Lugar de Mulher é Onde Ela Quiser

Page 1

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL FACULDADE DE ARTES, LETRAS E COMUNICAÇÃO - FAALC CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL HABILITAÇÃO EM JORNALISMO

LUGAR DE MULHER É ONDE ELA QUISER Narrativa transmídia sobre mulheres em profissões tradicionalmente masculinas

DAIANA PORTO BARBOSA GIOVANA RODRIGUES SILVEIRA

Campo Grande DEZEMBRO / 2017


LUGAR DE MULHER É ONDE ELA QUISER Narrativa transmídia sobre mulheres em profissões tradicionalmente masculinas

DAIANA PORTO BARBOSA GIOVANA RODRIGUES SILVEIRA

Relatório apresentado como requisito parcial para aprovação na disciplina Projetos Experimentais do Curso de Comunicação Social Habilitação em Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

Orientadora: Profa. Dra. Rose Mara Pinheiro.

UFMS Campo Grande DEZEMBRO - 2017



SUMÁRIO Resumo

3

Introdução

4

1. Atividades desenvolvidas

12

1.1 Execução

12

1.2 Dificuldades encontradas

14

1.3 Objetivos alcançados

15

2. Suportes teóricos adotados

16

2.1 Narrativa transmídia

16

2.2 Mulheres e as profissões

18

Considerações Finais

22

Referências

24

Apêndices

26


RESUMO: “Lugar de mulher é onde ela quiser” é uma reportagem em narrativa transmídia que usa recursos da plataforma multimídia, sobre 6 mulheres em profissões tradicionalmente masculinas em Mato Grosso do Sul. O objetivo da reportagem é dar voz e retratar essas mulheres, seu cotidiano, dificuldades, desafios e preconceitos vividos em suas profissões. A narrativa é contada por meio de perfis individuais, com slide de fotos em vídeo e a narração em primeira pessoa, feita por cada mulher, por meio de áudio. A reportagem será disponibilizada no endereço http://lugardemulherondeelaquiser.com

PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo, Narrativa Transmídia, Mulheres, Profissões


4

INTRODUÇÃO A proposta deste trabalho é desenvolver uma reportagem em narrativa transmídia que usa recursos da plataforma multimídia com a temática de mulheres em profissões consideradas masculinas na visão de grande parte da sociedade. Uma narrativa

construída

com

perfis

de

seis

mulheres

que

exerçam

profissões

estereotipadas como masculinas, onde quase não há representatividade feminina, tais como: motoristas de veículos de grande porte, delegada, jogadora de futebol, regente musical e pintora da construção civil. Mulheres nestas profissões existem e estão cada vez mais ocupando estes espaços, mas ainda não possuem a devida representatividade nos meios de comunicação. São mulheres ainda invisíveis ou com pouca visibilidade em suas profissões para a mídia. De modo geral, matérias jornalísticas que trazem especialistas nestas áreas de trabalho, procuram a opinião de homens que trabalham com estes serviços, e nunca de mulheres. A exemplo, é raro encontrar em uma matéria sobre construção civil a utilização de uma mulher que trabalha na área como fonte para falar sobre o assunto. A principal ideia é dar voz a essas mulheres, mostrar a sua rotina profissional, seus medos, anseios, desejos, dificuldades no mercado profissional e os preconceitos encarados diariamente. A reportagem é focada no âmbito regional e aborda apenas mulheres nascidas ou residentes no estado de Mato Grosso do Sul, sendo este o único foco delimitado das profissionais. Não há restrições quanto à idade, condição física, raça e classe social. A falta de reportagens que abordam mulheres como protagonistas e em profissões tradicionalmente masculinas é a principal motivação para a escolha do tema. A maioria das reportagens nacionais que trazem mulheres em profissões dominadas por homens como tema são superficiais, não aprofundam o porquê da escolha profissional, a trajetória profissional e o preconceito da sociedade. São reportagens que, de modo geral, romantizam a mulher que consegue se inserir no “mundo masculino”. Em especial, em Mato Grosso do Sul são raras as reportagens que abordam o assunto, e quando abordam são apenas sobre a história de apenas uma


5

mulher ou sobre várias de forma genérica, não há matérias ou reportagens jornalísticas que abordem o conjunto de várias dessas mulheres em profundidade. Em pesquisa aos dois maiores jornais online de Mato Grosso do Sul, Campo Grande News e Midiamax, foram encontradas cinco reportagens que abordam o tema entre, sendo a primeira em 2011 e a última em 2017. No jornal Midiamax, as reportagens foram publicadas em 2011 e 2012, ambas no mês de março em alusão ao Dia Internacional das Mulheres, comemorado no dia 8. Na reportagem de 4 de março de 2011 “Mês das Mulheres - Policial Feminina, entre a diferença e a igualdade”1 ganha destaque o crescimento no número de policiais do sexo feminino em Mato Grosso do Sul. Três profissionais e o Coronel Geral da Polícia Militar do estado foram utilizados como fonte. Já na reportagem de 8 de março de 2012, “Mulheres se destacam em suas profissões e vencem o preconceito machista”2, foram usadas como fonte três personagens, uma neuropediatra, uma empresária e uma vereadora. No Campo Grande News, duas reportagens encontradas são focadas em uma personagem e publicadas na editoria “Lado B” (Comportamento) do jornal e uma na editoria de Economia. A reportagem “Para conquistar clientela, barbearia tem mulher fazendo o trabalho na navalha”3, publicada em 21 de outubro de 2015, conta a história de uma cabelereira que faz cabelo e barba de homens com navalha e é considerada o diferencial de uma barbearia por ser mulher. Segundo os clientes, por ela ser mulher, é mais cuidadosa e delicada. Já a reportagem de 28 de junho de 2017 “No transporte coletivo, mulher ao volante tem torcida e também olhar desconfiado”4, conta a história de uma motorista de ônibus de Campo Grande, que segundo um dos passageiros, é mais paciente por estar acostumada com outras tarefas além do trabalho. Nas duas reportagens, as personagens contam suas histórias e falam sobre o preconceito de 1Mês

das Mulheres - Policial Feminina, entre a diferença e a igualdade. Disponível em: http://www.midiamax.com.br/noticias/743867-mes-das-mulheres--policial-feminina-entre-a-diferenca-e-aigualdade.html. Acesso em: 8 set. 2017 2Mulheres se destacam em suas profissões e vencem o preconceito machista. Disponível em: http://www.midiamax.com.br/noticias/788633-mulheres-se-destacam-em-suas-profissoes-e-vencem-opreconceito-machista.html. Acesso em 8 set. 2017 3Para conquistar clientela, barbearia tem mulher fazendo o trabalho na navalha, por Lucas Arruda. Disponível em: https://www.campograndenews.com.br/lado-b/consumo/para-conquistar-clientelabarbearia-tem-mulher-fazendo-o-trabalho-na-navalha. Acesso em 8 set. 2017 4No transporte coletivo, mulher ao volante tem torcida e também olhar desconfiado, por Thailla Thorres. Disponível em: https://www.campograndenews.com.br/lado-b/comportamento-23-08-2011-08/notransporte-coletivo-mulher-ao-volante-tem-torcida-e-tambem-olhar-desconfiado. Acesso em 8 set. 2017


6

forma superficial, o que ganha destaque é a opinião dos consumidores sobre o serviço prestado, onde ambas são generalizadas com estereótipos femininos, ser delicada e cuidadosa e ter de trabalhar fora e fazer outras tarefas – geralmente domésticas. A reportagem mais recente, de 17 de setembro de 2017, “Com 21 anos, Caroline ajuda a elevar estatística de mulheres no campo”5, publicada na editoria Economia, conta a história de Caroline Coutinho, de 21 anos, que trabalha como operadora de máquinas no campo. Ao contrário das reportagens anteriores publicadas pelo mesmo veículo, traz mais dados e informações sobre a inserção de mulheres neste mercado. Nossa análise consiste em encontrar mulheres em profissões consideradas masculinas, conhecê-las, acompanhar a sua rotina de trabalho e gerar uma reflexão acerca da desigualdade e preconceito que as mulheres ainda enfrentam no mercado de trabalho. Narrativa transmídia São considerados formas tradicionais de comunicação o áudio, a imagem e a escrita. A revolução digital derrubou as barreiras que separavam esses três diferentes meios de comunicar e trouxe o desenvolvimento de um quarto e novo meio, a internet (web), “o paradigma da revolução digital alegava que os novos meios de comunicação digital mudariam tudo.” (JENKINS, 2009a) Os novos meios de comunicação pós-Revolução Digital permitiram que um mesmo conteúdo fosse divulgado em diferentes canais de comunicação ao mesmo tempo que ocorre o cruzamento de diversos meios de comunicação diferentes, a chamada convergência midiática. De acordo Jenkins (2009a): “a digitalização estabeleceu as condições para a convergência”.

Tornou-se interessante para os

profissionais de mídia distribuírem seus conteúdos por meio de vários canais e não mais em apenas uma plataforma midiática. Contudo, os tradicionais meios de comunicação não desapareceram ou foram deixados de lado. Jenkins (2009a) explica que o conteúdo de um meio pode mudar, mas, uma vez que esteja estabelecido e satisfaça alguma demanda humana 5Com

21 anos, Caroline ajuda a elevar estatística de mulheres no campo, por Osvaldo Júnior. Disponível em: https://www.campograndenews.com.br/economia/com-21-anos-caroline-ajuda-a-elevar-estatistica-demulheres-no-campo. Acesso em 10 out. 2017


7

essencial, o meio passa a funcionar em outro sistema de comunicação, e por isso, a convergência é a palavra mais adequada para entender os últimos anos de transição dos meios de comunicação. Desde que o som gravado se tornou uma possibilidade, continuamos a desenvolver novos e aprimorados meios de gravação e reprodução do som. Palavras impressas não eliminaram as palavras faladas. O cinema não eliminou o teatro. A televisão não eliminou o rádio. Cada meio antigo foi forçado a conviver com os meios emergentes. (...) Os velhos meios de comunicação não estão sendo substituídos. Mais propriamente, suas funções e status estão sendo transformados pela introdução de novas tecnologias. (JENKINS, 2009a, p. 41)

A narrativa transmídia é definida pela utilização de mais de uma plataforma midiática para contar uma história, onde cada plataforma forma uma parte distinta da narrativa e promove o entendimento da mensagem. No produto a narrativa transmídia está presente na junção de áudio e fotos em vídeo nos seis perfis de cada entrevistada e da introdução em texto, publicado em uma plataforma da web. A interatividade com o público e a dinamicidade da narrativa, características da transmídia, estão presentes em algumas das opções do site em compartilhar o conteúdo em mídias sociais como Facebook e Twitter bem como na utilização do YouTube, uma plataforma de distribuição digital de vídeos e do SoundCloud, plataforma online de publicação de áudio. Utilizando assim áudio, foto e vídeo em uma função diferente do convencional. O trabalho possui ainda a possibilidade de leitura não linear. Apesar de ligados na mesma temática, os perfis não dependem um do outro para terem sentido. O público pode selecionar e acompanhar a história que preferir, na ordem que desejar. “One in 8 million” O produto escolhido para ser desenvolvido deste projeto é uma narrativa transmídia inspirada na reportagem “One in 8 milion”, produzida em 2009 por Sarah Kramer e Lexi Mainland e publicada no The New York Times. A reportagem consiste em 54 perfis de habitantes corriqueiros da cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos, e suas singularidades. Como é definido na introdução da reportagem, são “pessoas normais contando histórias extraordinárias – de paixões e problemas, relacionamentos e rotinas, vocações e obsessões” (tradução nossa).


8

Cada perfil possui fotografias por Todd Heisler, todas em preto e branco, o que, de acordo com as autoras, trazem um tom mais intimista ao trabalho, assim como o áudio com a história de cada personagem narrada por ele mesmo. De acordo com a coluna Outside the Frame: talking with the Producers of the NYTimes.com Web Series “One in 8 Million”6 publicada pela ex-diretora editorial da PBS Interactive Amanda Hirsch, Sarah Kramer é produtora multimídia e trabalha com jornalistas especialistas em áudio e multimídia; Lexi Mailand é produtora incorporada na mesa de notícia do Metro, uma newsletter multimídia do The New York Times, chamada New York Today, que informa diariamente sobre comportamento e cultura da cidade de Nova Iorque. Para as produtoras, que trabalharam anteriormente com documentários no rádio, em vídeo e para a internet, o áudio junto com as fotos parecia o jeito mais íntimo e rico de transmitir as narrativas em primeira pessoa. Ainda de acordo com as produtoras, a ideia foi algo tão simples e direto que os editores de jornais do Metro, para quem as duas originalmente lançaram a ideia de produção da reportagem, imediatamente puderam enxergar as possibilidades para esse tipo de multimídia, mesmo que eles estivessem acostumados a contar histórias no meio impresso. De acordo com as produtoras, a escolha dos personagens foi feita ao manter “os olhos e ouvidos abertos ao andar pela cidade”. Um dos personagens foi encontrado em uma conversa casual no metrô, e após mais conversas se transformou em um dos perfis

da

reportagem.

Além

desses

encontros

repentinos,

as

produtoras

constantemente combinam suas próprias ideias com sugestões dentro do The New York Times e de e-mails que recebem de seus leitores. Estamos à procura de bons interlocutores que nunca foram apresentados no The Times antes e que possuem algo um pouco misterioso sobre eles – talvez um elemento de surpresa em uma história que eles têm para contar, ou em sua identidade – que os distingue. (KRAMER e MAILAND, 2009, tradução nossa).

A interação por parte dos leitores acontece por meio da sessão de comentários, presente em cada perfil da reportagem, além do próprio e-mail destinado à

6Outside

the Frame: Talking with the Producers of the NYTimes.com Web Series “One in 8 Million”¹ por Amanda Hirsch. Disponível em: http://www.pbs.org/pov/blog/news/2009/02/outside_the_frame_talking_with/. Acesso em: 10 jul. 2017


9

narrativa, presente na aba “Feedback”, onde os leitores constantemente mandam sugestões de possíveis novos personagens para integrar a reportagem. A escolha pelo uso da narrativa transmídia neste trabalho se deu pela relevância que esse formato possui na era digital atual, já muito utilizado no próprio jornalismo. Com a utilização de fotos e áudios de mulheres contando suas próprias histórias, o conteúdo torna-se mais interativo e dinâmico, além de manter o protagonismo da narrativa para as próprias personagens. Assim como a reportagem One in 8 Million, outras reportagens apresentadas como narrativas transmídias como o Viva Madalena, projeto experimental de conclusão do curso de jornalismo da PUC-Campinas em 2014 e as reportagens especiais do UOL TAB também serviram de base e inspiração para o presente trabalho. A inclusão de recursos multimidiáticos no jornalismo resulta em reportagens cada vez mais elaboradas e inovadoras, com conteúdo que explora ainda mais a potencialidade do meio digital.

Mulheres no mercado de trabalho Entre 144 países, o Brasil é o 79º mais igualitário entre os gêneros no campo profissional, de acordo com o Índice Global da Desigualdade de Gênero, realizado pelo Fórum Econômico Mundial (FEM) em 2016. O ranking é feito desde 2006 como um quadro para mostrar a magnitude das disparidades de gênero e acompanhar o progresso da equidade ao longo do tempo. O índice avalia as lacunas nacionais em critérios econômicos, educacionais, políticos e de saúde e fornece rankings de igualdade entre os países. A pesquisa é projetada para criar uma consciência global sobre os desafios colocados pela desigualdade e as oportunidades criadas pela redução dela. Em uma escala de 0 - país mais desigual - e 1 - país mais igualitário -, o Brasil configura uma nota de 0,68, ficando atrás de países vizinhos como Bolívia (23º), Argentina (33º) e Chile (70º). Ainda segundo o FEM, o equilíbrio entre o trabalho remunerado e doméstico de uma mulher é um dos fatores decisivos da desigualdade entre os gêneros. Uma mulher trabalha, em média, 7,5 horas a mais que os homens por semana devido à dupla jornada de trabalho. Segundo a pesquisa, a ênfase no modelo normativo de uma


10

família onde a mulher é a responsável pelos serviços domésticos não diminuiu com a ascensão da mulher no mercado de trabalho. Com a expansão do feminismo, no fim do século XIX e início do século XX, e com uma condição econômica desfavorável causada pelo pós-guerra em todo o mundo, a taxa de participação das mulheres nas universidades e no mercado de trabalho aumentou, mas, segundo a pesquisa do FEM, essa sobrecarga causada pela dupla jornada persiste e dificulta a equidade de homens e mulheres no campo profissional; seguido pelo preconceito velado dos gestores que preferem promover ou contratar homens às mulheres, e muitas vezes pela falta de modelos femininos no mercado e pela desconfiança no trabalho feito por mulheres. Se em cargos tradicionais a mulher ainda sofre com a desigualdade, em profissões historicamente consideradas “masculinas”, o cenário piora. A presença de mulheres torna-se comum na engenharia, segurança, na direção de aviões e ônibus, na área da informática e na construção civil, mas as barreiras impostas por uma sociedade essencialmente patriarcal estão longe de acabar. De acordo com o relatório do FEM, a igualdade de gênero no mercado de trabalho no mundo só será possível em 2095. Promover salários mais igualitários e aumentar a participação feminina dentro do mercado de trabalho são, segundo o relatório, os principais caminhos para a equidade. Por outro lado, os dados do estudo do Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) basearam-se em séries históricas de 1995 a 2015 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE (2017). Em 2015, 90% das mulheres declararam realizar atividades domésticas não remuneradas, número que se manteve quase inalterado ao longo de 20 anos, assim como a dos homens que girou em torno de 50%. As barreiras para mulheres negras e/ou de classe baixa são ainda mais difíceis de serem superadas. Segundo estudo do Ipea, enquanto mulheres brancas ganham 75% da renda de um homem branco, mulheres negras ganham apenas 40%. Os homens, negros ou brancos, continuam sendo a maioria no mercado de trabalho, com uma taxa de 80% de presença, enquanto as mulheres, negras ou brancas, não chegam a 60% de ocupação em postos de trabalho.


11

Sendo assim, o nosso trabalho busca contribuir para a reflexĂŁo acerca da desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho, assim como os preconceitos enfrentados pelas mulheres que exercem profissĂľes tradicionalmente consideradas masculinas e como isso auxilia em seu empoderamento.


12

1- ATIVIDADES DESENVOLVIDAS

1.1 Execução Em um primeiro momento, foi realizada uma busca nos dois maiores jornais online locais para análise de representatividade jornalística do tema. Assim como o estudo teórico de jornalismo e narrativa transmídia. Para o início da execução da parte prática do projeto foi necessária a listagem de profissões que o senso comum considera, tradicionalmente, masculina. A primeira listagem foi dividida em áreas do conhecimento, a fim de abordar mulheres destas áreas, sendo elas: construção civil, ciência, tecnologia, transporte, segurança, política, regência musical, esporte e agronomia. Após a listagem das áreas, foram pautadas as profissões: trabalhadora do campo, motorista de ônibus, taxista, mecânica, cientista, piloto, engenheira, segurança, delegada/polícia, eletricista, política, musicista, jogadora de futebol e pintora de construção civil. Ao todo, foram listadas 15 profissões, mas, para a reportagem, selecionamos 6 perfis. No início do projeto, foi delimitado a quantidade de 10 perfis, entretanto na execução da plataforma online, ficou inviável a construção de 10 perfis, pois na padronização do layout havia espaço para duas linhas de perfis, que seriam duas de três ou duas de quatro, totalizando 6 ou 8 perfis. O trabalho foi concluído com 6 perfis. Para encontrar as mulheres que utilizaríamos como fontes, buscamos matérias já publicadas sobre essas profissões; indicações de amigos e parentes e; a partir do intermédio com pessoas da própria área. Foram realizados contatos também com alguns sindicatos, como o Sindicato dos Taxistas de Mato Grosso do Sul (Sintaxi), Sindicato dos trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil e Mobiliário de Campo Grande (Sintracom) e Sindicato dos Empregados de Empresas de Segurança (Seesvig) para coletar, quando possível, dados da quantidade de mulheres registradas ou sindicalizadas nestas profissões em comparação aos homens. Foram realizadas entrevistas com seis mulheres, todas as entrevistas foram gravadas por meio do aplicativo para celular “Audio Recorder” que grava em qualidade superior e modo estéreo (com dois canais de áudio), posteriormente decupadas e editadas. Todas as fotos foram registradas com a câmera modelo Nykon D7000. Nos


13

perfis da delegada e da piloto militar também foram utilizadas imagens cedidas. Foi realizado também uma entrevista com a professora Dolores Pereira Ribeiro Coutinho, do Programa de Mestrado Acadêmico Interdisciplinar em Desenvolvimento Local da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), especializada em gênero e profissões, utilizada para a parte teórica do projeto. As entrevistas com as fontes foram feitas de formas distintas – em alguns casos, por falta de tempo, foram realizadas fotos e entrevistas na mesma ocasião. As fontes que possuíam maior disponibilidade nos receberam cerca de 3 vezes, primeiramente para entrevista e depois para o registro fotográfico. Algumas entrevistas foram regravadas por problemas de ruídos. A hospedagem com domínio próprio foi realizada a partir do servidor utilizado para a construção do site – Ukit – como http://lugardemulherondeelaquiser.com, foi descartada a URL com o nome completo da narrativa, devido a quantidade de caracteres exceder o limite estabelecido pelo servidor. O domínio e a hospedagem foram registrados por um ano pelo valor de R$51,40 e R$314,00, respectivamente. O formato de slide de fotos com áudio é inspirado na reportagem “One in 8 milion”, de Sarah Kramer e Lexi Mainland para o The New York Times. No entanto, na presente narrativa, o slide de fotos e o áudio foram agrupados por meio de vídeo no YouTube. Foi descartado o carregamento do vídeo na própria plataforma do site devido a exigência do programa Adobe Flash Player na execução do vídeo – problema que ocorre no “One in 8 million”, que não é possível ser visualizado em qualquer dispositivo (móvel ou desktop) devido a exigência do Flash Player. Uma das propostas desta narrativa é que seja acessível a qualquer pessoa que possua conexão a Internet, tanto por computador/notebook, quanto em telefones celulares e tablets. Portanto, o site é responsivo em smartphones e tablets – possui sua versão mobile similar a versão visualizada em desktop. Os vídeos hospedados no YouTube também podem ser visualizados normalmente em dispositivos móveis assim como no desktop. O site também possui a opção de exibir uma versão mais simplificada, destinada a pessoas com baixa visão e daltônicos. Nesta opção é opção aumentar o tamanho dos textos em até três vezes e simplificar a paleta de cores.


14

Para o layout do site, foi escolhido como principal paleta de cores o cinza e o vermelho escuro. Optamos pela cor cinza, por ser uma cor neutra e escolhemos não utilizar o rosa que possui o estereótipo de ser considerada uma cor “feminina”. A narrativa conta com seis slides de perfis em vídeo, cada um com duração de 1:30 minutos a no máximo 3:30 minutos narrado em primeira pessoa pelas fontes. A quantidade de fotos varia entre os perfis. Os áudios extras, publicados no SoundCloud possuem maior duração, de até 5 minutos.

1.2 Dificuldades Encontradas A principal dificuldade encontrada para a execução deste trabalho é a falta de dados estatísticos sobre as mulheres em profissões tradicionalmente masculinas no Mato Grosso do Sul. As poucas pesquisas que existem sobre o assunto, são de outros estados, como São Paulo e Rio de Janeiro. As estatísticas locais que conseguimos são fracionadas e provenientes de pesquisa realizada por nós, além de raros dados de sindicatos. A falta de resposta de algumas fontes, tanto teóricas quanto práticas, também é um item agravante. Em particular, os sindicatos demoraram a responder nosso pedido por estatísticas de mulheres nas profissões. E algumas fontes foram relutantes em dar entrevista, em alguns casos foi necessária insistência extra para que as mulheres aceitassem dar entrevista. A autorização da administração superior de empresas para a entrada e registro fotográfico das entrevistas em horário de trabalho também foi um fator agravante para a execução. O empréstimo de equipamento fotográfico com o curso de Jornalismo também foi uma das dificuldades encontradas para a realização do trabalho. Diversas vezes não havia câmeras para empréstimo, pois outras pessoas estavam usando e não devolviam no período determinado. Em algumas ocasiões precisamos adiar o encontro com as fontes por não ter material para o registro fotográfico. Outra dificuldade encontrada foi o problema técnico que algumas câmeras apresentaram, como falhas no foco automático e manual, tornando mais difícil conseguir um bom material e precisando remarcar entrevistas para a produção de novas fotos.


15

1.3 Objetivos Alcançados Os objetivos alcançados foram: ✓ O objetivo inicial de identificar as profissões consideradas “masculinas” sem reforçar o estereótipo de profissões “não-femininas” e encontrar mulheres que trabalham nessas áreas em Mato Grosso do Sul. ✓ Evidenciar o avanço profissional e individual das mulheres em espaços tradicionalmente masculinos. ✓ Identificar as maiores dificuldades e desafios enfrentados pelas mulheres. ✓ Trazer maior representatividade midiática a mulheres em espaços tradicionalmente masculinos.


16

2- SUPORTES TEÓRICOS ADOTADOS

Os objetos de estudo desenvolvidos neste trabalho são a narrativa transmídia e a temática de mulheres em profissões consideradas masculinas, conhecer a sua realidade e gerar uma reflexão sobre a desigualdade que as mulheres ainda enfrentam no mercado de trabalho.

2.1 Narrativa Transmídia O termo Transmedia Storytelling, traduzido para narrativa transmídia, foi apresentado pela primeira vez por Henry Jenkins em 2001. Antes de Transmedia Storytelling, o primeiro termo relacionado ao estudo foi criado pelo compositor e instrumentista Stuart Saunders Smith em 1975, que definiu trans-media como “composição de melodias, harmonias e ritmos diferentes para cada instrumento e para cada executor, como se fosse um compositor que complementaria a obra em coerente harmonia e sincronia com os outros instrumentistas” (SAUNDERS, 2009 apud GOSCIOLA, 2012, p.8) De acordo com Campalans, Renó e Gosciola (2012), o conceito de transmedia só foi aplicado na área de Comunicação em 1991 pela professora de Estudos Críticos na Escola de Cinema-Televisão da Universidade do Sul da Califórnia Marsha Kinder, em seu livro Playing with Power in Movies, Television, and Video Games: From Muppet Babies to Teenage Mutant Ninja Turtles onde aplicou a análise narrativa do desenho As Tartarugas Ninja em meios e plataformas diferentes. Kinder chamou o conceito de transmedia intertextuality – Intertextualidade transmídia, (tradução nossa). A designer, professora e escritora Brenda Laurel aponta o conceito de Think Transmedia como “a necessidade de abandonarmos o velho modelo de criação de propriedade exclusiva de um determinado meio e redirecioná-lo para criar propriedades secundárias em outras mídias.” (LAUREL, 2000 apud GOSCIOLA, 2012, p. 8). De acordo com Alejandro Rost (2016), em 2010 Laurel estudou o termo transmídia em oposição à reutilização narrativa que era aplicada na indústria do entretenimento.


17

Por fim, o termo Transmedia Storytelling com suas origens e conceituação foi apresentado em 2001 por Henry Jenkins em seu artigo Convergence? I Diverge e consolidado em seu livro Cultura de Convergência, publicado em 2009. A narrativa transmídia consiste na utilização dos meios de comunicação além de seu meio original e na convergência de meios de comunicação tradicionais em múltiplas plataformas midiáticas, ou seja, a narrativa é construída com diferentes meios de comunicação, onde cada um dos meios forma uma parte da narrativa e promovem o diálogo e a união entre esses mesmos meios e também entre usuários e leitores. Bilson apud Jenkins (2009a, p. 379) chama de entretenimento multiplataforma a “forma de narrativa que se apresenta em múltiplos canais de entretenimento”, similar ao conceito de narrativa transmídia de Henry Jenkins. “Uma história transmídia desenrola-se através de múltiplas plataformas de mídia, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo. Na forma ideal de narrativa transmídia, cada meio faz o que faz de melhor”. (JENKINS, 2009a, p. 138). Paralelo ao pensamento de Jenkins, o professor e pesquisador espanhol Carlos Scolari (2013) aponta que nas últimas décadas, principalmente após a chegada dos processos de digitalização e da difusão da World Wide Web (WWW), os consumidores se converteram no que ele chama de prosumidores, a junção de produtores com consumidores. A cooperação ativa dos leitores no processo de expansão transmídia seria mais uma característica que define a narrativa. De acordo com Scolari, os produtos de comunicação devem incluir uma área dedicada aos leitores, que seguem expandindo a história contada de um meio de comunicação a outro. De acordo com Renó e Flores (2012), uma narrativa transmídia é desenvolvida como um todo estruturado por partes que interagem e dão sentido textual e informativo a uma determinada mensagem. A junção das informações compõe o conteúdo final e cabe ao leitor escolher por onde começar e terminar sua leitura, o que traz mais liberdade ao leitor – que pode escolher o começo, o meio e o fim de sua leitura, e torna a narrativa transmídia mais atrativa com diversas possibilidades de leitura, com histórias independentes que oferecem uma história completa e interativa por meio de comentários e a circulação por redes sociais.


18

De maneira ideal, cada elemento da narrativa transmídia possui uma contribuição única e específica para o desenvolvimento e entendimento da narrativa ao todo. Não é necessário começar a leitura da narrativa necessariamente pelo começo, há diversos pontos de entrada na história. A transmidialidade permite ampliar a história a novos espaços e consumidores. Por fim, os receptores da mensagem podem participar como co-criadores da narrativa, por meio da interatividade. A interatividade por parte do público pode ocorrer com o uso das redes sociais, no conceito de espalhamento que "refere-se a capacidade do público de se envolver ativamente na circulação do conteúdo de mídia por meio das redes sociais, e no processo, expandir seu valor econômico e cultural." (JENKINS, 2009b). O espalhamento pode aumentar o engajamento às matérias jornalísticas através de recomendações dos usuários nas redes sociais. O espalhamento está ligado com a transmidiação e pode ocorrer quando há recomendação a partir de outras plataformas, como o Facebook e o Twitter. Em resumo, o espalhamento no jornalismo compreende o uso de ferramentas de recomendação, valoração, compartilhamento e comentários dentro dos sites jornalísticos e a utilização das redes sociais com finalidade semelhante. (SOUZA, 2011. p. 149).

2.2 Mulheres e as profissões Pesquisas que enfatizam a realidade da desigualdade entre homens e mulheres no âmbito social e profissional e sobre a maior incidência do machismo em casos em que a mulher desempenha serviços "masculinos" têm se tornado mais comum à medida em que as mulheres se percebem intelectualmente e fisicamente capazes de desempenhar trabalhos até então feitos apenas por homens. A pesquisa do Fórum Econômico Mundial (FEM) é um estudo que se baseia em classificar a desigualdade de gênero em cada país e expõe alternativas para mudar este cenário. Artigos que destacam mulheres "invadindo" o cenário historicamente masculino e conquistando seu espaço em diversas profissões foram publicados em revistas como a Exame e BBC, que trazem também uma reflexão acerca do machismo ainda enfrentado e relatado por mulheres que trabalham como mecânica, motorista de ônibus ou caminhão, engenheira e até mesmo pedreira. Mesmo com todo esse cenário, meios de comunicação voltadas para o próprio púbico feminino ainda tratam as


19

mulheres como frágeis e exclusivas dos universos da moda, estética, ditando regras ultrapassadas de comportamento e de beleza para mulheres de todas as idades. Os papeis desempenhados pelas mulheres evoluíram no decorrer dos séculos, ainda há muitos obstáculos para que elas sejam tratadas com igualdade dentro do seu meio social, familiar e profissional, por isso se faz necessário que os meios de comunicação, se reestruturem de tal forma que possam ampliar as discussões sobre o machismo e sexismo, além de destacar a importância da mulher moderna conseguir se sentir contemplada e representada nos conteúdos jornalísticos. Segundo Hildete Pereira de Melo (2005), Doutora em Economia e Coordenadora do Núcleo Transdisciplinar de Estudos de Gênero da UFF, um dos fatos históricos mais marcantes da sociedade brasileira nos últimos 50 anos foi a inserção, cada vez mais crescente, das mulheres no mercado de trabalho. Em seu artigo Gênero e Pobreza no Brasil, Melo destaca os fatores econômicos e culturais como principais agentes causadores dessa evolução feminina. Primeiro, o avanço da industrialização transformou a estrutura produtiva, a continuidade do processo de urbanização, a queda das taxas de fecundidade proporcionaram um aumento das possibilidades das mulheres encontrarem postos de trabalho na sociedade. Segundo, a rebelião feminina do final dos anos 1960, nos Estados Unidos e Europa, como uma onda chegou nas nossas terras, em plenos anos de chumbo. (MELO, 2005, p. 4)

A professora Dolores Pereira Ribeiro Coutinho (2017), do Programa de Mestrado Acadêmico Interdisciplinar em Desenvolvimento Local da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) e mestre em História e Doutora em Ciências SociaisSociologia, com temática de estudo em pesquisa histórica e social, principalmente nas temáticas: religiosidade, territorialidade, mercado de trabalho, escolarização formal, gênero e desenvolvimento local, contextualiza o patriarcado como principal agente fomentador da desigualdade da mulher no mercado de trabalho. O patriarcado é um processo social no qual os homens constituíram, historicamente, a subjugação das mulheres para ter vantagens econômicas. De acordo com Coutinho7, “o produto do trabalho feminino passou a fornecer vantagens econômica aos homens, que

7Dolores

Pereira Ribeiro Coutinho em entrevista concedida a Daiana Porto Barbosa em 05 out. 2017


20

docilizaram e subjugaram as mulheres, primeiro utilizando-se do uso da força e, mais tarde, com o uso das ideias”. Com a entrada da mulher no mercado de trabalho, houve a necessidade do aumento de sua escolaridade, pois para que elas pudessem ter salários mais igualitários, precisam ter mais escolaridade que um homem com o mesmo cargo. As mulheres começaram a ocupar as vagas deixadas pelos homens descontentes com o salário baixo. Se os homens migram para a medicina, a profissão de enfermeira fica a cargo das mulheres. Profissões que se relacionem com a maternidade ou com o cuidado, ficam para as mulheres, pois estão associadas ao papel feminino. É preciso assinalar que esta nova mulher mantém uma interdependência entre vida familiar e vida do trabalho, que se fundem numa mesma dinâmica para o sexo feminino. Esta evidência remete à denúncia pelo movimento de mulheres da invisibilidade do trabalho feminino e as desigualdades que qualificam sua inserção produtiva (rendimentos inferiores, direitos previdenciários negados, obstáculos aos planos de ascensão a cargos e chefia). O tema da invisibilidade é sem dúvida o mais antigo das reivindicações feministas. (MELO, 2005, p. 4)

De acordo com o Módulo de Capacitação em Inspeção do Trabalho e Igualdade de Gênero (2012) da Organização Internacional do Trabalho (OIT), nos últimos anos, houve progresso na igualdade de gênero no mercado de trabalho. Entretanto, a diferença salarial, onde mulheres ganham salário inferior aos homens, executando o mesmo serviço, continuam. Além da não-contratação de mulheres em razão da discriminação a gravidez e maternidade que persiste em empresas, o que faz com que mulheres recorram ao trabalho informal. A ausência de proteção social, as disparidades salariais, a remuneração inferior, as condições inadequadas de trabalho, a exploração e o abuso, incluindo o assédio sexual, e a ausência de voz e representação são aspectos que atingem fortemente as mulheres trabalhadoras e são exacerbadas em razão das responsabilidades adicionais decorrentes dos papéis tradicionais de gênero, que colocam as mulheres como as responsáveis exclusivas ou principais pelas atividades de cuidado. (OIT, 2012, p. 18)

Em muitos casos, as profissionais enfrentam preconceito e discriminação apenas por serem mulheres. O Módulo de Capacitação em Inspeção do Trabalho e Igualdade de Gênero (2012) classifica a discriminação como direta e indireta. Na direta, a discriminação por gênero é explícita, como nos casos em que empresas limitam


21

vagas de trabalho apenas a homens – muitas vezes com a justificativa de requisitos de força física, que só podem ser utilizados mediante comprovação de necessidade para realização do trabalho. A discriminação indireta, é sutil e sistêmica, onde “um requisito ou condição é aparentemente neutro em relação ao gênero, mas na prática resulta em desvantagens desproporcionais para as mulheres em comparação aos homens” (OIT, 2012).


22

CONSIDERAÇÕES FINAIS A proposta de realizar a narrativa “Lugar de mulher é onde ela quiser” surgiu do nosso interesse em falar sobre um assunto que protagonizasse as mulheres. Depois de algumas leituras e pesquisas de diversas matérias em nível nacional e da percepção da a falta de representatividade sobre o assunto, as mulheres inseridas no mercado de trabalho tradicionalmente masculino entraram em pauta. A falta de produtos jornalísticos publicados no âmbito regional resultou no interesse de explorar esta vertente em Mato Grosso do Sul. O assunto se mostrou ainda mais importante e relevante já no início da pesquisa. A falta de dados estatísticos sobre as mulheres nesse tipo de profissão no Estado tornou evidente que, além da falta de representatividade midiática, há também a falta de dados estatísticos sobre a temática. Durante o processo de estruturação do trabalho, foi notado que nos ambientes de trabalho onde há maior escolarização, o machismo é mais velado, sutil, passando até mesmo despercebido pelas profissionais. Nas profissões onde o preconceito é ainda mais escancarado se percebeu que para se livrar de ofensas de homens, muitas ainda precisavam utilizar-se da imagem de uma terceira pessoa do sexo masculino para assim conseguir mais respeito em seu local de trabalho. Com este trabalho foi possível perceber nas entrevistas o orgulho na fala de cada mulher ao discursar sobre a profissão que exerce. Ficamos gratas a cada uma que se dispôs a nos contar as suas lutas, o seu serviço e a ser acompanhada em um dia de trabalho para que o registro fotográfico pudesse ser feito. As entrevistadas já estavam cientes do quão importante é ter mulheres nas mais variadas profissões. Isso comprova que, independente do gênero, cada um deve sempre seguir a carreira que desejar. Todas as entrevistadas, sem exceção, tinham o desejo de falar sobre o assunto, e também solicitaram o envio dos registros fotográficos em seus locais de trabalho, exercendo suas profissões, dizendo que gostariam de usar os registros para exibir orgulhosamente sua profissão nas redes sociais, o que nos fez perceber o quão importante para elas é a execução deste trabalho, e principalmente, a importância de


23

abrir este espaço onde elas possam ter voz própria e falar abertamente sobre suas dificuldades, anseios e sonhos profissionais. Foi consenso de todas de que a perseverança é a melhor ferramenta para aumentar a representatividade feminina nos lugares dominados por homens. Terminar o curso de jornalismo, realizando uma narrativa transmídia, inspirada num trabalho realizado por um dos jornais mais respeitados do mundo, e, além disso, ampliar as vozes de mulheres guerreiras, profissionais de expressão em áreas tradicionalmente masculinas, é uma conquista que vamos levar para toda a nossa carreira. Sem dúvida, essa iniciativa nos aponta para o jornalismo que queremos seguir, um exercício profissional que faça a diferença na vida das pessoas, refletindo e espalhando com responsabilidade as mensagens para um mundo mais igualitário, digno e pleno. Este trabalho nos trouxe a certeza de que o lugar, e a profissão, de uma mulher, é onde ela quiser.


24

REFERÊNCIAS BERGERO, F.; BERNARDI, M. T.; ROST, A. Periodismo transmedia, la narración distribuida de la noticia. Neuquén: Publifadecs, 2016. CAMPALANS, Carolina, RENÓ, Denis e GOSCIOLA, Vicente. Narrativas Transmedia: Entre Teorías y Prácticas. 1. ed. Bogotá: Editorial UOC, 2012. CANN, Oliver. World Economic Forum, 2095: Talvez, O Ano Da Igualdade de Gênero da Área de Trabalho. Disponível em: <http://www3.weforum.org/docs/Media/Portuguese_Gender%20Gap_Final.pdf>. Acesso em: 23 jun. 2017. COUTINHO, Dolores Pereira Ribeiro. Entrevista concedida a Daiana Porto Barbosa. Campo Grande, MS. 05 out. 2017. DALL’AGNESE Carolina Teixeira Weber. Apontamentos sobre o estudo das narrativas jornalísticas transmídia no contexto do atual ecossistema midiático. In: XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, set. 2016, São Paulo. Anais... São Paulo, 2016. Disponível em: <http://portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-0503-1.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2017 EBERT, Vagner e SCHAEFFER Olmiro Cristiano Lara. Transmedia Storytelling e Geração Z: Sobre Diálogo e Participação com os Nativos Digitais. In: XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, set. 2015, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro, 2015. Disponível em: <http://portalintercom.org.br/anais/nacional2015/resumos/R10-0871-1.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2017 IPEA, Estudo mostra desigualdades de gênero e raça em 20 anos. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=29526& catid=10&Itemid=9>. Acesso em: 20 jun. 2017. IPEA, Estudo detalha avanços femininos no mercado de trabalho. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=27349& catid=10&Itemid=9>. Acesso em: 20 jun. 2017. JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2009(a) ______. Revenge of the Oragami Unicorn: Seven Core Concepts of Transmedia Storytelling. In: Blog Confessions of an Aca-Fan, 2009(b). Disponível em: < http://henryjenkins.org/2009/12/the_revenge_of_the_origami_uni.html>. Acesso em: 21 nov. 2017. MELO, Hildete Pereira de. Gênero e Pobreza no Brasil: Relatório Final do Projeto Governabilidad Democratica de Género en America Latina y el Caribe. Brasília: CEPAL & SPM, 2005. Disponível em: http://www.spm.gov.br/arquivosdiversos/.arquivos/integra_publ_hildete_pereira/view. Acesso em: 13 out. 2017. OLIVEIRA, Thaís Helena Ferreira Neto. Desafios tecnológicos: jornalismo, hipermídia e plataforma digitais. In: XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, set. 2016, São Paulo. Anais... São Paulo, 2016. Disponível em:


25

<http://portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-2839-1.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2017. Organização Internacional do Trabalho. Módulo de Capacitação em Inspeção do Trabalho e Igualdade de Gênero. Brasília: OIT, 2012. Disponível em: < http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/gender/pub/inspecao_completo_922.p df>. Acesso em: 13 out. 2017 RENÓ, Denis. Interfaces e linguagens para o documentário transmídia. Fonseca, Journal of Communication – Monográfico 2 (2013), pp. 204-225 RENÓ, D.; FLORES, J. Periodismo transmedia. Madrid: Fragua, 2012. SCOLARI, Carlos. Narrativas transmedia: cuando los medios cuentan. Madrid: Deusdo, 2013. SOUZA, Maurício Dias. Jornalismo e cultura da convergência: a narrativa transmídia na cobertura do Cablegate nos sites El País e Guardian. Dissertação (Mestrado em Comunicação), Centro de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2011. Disponível em: < https://www.ufrgs.br/jordi/wpcontent/uploads/2016/05/Jornalismo-e-Cultura-da-Converg%C3%AAncia-A-NarrativaTransm%C3%ADdia-na-Cobertura-do-Cablegate-nos-Sites-El-Pa%C3%ADs-eGuardian.pdf>. Acesso em: 21 nov. 2017. SPINELLI, Egle Müller e BASSO, Eliane Fátima Corti. Narrativas Transmídias como Alternativas para o Empreendedorismo no Jornalismo. In: XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, set. 2015, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro, 2015. Disponível em: <http://portalintercom.org.br/anais/nacional2015/resumos/R10-1108-1.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2017 VERDÉLIO, Andreia. Agência Brasil, Mulheres trabalham 7,5 horas a mais que homens devido à dupla jornada. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-03/mulheres-trabalham-75-horasmais-que-homens-devido-dupla-jornada>. Acesso em: 20 jun. 2017. WORLD ECONOMIC FORUM, The Global Gender Gap Report 2016. Disponível em: <http://reports.weforum.org/global-gender-gap-report-2016/>. Acesso em: 24 jun. 2017.


26

APÊNDICES I.

Roteiro de entrevista - Profissionais

1. Idade e naturalidade. 2. Reside em sua cidade atual há quantos anos? 3. Trabalha na atual profissão há quanto tempo? 4. Trabalhou em outras áreas anteriormente? 5. O que a levou para a profissão atual? 6. Conhece outras mulheres que trabalham na mesma área que você? 7. Acha que o número de mulheres na sua área está crescendo? 8. Se sim, acha que isso é bem aceito pela sociedade? 9. Já foi contratada por uma empresa? 10. Acredita que existe preconceito de gênero? 11. Já sofreu preconceito? 12. Quais as maiores dificuldades da sua profissão? 13. Quais os seus planos para o futuro?


27

II.

Entrevista Lucia Cabral (pintora) Qual a sua idade? 30 anos Aonde você nasceu? Nasci em Aquidauana Você mora aqui em Campo Grande há quantos anos? 4 anos. Antes de trabalhar como pintora, você trabalhou em outros empregos,

outras áreas? Fui auxiliar administrativa em uma fazenda, já fui atendente de ciber, já fui atendente de panificadora e aí decidi mudar de ramo. Pra mim é assim, eu gosto sempre de estar mudando, não gosto muito de rotina. É muito chato a rotina. Quando você começou a trabalhar como pintora e o que te levou a essa profissão? Eu comecei na pintura em 2014, vai fazer 4 anos, ou já 4 anos, não sei direito. Mas eu entrei porque eu queria novas barreiras, fazer uma coisa diferente que seja do normal de uma mulher, do dia a dia, sempre gosto disso, de inovar. Como você aprendeu? Qual foi o seu primeiro contato com a pintura? Meu primeiro contato foi, já cheguei e já tive que ... eu não tinha noção de nada, quando eu cheguei o rapaz só me deu um rolo e falou "pode pintar", foi isso. Mas ele trabalhava com alguém, você chegou oferecendo seu serviço? Uma amiga me indicou porque esse rapaz estava precisando de um pintor, aí eu decidi arriscar, aí eu só cheguei, conversei, ele perguntou 'você quer aprender?', falei que queria, já entrei na obra e comecei. Então você teve uma oportunidade bem legal, né? Uma pessoa que te deu uma oportunidade. Sim, isso. Você conhece outras mulheres que trabalham com pintura ou com construção civil? Conheço, conheço. Muitas?


28

Olha, poucas. Você acha que está crescendo a quantidade de mulheres nesse ramo? Está crescendo, mas tranquilamente já é mais difícil colocar na cabeça de um homem que a mulher vai fazer o serviço melhor do que outro homem, mas estamos indo, caminhando. Você já sofreu algum tipo de preconceito? Sim. Você pode falar um pouco sobre como aconteceu isso? Sempre tem esses comentários bobos, que mulher tem que estar no tanque, tem que estar no fogão, não tem que estar trabalhando, aí ficam procurando o mínimo erro que você faz, já é motivo pra eles te condenando pra eles aquilo é o fim do mundo... vai lavar louça, você não serve pra tá aqui, vai passar roupa, vai cozinhar, esse tipo de coisa já ouvi muito. Como você lida com isso? Eu sou muito tranquila então eu nunca vou debater com homem porque sempre eu que vou perder a razão, então sempre falo que quando eu sair do meu serviço, realmente, eu vou lavar roupa, vou passar, vou cozinhar, até porque eu sou uma mulher, não sou uma folgada igual a maioria dos homens que chega em casa e vai deitar ou sentar no sofá e só esperar a mulher levar um suco. Eu ainda tenho que ensinar tarefa, ter tempo pra brincar, tenho que ter tempo pra sair, porque né, mãe é mãe né. As vezes eu to aqui eu to cansada, mas chega em casa eu sou mãe, tenho que dar atenção, as vezes vou dormir 2 da manhã, 3 horas, dependendo do que tiver que fazer pra ele. Não posso sair e deixar ele lá, geralmente deixo almoço pronto, tudo já preparado pra ele pro outro dia, pra facilitar a vida dele, apesar que ele já tem 12 anos, já sabe se virar sozinho, mas sempre tem que ter a mãe né. Você já sofreu algum tipo de assédio? Dos homens mexerem com você por você ser mulher? Já. É constante, isso aí é direto, sempre tem um. E com isso, como você lida? Também sou bem criativa, geralmente eu já falo que tenho alguém, já pra não ter esse tipo de brincadeira.


29

É a sua forma de defesa... Sim, isso. Você trabalha pra uma empresa ou é autônoma? Agora eu estou autônoma. Já trabalhou para alguma empresa? Já. E nessa empresa você sentia algum tipo de dificuldade, por ser mulher, ou te contrataram sendo mulher e tudo bem? Não, nessa empresa foi bem tranquilo. Quais são as suas maiores dificuldades na profissão? No momento é a falta do serviço e muitos pintores que chegam em certos lugares e se alguém fala que tem uma mulher que é pintora, veio fazer um orçamento, aí eles já te criticam o máximo que puder pra você não pegar o serviço. Teve uma vez que eu fui fazer um orçamento em uma casa e o proprietário gostou de um outro serviço que eu tinha feito e pediu pra eu fazer um orçamento. Meu serviço vale 8 mil reais, aí ele foi e resolveu fazer orçamento com outro pintor porque achou que deveria ter mais orçamento e aí nesse meio tempo ele comentou com um rapaz que era uma mulher que tinha o orçamento, aí ele falou pro dono da casa que se fosse pra uma mulher não pegar o serviço, ele faria pela metade do preço. Só pra uma mulher não pegar. Ele pegou. E o proprietário já me ligou e falou que não tá gostando do serviço dele. Acho que a mulher consegue ser mais cuidadosa, então não adianta, se eu dou um valor, não vou dar aquele valor só por dar, eu dou valor sabendo que vou cumprir o meu serviço do começo ao fim, não importa. E outra, a organização e a limpeza de um serviço é fundamental, não adianta eu chegar lá e falar que vou cobrar mil reais só que vou lá e deixar tudo de qualquer jeito e o cliente depois que se vire, não sou assim. Isso que você falou de quando vai fazer orçamento, no caso é a pessoa que está contratando o serviço, você vai lá fazer orçamento e ele já te dispensa por você ser mulher? É, isso. A gente fica bem chateada, porque não conhece o serviço e não deixa a gente nem mostrar, falar o que você sabe fazer ou não.


30

Ele já pensa que você não é capaz... É, isso... E quantas vezes isso já aconteceu, mais ou menos? Foram muitas vezes? Ah, isso já aconteceu mais de 10 vezes. Tem muitos lugares que se eu chegar sozinha como pintora para dar um orçamento, eles não vão aceitar porque pra eles, tem na cabeça que uma mulher não pode dar um orçamento, não pode pintar uma casa, então essa foi a alternativa que eu arranjei, de arrumar um amigo que quando acontece esse tipo de coisa, ele vai comigo e ele dá o orçamento no meu lugar, como se fosse ele. As vezes pra pessoa é mais fácil uma mulher trabalhando com um homem do que um homem trabalhando pra uma mulher, então essa foi a alternativa. Outras coisas que já aconteceram, é o assédio que acontece bastante, principalmente em obra. Ou então você chegar em uma casa e você fechou serviço com uma mulher, aí chega o marido e não quer porque é uma outra mulher a acha que você não é competente pra fazer o serviço. Engraçado que pra se livrar de um homem, você precisa acabar usando outro, né? Isso é verdade! Já teve o contrário, por exemplo, alguém te elogiar pelo seu serviço por você ser mulher? Falar que foi feito melhor? Sim, sim. Isso aí tem bastante, geralmente as mulheres que você vai trabalhar na casa, vê que você é mais caprichosa, sempre tem um elogio. Você prefere trabalhar mais com as mulheres ou com homens? Olha, pra falar a verdade, nessa parte de negociação e essas coisas, é melhor homem. Porque a mulher é mais detalhista, ela quer de vez o seu extremo, o homem não, as vezes se você pega uma obra e ele está atrasado, pra ele tanto faz, se você fez errado ou certo, pra ele tanto faz. Agora uma mulher, por mais que a obra esteja atrasada, ela quer perfeição, isso aí não importa. Então as vezes é mais fácil lidar com homem.


31

Você estava conversando com a gente antes que quer muito fazer faculdade de Engenharia Civil, quais são os seus planos, os seus sonhos para o futuro? O que você ainda pretende fazer? Quero fazer faculdade, só que pra exercer eu não pretendo ficar aqui, quero ir pra fora, fazer uma pós-graduação, algo mais elaborado. Porque aqui ultimamente anda bem fechado esse meio da construção civil. Bem complicado. Se você não tiver um 'QI' que eles falam, um 'quem indica', então... Na sua camiseta está escrito "Cabral & Anjos Pinturas", é um estabelecimento? Sua empresa? É o que eu pretendo montar. Não tenho firma reconhecida, coloquei o nome só pra personalizar mesmo. Acho que você ir numa casa de uma pessoa sem uniforme, de qualquer jeito, não dá, já acho isso falta de profissionalismo, chegar de chinelo, qualquer camiseta, não, tem que chegar certinho.


32

III.

Entrevista Ana Lúcia Gaborim (musicista, regente e professora) Como você vê as mulheres na área de música? Principalmente como

regente, há preconceito? Se vocês puderem dar uma olhada, no ano passado nós tivemos um simpósio sobre mulheres regentes. Então assim, eu tenho uma professora que é uma regente internacionalmente famosa, e principalmente quando ela começou a carreira dela, ela fez esse simpósio porque ela sofreu muito preconceito no início da carreira dela. Eu, graças a Deus não tive que enfrentar preconceito, eu tive, claro, na minha área, na sala de regência, quando começamos o curso éramos 15 homens e 5 mulheres, então era bem menor o número de mulheres nessa área da regência mesmo. A gente vê geralmente sempre o regente homem. Eu, graças a Deus nunca sofri preconceito assim né, de ter que me justificar, mas o que a gente percebe é que você tem que se colocar de uma maneira muito profissional. Nesse simpósio que eu participei no ano passado, teve algumas regentes que falaram que foram assediadas, ou que foram menosprezadas pelos regentes por serem mulheres mesmo, eu graças a Deus nunca tive, porque meus colegas me respeitam porque eu entrei aqui como professora, então eu tenho uma produção intelectual bastante grande, então eu sou respeitada como musicista, no geral. E aí quando me convidaram para reger esse grupo de cordas eu já estava estabelecida dentro da universidade, então ninguém veio me questionar. Então dentro do contexto acadêmico eu nunca sofri preconceito. Agora o que a gente vê, é que a mídia as vezes vai colocar "orquestra regida por uma mulher", como se fosse uma coisa estranha, paradoxa, não sei. A minha professora, quando fez esse evento, colocou várias reportagens dela, principalmente no início da carreira "orquestra sinfônica do estado de São Paulo regida por uma mulher", não é a Lígia, é uma mulher, então eles não veem a profissional que ela é, o nome que ela tem, mas que ela é uma mulher, parece uma aberração do ambiente. E assim, a gente tem também algumas instituições, eu sei de igrejas um pouco mais radicais que não permitem reja uma orquestra, de jeito nenhum, por exemplo na congregação cristã, as mulheres só podem tocar órgão, elas não podem reger, não existem mulheres regentes dentro da congregação. Se você vai fazer uma competição, o número de homens é sempre maior. Olhando um pouco para o passado também, essa questão das mulheres


33

se colocarem como artistas ela só foi aflorar em meados do século 20. A gente tem a Chiquinha Gonzaga, por exemplo, que foi uma compositora brasileira que só se destacou pelas composições dela porque ela correu muito, batalhou muito, mas ela sofreu muito preconceito, ainda mais porque ela era separada, ela separou do marido, então ela já teve aquele preconceito de ser uma mulher separada e aí ela foi atrás da carreira, ela publicou, se envolveu com as causas abolicionistas, então esse envolvimento dela deu um pouco mais de peso pra ela, porque ela teve esse envolvimento, ela foi uma das primeiras mulheres a se destacar na história da música brasileira. Eu sei que no início do século 20 também tem uma história de um professor de piano que fez um recital onde as alunas se apresentaram e isso foi um escândalo na época, porque a mulher tinha que aprender piano só pra tocar dentro de casa, pra família, então aprender piano era parte da boa educação das moças, elas aprendiam piano, aprendiam francês, aprendiam bordado, aprendiam as coisas da casa, então o piano era pra elas ficarem mais femininas, mais delicadas, mas não para se apresentarem publicamente, porque a gente sabe que essa relação da mulher dentro da família, ela não podia ser vista, o marido tinha que guardar a mulher dentro de casa, ela não podia se destacar, ser admirada por outras pessoas que isso gerava muito ciúme entre os homens. Então, realmente, na música, nós tivemos as mulheres se destacando como artistas, mas assim, da década de 30 em diante mais ou menos. E para a mulher assim, na questão da regência, é ainda mais difícil porque você tem uma mulher que é a líder, então para alguns homens ter que aceitar o que uma mulher está falando, tem homens que não gostam de engolir isso. Então a mulher tem que provar que ela é muito boa, muito competente, porque é a vontade dela que está sendo, está dirigindo a toda interpretação. Você já percebeu alguma resistência por parte do público? Não, por parte do público não. Porque assim, a gente aqui na cidade e no estado de maneira geral, eu não sou daqui, sou de São Paulo. São Paulo você tem concertos todos os dias, tem uma revista, que você escolhe o que quer fazer naquele dia porque tem concerto em vários pontos da cidade. Agora aqui em Campo Grande, eu vejo que as pessoas buscam a música clássica, e é muito pouco que vem se realizando, o curso de Música é muito novo aqui, não é um estado que tem tradição


34

cultural. Então se você oferece alguma coisa, as pessoas vêm por aquilo que você tem a oferecer, elas não vão questionar se é uma orquestra regida por uma mulher, nunca tive esse tipo de pensamento aqui, até porque a gente está oferecendo algo diferente. Essa semana está tendo encontro de música clássica e o Glauce Rocha está lotando, todos os dias. Essa temporada, esse ano do movimento concerto também a gente está tendo casa cheia sempre. Então eu acho que as pessoas estão buscando a música clássica, elas não veem questionar se está sendo feita por um estudante, porque é a maioria dos grupos que a gente tem são feitos por estudantes. Se é profissional, estudante, homem, ou mulher, então acho que de maneira geral as pessoas buscam a música, o resultado, independente de quem está à frente. Há quanto tempo mora em Campo Grande? 12 anos. Qual a sua formação? Eu fiz bacharelado em composição e regência, e como te disse, na minha sala tinha 15 homens e 5 mulheres só. Nem todos foram para a área de regência, alguns foram para a área de composição. Na área de composição também tem poucas mulheres se destacando. Quando eu fiz a minha monografia de final de curso, fiz sobre compositoras e regentes mulheres, justamente porque são poucas. É o que eu te falei, é toda uma herança histórica do papel da mulher na sociedade, porque também assim, a dedicação que a gente tem que dar para a música é muito grande, porque a gente tem que estudar, fazer ensaio. Por exemplo, eu tenho 3 filhos, então as vezes eu abro mão de ficar com eles para poder me dedicar, as vezes a viajar com a orquestra, as vezes a ter um tempo com meus músicos para gente ensaiar, as vezes a gente ensaia de sábado, domingo, quando tem concerto extra. Então eu sei que estou abrindo mão da minha obrigação de mãe, digamos assim, desse tempo com meus filhos para eu me dedicar a música, as vezes estou em casa, mas estou lá estudando a regência, mas acho que também depende de como você leva isso. Eu sempre falo para eles... por exemplo, a minha mãe deixou de trabalhar porque ela decidiu ser dona de casa, mas ela tinha essa frustração, então ela sempre falava pra mim "olha, filha, estuda bastante, vai seguir uma profissão" porque embora eu sei que ela tenha deixado por mim, eu via que ela tinha essa mágoa de não ganhar o dinheiro dela, de depender do meu pai, de


35

não sair, porque ela passava a maior parte do tempo dentro de casa, não saia, não ia ver o mundo, digamos assim. Então ela sempre me incentivou, e pros meus filhos as vezes eu falo assim "olha, já pensou se a mãe de vocês só ficasse dentro de casa, lavando roupa, passando roupa, eu não ia ser uma mulher feliz, uma mulher realizada, então vocês não tem orgulho de chegar na plateia e saber que a mãe de vocês está regendo? Não é legal? Olha só, vocês podem falar da mãe de vocês, que regeu em tal lugar." Estou levando eles também pra esse mundo da música, não sei se eles vão seguir carreira, mas pelo menos eles estão tendo estudo musical. O meu marido mesmo fala que sabe que para mim é mais pesado, a mãe exige mais deles, que fique ali com eles, exigem mais até da mãe do que do pai, mas isso depende muito de como você vai levando, então sempre converso com eles, coloco essas questões, falo que gosto de trabalhar, de estudar, se eu fosse dona de casa seria muito infeliz porque sei que tenho essa possibilidade de fazer coisas, de levar música clássica para as pessoas, então tudo isso a gente tem que colocar na balança. Por que você escolheu essa área? Essa professora que te falei, que hoje é uma regente internacional, a Ligia Amadio... na verdade eu comecei a estudar piano com 10 anos, sempre tive uma facilidade, as professoras elogiavam muito e aí depois comecei a tocar na igreja, a me apresentar, e aquilo me encantou, eu tinha facilidade, então aqui me encantou bastante. Quando eu tinha uns 14 anos, eu entrei no coral da Ligia Amadio e eu me espelhava muito nela, achava ela maravilhosa, o jeito como ela conduzia os ensaios, o jeito dela reger, ela era o meu ideal. Aí eu conheci meu marido que é violonista, e começamos a pensar na carreira musical para os dois. Tanto que quando foi para fazer o vestibular, eu fazia magistério na época, e ele fez um outro curso que era mais curto, aí ele que fez minha inscrição no vestibular, eu falei 'não, to fazendo magistério. No magistério não temos essas disciplinas assim física, química, biologia, era muita coisa de educação. Não vou passar no vestibular, vou deixar pra fazer ano que vem, fazer cursinho e tal.' Ele falou pra eu tentar, porque ele tinha feito cursinho, aí ele fez a minha inscrição e eu acabei passando na UNESP. Comecei a fazer regência, foram 6 anos de curso, 6 anos sem reprovar nenhum, eram 6 mesmo. Aí, as oportunidades de já trabalhar na área foram surgindo, eu estudava piano no conservatório junto com a


36

faculdade, aí uma professora saiu e a diretora já me convidou para dar aula e eu nem tinha terminado a faculdade ainda e ela me convidou pra dar aula no conservatório, aí eu já comecei a reger orquestra e o coro. Aí eu terminei a graduação e já engatei no mestrado, na mesma faculdade, continuei trabalhando no conservatório, aí quando eu estava terminando o mestrado, surgiu a oportunidade de fazer o concurso aqui, aí eu vim pra cá, aí os dois vieram pra cá, os dois passaram no concurso aqui, começamos a trabalhar aqui, aí eu entrei pro doutorado em 2012, terminei em 2015. Essa foi a minha formação. Participei de muitos festivais também, a gente tem aqueles festivais de férias, onde a gente fica duas semanas tendo aula direto, fui no festival em Campos do Jordão, em Fortaleza, na Espanha também, em Santiago de Compostela, então a gente vai abrindo horizontes, porque com a música você vê que se você vai para outros lugares as pessoas falam a mesma língua que você, então é bastante interessante porque tem um pensamento musical, tudo bem que tem várias correntes de pensamento, mas o fazer música em si é universal, então a gente consegue ver outras possibilidades. Essa escolha pela regência foi por causa da minha professora, da Lígia, eu tinha uma admiração muito grande por ela. A gente cantava no coral e ela levou a gente pra cantar em lugares... por exemplo, ela levou a gente pra cantar no Festival de Campos do Jordão, então aquilo pra mim foi, 'nossa que legal, eu estou cantando, estou viajando para cantar', a gente cantou no MASP também, então foram vários espaços que a gente foi se apresentar e aquilo foi me encantando, fui me encantando cada vez mais por essa área. Ano passado eu fiquei bastante impressionada quando participei desse simpósio de mulheres regentes, porque ouvi muitas histórias de preconceito que fiquei chocada. Você contou que já ouviu essas histórias, o que essas mulheres costumam fazer? Como elas lidam com isso? Olha, segue em frente. Mas assim, vai machucando. Teve algumas que falam assim 'olha, tem gente que tenta me destruir, mas não sabem que isso só tá me fazendo ficar mais forte', tiveram casos de mulheres que levaram cantadas onde os caras falam 'ah então, você quer reger orquestra? A gente podia sair, jantar, você está interessada mesmo naquilo? Porque eu estou interessado em você' esse tipo de coisa,


37

de assédio mesmo ou de pessoas que são expostas como aberração, de nossa, uma mulher! Hoje a gente tem uma mulher na frente da orquestra sinfônica de São Paulo, que foi por anos um cargo ocupado por homem, essa é uma regente americana, a Marin Alsop, ela quase não fala português, ela falou em inglês no dia do simpósio, ela estava presente... ela fez o concurso, foi fazer o concurso como qualquer outra, mas existe um estranhamento, ainda mais em São Paulo que tem uma sociedade bastante conservadora que financia a música clássica, então tem gente que compra as assinaturas de concertos, antigamente tinha a Sociedade de Cultura Artística, depois o Teatro da Cultura Artística pegou fogo, mas existe uma sociedade que banca os concertos, então causou um certo estranhamento, de ter uma mulher a frente da maior orquestra do Brasil. Na banda sinfônica do estado de São Paulo também tem a Mônica Giardini, e a banda tem muito militar, parece que é um campo geralmente ocupado por homens. Aí a gente tem que tomar um cuidado dobrado, por exemplo, na roupa que veste, porque qualquer coisinha, qualquer deslize, já vão falar que é porque é mulher, 'ela quer se aparecer', então quer dizer, tem que tomar muito cuidado com aquilo que veste, com a maneira que você se coloca, ser sempre muito séria, é o que eu te falei, parece que a gente precisa as vezes demonstrar mais competência do que se fosse um homem, por exemplo. Parece que a gente tem que estudar muito, se preparar muito para fazer aquilo, porque se não vão falar 'ah, ela é mulher, não sabe direito'.


38

IV.

Entrevista Fátima Aparecida do Nascimento (motorista de ônibus) A senhora nasceu aonde? Nasci em Presidente Prudente, no estado de São Paulo. E a senhora reside aqui em Campo Grande há quanto tempo? Há mais de 45 anos. A senhora veio pra cá pra trabalhar? Sim, pra trabalhar. Antes de ser motorista de ônibus, a senhora trabalhava com o que? Antigamente, quando cheguei aqui, fui trabalhar com autoescola. Então a senhora já trabalhava com automóveis... Sim, trânsito, toda a vida trabalhei. Além da autoescola, a senhora já trabalhou com o que? Antes eu fui caminhoneira, e depois fui para a autoescola, foram 30 anos de

autoescola. A senhora era instrutora de autoescola? Sim, de carro pequeno, caminhão e micro. O que a levou a começar a trabalhar como motorista de ônibus? Era uma paixão minha, e consegui, fiz testes e me chamaram pra trabalhar e tô aí até hoje. Há quanto tempo? Há 17 anos. A senhora conhece outras mulheres que são motoristas de ônibus? Sim, eu conheço, tem a Katia, que trabalhou aqui com a gente, mas ela foi pra empresa Campo Grande. Tem uma outra aí que não conheço muito bem, mas eu praticamente sou a pioneira aqui em Campo Grande. E a senhora acha que está crescendo o número de mulheres nessa área? Tanto de motorista em geral, mas principalmente de ônibus? Olha, o importante é que a mulher tem a capacidade. A capacidade, a responsabilidade é muito grande, tem muitas mulheres que dirigem muito bem e eu gostaria que entrassem, que fosse mais divulgado. Porque a mulher merece também um destaque.


39

A senhora acha que a entrada das mulheres nesse ramo que é pouco habituado por elas, é bem aceito pela sociedade? Pelos passageiros do ônibus? A senhora nota algum olhar torto, alguma diferença quando as pessoas entram e encontram uma mulher no volante? Não, hoje a pessoa tá mais evoluída, mas antigamente quando eu entrei na empresa a gente encontrou resistência, mas basta você ser firme, persistente e ser bem objetiva no que você gosta. E essa resistência era por parte dos passageiros ou dos colegas de profissão? Dos próprios colegas que achavam que a mulher era dentro de casa. E a senhora aos poucos foi mudando isso... Sim, fui conquistando e vendo que não é assim, se você tem capacidade, você continua. A senhora acredita que ainda existe preconceito contra as mulheres nessas profissões mais masculinas? As vezes há sim barreiras, mas hoje, é como eu falei pra você, tá bem mais evoluída a mente da pessoa. E quais são as maiores dificuldades na sua profissão atualmente? Eu praticamente não tenho dificuldade porque eu venho trabalhar de manhã, faço um pega, vou pra casa, faço almoço, almoço, já venho almoçada, e a casa a gente final de semana quando tá de folga, e tenho também uma prima que cuida da casa. Então não tem problema nenhum pra mim. Como é a sua rotina de trabalho? Que horas a senhora entra para trabalhar e que horas finaliza? Eu saio de casa 4h, saio da garagem 5h30, volto 8h, aí vou pra casa, vou fazer o almoço, ajudar no que tem que fazer, almoço e volto 12h20 eu pego novamente e vou parar 19h40, quando recolho o carro na garagem saio de lá 20h.


40

V.

Entrevista Sidneia Tobias (delegada) Aonde a senhora nasceu? Eu nasci em Monte Castelo, no interior de São Paulo. Nasci em um sítio,

próximo a cidade e saí de lá com 23 anos. E a senhora veio para Campo Grande quando? Então, eu vim para Campo Grande no meio de 89, lá no estado de São Paulo eu me formei da pré-escola e fiz faculdade em Tupã, Dracena, fiz Pedagogia, Letras, Direito, tirei OAB e vim embora. Chegando aqui, eu não tinha emprego, aí comecei a procurar, fiz teste em várias escolas e comecei a dar aulas no colégio Auxiliadora e em um colégio no Aero Rancho, porque eu queria começar a contar tempo pro estado, porque eu sabia o que eu queria fazer. Nesse meio tempo, nesse meio semestre de 89 saiu um concurso para delegado de polícia, que era o que eu queria fazer desde que eu iniciei a faculdade de Direito. E aí eu fiz, chamei também, vieram de lá também pra fazer várias pessoas amigos nossos, meu irmão, minha cunhada e a gente passou. Em julho de 90, em janeiro de 90 eu ainda não tinha 24 anos e comecei a fazer academia de polícia, em junho de 90 eu entrei já como delegada de polícia e fui designada para ir para Corumbá, te confesso que quase desisti porque eu estava me sentindo muito sozinha aqui, eu não tinha amizades, a gente trabalhava muito e eu vim de uma cidade muito pequena, de 7 mil habitantes onde eu tive que fazer duas faculdades, eu fiz uma faculdade antes e a outra junto com Direito porque era naquele tempo que meu pai não queria que eu saísse de casa pra estudar, e quando fui fazer Direito eu ia de ônibus 150km e voltava 150km de Tupã, todos os dias. Porque era o que eu queria fazer. Então a gente atravessou algumas coisas, eu me sentia muito sozinha, mas fui para Corumbá. E chegando lá, iniciei um trabalho lá e nós fomos na época para abrir ... tinha na época do concurso poucas mulheres, as poucas que tinham, tirando acho que duas que ficaram aqui na capital, o resto foram todas para sedes de regionais pra abrir o setor de atendimento à mulher, era uma sala dentro da delegacia e ali nós fizemos uma plaquinha e colocamos "Setor de Atendimento a Mulher" e todos os casos daquela região de setor de atendimento a mulher passavam por nós, não passava mais pela delegacia comum, e ali logo depois de uns 4 ou 5 meses alguns delegados que foram desistiram do concurso, foi uma época de PDV e eu acabei ficando lá eu e o regional


41

por um tempo onde eu acabei assumindo titularidade de Corumbá e de Ladário, mais o Setor de Atendimento a Mulher. E foi muito bom porque eu tinha um bom relacionamento com o lado da Bolívia, quando eu precisava fazer serviços, tinha um bom relacionamento na cidade, a cidade me acolheu maravilhosamente bem, eu tenho excelentes recordações de Corumbá, mas em 13 de dezembro de 91, eu sofri um acidente de carro lá, voltando de uma solenidade da Marinha e foi muito sério, então eu fui socorrida na hora, operei uma cirurgia de emergência lá e vim embora pra cá de UTI no ar, aí eu fiquei 7 meses afastada da Polícia, tratando e tal. E quando eu voltei para a Polícia de novo, que os médicos queriam me aposentar e eu não quis, de jeito nenhum, porque meu sonho era ser delegada, e eu estava amando, quando eu voltei, eu voltei no Grupo de Operações Especiais, que era o GOE, aí eu fui ser adjunta ali, ali só tinham homens, só eu de mulher e a gente atuava e trabalhava no estado inteiro e foi um período muito bom. Eu cheguei lá de bengala ainda, ainda não tinha me restabelecido totalmente mas foi maravilhoso mesmo. Dali depois eu tive várias passagens, eu passei um período na Secretaria, rápido, fui para a Corregedoria do Detran, fiquei um período lá, também não muito demorado, depois eu fui par ao 9º Distrito, que hoje não é mais, mas é aquela região da Costa e Silva ali, ali era o 9º Distrito. Depois eu trabalhei no plantão do 1º Distrito, no 1º Distrito de Expediente, aí fui titular da Homicídios, titular da DERF, titular da DEFURV e titular da GARRAS, onde fui a única mulher ali. Do Garras eu fui ser superintendente de segurança pública e dali depois eu voltei para a Polícia, aí eu saí novamente para ir pra superintendência de administração e finanças da SEPUTUR, voltei fiquei um tempo aqui na CPJ, que é uma espécie de coordenadoria de inquéritos, onde você analisa e tenta melhorar os procedimentos policiais. Depois fiz academia, DPI, fui diretora do departamento de polícia do interior, primeira mulher também. DPC, agora Ouvidoria, como Ouvidora Geral e estou respondendo por duas Assessorias, Projeto (CGPP) e Comunicação. Durante a sua trajetória aqui dentro da Polícia Civil, a senhora já enfrentou algum tipo de preconceito por ser mulher? Principalmente no Garras e no Departamento de Polícia do Interior, onde foi a primeira mulher? Olha, eu sempre tentei manter um bom relacionamento com todos que trabalharam comigo porque eu sempre respeito os profissionais que trabalham comigo


42

e eu sempre tive muito respeito deles pra mim. Mas assim, tiveram muitos testes e eu sabia que eram testes, sabe? E eu encarava de boa, sem problema nenhum, bem tranquila, porque é tudo o que eu sempre quis fazer. Mas quando eu cheguei no Garras eu enfrentei um problema muito sério lá, que eu realmente não esperava. Porque assim, quando eu fui titular da Homicídios, da DERF e da DEFURV, que são trabalhos pesados... na DEFURV, eu fui pro caso da prefeita de Mundo Novo, Dorcelina Folador, então muitos policiais que trabalhavam no Garras já tinham trabalhado comigo em vários casos esporádicos, e nunca tiveram nenhum problema pra trabalhar comigo. Quando eu fui pro Garras, no dia que toda direção da polícia civil, inclusive o delegado geral na época, foi lá pra me dar posse, tava lá me dando a posse de forma informal porque já tinha saído a minha portaria e tudo, dizendo que eu ia ficar ali, um dos policiais que já tinha trabalhado comigo em vários casos levantou e disse que ele não concordava com a minha chegada ali, porque ele não achava que eu tinha condições de chefiar aquele grupo. Aí fez algumas colocações não muito boas, tudo relativo ao fato realmente de eu ser mulher e aí o diretor na época, o delegado geral, todo mundo teve aquele espanto porque o delegado geral conhece muita gente, porque não é uma polícia como São Paulo ou Rio que você tem uma dificuldade muito grande pra falar com o delegado geral, aqui é um pouco diferente, então todo mundo se espantou porque se você pegasse as imagens da época você veria aquele mesmo policial em vários casos comigo, me ajudando nas outras delegacias que eu estava, que tinha um efetivo menor e o Garras as vezes ia pra me dar apoio, aos nossos policiais. E aí ele falou "olha, querendo vocês ou não, eu vim aqui hoje, nós não vamos tocar nesse assunto, a Dra Sidneia pra assumir o Garras e ela vai assumir e tá tudo certo e tá encerrado aqui", aí eu pedi pra ele, que eu queria falar, aí ele me deu a palavra e eu falei, primeiro cumprimentei todo mundo, agradeci o fato de todos estarem ali, disse que eu estava chegando em um lugar onde as pessoas achavam que era um mundo só masculino, que eu jamais tinha me imaginado estar no Garras e realmente era uma delegacia que eu não pensava em passar por ela, mas a vida me levou pra lá e eu estava ali e que eu gostaria muito de trabalhar com todos eles, mas se alguém se incomodasse com a minha presença como o policial falou, citei o nome dele e tudo, não tem problema nenhum, terminando essa solenidade aqui, estarei na minha sala, que é


43

o gabinete do titular do Garras, e eu espero por vocês, quem não quiser trabalhar comigo, sem problema nenhum, pode passar lá que eu vou dar o ofício pra vocês se apresentarem na delegacia geral da polícia civil e pra ver a lotação de vocês e eu vou trazer outros policiais pra cá, que realmente queiram trabalhar comigo e que me respeitam, e encerrei, agradeci e tudo. Antes eu falei que eu gostaria que eles ficassem, que me auxiliassem, que me emprestassem a experiência deles, que me ensinassem, que eu sempre vi esse grupo muito forte em todas as unidades que eu passei, e todas as vezes que me deram um auxílio e que pra mim era uma honra estar ali com grandes pessoas, grandes profissionais, encerrei e fui pra minha sala. Saíram 5 aquele dia. 5. Só que eu vou ser franca pra você, aquele dia, naquela hora, naquele momento, eu não sei te falar, te descrever, o que eu senti, te falo assim com toda franqueza, aliás eu não sei como eu consegui falar tudo o que eu falei, foi uma coisa que eu fiquei muito chocada, eu fiquei muito, na hora, parecia que eu tinha parado de respirar um pouco, porque eu não conseguia imaginar que algumas pessoas que tinham trabalhado comigo em outros lugares achavam que eu não podai trabalhar ali. Mas assim, saíram, eu trouxe outros profissionais, aí o problema deles era que eu não tinha o curso de operações especiais, falei sem problemas nenhum, vamos fazer o curso, o que tiver que fazer eu vou fazer. Nós montamos, foi feito um curso de operações especiais aqui, eu trouxe um de cada regional, de delegado, porque eu sempre vi o garras, mesmo não estando lá, de uma forma diferente, eu sempre achei que em cada regional tinha que ter um braço formado com a mesma característica operacional, porque as vezes ocorre um problema lá em Ponta Porã, esse policial ele é o elo de ligação com o Garras daqui até o Garras chegar lá e ele tem formação específica pra isso e consegue orientar os demais que estão com ele ali até o reforço chegar. Então eu trouxe na época um de cada regional pra fazer esse curso junto, e fizemos, descemos de rapel, fizemos operações, fizemos tudo o que tinha que fazer, tudo, bomba de gás, isso e aquilo, entradas, táticas, tudo o que tinha que fazer no curso. Não foi um curso como é hoje, hoje a gente tem cursos de 60, 90, 120 dias, no Rio, Espírito Santo, outros lugares, não foi um curso desses, porque na época também não se tinha isso, era um ou outro e era muito raro você ir, mas esse curso foi montado por pessoas que já tinham essa experiência e coordenou todo ele, montou todo ele, e a


44

gente passou pelo teste deles e a partir dali eu não tive mais problemas, a gente trabalhou bastante e tal. Muito tempo depois eu encontrei esse policial, encontrei não, ele veio me procurar e veio até me pedir desculpas, porque não sabe o que deu nele, que ele não deveria ter falado aquilo porque já tinha feito outros trabalhos comigo, sabia da minha competência e queria mesmo me pedir mil desculpas. Hoje a gente conversa, tudo bem, sem problemas nenhum, foi um grande policial, hoje está aposentado, também foi um bom policial e os outros que saíram também, então assim, do resto eu não tenho o que falar, acho que a policia sempre me recebeu muito bem, as vezes encontra um ou outro detalhe pelo caminho, mas aí a mulher, a tendência nossa é empinar o nariz e ir pra frente porque se você ficar olhando muito do lado, você acaba não fazendo aquilo que você sabe que está preparada pra fazer e que você gosta de fazer, que é onde você se realiza, porque eu não sei se eu conseguiria ser outra coisa, a não ser delegada de polícia porque eu realmente amo o que eu faço e amo a instituição polícia civil. Isso é verídico, tanto que já estou com tempo de me aposentar e estou aqui com abono permanência porque ainda estou relutante em sair porque eu gosto demais disso aqui, eu acho que a polícia ela presta um serviço de excelência a sociedade e a sociedade ainda não nos conhece direito. O dia em que todos nos conhecerem direito e tiverem a noção que a polícia civil presta a toda a sociedade, eles vão ver que é uma profissão muito bonita, é uma profissão essencial para garantir a paz, assim como os outros órgãos também de segurança pública. De onde surgiu sua vontade de entrar para a Polícia? Eu cresci assim no meio né, a gente vai dizer assim, na época em uma cidade pequena, existia aquelas questões daquelas famílias mais tradicionais, a mulher é uma delas, então pai sempre fazia de tudo, mas eu sempre fui muito... mesmo ele me dando de tudo eu sempre fui muito independente, eu procurava trabalhar aqui, trabalhar ali, aí quando eu já me formei na minha primeira faculdade eu já comecei a dar aula la mesmo, mesmo fazendo a faculdade de direito eu sempre queria as minhas coisas, e eu tenho um tio que era escrivão de polícia, e de vez em quando eu ia lá, sabe? Eu fazia uma visita a ele, via o trabalho dele e via as viaturas, que não eram muitas porque era de cidade pequena, e eu sempre gostei, eu sabia que eu queria ser aquilo, mas na época meu pai não... eu fiz letras primeiro porque meu pai não me deixou sair, mesmo


45

para viajar 150km e voltar, ele não me deixava ir porque ele tinha receio, tinha uma série de coisas daquela época. Aí quando meu irmão foi fazer a faculdade de direito, eu fui junto e aí fomos os 2. Aqui passamos os 3, eu ele e minha cunhada, eles foram para nova Andradina e eu fui para corumbá, hoje ela saiu da policia, tem um outro cargo, meu irmão aposentou e estou eu. E minha família tem policiais, o filho mais velho do meu irmão hoje é do Garras, nós temos um outro dentro de outro órgão de segurança pública, então assim, eu acho que vem dali. Eu acho que é muito importante você poder fazer alguma coisa as vezes para algumas pessoas, não são todas as profissões que são ligadas diretamente às pessoas, e quando você está nas ruas, na delegacia você tem um elo de ligação com as pessoas muito grande, só depende de você, se você quiser, você faz, você pode até não conseguir resolver tudo, mas você da o seu melhor e eu sempre gostei disso, de ter esse elo de ligação com as pessoas onde eu sempre me dediquei ao máximo que eu podia, então não dependia de eu ter uma viatura nova, não dependia de eu ter o colete ideal, isso e aquilo, não dependia. Se a pessoa chegasse ali e estava realmente precisando, dependia da minha vontade, você entendeu? É uma obrigação? É uma obrigação você atender mas dependia muito de mim e daqueles que estavam comigo. Graças a Deus, tirando esse episódio que te contei, eu sempre tive policiais que sempre tiveram o mesmo gosto que eu, policiais que eu falo assim de verdade mesmo, sabe? Que iam junto comigo, que queria fazer, que se a gente tivesse que empurrar o carro, a gente empurrava, se tivesse que trocar pneu a gente trocava.... a gente fazia o que tivesse que fazer, mas a gente queria atender aquela pessoa que tava ali com uma necessidade grande, sofrendo, e a gente não queria deixar essa pessoa passar por isso. Eu acho que as pessoas precisam estar mais preocupadas umas com as outras porque a gente depende muito dos outros e eu fico me perguntando quando eu estiver fora daqui, entendeu? Porque eu vou precisar dessa polícia, então eu espero que essa polícia continue fazendo isso, aliás, continue fazendo melhor do que se faz hoje para atender a população. Já houve surpresa por parte dos civis, de entrar na delegacia e se deparar com uma delegada mulher? Já houve, mas assim, no momento em que você começa a trabalhar e a pessoa percebe a forma que você está trabalhando, a segurança que você tem para


46

fazer o que você está fazendo, a sua linha de comando, como todos os homens que estavam comigo, isso passava rápido, quando cheguei em corumbá mesmo, para você ter uma ideia, eu tinha 24 anos né, e eu fui me apresentar ao ministério público, à defensoria pública, fui fazer umas visitas para dizer ‘olha, eu sou a delegada tal e cheguei aqui na cidade para trabalhar e quero contar com o apoio dos senhores tal’, e quando eu entrei e me apresentei ninguém acreditava que eu era delegada de polícia todo mundo achava ‘nossa, mas não é possível’, eu tinha o cabelo bem cumprido sabe assim, nova, então olhavam assim e falavam ‘não, não é delegada de polícia’ e eu ‘sou, sou eu a delegada’ e aí la eu tive uma oportunidade muito grande, lá tem a televisão, tem muitas rádios e sempre tem muitos eventos em corumbá então todas as vezes que eu podia ir fazer palestras em escolas eu ia, eu frequentava, e aí as pessoas foram se acostumando comigo de um jeito que encerrou isso tudo, sabe? Eu sempre fui muito bem recebida lá. A senhora acredita que está crescendo o número de mulheres da polícia? Sim, está mudado, está vindo mais mulheres, não só na profissão de delegado de polícia, mas as escrivãs, investigadoras, na área de perícia também que é uma área muito interessante, e assim, as vezes existe um pouquinho de olho torto e tal, mas acho que hoje tá uma aceitação muito grande porque as mesmas capacidades que um homem tem, a mulher também tem e se ele vai encontrar problemas nas ruas, as vezes para prender uma pessoa ou outra, um homem sozinho também vai encontrar esse problema. Então primeiro que a gente já ensina na academia de polícia que você nunca deve sair sozinho na viatura, isso serve para homem e para mulher, para qualquer lugar e situação, nunca atender nada sozinho, então assim, eu acho que hoje está mudando, a tendência é mudar ainda mais, mas nós não temos nos... vamos dizer assim, nós ainda não chegamos, hoje por exemplo, a coordenadora de perícia é uma mulher, em termos de comando de polícia militar, em termos de delegacia geral da polícia civil, nós não tivemos ainda mulher, mas eu creio que esse tempo vai chegar e espero que essa mulher tenha, além de segurança no trabalho, de saber a importância desse trabalho, de conhecer tudo, ela tenha um olhar diferenciado, um olhar mais sensível que a mulher tem para poder olhar todo o contexto, tanto de policiais,


47

funcionários quanto também da sociedade de uma forma diferenciada, porque eu acho que esse olhar a mulher tem. Então eu creio e espero ver se Deus quiser eu venho na posse aí dessa mulher.


48

VI.

Entrevista Marília Malta (piloto da aeronáutica) Aonde a senhora nasceu? Eu sou nascida em Recife, no estado de Pernambuco, minha família não é

de recife, mas meu pai é militar da reserva, então quando eu nasci meus pais moravam la em Recife e depois fomos para outros lugares, mas minha família é do interior de São Paulo E a senhora veio para Campo Grande quando? Eu me mudei para Campo Grande em abril de 2010, transferida depois da especialização em voos e naves rotativas. Por que a senhora escolheu entrar na aeronáutica? Em parte foi porque eu fui um pouco influenciada pelo meu pai, a gente costuma falar que uma fruta não cai longe do pé, então eu acabei escolhendo essa profissão por assistir, ver e me espelhar um pouco no que ele fazia. A gente sempre brinca que se você olha seus pais satisfeitos nas profissões que eles seguem, você fala ‘pô, isso deve ser legal né’. A gente tem um pouco de dificuldade de conhecer as profissões por nossos próprios olhos, mas eu acabei escolhendo a profissão meio que nas cegas né porque você não sabe o que esperar daquilo, a gente é muito novo quando faz a opção né. Eu entrei na academia em 2005, mas eu fiz o concurso por três anos antes de ser aprovada, mais ou menos como no vestibular que a gente demora um pouquinho para conseguir a aprovação. E eu escolhi a profissão por isso, por ver, por achar interessante, por achar que contribuir dessa maneira um pouquinho com a sociedade seria as vezes mais interessante para mim do que fazer uma outra coisa, foi um pouco de identificação, eu me identifiquei em fazer coisas que para mim pareciam desafiadoras, sempre gostei um pouco de ser desafiada, mas ao mesmo tempo poder contribuir com a sociedade em alguma coisa, nem que seja fazer o transporte de um enfermo, levar um órgão para ser transplantado, levar suprimento para uma região de fronteira ou aqui que fazemos missão de busca, resgatar uma pessoa, então você ta contribuindo um pouco com a sociedade e ao mesmo tempo fazendo uma coisa que é 100% inesperada, que as vezes a gente acha que nunca vai conseguir fazer aquilo, então acho que foi em parte por isso também. Seu pai é piloto também?


49

Sim, meu pai é piloto também Então a senhora já entrou pensando em ser piloto? Sim, quando eu comecei a ter interesse nessa área ainda não podia mulher na aviação, isso foi em 98, 99 quando eu comecei a me interessar, ainda não tinha aberto vaga para mulheres na aviação, mas eu não tive interesse em fazer concurso para a intendência porque não me interessava, e aí quando abriu o concurso pela primeira vez, em 2002, eu já fiz, mas aí eu estava despreparada porque eu achei que não teria o concurso, não tava estudando, e aí a partir daí eu comecei a estudar e passei na terceira tentativa. A senhora acredita que estão vindo mais mulheres para essa área? Tanto na área militar, mas principalmente na aviação? Eu acho que assim como na área das engenharias, a mulher acaba tendo uma menor representatividade. Se a gente for ver numa faculdade de odontologia, por exemplo, eu vou ter uma maioria de mulheres, área de farmácia, maioria de mulheres. A área de engenharia eu vou ter 2, 3, então acho que vai depender muito da personalidade da mulher, então acho que aos poucos está sendo divulgado, então aquelas que tem maior interesse ou maior identificação com essas áreas das ciências exatas, elas estão sim participando mais. Eu tenho até uma prima que fez o processo seletivo na semana passada e está esperando ser chamada. Então eu acho que aos poucos elas estão sim tendo maior representatividade, não só na aviação como no militarismo como um todo, se a gente for ver as sargentos né, a gente já tem bastante sargento mulher, em todas as áreas, não só nas administrativas, mas algumas áreas de manutenção de instrumentos, equipamento de voo já tem bastante mulher nessas áreas e também na parte da intendência, por exemplo, quando eu fiz o concurso, na minha turma eram 30 intendentes, 20 eram mulheres, então apesar de ser uma carreira militar em que você teria muitos homens, você já vê mulheres que aos poucos já se identificam mais com a área administrativa ou com a área operacional, na parte de ciências exatas elas vão se infiltrando ali devagarzinho sem as pessoas perceberem e quando vão ver já tem um monte. Quando eu cheguei aqui nós éramos 3, depois de um tempo elas foram embora e eu fiquei sozinha aqui, mas depois uma delas voltou. Hoje em dia nós temos bem mais mulheres espalhadas, na turma da Paula tem bastante


50

mulher na FAB, então quanto mais vagas abrem, a gente percebe que o porcentual de mulheres ta sendo cada vez maior, na minha turma tinha 20 vagas e só eu de mulher, na turma da Paulo já tem bem mais, se eu não me engano tem 8 mulheres. E agora, ano retrasado eu acho, teve o primeiro concurso para a escola preparatório de cadetes no ar que abriu vagas para as meninas, que são meninas né, elas tem uns 14, 15 anos. Então aos poucos, as mulheres estão tendo cada vez mais oportunidades, lógico que não vão ser todas que vão se interessar, do mesmo jeito que vocês se interessaram pela faculdade de jornalismo, talvez mesmo se tivesse mais oportunidades vocês não quisessem ir para outra área, mas aquelas que tiverem o interesse de seguir para esse rumo, já tem mais oportunidade e mais cedo, eu não tive a oportunidade de fazer a prova para a escola preparatória porque não tinha vaga, mas hoje em dia a menina pode fazer a prova para a escola preparatória e se ela não passar, ela tenta depois para quando ela for mais velha, então a oportunidade aumenta. E a senhora acredita que essas oportunidades são bem aceitas? Tanto pelos colegas de trabalho quanto para os civis, por exemplo? Internamente eu acho que a cada dia que passa a aceitação é mais fluida, principalmente porque quando eu entrei, os instrutores eram todos homens e que só tinham tido instrução com outro homem e que na turma só havia homens, hoje em dia quem está dando as instrução são homens e mulheres, que foram formados em turmas com mulheres, juntos com as mulheres ali lado a lado, então eles enxergam a mulher não como mulher, mas como ser humano igual ao homem que está ali, então a cobrança é a mesma, as exigências são as mesmas, não existe mais separação ‘ai eu vou dar instrução para ela diferente porque ela é mulher’, hoje eles não enxergam mais assim, então a cada dia que passa, que os homens também viveram a instrução com as mulheres, eles tem como colega de turma mulheres, eles não fazem mais diferenciação, então cada vez mais se torna natural a presença das mulheres, porque para eles não tem distinção, para eles é a mesma coisa. Em relação a sociedade civil, das outras mulheres eu percebo que não existe espanto no sentido negativo, pelo contrário, é uma surpresa positiva toda vez que eu converso sobre o assunto ou alguém me pergunta qual é a minha profissão, é sempre uma surpresa boa, ‘que bacana isso que você faz, como é que é?’ Porque assim, é uma profissão diferente, que não é muito


51

conhecida, nem homem, nem mulher, é uma coisa que você não vê muito, então quando você tem a oportunidade de conversar com a pessoa e ter acesso e para uma mulher em algo que não é muito rotineiro, é sempre uma surpresa positiva, existe uma sensação de satisfação das pessoas de verem, ‘caramba, ela conseguiu né’, numa coisa que é tão diferente, e os homens também. Eu acho que a nossa geração é uma geração diferente em que a gente não teve tantas segregações de gêneros nas possibilidades, a gente nasceu podendo votar, podendo trabalhar, a gente nasceu com as nossas mães trabalhando, então eu acho que a gente não teve muita discriminação pelo sexo, e a cada dia se torna mais natural, mais rotineiro e mais aceito pela sociedade a mulher ser militar, ter uma profissão diferente que as vezes antes era só dominada pelo homem. E o contrário também, eu acho que a gente ver homens fazendo coisas que antes eram só vistas como da mulher tá se tornando mais desmistificado, hoje em dia a gente está conseguindo zerar e ainda mais né, homem como dono de casa, que fica em casa para cuidar dos filhos porque a mulher conseguiu uma profissão que muitas vezes tem uma renda maior. Então eu acho que aos poucos a gente tá equilibrando tudo né, deixando tudo no mesmo patamar. Você percebeu algum estranhamento por parte dos homens quando entrou? O que eu acho que foi mais diferente nesse início da formação e das instruções, era... a gente brinca que existe um alo né, então é natural que você se identifique com algumas pessoas e queira ‘proteger’ aquelas pessoas, então tinha alguns instrutores que tinham a tendência de querer proteger as mulheres por serem mulheres e tinha os instrutores que era o contrário, eles não se identificavam com as mulheres e não queriam protegê-las, mas isso não afetou a nossa instrução, porque como existe uma ordem de instrução a ser seguida, existe um profissionalismo né, tenho que avaliar todo mundo de maneira igual, por mais que ele não goste de você, a pessoa tem direito de não se identificar com você ou se identificar por ‘n’ motivos, mas não faz a diferença. Mas realmente, no começo gera uma estranheza né, as vezes porque o cara não sabe como agir, principalmente na instrução quando você vai falar alguma coisa mais ríspida para a pessoa reagir, vai fazer alguma cobrança ou até mesmo falar um palavrão ou uma palavra feia, e com as mulheres fica todo mundo meio


52

‘ai, não posso falar palavrão, não posso isso, não posso aquilo’ e isso aos poucos foi sendo desmistificado e em pouco tempo já não existia muita diferença, tanto que não temos uma diferença de geração entre eu que entrei nas primeiras turmas e as meninas que estão na academia hoje, mas eu tenho certeza que o fato delas terem recebido instrução por instrutores que tiveram nas suas turmas mulheres junto com eles durante a formação, elas receberam instruções diferentes das instruções que eu recebi, mas de uma maneira positiva porque aí realmente não existia nenhuma diferença para eles, porque se eles viram meu comportamento lá no dia a dia, na rotina durante a formação, eles sabiam exatamente do que elas eram capazes ou do que não eram e isso era independente do sexo, mas puramente como um caráter técnico. Você poderia nos dizer um pouco mais sobre o seu trabalho aqui? O Esquadrão Pelicano é um esquadrão que o objetivo fim dele é fazer busca e salvamento, busca e salvamento em tempos de paz e busca e salvamento em combate, essa é uma missão muito valiosa, não só para a força aérea, mas para a sociedade, então isso mexe um pouco até com o nosso emocional, é um esquadrão super antigo, está completando 60 anos esse ano. O meu trabalho aqui hoje se divide na parte operacional e na parte administrativa. Na parte administrativa eu auxilio a sessão de apoio que prevê partes de gerenciamento de recursos humanos e eu faço o elo de ligação do grupamento logístico que é a parte de manutenção com a unidade, com o segundo décimo, então a gente ajuda a gerenciar as manutenções, como está a disponibilidade das aeronaves e a gente faz essa interface da parte logística com a operacional, então essa é a minha função administrativa. A minha função operacional é como instrutora, então eu dou instrução aos pilotos recém-chegados na unidade ou aos pilotos que estão em formação, tanto no helicóptero como no Amazonas. Nosso helicóptero é o H-1H e o Amazonas que é o SC-105, que é uma aeronave nova que chegou esse ano no esquadrão e que faz busca e salvamento, então são duas funções que a gente tem e todos os pilotos tem duas funções, um vai ser responsável pela doutrina e vai ser instrutor, o outro vai cuidar da parte administrativa da instrução, ler ficha, definir como vai ser a escala de voo, então cada uma tem duas funções. Qual missão foi a mais marcante para você?


53

Eu acho que uma das missões mais difíceis que eu fiz como comandante de aeronave e aí teria sido difícil para qualquer um, independentemente de ser mulher ou não, foi uma evacuação aeromédica que a gente fez, uma das primeiras missões que a gente fez no esquadrão usando o óculos de visão noturna, então foi um acionamento que ocorreu a noite, a gente decolou aqui a noite com o óculos que permite que você enxergue no escuro, ele intensifica a luminosidade natural, então ele usa a luz das estrelas, a luz do reflexo nas nuvens, intensifica essa luz e você consegue ver as coisas mesmo no escuro, e a gente foi de helicóptero daqui até Porto Murtinho mais ou menos, tinha uma aldeia indígena ali na região e eu me lembro que tava muito escuro, a gente não enxergava nada fora dos óculos, quando a gente a afastava o olhar e olhava para fora dos óculos não via nada e lá longe a gente começou a ver uns pontinhos mais claros e era um campo de futebol lá da aldeia que tava todo iluminado, mas de longe a gente só via uma luzinha pequenininha e quando a gente aproximou e pousou a gente viu que era um campo de futebol e a gente foi fazer a evacuação de um menininho indígena que tinha quebrado o braço na escola e como era época da seca todos os rios estavam muito secos e eles não tinham como chegar no lugar, eles teriam que ir pelos rios maiores e ia demorar muito mais tempo do que a gente demoraria de aeronave, e a gente levou ele até Corumbá para ele ser atendido, então essa foi uma missão que para mim me marcou muito porque foi uma das primeiras missões que eu fiz como comandante de aeronave, a situação por ser a noite, numa noite muito escura, por a gente ter pouca experiência naquele tipo de missão já que o esquadrão tinha pouco tempo fazendo aquilo, mas felizmente ela foi bem sucedida, a gente conseguiu tirar ele da aldeia, levar ele para Corumbá para ser atendido e depois ele voltou para lá sem pressa né porque já estava curado. Mas a gente já fez outas missões difíceis e que são frustrantes, algumas missão de busca principalmente quando é home ao mar, já aconteceu da gente fazer busca a um pescador que caiu do barco pesqueiro e isso há mais de 200 milhas afastados de Fernando de Noronha, então era muito isolado, e a pessoa que caiu estava sem nada, ela estava sem colete, seminua, estava só com um calção, sem camiseta sem nada e caiu de madrugada no mar, as ondas estavam fortes então ele logo se afastou do barco, a gente chegou lá pouco mais de 24h depois do acidente, porque demora né as comunicações, até que o barco pesqueiro faça


54

comunicação com a marina, que a marinha acione a gente para ir, demorou pouco mais de 24h e a gente conseguia do avião conversar com o barco pesqueiro e a gente ouvia na voz do comandante do barco aquela tristeza, aquele cansaço, rouquidão na voz e você literalmente procurar uma agulha no palheiro e no caso de falecimento da pessoa no mar, o corpo afunda e só vem a boiar 2 ou 3 dias depois e se o corpo está afundado por mais que você procure você não vai enxergar dentro do mar, então esse tipo de missão também é uma missão um pouco ingrata, que você procura e sabe que a probabilidade de você encontrar é muito pequena.


55

VII.

Entrevista Juliana da Silva (jogadora de futebol) Aonde você nasceu? Nasci em Campo Grande. Qual a sua idade? Tenho 27 anos. Por que decidiu ser jogadora de futebol? Como começou a jogar

profissionalmente? Desde pequena eu sempre gostei de jogar bola. Desde praticamente meus 5 anos, eu sempre jogava bola, essas peladinhas de rua, brincava no asfalto, sempre vivia tirando tampão do dedo, jogando a bola na casa das vizinhas. E com o passar do tempo, comecei a estudar, comecei a jogar pelas escolas, participando dos jogos que tinham nas escolas e até que com o tempo conheci a Romilda, treinadora do Comercial. Ela me chamou pra fazer um teste e tal, e foi onde eu gostei. Me adaptei bastante jogar no campo e cada dia tento me esforçar, melhorar. Acha que com a maior representatividade da Seleção feminina na mídia, com jogadoras em destaque e se tornando ídolos, as pessoas estão aceitando melhor mulheres que jogam futebol? Você se sente representada por elas? Claro que eu acho. A seleção feminina é o sonho de qualquer pessoa. Quem que não sonha em ser uma Marta, uma Maurine uma Cristiane na vida? Até uma Formiga, né? Eu por ter 27 anos posso ser uma Formiga ainda na vida. Acho bom, porque o futebol feminino sempre teve preconceito, falando que mulheres não servem pra jogar bola, mulheres não sabem jogar bola e hoje em dia mostra que é totalmente diferente, que no entanto que a Seleção Brasileira tá jogando muito e eu admiro cada menina daquela ali jogando, elas dão o sangue pela camiseta, elas tiram força da onde não tem e eu me espelho muito nelas. No entanto que eu direto vejo vídeos delas na internet, quando não tenho nada pra fazer, vou olhar os vídeos delas na internet, os treinos, os passes. Maurine, nossa, eu sou apaixonada na Maurine, ela pra mim é minha ídola, nossa, ela joga muito, desde a vez que ela entrou pra jogar na seleção que ela tava no banco de reservas, até hoje eu lembro, ela entrou e fez um golaço de escanteio, a partir daquele dia eu comecei a me espelhar nela, até o jeito do meu cabelo eu prendo de lado. Me espelho muito na Maurine. E acredito sim que hoje em


56

dia pelas meninas estarem jogando na seleção o futebol feminino tem mais visibilidade pelos olheiros. Já sofreu algum tipo de preconceito por ser jogadora de futebol? Já escutou comentários? Quem nunca sofreu preconceito? Ainda mais a gente que é mulher jogando bola... quantas e quantas vezes eu ia jogar bola no campinho com os meninos e os meninos falavam “ah, lá vem a machona. Machona vai jogar bola com a gente.” E tipo, nunca liguei pra isso, nunca me importei, porque sei que não sou e sempre fui pra jogar bola. E nossa professora sempre nos ensinou que toda vez que toda vez que alguém falar alguma coisa pra gente, nos ofender, a gente pega para a nossa melhoria, que aquilo venha a ser para nosso crescimento. Então graças a Deus eu agradeço muito a Romilda por tudo que ela já fez por mim, pelos conselhos, por tudo, porque antigamente quando eu ia jogar bola, era muito preconceito “O que você está fazendo aqui? Vocês não prestam pra jogar bola” e hoje em dia a gente é um time que praticamente leva todo mundo a loucura, a gente joga muito, não querendo desmerecer os outros times, mas a gente se entrosa no campo, na quadra. E aonde a gente vai a gente é bem respeitada, todo mundo respeita a gente, só que eu acho que toda menina que joga bola sofre preconceito, todas, não tem uma que não sofre preconceito, querendo ou não, porque homem é muito machista. As vezes eles mesmo tomam “Olé” da gente e ficar bravos, querem quebrar a gente, e a gente leva na esportiva. Como reage a esses comentários? Então, foi como eu disse, hoje em dia a gente sabe lidar com esses preconceitos. A gente ignora, não liga, entra em um ouvido e sai no outro. Quando alguém fala alguma coisa pra gente, que a gente não sabe jogar bola, a gente fala “obrigada pelo elogio, isso aí vai nos fortalecer, vai ser para o nosso crescimento”, isso que nossa professora ensina a gente a falar, e ela sempre defende a gente querendo ou não, ela sempre tá ali com a gente, defendendo a gente, não deixa ninguém falar da gente. Quais as maiores dificuldades da sua profissão? As nossas maiores dificuldades de jogar bola as vezes é o vale-transporte. Tem gente que não tem condições de sair de um canto e ir para o outro, tem gente que


57

não tem moto, carro, tem gente que depende de carona. As vezes a gente precisa de uma chuteira nova. Não que todas são assim, mas graças a Deus a nossa professora sempre dá o melhor dela, quando a gente precisa de vale-transporte, ela dá um jeito, ela corre atrás, ela arruma pra gente. Quando a gente tá sem chuteira ela dá um jeito, ela corre atrás de patrocínio, pede, ela não tem vergonha não, ela mete a cara mesmo, pra gente não passar necessidade. Só que eu sei que a maioria dos times tem muitas necessidades, tem time que as vezes não tem uniforme e as vezes vão pedir patrocínio e levam um não. Acho que todos os times já levaram um não na cara por dificuldade. Mas espero que isso mude com o tempo, que as pessoas venham olhar o feminino com outro olho, outra classe, que venham a ter mais esperança na gente, confiar mais na gente, não é só o futebol masculino que pode estar lá em cima, o feminino também. Quais são seus sonhos e planos para o futuro? Meus sonhos são me tornar uma jogadora de futebol, dar uma condição melhor para a minha mãe e para os meus filhos, porque eu tenho 2 filhos, sou casada e eu espero que algum dia eu possa ainda jogar na seleção brasileira ou em outro dia e que eu venha melhorar a cada dia mais pra dar um conforto pra eles, pra que eu posso dar do bom e do melhor pra eles, entendeu? Vamos abrir mais o olho para o futebol feminino e parar com esse machismo.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.