, ai ele chegou em casa caindo, e ai como pegou na virilha, e antes dele morrer ele falou cuida mais da Elda do que da Eldi. Eu me relacionava muito bem com o meu pai, meu pai me levava no parquinho, eu lembro, sabe só ele que me levava, minha mãe não ligava muito para mim, meu pai levava no parquinho, minha mãe comprava boneca para minha irmã, meu pai já comprava carrinho para mim... Ai minha mãe comprava boneca, queria que eu pegasse as bonecas, ai uma vez eu levei um pau de novo, uma surra da minha mãe porque ela me pegou beijando uma mulher, porque eu para brincar beijava as bonecas, então um história, desculpa... Suelen: Mas esses irmãos que te batiam são os que você se dá bem hoje?

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Elda: Aham tem muito respeito por mim hoje, eles. Porque desde pequenininha eu falava assim: eu vou te matar, vou te matar, tudo o que vocês estão fazendo comigo eu vou cobrar de cada um, eu falava assim, entendeu. Cynthia: Mas hoje em dia eles aceitam que você é homossexual? Elda: Não, desde que eu nasci eu só tive esse, quis ter minha filha para... Cynthia: Mas seus irmãos que eu digo? Elda: Aceitam, a minha família toda hoje... Cynthia: Até sua mãe sabe? Elda: Minha mãe às vezes releva, porque ela é crente né, uma crente daquela Deus é Amor, vai vendo. Eduardo: Você falou que tem problema na cabeça, que tem 18 anos a menos? Você só falou, ou já fez exame e tudo? Elda: Não, eu estou falando sério, eu fiz já exame. Eduardo: E o que deu? Elda: Deu distúrbio, no dia em que eu só vivia desmaiando, não sabia o que era, só vivia passando mal, lá mesmo no hospital Dias né, que eles falam, fui lá ao 100, me colocaram lá no 100, ai foi quando... Porque no dia também em que eu fui aposentar, eu não conseguia aposentar por idade, porque como que os peritos do INSS iam me aposentar, eu aposentei por saúde, por cabeça. Eduardo: Mas isso não absolvia sua pena? Esse distúrbio? Elda: Então, absolveu, mas eu estou pagando castigo, por eu estar aqui, por esses desacatos. Cynthia: A pena dela já foi, entendeu, ela está pagando os desacatos que ela fez aqui dentro. Elda: E eu estou trabalhando já para eu ir embora. Eduardo: Mas a pena você falou que são 12 anos? E você está aqui desde 2005? Elda: Desde 2008, ai 2008, 2009, 2010, 2011 eu desci para o semiaberto, fiquei lá por sete meses, ai voltei porque briguei lá, puxei faca para uma pessoa. Eduardo: Mas reduziu sua pena então, porque 12 anos? Elda: Ficou a mesma coisa. Eduardo: Mas como é que funciona isso? 66


Elda: Era para eu ter ficado um ano, mas com esses desacatos que o juiz mudou a lei, eu fui ficando, porque eu era muito nervosa. Cynthia: Agora sua pena é de 12 anos então? Elda: É 12 anos. Suelen: Antes não era? Elda: É, 12 anos na lei de 1/6 ainda, a minha é lei antiga, eu estou na mesma lei antiga, eu não sou traficante, eu sou homicídio, sou 121. Cynthia: 1/6 da pena só que ela precisava cumprir. Elda: Meus papéis estão todos ai, eu só não fui, porque eu tenho que mostrar para o juiz que sou uma pessoa melhor. Eduardo: Você tá trabalhando aqui? Elda: Estou, até inclusive eu estava indo trabalhar quando me chamaram, falei: mas a senhora tem certeza que quer que eu vá? Falaram: vai Elda, vai. Suelen: E o que você faz aqui? Elda: Eu lavo os tambores. Eduardo: E é chato? Elda: Não, é bom, porque distrai a cabeça, eu vou lá, lavo os tambores, saio. Cynthia: Mas você que pediu ou eles selecionam? Elda: Fizeram por mim isso, porque eles nem emprego queriam me dar, Leidiane né, que mora comigo, e a Yolanda que intercedeu por mim, para pedir meu emprego. Elas duas. Eduardo: Você já falou que teve momentos de revolta aqui dentro, porque é muito difícil ter a sensação de estar presa, como é que é? Elda: O difícil não é você estar presa moço, o difícil são as parceiras que você tem do seu lado, por exemplo, se chega um dinheiro para você, e tem gente que não tem visita, entendeu, tem gente que não tem visita. Eduardo: Como que você decidiu mudar seu estilo? Assumir quem você é; é isso? Elda: Aham. Cynthia: Foi aqui dentro isso?

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Elda: Não lá fora já, lá fora eu só andava de preto, trabalhava também, eu trabalhava no Bom Demais, o coronel me encaixou no Bom Demais, trabalhava de terno, gravatinha, bonitinho. Cynthia: Mas você falou que tinha o cabelo comprido, quando você cortou? Quando você veio para cá? Elda: Ah, eu cortei em 2006 mais ou menos, eu cortei. Eduardo: Mas é só o estilo seu que é assim, ou você não se identifica como mulher? Elda: Ah eu não penso como mulher não, porque tem muita menina que fala assim: ah eu não te entendo, ai eu falo: eu que não entendo vocês, fala que gosta da gente depois vira as costas e já estão com outro, eu é que não entendo vocês, vocês tinham é que levar um pião mesmo. Eduardo: Mas você se refere a você mesmo como ele ou ela? Elda: Ah eu me refiro como ele, por mais que eu seja mulher. Cynthia: Você acha que desde pequena foi assim? Elda: Aham, desde pequena. Cynthia: Parece que você nasceu no corpo errado assim... Elda: É, tipo assim, parece que tem alguma coisa dentro de mim. Eduardo: Você já desconfiou que você é transexual, já pensou nisso. Elda: Eu não tive muito estudo sobre isso não sabe, mas, eu não sei definir isso ai, é uma coisa que vem de dentro de mim assim, só um analista, sei lá, alguma coisa. Eduardo: E você fica feliz se as pessoas se referem a você como ele? Elda: Aham, eu fico feliz. Eduardo: Você já pensou em ter outro nome também ou não? Elda: Eu dou outro nome, eu dou Barreto, aqui dentro me chamam de Barreto, lá fora eu nunca falo meu nome verdadeiro, geralmente quando eu estou tomando cerveja na roda de alguém, os cara falam: o amigo, eu posso sentar ai? Eu falo: opa pode sentar, e ai vem os papos né, ah você é casado, você tem namorada, eu: não, não sou casado, sou só namorado. Então como que é seu nome, eu falo: ah é Antônio, Bertanio, Barreto; ai vou assim. Suelen: É; aqui você colocou Barreto né, que é como você é conhecido ai?

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Elda: É; que eu tinha outra identidade, que eu fiz, mas não tá comigo né, era para quando eu estava fugindo, mas agora não tenho mais nada do que fugir, pelo menos esse livramento Deus deu para mim. Cynthia: Você tentou fugir logo depois? Elda: É; porque eu matei o cara e os policia estavam todos atrás de mim, mas não adiantou nada, porque o dia em que eu fui presa, porque depois de dois anos que eu estava em liberdade, que o juiz me concedeu esse beneficio, eu fui para a delegacia, lá eu estou lá, sentada, de calça preta, toda de preto, ai chegaram os policiais: o eu conheço, desculpa o linguajar, eu conheço essa porra. Eu falei: você não me conhece não? Ele falou: conheço sim, você matou o meu irmão. Eu comecei a chorar, pedir desculpa, ai passou. Ele falou: você vai pagar lá na cadeia. Mas ele não era policial não, acho que contaram para ele, porque ninguém tem bola de cristal. Depois foi um advogado meu lá, conversou comigo, falou que nada iria acontecer. Depois começou a chegar uns policia, meu coração já começou a acelerar, ai veio àquela voz: agora você vai morrer, agora você vai morrer. Eu falei: ai meu Deus, tem misericórdia, me protege, me guarde, prometo que nunca mais vou matar ninguém, me perdoa Senhor, ai fui lendo a bíblia de acordo com o que eu já estudei. Chegou um índio, policia, e falou assim: o que você é? Eu com medo: sou mulher senhor, ele: ah você é mulher, eu: é, sou mulher senhor, assim em outro linguajar sou sapatão senhor, ele: e o que você fez? Eu falei: ai senhor eu matei um cara que tentou roubar a Sotef, eu não ia falar que tinha matado um policia né, não sou besta. Ele: você trabalhava para quem? Eu: Comandante Arquimédes, Coronel Nascimento, ai ele já se soltou, falou que conhecia, que tinha que matar mesmo. Ai ele falou: não, você vai ficar de boa lá, lá tem um monte de mulher. Falei: tem mesmo? Ele falou: vish, eu já fui lá, lá tem um monte de mulher. Menina, o dia em que eu cheguei, claro que eu cheguei mais bonita né, nossa a cadeia balançou, mas estou sossegada. Suelen: E como é namorar ai dentro? Tem muito ciúmes? Elda: Nossa, tem até briga na quadra, sai até briga, giletada. Suelen: Por você? Elda: Não por mim não, cada uma tem umas lá né, mas por mim também. Eduardo: E como é que o romance? Vocês se encontram onde? 69


Elda: A gente tem a cela da gente, mas quando a pessoa mora em outro alojamento procura a disciplina, para mudar de alojamento, trazer a companheira para perto da gente. Eu mesmo tenho a minha cama né, que eles falam jéga. Eduardo: Ela é do seu alojamento sua namorada? Elda: Não, ela é de outro. Eduardo: E onde vocês se encontram? Elda: A gente se encontra lá no sol. Eduardo: E é rapidinho? Elda: É rapidinho, porque às vezes eu trabalho, não dá tempo de ficar muito no sol. Eduardo: E quando vocês querem ter uma relação mais íntima, como é que faz? Elda: Mas eu já tinha ficado com ela, mas ela já saiu de lá por causa da droga, ai eu falei assim eu não vou ficar pagando droga para ninguém, ai ela foi para o 8, é alojamento de comando, PCC né, e lá ela não usa droga, lá é rígido. Eduardo: E como vocês fazem para ficar juntas? Elda: A gente vai para o sol, namora, beija, eu olho para ela e falo assim: deixa-me ver se a policia tá olhando, ah não está não, vem, vem... Tem cama. Suelen: Tem bastante casal? Elda: Tem. Cynthia: Você acha que ajuda a passar o tempo aqui dentro, a convivência? Elda: Ajuda, ajuda. Eduardo: Tem mulher que entra aqui que é hétero e depois vira lésbica aqui dentro? Elda: Assim tipo que é casada com homem lá fora, e aqui? Tem ai quando sai lá fora fica com homem, isso que é o chato sabe, tem gente que fala: é aqui, usa até uma expressão que eu não vou usar, mas lá fora fica com homem, safadeza. Isso para mim é safadeza, mas como se diz cada um vive a sua vida né. Suelen: A carência não conta você acha? Elda: Para mim não porque eu já vim de fora carente, para mim lá fora era mais difícil, aqui dentro já arrumei uma e já. Suelen: Faz tempo que vocês estão juntas? Elda: Faz, já faz quatro meses, mas já tive outras, é porque foi embora. Tem uma que está Ponta Porã, que é a minha legítima mesmo é a que está ponta porã, é que a gente 70


que é homem você sabe né, não pode ficar sozinho, é aquele negócio, caiu na rede é peixe. Cynthia: Mas vocês conversam por carta? Elda: É; ela manda carta de Ponta Porã para mim, chega e tal. Suelen: E a daqui não sabe? Elda: Sabe, mas eu falo que não estou mais, vou falar para ficar triste, com depressão, nunca, nunca, nunca. Suelen: O Eduardo perguntou, e a relação mais íntima, como é que faz? Elda: Relação íntima, como assim? Eduardo: Porque vocês só tem o sol para fica juntas. Elda: Não, quando a gente tá na mesma cela, na mesma cama, quando apaga a luz, rola tudo. Eduardo: E quando não está na mesma cela como faz? Elda: Quando não está na mesma cela, fazer o que, tem que fazer o “corre” para mulher poder ir para lá, para poder ficar junto. Eduardo: E as funcionárias ajudam? Trocam vocês de cela para ajudar? Elda: Trocam, a dona Heleninha é muito boa, ela gosta da gente, ela ajuda a gente demais. Cynthia: Você sabe se quem tem companheiro lá fora tem visita íntima igual no masculino? Elda: Tem, tem uma no meu alojamento que tem companheiro íntimo. Cynthia: Eles vêm uma vez por mês? Elda: Por semana Cynthia: Igual no masculino mesmo. Elda: É; igual o masculino, se você quiser eu posso até citar o nome dela para vocês falarem com ela, é Rosilene Vieira. Eduardo: Você falou que é muito difícil viver aqui, que é muito ruim. Elda: Acontece mesmo, mas essa moça que vai vir aqui ela corre muito com preso, ela não vai falar o que eu falei. Eduardo: Eu queria que você me falasse o que é pior que você já viu aqui, uma coisa bem ruim mesmo. 71


Elda: Eu sendo jogada para fora do alojamento e sendo linchada, a pior coisa, e minha boca sendo cortada. Cynthia: Que foi aquela vez do roubo? Elda: Que me roubaram. Cynthia: Tem muita violência então? Ameaça? Elda: Tem, tem gente que manda matar até lá fora. Eduardo: Se chegar alguém aqui e ficar quietinha e não fazer inimizade sobrevive bem? Elda: Sobrevive, você tem que saber levar, mas aqui você vale o que você tem e o que você é, se você não tem dinheiro você não vale nada, você tem que trabalhar de empregada para você ter um sabonete, eu graças a Deus sou abençoada. Eduardo: Lá fora sua família é de classe média? Elda: É. Eduardo: Vive bem então? Elda: Vive bem, minha mãe tem posses né, só eu que não tenho nada. Cynthia: Mas você falou que tinha casas... Elda: Eu vendi, eu tinha falado que vendi, eu não tenho mais nada, eu só tenho meu dinheiro mesmo e a cara e a coragem para sair daqui e levantar minha vida de novo. Cynthia: Mas vendeu para pagar advogado ou nada a ver? Elda: Não, eu vendi porque eu não podia ficar mais lá mesmo, minha mãe vendeu para mim e guardou o dinheiro para ela, tudo que ela tem é passado para o nome da minha filha, porque ela já é de idade, e tudo que é da minha filha é meu também. Eduardo: E você é bem apegada a Deus, o eu você acha que Deus acha da homossexualidade? Elda: Tem muita gente que fala que Deus abomina, mas tem uma parte da bíblia que fala, até o apóstolo me mostrou, diz que para Deus essas pessoas que nascem com problemas tem o direito de receber perdão no dia do julgamento final, para quem nasce assim desde criança, e eu como nasci assim, não é porque eu tive uma filha e tentei mudar que eu não vou ser julgada, eu vou ser julgada, e eu não fico com homem não moço, eu quero casar mesmo. Suelen: Mas você teve uma filha para tentar virar heterossexual? 72


Elda: Não, eu tive uma filha porque meu sonho era ter uma herdeira, eu falei quem que vai cuidar dos meus negócios, porque quando eu sair daqui eu tenho muita coisa para eu fazer. Tanto é que tinha até um carro que estava no meu nome, que agora está no nome dela, aquelas casas que foram vendidas, se não me engano até foi comprada uma de novo nas Moreninhas, não é aquela coisa toda, mas está no nome dela, uma cumbiquinha assim, mas pelo menos eu sei que é meu. Eduardo: Essas marcas no seu braço são cicatrizes? Elda: Esse aqui fui eu que me cortei. Eduardo: Por quê? Elda: Lá quando eu estava no Paulo coelho machado, no Paulo Coelho Machado não, não, como que é aquele perto do Nova Lima ali? Eduardo: É um presídio isso? Elda: Não, foi quando os PMS, porque eu namorava uma mulher lá e os PMS pegaram e começaram a me bater pensando que eu era homem, eu me cortei e falei que era um policia, ai ele perdeu o cargo dele e ainda pagou seis meses de cesta básica para mim. Eduardo: Você sofreu muita violência na sua vida? Elda: Já, levei muita cabeada de vassoura na cabeça, dos meus irmãos mesmo quando era pequeno, acho que isso que me deu sabe... Mas eu sou muito inteligente moço, trato todo mundo bem aqui dentro. Eduardo: Você gosta de ler aqui dentro? Elda: Eu gosto de assistir muito filme de terror, de ler eu não gosto muito não, perde muito tempo aqui dentro, porque ali o nosso tempo é corrido demais, não tem muito tempo para ler nada, para mim pelo menos não. Eduardo: E vocês veem televisão aqui né? Elda: Tem, tudo o que acontece a gente vê. Eduardo: Tem muita briga pelo canal, para ver quem escolhe o canal? Elda: Não, geralmente tem discussão, mas quem compra a televisão é que manda, então eles não tem escolha, por exemplo, hoje vai passar um filme de terror, vamos assistir fulano? Vamos, então é uma união boa, é a união faz a força. Cynthia: Estão superlotadas as celas? Elda: Estão, está superlotado o presídio todo. 73


Cynthia: E ai como faz? Elda: Juiz tem que mandar embora, a começar por mim. Cynthia: Dorme no chão? Elda: Dorme. Eu tenho minha cama, mas tem gente que dorme no chão, atendimento de hospital aqui é difícil, por isso que eu falo para o pessoal, não fique doente, eu nunca fiquei doente aqui, graças a Deus. Cynthia: Porque é difícil, não tem médico? Elda: Tem médico, só que para a escolta vim só se começar a chutar a porte e acelerar a cadeia, balançar, ai a escolta vem. Eduardo: Vocês tremem muito a cadeia né? Todo mundo fala. Elda: Só que eu não me envolvo não, essa Dona Heleninha ai, ela paga de bonde, ai os outros falam: ai bonde é para preso, ai eu falo: eu não quero ir não, fico lá na minha cama, só olhando, não gosto dessas coisas, eu mudei muito, mudei muito mesmo. Suelen: Se fosse um tempo atrás... Elda: Eu tacava até fogo, mas nunca fiz isso na cadeia, só vivia na cela disciplinar aqui, que é a forte né, era desacato, forte, desacato, forte. Eduardo: E esses cursos que tem para fazer você já fez algum? Elda: Qual você fala? Eduardo: Esses de postura, de maquiagem... Elda: Eu não sei se eu ia me... Eu não sei Eduardo: A maioria não tem interesse né, nesses cursos? Elda: Eu até queria fazer um curso para ocupar minha mente de manhã, mas não dá por causa do meu serviço e por causa da tarde né. Eduardo: Quem está lá dentro tem muita coisa para fazer né? Tem que conseguir dinheiro... Não tem como ficar fazendo curso, é isso. Elda: A única coisa que dá dinheiro aqui é a fábrica e a cozinha, porque o resto não dá não. Suelen: Fábrica do que? Elda: Fábrica de roupa. Suelen: Faz roupa aqui dentro? Elda: São os uniformes, não sei para quem. 74


Cynthia: São os terceirizados. Elda: É; os terceirizados. Suelen: E esse concurso que tem como é o nome? De Miss? Elda: Vai ter o concurso de Miss, a nossa Miss mesmo da nossa cela é linda, uma morena da hora. Cynthia: Cada cela manda uma, como é? Elda: Cada cela tem uma, e tem presentes, tem autoridades, tem os coronéis, tem a Agepen todinha que vem, até deputado vem. Eduardo: É legal, vocês gostam? Elda: É legal, quando não sai briga né, mas toda vez. Suelen: Tudo sai briga. Elda: Tudo, mas dessa vez, toda vez que sai a dona Marijane vem pedir para os problemáticos né, por favor, não causa na minha festa. Ai eu falo olha Dona Marijane, eu não vou brigar mais não, nem vem pedir para mim... Ela fala: pelo amor de Deus, não causa na minha festa. Ela é linda aquela mulher, um amor de pessoa, maravilhosa. Suelen: E quando que é? Elda: Não sei, estou até meio por fora, vai ser daqui a pouco. Vocês podem vir quem sabe eu não vejo vocês. Eduardo: Escuta como você acha que uma cadeia ideal deveria ser? Ter clima de paz? Elda: Ter clima de paz né, ter autocontrole, porque aqui tem muita gente que dorme no chão, ter controle, igual São Gabriel, Ponta Porã, eu acho que tinha que ter mais espaço né. Como vocês mesmos viram na televisão que estava cheia de gente e estavam querendo até desativar a cadeia para fazer presídios maiores, eu é que não quero estar nesses presídios maiores, quero ter ido embora. Suelen: Você estudou até que série? Elda: Segundo grau completo. Suelen: E tem os cursos? Elda: Tenho curso de enfermagem, vigilante, veterinária e o curso de tiro, só, e sou habilitada também. Suelen: Uma última pergunta, do que você sente mais falta de lá de fora?

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Elda: Da minha filha, queria estar perto dela, para poder ir passear, levar ela para tomar sorvete. Suelen: É a sua filha sua grande força para sair daqui? Elda: É minha força, por isso que eu já não faço nada de errado. Eduardo: A visita é muito rápida, por isso que não dá para matar a saudade? Elda: Não é o dia inteiro, é que tem gente que vem e vai embora rápido, mas é o dia inteiro no domingo, de manhã até às 16 horas, então o preso não pode reclamar. Cynthia: Você se sente privilegiada pela sua família vir? Porque tem bastante gente que não vem ninguém né? Elda: Eu fico sim, eu fico feliz, e fico triste por aqueles que não têm né.

8.1.4 Érika

Eduardo: Érika, a gente quer saber qual é a sua história? Como você veio parar aqui? Qual é a sua história de vida antes de ser presa? Quem é você? Eu queria que você explicasse. Érika: Eu não moro aqui, eu sou de Santos. Eduardo: São Paulo? Érika: Isso, São Paulo. Eu fui criada pela minha mãe sozinha, minha mãe era mãe solteira, me criou sozinha; e através do modo de viver, não tinha dificuldades, cidade grande onde eu moro, a gente tem bastante dificuldade em conseguir emprego, principalmente quem nunca trabalhou na vida. Eduardo: E vocês eram pobres? Érika: Aham, minha mãe me criou sozinha, ela trabalhava na roça e depois com o tempo ela virou empregada doméstica. Começou a trabalhar, sempre com muito aperto, muita dificuldade, e eu fui a caçula. Ela me pegou para criar eu tinha quinze dias de nascida. Eu fui vendo a situação da minha família, como que era não tinha né, então comecei a ir para a escola, conheci, me envolvi com pessoas que infelizmente são do crime, fui vendo como era, e fantasiei um mundo que hoje em dia eu vejo que não existe; que não serve para mim. Eduardo: Isso é comum, lá de onde você veio às pessoas se envolverem com o crime? 76


Érika: É bastante comum. Através da dificuldade, a gente vê nossa situação, procura emprego e só escuta não, não. Porque não tem estudo, que é no meu caso, não tenho estudo, ai eles só rejeitam, falam não, e a gente fica revoltada e faz essa besteira que eu fiz. Cynthia: O que você fez? Érika: O meu foi tráfico. Eduardo: Você trouxe droga para cá, é isso? Érika: Vim buscar para levar. Cynthia: Eles te pegaram quando você estava tentando voltar? Érika: Eu estava tentando ir para São Paulo. Me pegaram na cidade de Paranhos. Cynthia: Na rodoviária? Érika: Isso, na rodoviária. Eduardo: Você já tinha feito isso antes ou era a primeira vez? Érika: Não, primeira vez. Eduardo: Quanto você ia receber por esse trabalho? Érika: Eu iria receber mil reais. Eduardo: Você precisava bastante desse dinheiro? Érika: Precisava, eu estava grávida e não sabia. Cynthia: Você já estava grávida? Érika: É, quando eu descobri fiquei bem desesperada, porque eu já tenho quatro filhos que estão com a minha mãe. Mora só eu e minha mãe, e minha mãe é doente, conseguiu se aposentar faz pouco tempo. Eduardo: Quantos anos você tem Érika? Érika: Eu tenho 29. Cynthia: Eu queria saber como a pessoa chega até você? Diz: olha leva para mim, como é? Érika: Se você se envolve na rua, como eu que me envolvi cedo na rua. Passei por bastante dificuldade. Meu pai tentou me estuprar quando eu era mais nova, nada justifica né, mas bastante revolta e então eu comecei a me envolver com pessoas que eu achava que era tudo e hoje em dia eu vejo que não é nada, são pessoas que me largaram aqui. 77


Suelen: Você teve convivência então com uma figura masculina? Érika: É. Suelen: Mas não tem mais contato? Érika: Nunca tive. Suelen: Nunca teve. Eduardo: Sua mãe se separou dele depois disso, o que aconteceu? Érika: Não. Eu fui falar para a minha mãe quando ele tentou abusar de mim, mas minha mãe era muito apaixonada por ele e não acreditou. Minha mãe o escolheu, e me jogou para fora de casa, e eu me revoltei, não tinha outra opção, do que eu ia viver né?! Eduardo: Quantos anos você tinha? Érika: Eu tinha 12 anos de idade. Eduardo: Você ficou na rua? Érika: Eu fiquei na rua. Eduardo: Você morou na rua então? Érika: Morei na rua. Eduardo: Quanto tempo? Érika: Até hoje. Eduardo: Você não tem contato com a sua mãe então? Érika: Não, agora eu tenho, porque ela ficou velha, se arrependeu. Esse homem que ela tinha que era meu pai porque ajudou ela a me criar fez ela vender a casa dela, e tomou o dinheiro que ela vendeu a casa dela e deixou ela na rua. Eu casei, fiz uma família, e depois de um tempo ela pediu para vim morar comigo, eu perdoei ela e hoje em dia ela convive comigo. Eduardo: E seu marido? Érika: Foi preso também, ai a gente se separou, e eu tinha que viver de alguma coisa, com filhos para criar, então eu comecei a vender droga, fazer coisa errada. Suelen: Quantos anos têm seus filhos? Érika: A minha mais velha tem 12 anos. Cynthia: Tudo isso lá em Santos? Érika: Tudo isso em Santos. Cynthia: Sua mãe está lá? 78


Érika: Minha mãe está lá com os meus quatro filhos. Cynthia: Ela já veio te ver alguma vez? Érika: Nunca, eu estou presa vai fazer um ano. Cynthia: Quanto tempo é a sua pena? Érika: Minha pena é dois anos, onze meses e dez dias. Suelen: Esse filho que está com você é o quinto filho? Érika: É meu sexto filho, é que uma faleceu. Eduardo: O que aconteceu com ela? Érika: Nasceu, erro médico, nasceu e morreu. Eduardo: Seus pais biológicos você não sabe quem são? Érika: Nunca vi, nem tenho noção. Suelen: Nunca teve curiosidade? Érika: Tenho; curiosidade a gente tem bastante, mas é difícil. Suelen: Nunca foi atrás? Érika: Não, não tenho nem como ir atrás, não sei nem por onde começar. Eduardo: Como é que você chegou até a sua mãe adotiva? Érika: Ela conta que era minha vizinha, e diz que minha mãe tinha meio problema na cabeça. Falou que ela me deixou com ela e sumiu, nunca mais apareceu. Eduardo: Você tem irmãos? Érika: Eu tenho, mas não do meu sangue, filhos dela. Eduardo: Quantos? Érika: Duas. Eduardo: Elas demonstram apoio para você? Estão preocupadas com você aqui dentro? Érika: Sofrem bastante. Às vezes eu escrevo uma carta assim, já recebi uma carta assim, elas sofrem bastante porque eu não tenho contato, nada disso. Eduardo: E quando você foi para rua? Como é que elas ficaram? Érika: Ninguém sabia né, ficou assim sem saber. Uma delas ainda me acolheu, me colocou dentro da casa dela, ai eu fiquei convivendo com elas um pouco. Mas é que elas têm filho, tem marido, e eu nunca tive muita intimidade como eu tenho hoje. Hoje eu tenho bastante intimidade, hoje eu posso falar que elas são minhas irmãs, mas 79


quando aconteceu tudo isso eu estava começando a viver a adolescência, não tinha muita segurança. Eduardo: Eu queria que você contasse um pouco dessa vida na rua, você fala que se envolveu com essas pessoas, mas como era a relação de vocês? Você era considerada amiga dessas pessoas? Quem eram essas pessoas? Érika: Ah, sempre a gente começa assim né. Tipo, no meu caso, eu conheci uma amiga e ela falou assim: você precisa ganhar um dinheiro. Eu falei: sim, ela falou: então eu vou te levar. Fomos para uma boate, fui fazer programa e nessa um conheci um cara, tal de Mário, lembro dele todo como se fosse hoje. Eduardo: Quantos anos você tinha? Érika: Ah eu era nova, bem nova, tinha uns 13, 14 anos quando eu comecei a fazer isso. Ali eu comecei a fazer, ele começou a passar uma droga para mim, eu fui vendendo, vendendo. Como você vê, eu vim parar aqui. Suelen: Você chegou a usar? Érika: Não, nunca cheguei a usar. Cynthia: Você teve medo, assim essa noção de que você poderia ser presa? Ou você tinha e precisava do dinheiro? Érika: Eu tinha medo, medo eu tinha, porque eu já vi muitas pessoas sendo presas, e falar e contar história que. Só que a gente nunca acredita que vai acontecer com a gente. Eduardo: Como é que foi fazer programa tão nova? Érika: Uma coisa nojenta, por isso que optei pelo lado da droga. Porque a droga para mim substituía né, assim como os outros encostar no meu corpo. Uma pessoa que você não gosta, você ter que encarar cada pessoa bêbada, horrível, ai eu preferi ficar vendendo droga, carregando droga. Suelen: Você se prostituiu quantos anos? Érika: Um bom tempo, um bom tempo. Eu entrei para essa vida faz uns três anos, de carregar droga, uns três anos. Suelen: Então você ficou bastante tempo? Érika: Se prostituindo.

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Suelen: Hoje assim como você vê isso? Se voltasse atrás você faria alguma coisa diferente ou naquele momento era a única solução que você tinha? Érika: Com certeza. No meu caso ali naquele momento eu achava que era a única solução, hoje em dia eu já vejo aqui dentro que não é, tem vários modos da gente sobreviver lá fora sem fazer essas coisas. Nem que seja uma faxina, porque hoje aqui dentro eu faço uma faxina para ganhar cinco reais, para juntar para comprar uma fralda para o meu filho. Cynthia: Isso que eu ia te perguntar, porque você não tem portão 02 né? Érika: Não tenho ninguém. Cynthia: Eles não dão assistência? Fralda, essas coisas? Érika: Eles dão assim né, mas só que é bastante grávida. Eles todo mês dão, dão fralda, se a gente precisar eles dão sim, mas só que é bastante grávida e tem bastante gente que não é daqui, então fica difícil de eles ajudarem todo mundo. Então a gente se vira como pode, que nem quem tem visita; a gente que não é daqui, no meu caso, eu faço uma faxina e as meninas me pagam cinco reais, e eu falo: pede para sua família trazer uma fralda para o meu filho que é bem melhor. Eduardo: Você se sente humilhada tendo que ficar pedindo? Érika: Bastante. Muitos dias eu choro, me arrependo bastante, de saber que eu passo por isso e não ia precisar né. Eduardo: Você chegou a morar na rua, qual é a perspectiva de quem mora na rua? Érika: É horrível. A gente não vê outra saída, a gente tem oportunidade, a gente chega para pedir oportunidade para emprego, onde eu moro é difícil. Que nem, no caso, a hora em que eu sair daqui eu nem sei o que eu vou fazer, porque lá onde eu moro eu ouvi várias histórias de que quando presidiário sai da cadeia e vai procurar um emprego só escuta não, não. Quando eu sair daqui eu peço para Deus tomar conta, para eu não voltar para esse lugar porque eu não quero mais passar por isso. Eduardo: Você quer voltar para Santos quando sair daqui? Érika: É o meu maior sonho, é voltar para onde eu vim. Eduardo: Saudade dos seus filhos? Érika: Demais, bastante.

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Cynthia: Você pensou em fazer algum curso profissionalizante aqui dentro para talvez ter uma oportunidade lá fora? Érika: Penso, eu vou começar a fazer sim, de manicure. Cynthia: Como é que funciona? As crianças ficam na creche o dia todo? Érika: Fica na creche o dia inteiro, das oito da manhã às quatro da tarde. Nós temos as horas da mamada, ai a gente vai dar mama e o resto do dia a gente fica na cela. Então nessas horas vagas dá para fazer o curso. Suelen: Como é a cela de vocês? Porque é uma cela só de mães né? Érika: É, e grávida. Suelen: E como é essa cela? Ela é limpa? Tem berço? Érika: Não, são as camas, que a gente chama de jéga, uma em cima da outra, são 12 camas, ai tem uma grade para os bebês não caírem. Eduardo: Os bebês dormem com vocês então? Érika: Dormem, na cama. Eduardo: O parto foi quando você estava presa já? Érika: Foi. Eduardo: Como é que foi? Você foi levada para o hospital, foi tranquilo ou você passou alguma dificuldade? Érika: Passei bastante dificuldade. Eu cheguei até a escutar um médico falar assim; porque eu fiquei uma noite no Rosa, porque era para eu ter ganhado naquela noite já, porque eu já tenho cinco cessarias, iria ser a minha sexta cessaria, que foi essa. Ele falar que era para eu ficar ali, falou para minha escolta que eu tinha que ficar porque eu iria ganhar de manhã cedo. Eu me preparei, quando chegou de manhã cedo ele viu meu prontuário que era a sexta cessaria e eu corria risco, eu e meu filho. Ele falou para mim que não ia fazer meu parto, porque ele não iria se responsabilizar pela bomba que poderia acontecer. Falou isso para mim, falou para a minha escolta, eu fui me vestir cheia de dor porque fiquei a noite inteira até dez horas da manhã com dor, me vesti e esperei. Eduardo: E o que aconteceu? Érika: Ele me mandou embora. Minha escolta ainda olhou e falou: você tem certeza que vai mandar ela embora? Ele disse que sim. Me mandou embora, quando chegou 82


aqui a escolta falou né, comunicou a casa de que eu não estava bem mesmo, porque ele me viu andando o dia inteiro no hospital. Cheguei aqui, a oficial do dia me mandou de volta para outro hospital, cheguei no Cândido Mariano eles me internaram e fizeram minha cessaria. É uma coisa bastante humilhante que a gente passa. Eduardo: Você acha que se você não fosse detenta o médico não faria isso? Érika: Nunca, nunca iria fazer isso. Suelen: Mas seu filho nasceu saudável? Érika: Saudável, graças a Deus. Ele é lindo, lindo, lindo. Eduardo: Você foi bem próxima da criação dos seus outros filhos? Érika: Eu criei todos eles, moram comigo. Eduardo: Na época em que você criou eles você já tinha uma casa então? Érika: Já, tinha um cantinho. Era aluguel. Eduardo: Mas você sustentou eles com droga e programa? Érika: Aham. Eduardo: Mas pelo menos você conseguiu sustentar eles? Érika: Consegui criar eles. Eduardo: E eles estudam? Érika: Eles estudam. Todos estudam. Os pequeninos estão na creche, que é o de 5 e o de 6, e a de 12 e a de 11 estudam. Eduardo: Você tem esperança de que eles vão estudar e vai dar tudo certo? Érika: Com certeza. Suelen: Todos os seus filhos são do mesmo pai? Érika: Não, três são de um casamento e dois. Suelen: E o seu marido que foi preso era pai dos três? Érika: Dos três. Suelen: Ele foi preso por quê? Érika: Tráfico. Suelen: Ele foi preso antes de você? Érika: Antes de mim. Eduardo: Esses outros dois filhos são de quem?

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Érika: São casos que eu tive. Conheci, gostei, e não dava certo, largava e quando ia ver, fiquei grávida. Eduardo: Você não ficava medo de ficar grávida? Não dava para se precaver? Érika: É; eu me cuidava assim né, mas sempre a gente esquece. Eu mesmo sou meio avoada, esqueço de tomar o remédio. Ai quando eu via, eu sou muito fácil de engravidar, ai já estava gravida. Antes um filho do que uma doença. Eduardo: Com certeza. Cynthia: Hoje em dia seus filhos vivem da aposentadoria da sua mãe? Érika: É. Cynthia: Ela que cuida deles? Érika: Ela que cuida deles, não sei nem, vai fazer um ano que eu não sei nem como eles se encontram. Cynthia: Vocês não se correspondem por carta? Érika: Quando eu estava em Jateí, porque eu vim de bonde de lá para cá, eu vim de bonde para cá eu estava já com um barrigão. Ela tinha correspondido comigo pela carta, depois eu perdi o contato. Quando eu cheguei aqui eu fui à assistente social me comuniquei com ela, falei que eu estava aqui mais próximo de casa, porque aqui é bem mais próximo, e desde aquele dia eu não falei mais com ela. Já se foram nove meses. Eduardo: Porque você acha que ela não entrou em contato? Érika: Porque ela já está com os meus filhos, ela já é uma senhora de idade, ela já não tem condições. Eduardo: E não saber nenhuma notícia deles dói bastante? Érika: Cada dia que passa dói bastante. Não saber se eles estão comendo, se eles estão bebendo, dói demais. Mas eu peço força para Deus né, e vamos esperar. Cynthia: Você já era religiosa, ou você se apegou a uma religião aqui? Érika: Não, sempre fui, sempre tive. Eduardo: Católica? Érika: Não, evangélica. Sempre fui bastante temente a Deus, mesmo na rua né. Acho que é por isso que eu sempre tive, vim parar aqui e tenho isso comigo né, que foi um livramento que Deus me deu, eu poderia estar morta, isso seria uma coisa bem pior. Eduardo: Você viu gente morrer? Amigos seus morrerem? 84


Érika: Bastante. Na rua eu vivi momentos também de terror. Bastante coisa. Eduardo: O que você viu assim? Érika: Tive que dormir várias vezes fora, bem longe de casa. Ficar meses e meses sabendo que os outros poderiam estar atrás de mim para me matar. Eduardo: Porque você estava devendo dinheiro? Érika: Nunca devi. Eduardo: Mas porque eles queriam te matar? Érika: Porque, assim né, o crime você tem brigas na rua, a gente briga. Ai tem aquela história de quem pode mais chora menos, e assim a gente tem que sobreviver. Eduardo: Você já viu alguém morrer na sua frente? Érika: Já, é uma coisa muito triste. Já vi bastante pessoa morrer, e a gente nem saber de onde está vindo à bala, quando vê a pessoa já caiu. Eduardo: A polícia também matava? Érika: Mata, em São Paulo acontece bastante. Suelen: Você já passou por uma situação assim com a Polícia? Érika: Já corri bastante. Suelen: E eles já chegaram a te pegar? Érika: Não, graças a Deus. Eduardo: E aqui em Campo Grande ou aqui em Mato Grosso do Sul a Polícia te agrediu de alguma forma? Érika: Em nenhum momento, me trataram, vou falar para você, totalmente diferente. Eduardo: Você acha que é porque você estava grávida? Érika: Não, porque quando eu estava grávida eles nem sabiam que eu estava grávida, porque nem eu sabia. Suelen: Érika, você viveu na rua. Quantos anos você viveu na rua? Érika: Eu sai com uns 12 anos de casa, fique uns cinco anos na rua. Suelen: E você nunca se envolveu com drogas, isso foi uma opção sua? Érika: É, porque eu via o jeito que as pessoas ficavam. As pessoas usavam e ficavam com um jeito assim, eu já não gostava. Eu gostava de viver assim para andar bem vestida, comer bem, eu já pensava diferente, não usar. Eduardo: Nunca sentiu vontade? 85


Érika: Não, usar não. Eduardo: Você tinha que pedir comida? Como é que era? Érika: Ah eu não passaria a pedir porque eu fazia meus programas, fazia minhas coisas e não tinha que pedir. Mas já fiquei dias antes de eu começar a fazer programa, porque quando a gente sai de casa para rua, dormi no banco da praia muitas noites. Já fiquei com fome muitas noites. Eduardo: Frio também. Érika: Frio, já passei. Bastante. Mas só que, acho que é de ver, de acontecer tudo isso, não quis usar droga, nunca tive vontade. Suelen: E sua grávida aqui dentro? Como foi? Foi tranquila? Você passou algum aperto? Érika: Passei bastante mal né, porque era minha sexta cessaria. Eu vivia indo para o hospital. Passava bastante mal. Cynthia: Mas eles te davam toda a assistência aqui? Érika: Aham, toda vez que eu passava mal eles me encaminhavam para o hospital. Cynthia: Foi bem tranquilo? Érika: Foi bem tranquilo. Suelen: Mas você passava mal por quê? Pressão? Érika: É porque como era minha sexta cessaria né, com certeza criou bastante aderência então eu sentia muita dor, tinha que tomar muito bastante anti-inflamatório, foi tudo acompanhado certinho. Eduardo: Até que série você estudou? Érika: Até a quinta. Cynthia: Eu queria saber como foi o choque de chegar aqui? Porque é outro mundo né. Érika: Nossa eu falo para você que quando eu desci, porque é um carro que eles têm tipo uma ambulância aqui né, bem pequenininho; e quando eu desci dali eu olhei e falei com o meu filho no colo, eu não acreditei que eu estava trazendo o meu filho para dentro desse lugar. Porque aqui dentro é um lugar que não é para ninguém, para ninguém esse lugar. É um lugar que a gente chora bastante. E até hoje eu olho para o meu filho e peço bastante perdão a Deus por ter colocado ele nesse lugar, porque é um lugar que é perturbado, que não tem paz. 86


Cynthia: É difícil? Érika: É difícil, bastante. Cynthia: Mas elas te respeitam por você ter um neném ou é igual para todo mundo? Érika: É igual para todo mundo, mas a gente tem um respeito que a gente cria entre a gente, se eu respeitar você, você me respeita, se eu não respeitar... É assim, mas é difícil. Suelen: Então você ter um neném aqui dentro não conta muito? Érika: Não, não conta. Eduardo: Não te isenta disso? De sofrer com as outras pessoas? Érika: Não, não. Cynthia: Sabe o que eu queria entender, seu filho tem quatro meses né, é só até seis que eles podem ficar ai, e ai depois você vai ligar para sua mãe? Falar para ela vir buscar? Érika: Por isso que eu falo que foi Deus que agiu na minha vida, porque eu vou falar para você, eu chorei todas as noites desde o dia em que ele nasceu até hoje eu choro. Porque assim, eu já fui condenada, então eu tenho que tirar um ano e dois meses. Eu vinha desesperada antes de chegar a minha condena, eu vivia desesperada, porque minha mãe já fica com quatro filhos meus e vive de aposentadoria, tem dia em que eu acho que não deve ter nem o pão deles. Como ela iria vir buscar, de lá para cá são quinhentos e cinquenta reais que você gasta, como ela iria vir sendo que ela vive de um salário mínimo, para buscar, para ficar, com mais um bebê sendo que ela já esta com sessenta e poucos anos. Eu ficava perguntando para Deus, e acho que de tanto eu pedir para Deus saiu minha condenação. Eu vou ter que tirar um ano e dois meses, um ano eu alcanço no mês que vem, em outubro, ai só restam dois meses e eu vou conseguir ir embora com ele. Cynthia: Você vai sair junto com ele então. Então você está quase para sair. Érika: Com fé em Deus, de tanto que eu chorei. Suelen: Mas tem mulher que não sai junto com o filho né? Érika: Tem, já vi bastante. Suelen: Vai para onde o bebê?

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Érika: Vai embora com a família, quem não tem família fica no abrigo, até conseguir que a família vá buscar. Suelen: Como que fica o clima lá dentro? Érika: Ah eu já chorei bastante de ver, saber que o meu estava na barriga e poderia acontecer isso. De ver as crianças indo embora, porque a gente pega amor no filho das outras né, porque cresce com a gente. Como se fosse nosso também, porque a gente ajuda a cuidar quando sai do hospital, tem algumas que ganham cessaria nós ajudamos elas na dieta. É bem triste. Suelen: Como é a sensação? Parece que nunca mais vai ver? Érika: Parece que nunca mais, arranca um pedaço da gente, é bastante triste. Parece que está levando nossa parte assim sabe, uma parte que. A coisa que nós temos de mais preciosa são os nossos filhos. Cynthia: O que foi pior para você? Viver na rua ou estar presa aqui? Érika: Eu nunca fui uma pessoa que eu possa dizer para você assim feliz; vivi na rua, como eu contei minha história para vocês e vivi aqui, os dois foram difíceis, mas aqui dentro... Na rua a gente está livre, se torna solta, vai para um lado, para o outro, para onde você quiser. Aqui dentro você depende de um agente para abrir a porta para você sair, para você ir a um hospital ser consultada, tudo assim, e é bastante difícil. Eduardo: Você já viveu uma situação muito tensa aqui dentro? De briga? De humilhação? Érika: Já vi bastante, bastante briga. Do nada as pessoas estão discutindo daqui a pouco uma agride a outra, ai uma sai sangrando, a outra sai. Acontece bastante. Cynthia: Mas são brigas por motivos sérios? Érika: Porque assim, é ficar trancado em um quadrado pequeno. Tem lugares que tem 40 e poucas mulheres, onde eu estou tem 12, é o lugar que tem menos. Ai fica aquele dia, uma não conhece a outra, uma é mais abusada que a outra, que existe, uma não respeita a outra. Ai uma começa a discussão e quando vai ver já deu em porrada, é assim. Suelen: Lá em São Paulo você já tinha passagem pela Polícia ou é a primeira vez? Érika: Não, é a primeira vez que eu cai.

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Eduardo: Quando você chegou aqui você ficou naquele isolamento antes de ir para o convívio? Érika: Não porque eu já estava com barriga grande, mas eu fiquei um mês e quatro dias que eu fui presa em Paranhos, e em Sete Quedas eu fiquei em uma cela sozinha, um mês e quatro dias, sem televisão, sem rádio. Eduardo: E como passa o tempo em uma situação dessas? Érika: Eu tive que passar chorando, eu e o colchão. Chorei bastante. Eduardo: E quando você chega a uma cela com outras mulheres que você nunca viu na vida? Elas perguntam quem é você? O que você fez? Existe uma coisa assim social? Érika: Pergunta. Existe. Pergunta assim qual foi meu artigo, ai eu respondo. Depois cada uma explica como que é, porque cada cela tem uma regra e ai a gente passa a viver. Eduardo: Tem cela, que você sabe por ouvir, que são bem tensas? Quem em alguém mandando em tudo e tem que obedecer? Existe isso? Érika: Não, no caso assim, eu sou a mais antiga no meu alojamento, então o que acontece, a gente tem uma regra que é para viver bem, não sair essas confusões à toa, uma não agride a outra, então a gente escreve tudo no papel e coloca. Uma respeitar o espaço da outra, para a gente poder viver bem, e aquilo a gente tem que respeitar. Eduardo: Você acha que o fato de você ser uma mulher pobre, negra, tudo isso influenciou para você ter tido essa vida? Você acha que faltou oportunidade para você? Érika: Com certeza, falta. Faltou bastante porque onde eu moro eu procurei bastante emprego, só escutava não, entreguei bastante currículo e só escutava não, não. Cheguei a andar de uma cidade a pé para outra entregando currículo e só ouvia não. Suelen: Érika e aqui dentro como são os cuidados básicos? Você recebe absorvente, como que é? Érika: Todo mês eles dão um kit com shampoo, condicionador, sabão em pó, sabão em pedra. Suelen: E nunca faltou? Érika: Quando falta como eu faço faxina, eu compro. Porque eu não faço faxina só de uma pessoa, faço de mais gente. 89


Cynthia: Sabe o que eu fiquei curiosa, como funciona esse sistema de reclamação de vocês? Cada uma escreve e põe em uma caixinha? Érika: Como assim? Cynthia: O que você disse da cela, que para vocês respeitarem vocês escrevem? Érika: Não, a gente cola na parede. Cynthia: Cola na parede? Eduardo: É tipo um mural de regras é isso? Érika: É. Em uma folha de caderno. Para a gente poder viver bem né, senão uma massacra a outra. Isso que acontece. Eduardo: Já passou desejo, fome, como mulher grávida? Érika: Passei bastante fome, até hoje eu passo dificuldade. Eduardo: Porque tem aquela marmita naquele horário e depois se você ficar com fome não importa. Érika: Depois acaba. Quem tem dinheiro, aqui tem uma cantina né, quem tem dinheiro compra, quem não tem fica olhando, que é o meu caso. Eduardo: Então até aqui dentro essa desigualdade social que te castigou a vida inteira te afeta ainda? Érika: Me afeta bastante. Eduardo: Isso dá uma revolta em você? Érika: Não, dói bastante, hoje em dia eu não me revolto mais. Antes eu fui bastante revoltada, mas hoje em dia eu prefiro aguentar isso a voltar para esse lugar, se eu sair daqui hoje em dia e tiver que passar por isso, desigualdade né, eu passaria, mas não voltaria para esse lugar. Cynthia: Você quer mudar de vida quando sair? Érika: Com certeza, quero e peço bastante ajuda. Quem puder me arrumar alguma coisa, sabe um emprego assim, é o meu maior sonho poder viver livre, sem dever nada para justiça e poder criar meus filhos, que faz um ano que eu não vejo. Eduardo: Olhando assim para o seu passado você não se revolta mais com esse seu pai adotivo que tentou te violentar? Não se conformou, mas você está em paz? Érika: A gente sempre guarda uma mágoa, mas perdoo ele. Ele era alcoólatra também. Perdoo ele. Mas a gente se revolta bastante, eu olho assim às vezes, não é revolta, é 90


mágoa. O que eu estou passando, porque se eu tivesse um pai e uma mãe, eu penso às vezes, que me criasse com todo amor, todo carinho, igual eu tento dar para os meus filhos, eu não estaria aqui nesse lugar, se tivesse uma oportunidade. Suelen: Eu vi que você tem tatuagem, você fez aqui dentro ou fez na rua? Érika: Não, eu fiz na rua. Suelen: É o nome dos seus filhos? Érika: É o nome dos meus filhos, e aqui é o da minha mãe. Suelen: E do outro lado? Érika: Aqui é um gato. Eduardo: Você gosta de gato? É um gato preto? Érika: É. Eduardo: Legal. Érika, a gente quer falar bastante essa questão de vida na rua no nosso livro. É muito interessante você se confrontar com essa rotina completamente diferente. Como era sua rotina na rua? Você dormia no banco da praia, acordava ia para onde, como é que era? Érika: Geralmente lá em São Paulo é bem agitado né. Então eu ficava na rua com as meninas até 04h30min da manhã, quando chegava essas horas era onde doía, porque cada uma tinha a sua casa, entrava na sua casa e eu ficava sem saber para onde eu ia. Eu ficava andando na rua, sentava no banco e assim eu ia conhecendo as pessoas, sentava, conversava comigo. Eu conhecia as pessoas, me ofereciam uma noite de sono na casa e eu ia dormir. Mas tudo em interesse do meu corpo. Dizia te levo para dormir ali, mas nunca foi de graça, sempre eu tinha que dar meu corpo para poder dormir em troca. Eduardo: E durante o dia como que era? Érika: Durante o dia eu ficava na rua, comia. Como eu sempre oferecia, dava um dinheiro para eu comer. Eduardo: E a droga que você vendia era para todo tipo de gente? Érika: Como assim? Eduardo: Assim você vendia droga né, mas tinha gente rica e pobre querendo comprar?

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Érika: Tem, acho que tem gente que nem precisava, porque tinha condições. Já cansei de ver filho de gente que tem dinheiro, porque você olhava para a pessoa e via que a pessoa tinha condições comprando droga. Eduardo: E como é que eles percebiam que você estava vendendo? Como é que chegava um no outro? Érika: Porque onde eu moro em São Paulo geralmente tem uma praça que a gente grita, fica gritando, quem tem droga tem. A gente ficava gritando, anunciando, como se fosse uma venda do comércio. Eduardo: Como se fosse normal? Érika: Como se fosse normal. Cynthia: Que horas vocês faziam isso? De madrugada? Érika: De madrugada. Eduardo: Você acha que é justo, você uma pessoa que viveu a desigualdade social e fez um tráfico para ganhar um dinheiro, é justo você estar presa? Érika: Eu falo para você que eu tentei dar de tudo para os meus filhos, por isso que eu entrei nessa, para eles não passarem o que eu passei. Mas só que eu acho justo porque não é uma coisa comum, eu tenho que pagar, eu errei, eu tenho que pagar. Antes eu não achava, mas hoje em dia. Eduardo: Mas você não acha que você errou porque a sociedade errou com você? Érika: Precisava. Suelen: Te faltaram oportunidades? Érika: Mas também se eu me esforçasse mais um pouco, eu não precisava ter caído nisso, foi força de vontade minha também. Cynthia: Porque eles dizem que o presídio é para reeducação, você acha que isso funciona mesmo? Érika: Para mim ajudou bastante. Cada gesto, cada cena que eu vejo que eu achava que era difícil, hoje em dia eu falo que não é difícil se eu sair. Eduardo: O presídio reeduca então porque ele é cruel? Porque você vê o fundo do poço e quer sair? Érika: Você quer sair. Eduardo: Você acha que isso está certo? O presídio ser dessa forma? 92


Érika: Para bastantes pessoas assim; acho que para mim serviu bastante, melhora quem quer para mim né, melhora quem quer. Aqui eu acho que só volta quem não gosta de, né... Quem quer voltar mesmo, quem não quer uma opção para mudar, quem não quer mudar de vida, eu quero bastante. Eduardo: Nessa vida na rua você chegou a roubar? Érika: Não senhor, não roubei. Não sou de acordo. Por isso fui arriscar a minha vida e não a de ninguém. Eduardo: Entendi. Quando você sair daqui você tem esperança de ser feliz ainda? Érika: Espero que um dia, hoje eu estou com 29 anos, e eu tenho fé em Deus que antes de eu morrer eu vou construir um lar para os meus filhos para eles não passarem pelo que eu passei na vida. Suelen: Você passou por algum de momento de felicidade aqui? Érika: O único momento de felicidade foi quando o meu filho nasceu, que é o que me dá bastante ânimo é ele. Suelen: Ele é quem te dá força para continuar? Érika: Para eu viver, olhar para trás, nem querer olhar para trás, pelo que eu passei, pelo que eu fiz. Ele me dá bastante força. Suelen: Você não tem nenhum relacionamento? Érika: Não. Eduardo: Aqui dentro nunca teve? Érika: Não, não sou. Eduardo: Agora que eu percebi que já estou perguntando se você já teve namorada. Érika: Não, essa parte... Não. Suelen: Mas e a carência? Érika: Eu não sei né, tem gente que tem esse negócio de carência. Eduardo: Você tem filho também né, não tem tempo... Érika: Não, a gente nem pensa eu acho assim. Tem pessoas também que nem tem filho, que eu conheço que eu converso que não tem esse pensamento, porque quem quer sair daqui não quer se envolver. Porque são umas coisas que a gente vê que não é certo, não é discriminação, porque a gente não tem, mas tipo uma opção, cada um tem uma opção de vida. Eu, no meu caso, não me envolvo. 93


Eduardo: Ficar longe do seu filho você acha o que? Érika: É bastante ruim né, bastante, porque eu queria eu estar cuidando, estar dando banho, estar trocando, mas é o melhor lugar para ele. 8.1.5 Naywsany

Eduardo: Então, como é seu nome? Naywsany: Naywsany. Eduardo: Quantos anos você tem? Naywsany: Tenho 23. Eduardo: 23? Naywsany: 23. Eduardo: E o que você aprendeu a fazer aqui? Naywsany: A primeira coisa que eu fiz, eu ganhei o concurso de Miss aqui. Eduardo: Você ganhou ano passado? Naywsany: Foi. Eu ganhei o Miss daqui e o estadual. Cynthia: Ah que legal, eu vim no ano passado. Naywsany: Você veio? Cynthia: Aham, eu trabalhava na época. Naywsany: Ai eu ganhei, depois a diretora me colocou no curso de maquiagem do Senac, ai eu fiz o curso de maquiagem, gostei muito de fazer que eu adoro maquiagem, depois agora por último, no mês passado teve curso de manicure. Eduardo: Todos os cursos são aqui dentro ou você saia? Naywsany: Não aqui dentro.

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Eduardo: E você aprendeu bem o ofício? Quando você sair daqui você consegue trabalhar com isso? Naywsany: É lá fora eu já trabalhava de manicure, meu marido, meus parentes todos mexem com negócio de salão, beleza, estética... Então eu já gostava já, e a hora que eu sair eu pretendo continuar. Eduardo: Você só se aperfeiçoou então... E como é que você veio parar aqui dentro? Naywsany: Faz dois anos e cinco que eu estou aqui, que eu estou presa, e eu era casada, tenho dois filhos, e ele mexia com negócio assalto, fazia assalto, e minha participação era levava deixava eles, ai eles falavam ah leva em tal lugar e deixa lá, ai eu levava, deixava com o meu carro e voltava para minha casa. Eduardo: E você sabia o que ele estava fazendo? Naywsany: Sabia, sabia. Eduardo: E você já sabia antes de ficar com ele ou? Naywsany: Não; quando eu fiquei com ele, quando eu casei com ele, ele não mexia com nada errado, ele trabalhava, ai depois ele foi conhecendo os amigos e os amigos foram chamando, e ele foi indo. Eduardo: E o que você sentia em relação a isso? Você ficava com medo ou você achava que não ia dar em nada? Naywsany: É. Eu achava que não ia dar em nada, porque eu não tinha participação entendeu, quem tinha era mais ele, eu só levava e deixava. Eduardo: E ele está preso também? Naywsany: É; ele está preso.

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Eduardo: Mas você não ficava desconfortável de viver com esse dinheiro, que você não sabia de onde vinha exatamente? Naywsany: É que eu não tinha noção né, hoje em dia eu já tenho a noção né, das coisas. Eduardo: Você era bem nova né? Tinha 20 anos. Naywsany: É. Cynthia: Seus filhos estão com quem? Naywsany: Meu filho, ele tem sete anos, ele tá com o meu primeiro marido, com a avó dele; e eu tenho uma filha de quatro anos que mora com os meus pais, mora com o meu pai. Cynthia: E eles vêm te ver? Naywsany: Vem, eles vem. Cynthia: É sábado né? Naywsany: É, todo sábado. Eduardo: Sua família também te visita? Tua mãe e tal? Naywsany: Vem, todo domingo eles estão ai. Eduardo: Você não vive muito solitária assim então? Ou aqui dentro é impossível não ser solitária? Naywsany: Ah é impossível de ser né, porque você mora dentro de um quadrado com 30 mulheres né. Eduardo: É difícil conviver aqui? Naywsany: Um pouco, um pouco, mas a gente vai levando, eu trabalho agora na enfermagem né, e fico mais o dia inteiro para fora; o dia inteiro; levanto oito horas já 96


estou saindo de dentro da cela e volto sete horas da noite, deito e durmo e para mim já passou o dia. Eduardo: E sua pena é de quantos anos? Naywsany: É de 20 anos. Eduardo: 20 anos? Porque tudo isso? Cynthia: Isso que eu pensei. Naywsany: Porque não sei, o juiz me condenou muito alto, eu tinha pegado 22 anos, ai meu advogado recorreu aqui e caíram dois anos, agora ele vai recorrer em Brasília. Eduardo: Mas por quê? Os assaltos que o seu marido fez levou a morte de alguém? Porque que é tanto? Naywsany: Não, não levou a morte de ninguém; as vítimas não me reconheceram, falaram até que eu não tinha participação; ai foi achado 800 g de maconha dentro da minha casa e meu ex-marido assumiu tudo falando que era dele, mas mesmo assim o juiz me condenou 20 anos. Eduardo: E seu marido foi condenado a quantos anos? Naywsany: 24 anos. Eduardo: É muita coisa né. Naywsany: É né. Suelen: E você sendo primária. Naywsany: Meu advogado apresentou tudo, que eu trabalhava; tudo. Eduardo: Mas foram muitos assaltos? Naywsany: Foram três; de um a gente foi absolvido, e um eu fui condenada, e o outro foi o negócio da droga, ai dos dois deu vinte anos. 97


Suelen: Porque de um processo vocês foram absolvidos? Naywsany: De um as vítimas não me reconheceram, eu falei que não tinha participação nenhuma e o juiz me absolveu; de outro... Que o juiz que era para me condenar mesmo não foi ele, foi uma mulher que me condenou; o que me ouviu não foi ele que me condenou, foi uma mulher que me condenou. Suelen: E foi um assalto grande? Naywsany: Não, assalto de camionete, meu ex-marido pegava a camionete e levava para o Paraguai. Eduardo: Ex-marido? Você não é mais casada? Naywsany: Não, não sou mais. Eduardo: E o que aconteceu? Naywsany: Não sei, eu quero viver outra vida e ele eu sei que não vai sair dessa vida, então eu pretendo viver outra vida lá fora. Eduardo: E como foi quando você foi presa? Foi um susto muito grande? Naywsany: Nossa, eu estava dormindo, estava dormindo com os meus dois filhos e a minha cunhada, e ai a hora que eu vi, escutei só bate na janela, e eu levantei, achei até que era o meu pai, ai já estava cheio de polícia minha casa, não sei até hoje não sei como a polícia achou minha casa; às vezes assim a minha família fala que foi até ele que entregou minha casa entendeu?! A hora que a gente levantou já estava todo mundo lá, bateu revista tudo, bateram até na minha cunhada que era menor e não tinha nada a ver, ela ficou presa, porque ela estava na minha casa né; ai de lá eu fui para a delegacia, fiquei cinco dias na delegacia, para depois vir para o presídio feminino.

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Eduardo: E como você se sente assim, sabendo que ainda tem 18 anos pela frente? Mas não cumpre vinte anos né? Naywsany: Não, tem que tirar... Eu já estou dois e cinco né, ainda meu calculo que chegou agora fala que eu ainda tenho que ficar mais três anos, fora esses dois e cinco que eu estou, mas trabalhando mais uns dois anos, isso se não cair né, mas eu tenho certeza, meu advogado fala que vai cair, porque é uma condena muito alta para primária. Eduardo: Muito, muito alta. Cynthia: E o que você achou assim? Porque não era esse seu mundo quando você entrou aqui? Quando você entrou aqui, como você reagiu como foi a convivência com as outras detentas? Naywsany: Nossa eu chorei muito, chorei muito... Eu não comia, fiquei uma semana sem comer, porque eu cheguei já me deram aquela marmita com colher de plástico, e você é acostumada na rua né, desde pequena acostumei a ter vido boa na rua, ai cheguei já me deram aquele negócio... Nossa foi horrível para mim os primeiros dias, porque quando você chega você fica em uma cela que não tem televisão, não tem ventilador, chama corró... Ai você fica trinta dias para ir para o convívio, ai depois que eu fui para o convívio melhorou, que lá tinha minha cama e tudo, ai depois disso já comecei a trabalhar para distrair minha mente. Eduardo: Sua vida lá fora era classe média? Pobre? Como era sua renda? Naywsany: Classe média. Eduardo: Você morava em que bairro? Naywsany: Morava lá no Nova Lima. 99


Eduardo: E nunca te faltou nada? Naywsany: Não, nunca me faltou nada. Suelen: Como foi sua infância? Seus pais eram casados? Naywsany: Meus pais eram casados; nós somos entre quatro irmãos; ai quando eu tinha meus sete anos eles separaram, e eu fui morar com o meu pai; sempre fui mais perto do meu pai que da minha mãe... Fui morar com o meu pai, eles separaram, tiveram que vender a casa, dividir as coisas que tinham; ai eu morei com o meu pai até meus 16 anos, com 16 anos eu fui morar com a minha mãe; porque eu queria sair, e meu pai não entendia, queria que eu estudasse e ficasse sempre ali com ele. Minha mãe não, sempre deixou a gente fazer o que a gente queria, ai fui morar com a minha mãe, disso eu já comecei a namorar, fui me relacionando com outras pessoas e fui indo... Mudei para outro bairro. Eduardo: E você engravidou muito cedo? Como é que foi? Naywsany: Engravidei com 16 anos Eduardo: Desse marido que está preso? Naywsany: Não, esse não mexe com anda de errado. Eduardo: Você teve dois maridos então? Naywsany: Tive, tive dois maridos. Eduardo: Nossa é muito rápido né, o que deu errado nesse primeiro casamento? Naywsany: Não sei, eu fiquei três anos com ele, ai engravidei, quando meu filho tinha um e três, eu resolvi que não queira mais e fui morar com os meus pais. Eduardo: E conheceu esse outro? Naywsany: Ai conheci esse outro 100


Eduardo: E tem um filho dele também? Naywsany: Tenho uma filha dele, tem quatro anos minha filha. Eduardo: Ela também tá morando com o primeiro marido? Cynthia: Não ela está morando com a avó. Eduardo: Ah tá, entendi. E você estudou até que série? Naywsany: Até a 6ª. Eduardo: E porque você parou? Naywsany: Porque eu tive filho muito nova, e eu nunca gostei de deixar eles nas mãos de ninguém, gostei de sempre eu tá ali cuidando, e não tinha tempo... Uma vez até tentei, deixei meu pai até cuidando deles para eu ir estudar, mas não dá né, chegava meu pai cansado e eles davam o show e meu pai já estava cansado. Eduardo: E como é ter que ficar longe deles? Naywsany: Nossa é horrível, fazia quatro meses que eu não via eles, ai quando foi sábado agora ele vieram me ver. Eduardo: Porque demorou tanto para eles virem te ver? Naywsany: Porque minha irmã agora arrumou um serviço na Marisa, ai é difícil a folga dela, e eles tão na carteirinha dela, então como ela não tem folga e não tem como passar na carteirinha do meu pai, tem que ficar no nome dela, ai agora que ela veio trazer eles. Eduardo: E eles sentem sua falta também? Naywsany: Sentem, eles falam: mãe quando que você vai sair daqui? Eu falo logo... Meu filho mesmo ele fala: mãe você vai sair no natal? Ai eu falo: vou... Ai quando passa ele fala: mãe porque que você mentiu o q mim... Ele tem sete anos, ai ele já entende 101


mais, porque a menininha quando eu fui presa ela tinha um e cinco, ela não entende tanto. Eduardo: Você mente para tentar o conforta? Naywsany: Aham. Cynthia: Vocês não têm aquelas saidinhas que eles falam? Naywsany: Não. Cynthia: Não tem aqui? Naywsany: Não. Eduardo: Nem no natal, nem nada? Naywsany: Não, não tem. Suelen: Ninguém tem? Naywsany: Ninguém, até hoje eu nunca vi desde quando eu estou aqui, no semiaberto sim tem, você vai e depois de sete dias volta, mas aqui não. Suelen: E você está bastante maquiada, quem traz maquiagem para você? Naywsany: Minha família Suelen: Eles trazem, mas você compra aqui? Naywsany: Aqui tem uma lojinha que vende, mas eu compro lá da rua. Eduardo: Você tem portão 02 então? Naywsany: Tenho, tenho portão 02. Eduardo: Você consegue explicar porque o seu ex-marido se envolveu nisso, se vocês não estavam passando dificuldade?

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Naywsany: Então, não sei, acho que foi a ganância, de ver que ele tinha dinheiro mais fácil e não precisava trabalhar para ter dinheiro mais fácil... Eram 15 mil por semana que ele tirava. Eduardo: Como que ele tirava 15 mil por semana? Era com o trabalho sem o assalto? Naywsany: Não, estou falando com o assalto. Eduardo: Ah tá, senão eu queria esse emprego. Eduardo: E como era o momento em que você estava dirigindo para deixar ele lá e ir embora? Dava medo? Adrenalina? Naywsany: Dava medo assim, eu pensava nossa já pensou se a polícia para e eu estou com os meus filhos aqui, porque eu sempre levava os meus filhos porque de lá eu já ia para a minha casa... Porque eles ficavam no local e não tinha como deixar o carro com eles, senão ele mesmo pegava o carro e ia lá, ai ele falava: vamos lá, ai você pega o carro e traz de volta, porque era o nosso carro mesmo, ai eu deixava eles no local e ia embora. Eduardo: E eles iam como embora? Com a camionete roubada? Naywsany: Aham iam três meninos... Dois meninos rendiam as vítimas e ele pegava a chave e ia com a camionete até Ponta Porã, ai quando ele chegava lá ele ligava para os meninos e falava pode soltar as vítimas, ai eles soltavam. Eduardo: Quantos anos ele tem? Naywsany: Meu ex-marido? Acho que ele tá com 29. Eduardo: A gente imagina que aqui dentro pode ser meio barra pesada, como você faz para driblar essas coisas? Ficar tranquila?

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Naywsany: Trabalhando, saindo... Eu mesma posso ter acesso, andar, aqui em quase tudo, então eu me distraio e volto para a cela só sete horas da noite. Eduardo: Mas já implicaram com você? Já quiseram arrumar briga com você? Naywsany: Não, nunca tive nenhum recolhimento. Sempre tem as pessoas invejosas aqui dentro, mas... Eduardo: Nem quando você virou miss? Naywsany: Tem guria aqui dentro que não gosta de mim, ai falava: ai ela vai perder, não vai conseguir representar campo grande... Ai eu ganhei o primeiro e o segundo. Eduardo: Como foi isso? Você imaginava isso aqui dentro? Naywsany: Não, não imaginava. Já desfilei lá fora, naquele Star Model que teve, eu e minha irmã. A gente desfilava lá fora, participava de concurso, mas aqui dentro eu nem queria participar, porque não queria aparecer na televisão, ficava com vergonha, então a diretora conversou comigo: ah você já está presa, já apareceu na televisão quando foi presa... Ai eu fui, mas gostei de participar, gostei. Cynthia: Esse ano tem de novo né? Naywsany: Tem. Mês que vem. Cynthia: E você pode participar? Ou só entrega a faixa? Naywsany: Eu só entrego a faixa. Suelen: Como fica o preparativo ai dentro? Fica todo mundo ansioso? Naywsany: Fica, porque é uma menina de cada cela. Como eu sou a mais velha de lá, a gente que escolhe, lá na minha cela já escolhi duas meninas de lá. Tem guria que é bonita, mas não quer ir porque não quer aparecer na televisão, pensa: ai, o que as minhas amigas vão falar?! 104


Eduardo: Você ficou orgulhosa de ser a miss? Naywsany: Eu fiquei por uma parte eu fiquei, até meu pai gostou. Cynthia: Eles assistiram? Naywsany: Aham, eles assistiram. Cynthia: A gente entrevistou outras pessoas e a maioria não tem visitas, você acha que o fato de ter visitas te ajuda a ter forças para aguentar isso aqui? Naywsany: Com certeza, acho que quem não tem visita é mais difícil né, porque às vezes não tem um sabonete, ou passa vontade de comer alguma coisa. Cynthia: E esse negócio de kit que eles falam? Eles dão para todo mundo ou só para quem não tem visita? Naywsany: Só para quem não tem visita, ou ás vezes se eles dão para mim eu dou para alguém, uma das meninas lá da cela. Porque tem guria lá da cela que para ganhar um dinheiro faz uma faxina, lava uma roupa. Eu mesmo como fico o dia inteiro fora da cela não tenho tempo de lavar roupa, e cada dia a faxina é de um, então tem que pagar, tem umas meninas lá que ganham dinheiro e compram as coisas. Eduardo: Você recebe dinheiro pelo portão 02? Naywsany: Meu pai me manda. Suelen: E pelo trabalho? Naywsany: Não. Eduardo: Ninguém virou as costas para você da sua família? Naywsany: Não, graças a Deus não. Eu achei que meu pai ia virar, porque ele sempre foi sistemático, e ele nunca desconfiou que a gente mexesse com isso, tanto é que quando eu cai presa eu falei: nossa meu pai não vai querer nem me ver. Ele foi o 105


primeiro, na primeira visita que eu tive, ele foi o primeiro a chegar à quadra. Só estava eu e ele na quadra Eduardo: Você ficou emocionada? Naywsany: Nossa eu chorei até, e ele também chorou. Eu nunca tinha visto meu pai chorar, naquele dia eu vi pela primeira vez. Suelen: Quando você levava o seu ex-marido nunca passou pela sua cabeça que um dia você pudesse ser presa? Naywsany: Passava né, mas eu achava que não ia dar nada para mim. Porque ele falava assim: se acontecer alguma coisa, nunca vai dar nada para você porque eu vou assumir, vou falar que foi tudo eu. Realmente ele falou, só que... Suelen: E antes de ele se envolver já tinha passado alguma vez pela sua cabeça? Naywsany: Não, nunca tinha imaginado. Ninguém da minha família foi preso. Uns tempos antes, uns seis meses antes de eu ser presa meu irmão foi preso com droga, mas não era dele. O viciado caiu e como ele estava perto da casa do meu irmão, e a polícia falou que era do meu irmão. Meu irmão ficou seis meses preso e o advogado conseguiu tirar ele de alvará, logo depois ei fui presa; mas eles não mexem com nada de errado, nenhum dos meus irmãos. Eduardo: Você tem alguma religião que você se apegou aqui dentro? Naywsany: Desde lá de fora, evangélica. Porque a minha família, meu vô é pastor, minha tia é missionária, minha vó é missionária. Eduardo: De qual igreja? Naywsany: Assembleia. Eduardo: E aqui dentro você se apegou mais ou normal? 106


Naywsany: Não, eu me apeguei mais. Porque nesse lugar você tem que se apegar, porque dentro da cela é muita coisa ruim, é muita briga, muita xingação, se você fica lá dentro você sai carregado. Quando chego à noite, antes de dormir, oro, peço para Deus e durmo. Eduardo: E as condições de vida? De higiene? De conforto? A comida? Naywsany: A comida agora tá boa, mas quando eu cheguei nossa senhora... Agora tá bom, lá eu tenho minha cama. É que depende de cada barraco, lá as meninas são limpinhas, toda hora tá limpando, tá deixando arrumadinho, mas é grande, o espaço é grande. Eduardo: Mas comparando com a sua vida fora daqui é um choque? Naywsany: Com certeza. Cynthia: Com os cursos, é difícil? As vagas são muito disputadas ou a maioria não procura? Naywsany: É que tem guria que fala: ai eu quero fazer, e quando chega lá vê que não é aquilo que ela quer e desiste, ai colocam outras pessoas. A maioria dos cursos tem quinze vagas, agora vai ter um de 30 meninas, 15 de manhã e 15 à tarde. Tem uma que falam que quer, mas dai vai, chega lá e tira o nome, ai já perde aquela vaga, mas é muito disputado. Suelen: E a vaidade? Como fica a vaidade aqui dentro? Naywsany: A vaidade? Eu mesmo sou muito vaidosa, mas, por exemplo, tem coisa que não entra, não entra perfume, é muito difícil de entrar e a gente vai se virando. Cynthia: Alicate, essas coisas pode ter nas celas? Naywsany: Pode. Poder ter. 107


Cynthia: E ninguém usa na hora da briga? Suelen: Você já viu alguma briga feia aí dentro? Naywsany: Até hoje eu acho que não. Eduardo: O que você espera para o seu futuro quando você sair daqui? Naywsany: Eu espero sair logo, se Deus quiser, cuidar dos meus filhos. Agora eu estou em um negócio de enfermagem, ai já me interessou em alguma coisa, então quero terminar meus estudos e fazer um curso de enfermagem. Suelen: Aqui tem escola, não tem? Naywsany: Tem. Suelen: É difícil de entrar? Naywsany: Não, não é difícil, mas eu não consigo me concentrar aqui dentro. Eu já tentei. Todo ano eu tento, ai eu vou, começo, mas prefiro ficar para fora. Eduardo: Como que é esse negócio de enfermagem, você está ajudando na enfermaria? Naywsany: Eu sou auxiliar. Eduardo: E você gostou? Naywsany: Gostei. Eduardo: Agora você vai querer fazer um curso de enfermagem? Naywsany: É. Eduardo: O que você quer para o futuro dos seus filhos? Porque você é aquela pessoa que ninguém imaginou que seria presa e foi, como você pretende evitar que seus filhos também caiam nisso? Naywsany: Acho que dar muito conselho né?! 108


Eduardo: Você acha que faltou isso da parte dos seus pais com você? Naywsany: Da parte do meu pai com certeza não, ele nunca quis isso para mim, ele sempre quis que eu estudasse e estivesse ali do lado dele. Da parte da minha mãe, ela sempre foi muito liberal, nunca ligou do que a gente fazia, deixava a gente fazer. Eduardo: Você acha que se você tivesse os dois, pai e mãe presentes, isso não teria acontecido? Naywsany: Eu acho que não. Cynthia: Uma curiosidade que eu tive: você pensa em levar sua filha ver o pai no dia em que você sair? Ela vai ver o pai? Naywsany: Ela vai ver o pai, minha ex-sogra leva ela ver ele. Eduardo: E como tá o seu contato com ele, você não tá assim ligada? Ou só separou e está de boa? Naywsany: Só separou e está de boa, não tenho contato com ele. Suelen: Você tem namorado? Naywsany: Não, aqui não, vamos ver a hora que eu sair. Eduardo: Aqui dentro a gente conversou com várias meninas que começam a ter relacionamentos com outras mulheres, isso já aconteceu com você? Naywsany: Já, já aconteceu. Eduardo: E como foi a experiência? Naywsany: Sei lá, foi diferente, porque a menina que eu fiquei não tinha jeito de mulher, ela tinha jeito mais de homem, então eu me relacionei, fiquei um ano com ela. Eduardo: Era uma coisa que você imaginava? Naywsany: Não, não imaginava não. 109


Cynthia: Você acha que foi carência que você sentia? Naywsany: Eu acho que foi, porque logo quando eu cheguei aqui, quem largou mesmo de mim foi meu ex-marido e aquilo para mim, nossa, fiquei três anos casada com ele na rua... E essa guria ela era minha amiga ainda. Eduardo: Mas você não se arrepende, foi bom? Naywsany: Não, não me arrependo não. Cynthia: E como é que foi quando você foi miss? Teve muito assédio? Naywsany: Teve, mandaram até email para a diretora, um cara lá de Uruguaiana mandou para a diretora, não sei de onde que é, lá do Pará. Eduardo: Pedindo para te conhecer? Naywsany: É. Eduardo: E aqui dentro as meninas que gostam de meninas ficam atrás de você? Naywsany: Ficam com certeza. Eduardo: Você é tipo a miss mesmo aqui dentro, ai que legal. Eduardo: Eu fico imaginando como deve ser você acordar todo dia e ver que você tá aqui dentro e não pode sair. Naywsany: Todo dia que eu acordo eu choro, porque a primeira coisa que você abre olho e olha é para a grade; ai eu choro, levanto, tomo banho e saio para trabalhar. Porque é ruim você acordar longe dos seus filhos, eu sempre fui muito apegada com os meus filhos, nunca larguei meus filhos para nada. Acordavam sempre do meu lado, até dormir comigo eles dormiam. Eduardo: E o que faz a vida aqui dentro ser suportável? O trabalho? O concurso de miss? Essas coisas? 110


Naywsany: Eu acho que você tem que tentar tirar aqui dentro da melhor forma possível, porque se você for se estressar por qualquer coisa você já briga já se atrasa, vai parar na forte. Então assim, me xingou, tá bom, eu só entrego na mão de Deus e fico na minha. Eu estou há dois anos e cinco aqui e nunca tive um recolhimento, nem nada, e tem guria que acabou de chegar e já está recolhida, na forte. Nunca fui de briga. Cynthia: Eles costumam dizer que o presídio é para a reeducação, você acha que realmente acontece? Naywsany: Realmente acontece, mas depende da pessoa, porque eu aprendi coisa ruim aqui dentro e coisa boa aqui dentro, mas tem pessoas que para ele tanto faz vir presa. Tem guria que eu estou a dois e cinco aqui dentro e já saiu e voltou seis vezes. Suelen: Você acha que os cursos que você fez ajudaram nessa reeducação? Você acha que se você tivesse ficado na cela, você teria a mesma cabeça? Naywsany: Eu sempre busquei a minha melhora aqui dentro, desde quando eu cheguei, qualquer curso que fala estou dentro. Esses dias eu entrei no de dança árabe, não gostei, sai. Todo curso eu falo para me colocarem, é bom para o juiz ver que você está mudando. Desde que eu cheguei aqui sempre procurei trabalhar, já trabalhei no salão da fazer unha, no artesanato para ajudar a fazer boneca, limpando sala, na faxina da quadra, no portão 02 que foi meu último trabalho, ai fui para o jurídico, não gostei e fui para a enfermagem. Eduardo: Uma coisa que é importante para gente entender, você ganhou um concurso de miss, mesmo estando aqui dentro você foi feliz naquele momento? É possível ter um momento de felicidade genuína aqui dentro? 111


Naywsany: Fui feliz naquela parte em que ela falou que eu tinha ganhado, porque todo mundo achava que eu não ia ganhar, e tinha muita gente invejosa que eu sabia, teve muita gente que não deu apoio para mim quando eu falei que queria ir, então acho que o momento em que ela falou que eu ganhei o miss estadual, acho que foi o momento mais feliz, ai todo mundo da minha cela gritou, acho que foi aquele momento. Eduardo: Mesmo quando você estiver lá fora você vai lembrar aquele momento feliz? Naywsany: É; como uma parte feliz aqui dentro. Suelen: O que você sente mais falta lá de fora? Naywsany: Da minha família. Suelen: Do convívio? Naywsany: Sempre fui muito apegada, sempre morei perto de vó, tio, primo. Hoje mesmo vieram até meu primo e meus sobrinhos me verem, me deixaram ver eles dez minutos. Sempre fui muito apegada. Eduardo: Você tem medo de sofrer muito preconceito lá fora? Na hora de buscar um emprego? Naywsany: Tenho. Eu penso, ainda mais roubo né, que é 157. Eduardo: A gente vê na televisão que as pessoas têm muito preconceito com exdetento, isso te assusta muito? Naywsany: Assusta, eu penso: a hora que sair vou arrumar um serviço, ai as meninas falam imagina a hora que você sair vão puxar a sua ficha, ler que você foi presa. Eduardo: Você tem medo que isso faça com que você volte a pensar em crime?

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Naywsany: Não, não tenho medo porque eu já decidi que isso eu não quero, isso só fez com que eu me afastasse da minha família, fez meu pai sofrer, meus filhos sofrerem, minha mãe sofrer. Eu tenho dois filhos lá fora que estão me esperando. Eduardo: A gente achou que quando a gente viesse ninguém queria fazer foto e nem dar o nome, mas na verdade foi o contrário, porque todo esse desprendimento? Naywsany: Eu já não tenho porque quando eu fui presa, eu apareci em todos os jornais. Eduardo: Melhor que te vejam feliz aqui dentro. Naywsany: Me ver mais bonita, porque quando eu vim presa eu pesava 78 quilos, porque eu ficava muito dentro de casa cuidando de filho e comendo o dia inteiro então eu engordei muito. Eduardo: Quanto você emagreceu? Naywsany: Agora eu peso 62 Cynthia: Você emagreceu aqui porque a comida era ruim ou por vontade mesmo? Naywsany: Não, eu como mesmo, e eu acho que não faz mais efeito por causa da preocupação. Cynthia: Quando você chegou, você procurou algum apoio psicológico? Eles te ofereceram? Naywsany: Eles oferecem, aqui tem, mas eu nunca vim, nunca me interessei. Cynthia: Mas a maioria procura? Naywsany: A maioria das internas vem sim. Suelen: E quando você foi presa, você falou que bateram na sua cunhada e em você? Naywsany: Bateram também, e ficaram falando que eu era bonita. 113


Eduardo: Te assediando, mas abusaram de você? Naywsany: Não, eu dormi em uma cela sozinha, ai eu ficava pensando: meu Deus se um desses caras entra aqui e tentam alguma coisa, mas não aconteceu nada. Eduardo: E esse negócio de bater não tem nada que você possa fazer? Naywsany: Quando eu fiquei na frente do juiz eu falei que eles me bateram, mas não aconteceu nada, só aumentou minha pena. Cynthia: Mas eles te batiam para você falar? Naywsany: Quando a gente caiu presa, eu cai com a minha cunhada e ela apanhou muito para falar quais outros assaltos a gente tinha feito, ai ela contou tudo, ai foi ciando no B.O. e eu não queria assinar, eu falava que não era eu, que eu não sabia, e os guri também, ai a gente apanhava para poder assinar, os policiais falaram que se eu não assinasse eu não ia subir para o presídio, e eu já estava cansada de ficar na delegacia, ai eu assinei. Suelen: Mas chegaram a te torturar? Naywsany: Não. Eduardo: Bater é o que? Dar tapa? Naywsany: Dava tapa no ouvido, soco na costela. Eduardo: Foi muito pesada à dor? Naywsany: Com certeza, os caras da CIGCOE. Foi a CIGCOE que me pegou. Eduardo: E se você fosse inocente você assinava porque não aguentava mais a dor? Naywsany: Porque não aguentava mais a dor, a maioria das pessoas eu acredito que seja isso, tem gente inocente que está presa porque assina por não aguentar mais.

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Cynthia: E você acha que sua pena seria menor se você não tivesse assinado? Você não estaria aqui? Naywsany: Com certeza Eduardo: Isso não causa revolta em você? Naywsany: Com certeza, no dia em que eu fui ouvida pelo juiz da segunda vara eu falei para ele que eu tinha assinado porque me bateram, mas a gente não tem nada a ver, o guri falaram a mesma coisa, ai a gente foi absolvido. No outro processo o advogado aconselhou a cada um assumir sua culpa, porque não tinha como, foi flagrante, acharam a camionete, as vítimas reconheceram os meninos, só não me reconheceram, eu fui a única que as vítimas não reconheceram, ai cada um assumiu e eu falei que levei só não sabia para que. Suelen: E essas tatuagens você fez aqui? Naywsany: Fiz aqui. Suelen: Tem tatuador ai? Naywsany: Não tem uma menina que fazia, ela foi até embora de bonde já. Suelen: E como que faz? Naywsany: É uma máquina caseira, eles fazem do som. Eduardo: Você não tem medo de dar infecção? Naywsany: Não, a gente pega da farmácia, tudo esterilizado, pelo menos o meu eu peguei tudo esterilizado. Nem tinha tatuagem, nem sei por que eu fiz. Cynthia: O que são essas letras? Naywsany: As letras dos meus filhos, Kelvin e Estéfani. Suelen: E doeu muito? 115


Naywsany: Não, achava que era uma dor insuportável, tanto que nem fazia lá fora e vim fazer aqui dentro. Suelen: Porque você acha que fez aqui dentro? Naywsany: Não sei, sei lá se eu amadureci e fiquei com mais coragem, até meu umbigo eu furei aqui dentro na farmácia. Eduardo: Esse relacionamento que você teve com uma menina, você se apaixonou? Ou foi só uma coisa legal, mas não chegou a ser amor? Naywsany: Não, eu não cheguei a amar não, é porque tinha aquela pessoa ao seu lado para conversar, acho que foi isso, companheirismo. Cynthia: Mais aquela carência de ter alguém aqui dentro? Naywsany: Sim. Eduardo: Mas acabou sentindo atração também? Naywsany: Sim.

8.2 Diário de campo

4/setembro Camila – A outra realidade Camila foi nossa primeira experiência dentro do presídio e, talvez, a mais enriquecedora. Logo de início ela nos deu um banho de vida, nos mostrou como quem mostra como decorou o quarto, como a vida tem faces diferentes. Ela morou na rua, usou ou usa (sei lá) drogas, traficou, roubou, apanhou de polícia, perdeu os filhos para o conselho tutelar, viu o irmão ser esfaqueado pelo pai, viu a mãe ser agredida pelo pai, e ainda assim foi morar com ele. Engraçado como ela sempre repetia que entrou para o crime devido à liberdade exagerada que ganhou do pai, e eu que achava que liberdade nunca poderia ser ruim.

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Camila, uma morena bonita, escondida atrás daquelas roupas azuis e o barrigão de oito meses. 24 anos, 4 filhos, dois com o Conselho, um com a mãe e outra na barriga. Dois maridos, o atual está preso por tráfico. Como alguém tão próxima da minha idade pode ter vivido tanto? Por suas histórias, Camila poderia ser considerada mais velha que Dona Inês. Camila nos abriu o mundo da penitenciária, até então fechado para nós. Só tínhamos falado com os oficiais, e no mundo deles tudo lá dentro corre em perfeita ordem. Ela nos contou como quem conta sobre a comida, que lá dentro rola um forte comércio, não só de drogas, mas presas fazem faxina para as outras em troca de coisas que vem de fora, como bolacha. Ela é uma delas, como não recebe visitas, faxina em troca de mercadorias. O irmão a visita de vez em quando, mas faz tempo que não vai, e mais uma vez me impressiono, elas realmente acham que ninguém precisa ir até lá, parecem não se dar conta do abandono, ou fazem isso para não enlouquecer ainda mais. Com Camila conhecemos a prisão, e um mundo que não sabíamos que existia. Internet virou outra coisa, carne de monstro, o pavilhão tremeu, andar nos panos, tantas gírias que passado um dia da visita já não consigo elencar. Ela morou na rua, virava a noite usando droga para dormir em qualquer canto até o meio dia, depois arrumar dinheiro para comer e usar mais droga a noite. Tomou banho em arbustos com torneiras das lojas, lavava a roupa, torcia e usava novamente. Ela idolatrava um ladrãozinho de rua que fingia ser o Robin Hood, usa mesmo, ele morreu com a própria arma por traição de uma namorada, mas Campo Grande já teve seus dias de “roubar dos ricos e dar para os pobres”. Camila entrou no mundo das drogas com 15 anos, mas sempre teve algum contato, graças aos meninos do bairro que roubavam e traficavam, engraçado é que em sua mente conturbada, isso era apenas diversão. Ela nos contava como quem narra uma brincadeira dos tempos em que era criança. É bizarro como a percepção de mundo, e de certo e errado dessas pessoas é alterada graças a realidade vivida. Camila está presa pela segunda vez, mas jura inocência. Achei que todas diriam ser inocentes, mas Dona Inês assumiu, veremos os próximos capítulos.

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Outro fato que me tocou muito foi o relato dela ao ir ao posto de saúde, onde todos trocaram de banco ou puxaram as bolsas, já que ela estava algemada. Engraçado foi ouvir que até mesmo o policial que estava com ela quis mudar de sala para não vê-la passar por tamanho constrangimento. Nem parece a mesma polícia da qual ela conta ter apanhado mais de uma vez quando era moradora de rua. Mais uma vez minha percepção alterada me persegue, e eu não acho Camila uma pessoa ruim. Ela me parece perdida, alguém que nunca teve instrução e reconhece apenas aquele mundo errado como seu. Não me surpreenderia se voltasse à penitenciária no final do ano e encontrasse-a mais uma vez lá, isso se já tiver saído. Uma coisa que me intriga muito é saber que essas mulheres estão ali, presas, com suas vidas completamente conturbadas e ainda tem o poder de sorrir e se abrir para completos estranhos. Não acho que teria toda essa força. Camila principalmente, conta os pesares de sua vida como quem conta o que comeu no almoço. Será que ela faz isso por sobrevivência ou realmente não tem noção de como sua vida poderia ter sido? Ás vezes creio que sejam assim porque essa é a única realidade que conhecem. Gostaria muito de entrevistar alguém de classe média que se envolveu com o crime para ver a história por outra perspectiva. Camila disse alguma frase que na hora me veio a cabeça para ser título de um capítulo, lembro-me apenas que era alguma coisa com uma ... uma... , algo parecido com uma hora a gente perde outra a gente ganha.

5/setembro Dona Inês – A Piradinha Hoje foi nosso segundo dia no presídio feminino e mais uma vez encontramos uma boa figura cheia de histórias para nos contar. Dona Inês, 61 anos, 5 filhos, 15 irmãos, que família! E mesmo assim ninguém a visita há meses, um dos filhos está preso, o outro se perdeu no mundo, a filha é casada com um homem o qual ela viu apenas uma vez e Cristiano, nitidamente seu xodó, deixou de visita-lá. Mesmo assim Dona Inês não reclama, parece que a cadeia impõe ao destino dessas mulheres uma solidão eterna, ninguém as visita e elas não acham que é obrigação de ninguém ir vê-las, apenas aceitam a solidão como parte da pena. 118


A personagem de hoje me chamou a atenção por vários motivos, mas a intriga provocada por suas histórias de família foi o que mais ficou em minha mente. O que sua mãe fez? Como ela agia? Porque o pai sempre a levava para ajuda-lo na roça? Será que abusava dessa menina longe dos olhares alheios? Dona Inês tinha sonhos, queria ser formar, ser advogada. Porque então acabou do lado contrário da história? A verdade é que estou com uma péssima impressão de mim mesma em meio a tudo isso, nunca acho que nossas entrevistadas são pessoas más, mas ela são, estão presas pagando por crimes que deveras cometeram, me pergunto porque aos meus olhos elas simplesmente parecem crianças que não tiveram educação, não tiveram base familiar. Isso só me faz agradecer por tudo que tive. Dona Inês não faz aquele tipo de presidiaria que se vê em novelas, ela mais parecia a avó que eu nunca tive, rindo e contando histórias. Porém ela é uma senhora de 61 anos que está presa há três, cumprindo sua segunda pena e que, temos que registrar, não fala nada com nada. Entrar na mente dela foi um feito complicado, as histórias não batiam, ela começava contando uma coisa e terminava contando outra, por várias vezes quase me perdi nesse emaranhado de contos. Nossa querida senhora simplesmente abria a boca e saia despejando estórias, reais ou não (ainda tenho minhas dúvidas). Ela contava sobre a Dona Dalva, ou a Conceição e a Meire como se deveras as conhecêssemos, mas nós não sabíamos do que ela estava falando, e por várias vezes pedimos para ela repetir tudo. No entanto, no auge da minha ingenuidade, não tive a mesma sacada do Du, Dona Inês negava, mas parece sim ser usuária de drogas e tudo ficou claro quando saímos do presídio e ele disse isso. Explicado as histórias que começavam e terminavam antes mesmo de eu entender o começo. Presa por tráfico porque queria abrir um bar, isso parece tão surreal, hoje em dia existem tantos financiamentos ou empréstimos. A droga realmente ainda aparece para muitos como dinheiro rápido e fácil. O abuso dos policiais do dia da prisão, pedindo por mais drogas, a verdade vista em tantos documentários e reportagens bem ali, na minha frente. 119


Cada dia de presidio feminino tem me feito acreditar mais ainda que a prisão não signifique absolutamente nada, e que, ninguém vai sair dali melhor. Reeducandas, elas não deveriam ser chamadas assim, lá dentro existe um comércio de drogas e celulares, afinal o que elas estão aprendendo? O que ficou sobre a Dona Inês: um sentimento de pena, e uma vontade imensa de que ela realmente saia e consiga se aposentar para morar com seu tão querido filho Cristiano, que não a vê há meses, mas é o preferido porque não “desandou” na vida. Nunca saberemos se ela realmente foi abusada na infância, se as surras que levava quando pequena tinham um propósito, nunca saberemos o que o pai queria lhe dizer em seu leito de morte, nem porque ela se refere a própria mãe como Dona Irene. Fato é que Dona Inês me ensinou que tudo pode ser muito mais louco do que eu imaginava, e amanhã acho que já estarei mais vacinada para ouvir tudo o que nossa próxima entrevistada tem a disser. Talvez, como ouvimos falar de médicos que se calejam de tanto ver doença, a cada dia eu esteja me calejando mais e mais e perdendo minha velha mania de sempre acreditar nas pessoas até que me provem o contrário.

6/setembro Dona Sirlei – A Lamentadora Dona Sirlei foi a escolhida em nossa primeira sexta-feira no presídio, eu queria ir viajar, mas tinha que estar lá, então estava disposta a ouvir o que dona Sirlene tinha a dizer, porém minha vontade foi diminuindo aos poucos. Ela se lamentava como ninguém, falava do seu câncer a cada frase da conversa. O que mais me chamou a atenção é que uma pessoa que alega ter câncer por seis anos, e se lamenta várias vezes para completos estranhos, diz não ter contado à família sobre sua doença. O crime é um clássico, levar uma mala de um lugar para o outro, as chamadas “mulas”, que como já ficamos sabendo no próprio presídio, muitas vezes são denunciadas para que o traficante passe uma carga maior de droga. Ela foi pega na rodoviária de Campo Grande, vindo de Dourados e do Paraná, e não tem ninguém aqui, não sabe nem se sua família já foi avisada pela assistente social da

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penitenciária. Apesar de alegar ter uma boa relação com a sua família, mas não me pareceu tudo isso. A verdade é que Dona Sirlei me deu um pouco de preguiça, a história dela não me cativou, ela não me parecia falar a verdade, talvez pelo medo de dizer alguma coisa e prejudicar sua própria sentença. Tudo me parecia muito medido, e sempre com a doença como principal causa de todo o seu crime. Ela sempre era enfática ao alegar que nunca tinha tido contato com o mundo do crime, que trabalhava como doméstica, e que tinha condições financeiras para se manter, mas estava cansada de esperar o SUS, e novamente nosso sistema falho bate à porta para influenciar algumas das piores situações do país. Dona Sirlei não me tocou como as outras. Não me intrigou, eu não tive vontade de conhecer a vida dela. Não sei se pela minha mente ocupada com outras coisas, ou se simplesmente pelo fato de que a história não era boa, não me pareceu verdadeira.

09/setembro Sandra – Vida Loka Sandra foi uma personagem como Camila, que me despertou sentimentos incríveis. A vida dela é triste como poucas que eu conheço, ela perdeu a mãe aos 8 anos de idade, o irmão caçula aos 4 anos, a avó que a criou no ano passado e a filha preferida em um concurso de tereré. Foi bastante chocante, para nós que presenciamos essa morte e ficamos tocados na época, de repente a vida colocou a mãe dessa menina ali, chorando na nossa frente pela filha perdida. Sandra nunca saiu dessa vida meio “torta”, desde pequena fugia da avó e começou no mundo do crime aos 12 anos, uma criança. Ela diz que começou a fugir para ir a festas e se envolver com as pessoas erradas, o que me lembra de que a maioria delas teve amizades ruins que as apresentaram para esse mundo, gostaria de saber como isso começa, quem será a primeira má companhia? Sandra tem três filhos, um está preso, a outra morreu e o mais novo mora com o pai e ela não tem contato. Ela não recebe visitas e não acha que deve receber, mesmo tendo 4 irmãos, a solidão dessas mulheres sempre nos toca. 121


Sandra já morou na rua, já traficou, roubou, e tem orgulho em dizer que roubava para dar aos filhos, nunca tirou nada de casa para usar drogas. Soropositiva, foi a única que nos contou já ter tido relação homossexual na cadeia, até mesmo porque essa já é a quarta vez em que ela está por lá. Perguntei se ela iria mudar dessa vez, e me tocou a maneira como a morte da filha influenciou nessa decisão. Sandra quer cuidar da neta, que segundo ela é a cara de Luana quando era neném. Ela teve liberação para ir ao enterro, achei isso muito digno do juiz que a liberou. Sandra assume ser usuária, e nos contou o que já sabíamos sobre o mundo do presídio. Drogas, celulares, “cortantes” como ela diz. Ela é uma daquelas figuras que a gente encontra na vida, chegou tímida, suspeitando de tudo e depois que saiu, voltou para nos mostrar o kit que ganha da penitenciária, já que não recebe o portão 2, ou seja, as compras entregues pelas famílias às quartas-feiras. Na minha opinião, Sandra e Camila seriam grandes amigas se ficassem no mesmo pavilhão. Ela diz já ter sido muito revoltada, e conta como quem diz que tomou água que já brigou na prisão. Os relatos da rebelião de 97 também me despertaram interesse. Alguém que já viveu tanto ali dentro nos mostrando aquele mundo ainda desconhecido, a impressão que tenho é que existem dois perfis dentro da cadeia, o leve, como de Dona Inês e Sirlei, e o mais pesado como de Sandra e Camila, veremos o que os próximos dias nos reservam.

11/setembro Elda – “Barreto” Hoje nós chegamos ao presídio e mesmo com a ausência da Lidiane, a carcereira que costuma cos atender, escolhemos um perfil difícil para a entrevista. Queríamos alguém que não tivesse só traficado ou roubado, queríamos um crime maior. De principio a outra carcereira se recusou a atender nosso pedido, e iria trazer uma mãe, mas então surgiu com Elda, e todos ficaram surpresos. Minha primeira pergunta foi o motivo de sua prisão, e ela respondeu que havia assassinado o homem que a abusou. Logo de início aquilo me tocou de um jeito incômodo, porque ela estava presa, 122


o crime era dele e não dela. Passei a entrevista toda pensando que aquela mulher não deveria estar ali na minha frente, e ainda acho isso. Até a questionei se não havia sido legítima defesa, mas ela respondeu que foi mais de um tiro. Nada disso me convenceu, em minha opinião, ela deveria estar em casa, trabalhando como policial, o que todos percebemos, era seu grande sonho. Barreto tinha uma história diferente, difícil, ela ou ele, sei lá, me tocou de maneira muito peculiar. Por várias vezes tive vontade de aconselhá-la e dizer: não, você não é errada, as pessoas é que agiram errados com você! Ela apanhava dos irmãos quando era pequena por beijar bonecas, ou outras mulheres, e isso pode até ter resultado em certo distúrbio psicológico que ela nos relatou, mas não soube explicar bem o que é. Apesar de ter uma boa relação com a família atualmente, e ser a primeira a nos relatar que recebe visitas frequentes, Barreto sofreu muito em sua infância por ter uma opção sexual diferente, e isso me deixa pessoalmente incomodada, já que não é ela que escolheu ser assim, simplesmente aconteceu, ela nasceu desse jeito, não deveria apanhar por isso, enfim essa é outra discussão e vou deixar isso de lado. Elda é companheira fiel do PCC, nunca imaginei falar com alguém assim na vida, mas confesso que me gerou certa curiosidade. Na visão dela, o PCC é bom, é uma espécie de outra lei na cadeia. Ela relatou que “fecha” com o PCC para ter proteção, eu já havia lido sobre o PCC em outros lugares e penso que realmente esse grupo tem um papel social, de um jeito meio torto, mas tem. Ela tem uma filha de 15 anos, pela qual ela se submeteu a uma relação heterossexual. Ela queria ter uma herdeira, quando disse isso, me pareceu que ela queria ter alguém por quem encontrar forças para lutar. Por isso, procurou um homem com quem foi sincera, quero apenas uma filha, e hoje ela tem seu maior orgulho, no qual realmente encontra forças dentro da prisão. Para mim foi difícil ver na minha frente uma mulher que está presa por matar um homem que abusou sexualmente dela, e ainda transmitiu o vírus HIV. Estupros e abusos mexem comigo de uma maneira completamente diferente, deve ser pelo medo imenso que sinto de que isso um dia possa acontecer comigo ou com alguém próximo, quão frágil nós somos afinal. Ela tinha uma arma, era vigilante, e mesmo assim não soube se defender. 123


Quando ela me disse que queria pedir desculpas à família do falecido, a única coisa que eu conseguia pensar era: não, eles é que te devem desculpas pelo que esse cara fez. Porém, eu não sei como vive uma mente atormentada por um assassinato. Ela disse que sonha com ele, e lembra exatamente a data (domingo, 26), e a hora (18:10) em que ele morreu. Deve ser atordoante conviver com isso. Você matou alguém, tirou uma vida, mas como ela mesma disse ninguém sabe os seus motivos, e depois que eu soube os dela, não consegui achar que ela era a vilã, e sim a mocinha da história. Eu e essa minha mania de achar que todo mundo é bom, sei lá. Elda tem uma namorada na prisão, já tem quatro meses, mas sua fiel está em Ponta Porã, ela disse que trocam cartas, mas como é homem não pode ficar sozinha. Típico pensamento masculino, por várias vezes pensei que ela poderia ser transexual, mas ela nem sabia o que era isso e por isso não soube responder quando a questionamos. Elda é católica, o que já me conquistou de cara, muitas das coisas que ela dizia acreditar são as coisas em que eu acredito e por várias vezes quis dizer: Deus tem algo melhor para você, nada disso é em vão. Mas é claro que não podia. Nitidamente ela tem algum problema psicológico, talvez desde pequena, por complicações na gravidez de sua mãe, que ela nunca conheceu. Ela é adotada, e gêmeas, e diz que sua irmã também tem problemas, talvez sua mãe verdadeira tenha suado drogas. Como todas lá dentro, ela tem a fala um tanto quanto desconexa, e sempre fala como se soubéssemos quem são os personagens das suas histórias. Não é usuária de drogas, mas já se meteu em várias confusões e sua pena aumentou devido aos desacatos à autoridade. Por vezes ela relatou que a diretora do presídio a chamava para pedir que ela não causasse confusão, ela devia ser terrível. Mas agora que encontrou a igreja, há sete meses, diz ter melhorado. Ela lava tambores lá dentro, e diz que isso a distrai, outras presas que arrumaram esse emprego e ai veio em minha cabeça novamente o tal do comando. Ela só corre com eles, não pode ser irmão nem cunhado, porque o PCC não aceita homossexuais. Elda foi um daqueles personagens que eu gostei, queria por várias vezes consolá-la. Vejamos o que nos guarda os próximos capítulos, mas o título de assassina de policial será sempre dela, me dá dó de pensar o quanto isso irá prejudica-la lá fora. 124


13/setembro Naywsani – A Miss Estávamos ali, eu, Suelen e Eduardo, esperando alguém que trabalhasse no presídio entrar pela porta para conversar com a gente. Era mais uma daquelas tardes em que a gente pisava no presídio e começava a ter sede, ou seja, tudo na mais perfeita ordem. Então entrou pela porta aquela menina branca, cheia de ouro no pescoço, toda maquiada, contrariando todas as estatísticas. Quieta, bonita, só depois fomos descobrir que ela era a Miss da Penitenciária, literalmente, todo ano o presídio realiza um concurso de Miss, e ela era a vencedora de 2012. O nome era estranho, mas de todos os perfis que já tínhamos encontrado, o seu era o mais parecido com o nosso, sempre me pego pensando no que o Eduardo falou: Cy poderia ser você, e poderia realmente ser eu, facilmente ela poderia ser confundida com uma de minhas amigas. Porém, ela não estava ali à toa, ajudou o marido a roubar camionetes, e o pior não era o roubo, o pior era que as vítimas ficavam como reféns até que a “mercadoria” fosse entregue em Ponta Porã. Escrevendo isso eu consigo pensar no terror daquelas vítimas, e então penso: será que ela não sabia mesmo daquilo tudo? Era o que ela sempre alegava era que não tinha noção, só levava eles nos lugares, então duas teorias me ocorrem: ou ela era realmente muito apaixonada por esse marido e fazia tudo o que ele queria sem pensar, ou realmente nunca tinha parado para pensar em todo o mal que suas pequenas caronas causavam. O pior de tudo é pensar que esse mesmo marido, que de certa maneira a levou para a prisão, também a abandonou assim que ela colocou os pés lá dentro. Com isso consigo entender sua confusão, sua vontade doida de sair daquele lugar, é tão nítido seu sofrimento que ela nem precisaria contar que chora todos os dias ao acordar. Parecia tão óbvio. Suas respostas não eram longos relatos, na verdade na maioria das vezes ela repetia a pergunta, apenas afirmando ou negando o que tínhamos dito. Ela parecia uma menina perdida, mas se defendia bem, acho que esse jeito quieto era sua principal arma.

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Como muitas entrevistadas, ela também teve um relacionamento homoafetivo na prisão, mas me pareceu um pouco mais tímida para falar disso, parte do relato que nos interessou, como sempre. Porém, o melhor de todo seu relato, não foi seu crime, apesar da sua pena ter nos assustado um pouco, 20 anos para ré primária é muito, depois é que fomos entender que ela não foi julgada apenas pelo roubo, mas também pelos sequestros. Além disso, ela também nos mostrou mais uma vez a realidade da Polícia fraudulenta, que bate nos presos para que assinem o boletim de ocorrência, sejam culpados ou não. Ela assinou um B.O. que poderia tê-la livrado da prisão, assim como seu irmão que foi preso por tráfico pois um viciado foi pego perto da casa dele, e a Polícia colocou a droga lá. O que mais nos impressionou foi o fato de ela ter sido a única até agora que afirmou ter tido um momento de felicidade genuína lá dentro, o tal concurso de Miss. É fabuloso o que um concurso de beleza pode fazer com uma mulher. Ela era uma presa, como todas as outras, mas era bonita e sabia que era. Ela tinha a segurança de quem sabe que é admirada, e às vezes fazia aquele tipo de mulher bonita que finge ter vergonha, naquelas horas eu queria rir. O que fica da entrevista com ela é o fato que mais uma vez nos puxa para a realidade, poderia ser eu, poderia ser você, o crime não escolhe onde vai estar, e apesar de acreditar que o sistema tem muito a ver com isso, ás vezes me deparo com casos como o dela, que simplesmente me provam que não. Ela é bonita, de classe média, tem o apoio dos pais, não precisava do dinheiro, mas continuará presa por mais três anos, no mínimo.

14/setembro Érika – A estatística Não tenho como definir melhor aquela mulher, ela nos apareceu no dia em que estávamos esperando a líder do PCC dentro de prisão, mas ela não quis falar conosco,

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então nos mandaram a Érika. Para nós, ela era uma simples mãe, que foi nos dada como consolo após a perda da tal “líder do PCC”. Érika foi mais um tapa na nossa cara. Negra, pobre e presidiária. O que me surpreende é que não, não era só isso. Érika foi a história mais triste que eu ouvi. Uma mulher que se apresentou como uma menina na nossa frente ao contar que foi expulsa aos 12 anos de casa, porque o padrasto tentou estupra-la, e a mãe preferiu acreditar nele. Imagina a cabeça de uma criança expulsa de casa pela própria mãe. Érika foi morar na rua, e por lá, conheceu as pessoas erradas. Ela contou que uma amiga perguntou se ela precisava de dinheiro, e a chamou para se prostituir. Assim começou a saga de Érika nesse mundo obscuro, por anos ela se prostituiu, mas depois resolveu trocar de negócio. As palavras dela nunca saíram da minha cabeça: você não sabe como é triste ter que deixar um homem bêbado, que você não conhece tocar seu corpo. Fiquei imaginando como deve ser triste essa vida, como deve ser ruim ter o corpo tocado por um desconhecido, é realmente difícil saber. Para sair dessa vida, Érika passou a traficar, ela achava melhor que se prostituir, eu consigo entendê-la. Nessa vida de traficante, ela veio para cá buscar droga e acabou sendo presa. Mais uma mula presa nas rodoviárias do Estado, mais uma sem visita, sem família, sem portão 02, mais uma que vai fazer faxina dentro da cela para ganhar cinco reais e quem sabe conseguir comprar algumas coisas. Porém a situação de abandono de Érika era pior, já que ela estava grávida quando foi presa e foi mãe dentro da prisão. Ela é um exemplo de vida para qualquer um, aquela mulher foi jogada na vida por uma mãe que a abandonou e mesmo assim tem tatuado o nome da mãe no braço, a perdoou, e hoje a mãe mora em sua casa em Santos e cuida de seus outros quatro filhos. Eu não sei se teria a nobreza dela de perdoar essa mãe. Além de tudo, ela ainda vive a tristeza de ter um filho na prisão, de passar o dia todo longe da criança, vendo-a apenas para amamentar e dormir. Nicolas, um nome lindo como diria o Eduardo, para um bebê lindo, saudável, gordinho, mas não tinha um sorriso no rosto, até parece que sabia o teto sob o qual estava sendo criado. Érika é uma dessas mulheres que tem um filho de cada pai, o que não me admira e não julgo, não consigo parar de pensar no exemplo de família que essa mulher teve em 127


casa. Outra frase inesquecível dela foi: prefiro um filho que é uma benção do que uma doença. Os olhos dela eram tristes, como sempre o Eduardo notou algo diferente, ela não ficava feliz, nem esboçava felicidade, em nada. Nenhuma história, nem o perdão que concedeu à mãe, nem os filhos, nada causava um sorriso sincero nela, acho que a vida tomou-lhe esse e tantos outros direitos. Por vezes ela relatou que buscou emprego, e cansou de ouvir não, o crime é a única empresa do País que aceita a todos, sem preconceito, com ela não foi diferente. Porém ela afirma que aprendeu na prisão que o crime não é o único meio, já que hoje em dia ela precisa fazer faxina para conseguir as fraldas para o filho. Claro que o Estado de São Paulo é pior que Mato Grosso do Sul para ter oportunidades, e por vezes eu tive vontade de dizer para ela ficar quando ela dizia que seu maior sonho era voltar para a sua terra natal, Santos. Érika não foi a história que mais me empolgou, mas com certeza foi a que mais tocou a minha vida, tive vontade de abraçar aquela mulher, pegar o filho dela no colo e dizer: você consegue. Em respeito ao nosso pouco envolvimento com as entrevistadas nada fiz, mas queria olhar nos olhos dela e dizer que tudo ia dar certo. Tomara Deus que realmente dê.

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