Renascer: mulheres, filhos e maternidade solo

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objetivo era escrever um livro que trouxesse de forma realista como a maternidade solo impacta, muda e aflige a vida das mulheres. Romper com os estereótipos que rondam esse universo, trazer o outro lado da moeda e contar o que quase ninguém conta. Retratar mulheres verdadeiras que representam um grupo numeroso constituído por outras tão semelhantes e distintas entre si. Através de cada uma, no fim de cada entrevista, capítulo finalizado e ponto final colocado, a ideia inicial tomou as páginas e linha após linha se concretizou.

RENASCER: MULHERES, FILHOS E MATERNIDADE SOLO

O

RE nas cer

SOBRE A AUTORA

Mulheres, filhos e maternidade solo

JÉSSICA VITÓRIA

Iniciou o curso de Jornalismo na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) em maio de 2016. Inserida no ambiente acadêmico, participou de diversas atividades, sendo que a mais significativa delas ocorreu durante a passagem como integrante da EJ BRAVA - Empresa Júnior de Comunicação da UFMS. Apaixonada pelo universo literário, sempre se encanta com algum verso de poesia, principalmente os de Carlos Drummond de Andrade. Sua relação com a escrita começou ainda na infância e, desde essa época, sonhava em publicar, um dia, o próprio livro. Por isso, a realização deste projeto é a personificação de um sonho que ganhou formas reais.

JÉSSICA VITÓRIA


Renascer: Mulheres, filhos e maternidade solo


FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL (UFMS) FACULDADE DE ARTES, LETRAS E COMUNICAÇÃO (FAALC) JORNALISMO - BACHARELADO Trabalho de Conclusão de Curso FELIPE QUINTINO - Orientador Ilustrações Jodri Aquino diagramação EJ BRAVA - Empresa Júnior de Comunicação da UFMS

RENASCER: MULHERES, FILHOS E MATERNIDADE SOLO aUTORA: JÉSSICA VITÓRIA Copyright © CAMPO GRANDE, 2020

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AGRADECIMENTOS Pai e mãe, sem vocês eu não teria a sorte de estar neste mundo que me fascina todos os dias. Felipe e Jenifer, meu coração é feliz por ter vocês como irmão e irmã. Amigas que me acompanharam durante a longa jornada da graduação, saibam que vejo muito de cada uma de vocês em todas as coisas boas e bonitas dessa fase da minha vida. Gratidão ao professor Felipe Quintino, que aceitou orientar este projeto e demonstrou entusiasmo pelo mesmo. Suas palavras de apoio me fizeram acreditar que eu seria capaz de realizar um bom trabalho. Por último, agradeço às mulheres que compartilharam comigo uma parte de suas histórias e permitiram que eu as transformasse em livro. Jéssica Vitória

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SUMÁRIO 4

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VER O PESO DO

QUANTAS

MUNDO NAS COSTAS

DELAS ESTÃO

DE UMA MULHER

POR AQUI?

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50

THAMIRES

RAFAELA

74

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ANDREZZA

DAIANE


a beleza, “ Procurar mesmo

onde ela não existe

Medianeras, 2011

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DEDICATÓRIA Marina, minha mãe, sem eu perceber me concedeu as primeiras narrativas sobre a maternidade solo. Anos depois, tive a honra de poder ouvir outras mulheres relatarem suas próprias experiências enquanto mães solos. Andrezza, Daiane, Rafaela e Thamires este livro é para vocês, para as mães solos que vieram antes e para aquelas que virão depois. Jéssica Vitória

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INTRODUÇÃO I

VER O PESO DO MUNDO NAS COSTAS DE UMA MULHER Em janeiro de 1985, Jenifer nasceu e Marina tornou-se mãe pela primeira vez na vida. Cresci ouvindo os relatos dela sobre como foi criar praticamente sozinha, aos 17 anos, uma filha. Naquele tempo mulher solteira e com filho(s) era motivo de vergonha para a família e a concretização de uma “desgraça” para os pais. Não que hoje tal pensamento não persista para alguns, mas muita coisa mudou de lá para cá. Minha mãe exerceu o papel de mãe solo antes dessa palavra integrar o vocabulário da época, por isso, mulheres iguais a ela eram chamadas de mães solteiras. A palavra soava como um dedo na cara, um apontamento que indicava algo vexatório: Ela é mãe solteira! Minha mãe, involuntariamente e anos antes de eu pensar em escrever um livro sobre as vivências de mães solos, trouxe para a minha vida esse tema. Ela foi a primeira a me contar as dificuldades de criar uma criança sozinha, a falar sobre o preconceito sofrido por desempenhar essa função e a expor os sacrifícios próprios feitos em prol do filho. Além disso, demonstrou o quanto uma mãe é capaz de abrir mão de si mesma para colocar quem concebeu em primeiro lugar. As histórias das mulheres que integram os perfis deste trabalho não são iguais as da minha “mãezinha” ou vice-ver8


sa. Cada uma delas tem suas próprias opiniões, experiências e visões de mundo, da maternidade solo e outras questões. São todas singulares em suas próprias trajetórias e narrativas. Apesar disso, vez ou outra os casos podem apresentar semelhanças e convergirem para situações que pelo menos uma vez todas vivenciaram. O motivo de os relatos se cruzarem em algum instante e se confundirem entre si não é causado por coincidências. A afinidade entre os enredos ocorre devido a certeza de que as realidades que uma mãe solo viveu ontem, uma vive hoje e outra viverá amanhã. Sonhos, planos, desejos e objetivos, tinham um ou vários que buscavam concretizar a curto ou longo prazo. As realizações pessoais que idealizavam abarcavam estudos, carreira, relacionamentos e afins. Intercâmbio voluntário, concluir a graduação, a pós-graduação, viajar, conhecer o mar, mudar de cidade, trabalhar fora e prestar um concurso. Elas pensavam nesses e muitas outras coisas, por isso suas vidas seguiam no sentido que as levariam a cada uma dessas metas. Porém, chegou o momento no qual acordaram e constataram que sem ressalvas um, dois, três ou mais de suas idealizações sofreriam um adiamento, um cancelamento e uma interrupção. Acordaram pela manhã donas das próprias vidas, no entanto, adormeceram com a certeza que dali em diante não estavam mais encarregadas somente por si mesmas. A vida decidiu agir conforme bem entendeu e coube a elas aceitarem, mas para chegar neste ponto várias situações vieram antes. Precisaram se reinventar, ressignificar sentimentos, relações, experiências e intenções. Após esse processo, com circunstâncias dolorosas, difíceis, desafiadoras e carregado de emoções conflitantes como alegria, tristeza, amor e medo, não eram as mesmas de sempre. Algumas dizem terem mudado total9


mente, viraram outras pessoas em versões novas. Uma ou duas se descreveram como mais “maduras” e melhores. A analogia pode parecer exagerada, entretanto, arrisco dizer que renasceram ao conceber uma outra vida. E antes que o ato de se tornar mãe ganhe uma aura romantizada é necessário enfatizar o problema de ver esse assunto por essa perspectiva. A sociedade ainda prega com fervor a palavra da maternidade compulsória. “Compulsória” é um adjetivo feminino de “compulsório” que significa “capacidade de compelir, obrigar, em que há obrigação”. Logo é um tipo de maternidade por dever, as mulheres “devem” gerar filhos, pois nenhuma delas estará “completa e realizada” se não for mãe. Tal ideal deixa de dar importância às opiniões daquelas que supostamente “precisam” experimentar essa tarefa. Diante disso, é praticamente um “consenso social” que diz respeito ao grupo feminino, mas deixou de consultar a posição e o ponto de vista do mesmo. Para resumir o tema, cito as palavras da escritora Elisabeth Badinter na obra O Conflito: A Mulher e a Mãe. “O desejo de ter filhos não é nem constante, nem universal. Algumas os querem, outras não os querem mais, outras, enfim, nunca os quiseram. Já que existe escolha, existe diversidade de opiniões, e não é mais possível falar de instinto ou desejo universal”. As entrevistadas para o livro-reportagem, assim como a filósofa francesa comentou, não gozavam do constante desejo maternal. Todavia, aquilo que deixou de ser almejado, planejado, ansiado e sequer cogitado por algumas, veio a acontecer. Sem exceção, todas foram surpreendidas ao descobrirem a gravidez. Ao passarem pela gestação, o momento mágico, enriquecedor e sublime que costumam propagar sobre essa etapa se atrasou e deixou de aparecer na vez delas. 10


Mudanças antecedem mudanças, ao término da gestação, chegou a hora do parto e depois o pós-parto. Lidaram com novas sequências de modificações e é incerto dizer onde houveram os maiores impactos. Seria no corpo que comportou e formou outra vida? Nos sentimentos que alcançaram altos e baixos? A rotina que deixou de ser aquela com a qual estavam habituadas há tempos? Difícil apontar uma resposta exata, apesar disso, é correto assegurar que enfrentar esses ciclos não foi mil e uma maravilhas. Costumam dizer para a mulher que tudo se resolverá instantaneamente entre ela e o bebê ao passar dos dias. Afinal, as mulheres detém o “instinto materno”. Nasceram com isso e esperaram quase a vida toda para exercê-lo, certo? Como a maternidade pode ser um desafio se desde sempre estiveram destinadas a isso? É uma tendência natural que ronda o ser feminino, portanto, a mãe inconscientemente saberá como agir. A óptica dos mensageiros que levam aos quatro cantos as boas novas desse tal “instinto” é assim. No livro Um Amor Conquistado: O Mito do Amor Materno também de autoria de Elisabeth Badinter, esse ímpeto que teoricamente compõe o âmago da criatura feminina é colocado como uma ideia errônea e contraditória, difundida ao longo dos anos. “O amor materno foi por tanto tempo concebido em termos de instinto que acreditamos facilmente que tal comportamento seja parte da natureza da mulher, seja qual for o tempo ou o meio que a cercam. Aos nossos olhos, toda mulher, ao se tornar mãe, encontra em si mesma todas as respostas à sua nova condição. Como se uma atividade pré-formada, automática e necessária esperasse apenas a ocasião de se exercer”. As mensagens cheias de conotações positivas que garantem naturalidade e sucesso na saga maternal ainda atingem mui11


tas. Irreal e ilusória, as palavras são uma falsa promessa e nem todas têm consciência disso até encararem a realidade. Por essa razão, algumas se frustram e se culpam ao não conseguirem viver satisfatoriamente a experiência. Talvez se desde o princípio tivessem revelado as ambiguidades da maternidade, os lados bons e ruins, difíceis e desafiadores, caóticos e cansativos, as mães não carregariam remorsos desnecessários. Quando algo sai conforme imaginado, o indivíduo desacelera e aproveita o tão aguardado momento. Diferente é a reação expressada quando o contrário sucede. Pensamentos, ações e sentimentos tentam se realinhar para viver a alteração no roteiro. O bebê não era aguardado, ainda assim, será necessário que a mãe se prepare para incluí-lo em sua vida e projetos. As mãos perderam a capacidade de segurar tantas coisas e os braços não conseguiam mais abraçar a imensidão de anseios. Moviam os corpos carregados de vontades que pesavam cada vez mais ao decorrer das semanas. Pararam e repararam que para ir adiante era necessário romper certos elos. Dedo a dedo soltaram os vínculos que as ligavam a determinados espaços, ocupações e quereres. As mães solos relatadas aqui abriram mão temporariamente ou talvez definitivamente de planos como faculdade, carreira na área que estudavam, trabalhos em outros municípios, cidades e Estados. Viagens para explorar novos lugares, visitas a pontos turísticos e passeios se encontram sem uma data específica para ocorrer agora. Todos falam sobre os ganhos, acréscimos e inclusões trazidos pela maternidade, mas preferem não comentar sobre as perdas, as subtrações e exclusões causadas pela mesma. Renúncias, desvios e partidas estão atreladas ao papel de uma mãe e caso ela seja solo a balança terá medidas diferentes que exigem 12


mais a ser entregue. É algo implacável, amargo e doloroso. Além do mais, o sentimento de estarem sozinhas também as acompanham no transcorrer da jornada. Limpam, alimentam, brincam, cuidam, carregam, educam e perdem literalmente o sono por eles. As mães solos cumprem diversas tarefas, obrigações e compromissos. Estabelecendo uma comparação entre essa maternidade e o trabalho formal ou informal, a ocupação delas não possibilita a divisão e delegação igual de afazeres. Se elas deixam de para depois ninguém virá para ocupar os seus postos e cumprir a missão. Multiplicam a própria capacidade de doarem a si mesmas porque outros não o farão. Os pais das crianças surgem aos finais de semana, a cada quinze, trinta ou mais dias e em alguns casos nunca aparecem. O último cenário representa a (ausência) da relação entre minha irmã e o pai dela que só conheceu por fotografias. No fim, a paternidade deles não teve a mesma força, peso e poder de mudança como a maternidade para elas. Não foram eles que na entrevista de emprego viram as chances de contratação irem por água abaixo ao dizerem que possuíam filhos. O ciclo social e de lazer continuou igual já que não precisaram deixar de sair para cuidar de um bebê. São esses só alguns dos fatos que contrapõem as diferenças na vida de duas pessoas que juntas são responsáveis por outra vida. E por que ainda é assim? Por que delas exigem mais e nunca é o suficiente o que entregam? Por que para eles cumprir com o mínimo basta? Por que uma mãe precisa abrir mão de tudo, de si e da pessoa que era e é em prol de sua cria? Por que a sociedade cobra elas e jamais eles? Penso que seria bom começarmos a refletir sobre isso e a direcionar essas indagações para os que acreditam que somente elas devem arcar com as responsabilidades de por um filho no mundo. 13


Ao ouvir suas histórias, confissões e desabafos, percebi como a visão conturbada e carregada de preconceito sobre a maternidade solo ainda persiste. Pelo menos 35 anos separam o primeiro parto da minha mãe com o de algumas das fontes deste livro. Três décadas correram e proporcionaram avanços tecnológicos, políticos, econômicos e sociais. Mas, no que tange às opiniões, pensamentos e atitudes de terceiros a respeito da família monoparental feminina pouco progresso ocorreu. A estigmatização contra esse grupo se perpetua como há tempos atrás e elas continuam a ter que resistir. A conversa seguia normal e sem grandes comoções, apesar de ser estranho entrevistá-la, o diálogo acontecia naturalmente. Repentinamente, começaram a percorrer seu rosto, uma a uma as lágrimas iam caindo de seus olhos para o chão e as que não encontraram esse destino terminaram sendo secadas pelas suas mãos. A voz subiu para o tom do choro preso que não quer sair, do choro que não aceita ser preso e busca a independência de vir à tona. Ele enfim escapa. Chora, respira fundo, controla o choro, responde, porém ele ainda está lá, preso novamente. Quando eu era criança chorava ao ver minha mãe chorar e com tempo isso veio a passar. No dia em que a entrevistei e ela chorou ao falar sobre suas vivências, senti que meus olhos se enchiam de lágrimas, que o meu choro também tentava buscar sua liberdade. Me segurei para não perder as beiradas, difícil, no fim consegui. Marina se rendeu a chorar ao ser questionada sobre como foi ser mãe solo. A primeira coisa que responde é que foi muito julgada pelos irmãos e irmãs que já eram casados. Na minha concepção é bastante significativo minha mãe ter evocado dentre todas as lembranças essa primeiro. Trabalhou em mais de um lugar para dar conta de sustentar sozinha minha irmã e adiou 14


durante anos realizações importantes como concluir o ensino médio. Mesmo assim, a primeira memória daquele tempo remete ao julgamento sofrido por criar uma filha sozinha. Julgamento é algo que todas as mulheres que entrevistei passaram e ainda passam. Todas sentiram um pouco ou muito o preconceito de serem solos. Ele se revela diariamente nos olhares, críticas e atitudes dispensadas a elas. Acontece nas encaradas discriminativas ou de pena, nas represálias por criarem uma criança, nas perguntas em tons de censura, nos comentários que culpabilizam e, é claro, por meio do desdém. A imaginação nem precisa ir tão longe para adivinhar as coisas que elas e outras tantas mulheres são obrigadas a escutar. “Engravidou porque quis”, “tão nova e já é mãe”, “tá procurando um homem para ser o pai?”, “a culpa é sua que não se cuidou”. São esses os discursos que continuam a ser disseminados no ano de 2020. Quando não estão na mira de discursos depreciativos são descritas como símbolos homéricos de caráter extraordinário e fantástico. Não seria um problema elogiar as mulheres como mães, entretanto, nesses casos específicos acaba se tornando um. Porque no fim é mais uma romantização da função materna, mais um discurso que fecha os olhos para a realidade e abre os mesmos para algo utópico. São frases que com ou sem intenção, varrem para debaixo do tapete, escondem no armário e trancam em caixas aquelas ambivalências que caracterizam o exercício de ser mãe. É necessário, de alguma maneira, rejeitar os “elogios” que colocam as mães, principalmente as solos, como criaturas surreais, míticas, guerreiras e dotadas de um poder sobrenatural. As comparar e associar com figuras quase divinas é indiretamente acreditar e esperar que comportem algumas das 15


caraterísticas das mesmas. Elas são somente humanas, consequentemente, se cansam, se frustram, sentem dúvidas, medos e aflições, desistem, vão em frente, ficam sobrecarregadas, erram às vezes mais do que acertam e tudo bem. Atribuir a elas significados que fogem da realidade é descredibilizar a natureza real delas e logo projetar expectativas irreais em cada uma. É acreditar que uma mulher não pode ficar cansada depois de um dia todo cuidando da criança, é não entender que elas podem se frustrar porque deixaram de fazer algo por causa do bebê. É exigir que elas abram mão de todo tempo e se dediquem só a criança, é idealizar que elas vivam felizes e realizadas já que são mães. Mães solos não são super-heroínas, pelo contrário são simplesmente mulheres de carne e osso. O material que as compõem é forte e frágil, resistente, mas nem tanto. É muito mais bonito enxergar a beleza dessas características que parecem contraditórias e falhas. Nenhuma mãe é ou deve ser perfeita. Rejeitam a maternidade que sempre foi pintada de maneira clássica com traços leves, tons pastéis harmoniosos e de estética agradável. Desaprovam a camisa do time que joga a favor do ser feminino exercer exclusivamente os encargos maternos. Não suavizam, amenizam ou adoçam a real experiência que vivem, falam abertamente e algumas até fazem alertas que não é fácil o ato de ter e criar uma outra vida. As fontes consultadas tiveram coragem de abrir a “Caixa de Pandora” que guarda os segredos profundos da maternidade. Diferente da história original, essa caixa em questão não trancava os piores males do mundo, aqueles que escaparam para castigar os seres humanos quando Pandora vencida pela curiosidade a abriu. Ela traz, entretanto, eventos que podem não soar tão agradáveis ou bonitos para alguns. Talvez por esse motivo os tenham 16


trancafiado, a verdade pode ser um pouco amarga de sentir, ver e escutar. Expor ela ao público não é um “mal necessário” e sim um bem indispensável. Revelar os “ossos do ofício” e os perrengues com os quais lidam é importante para as mães não se sentirem culpadas por não gostarem sempre da maternidade. É significativo para aquelas que desejam ter filhos, pois elas precisam estar cientes do que podem vir a enfrentar. É mais essencial ainda para aqueles que não tem interesse por crianças e o universo materno e paterno. Quem sabe sendo informados sobre o lado nu e cru possam começar a criar e exercitar uma empatia maior pelas mulheres, principalmente as que criam seus filhos sozinhas. Desde que são inseridas no novo ambiente que traz consigo a presença de uma vida tão dependente de outra, empatia é algo com qual têm pouco contato. No início pensei que a sororidade seria a grande responsável por romper, ainda que minimamente, o preconceito e afastamento dispensado às mães solos. Ledo engano supor que uma “aliança” baseada na empatia entre mulheres iria superar algo tão enraizado na sociedade. Antes presumia que a estigmatização persistia devido a um conjunto formado por pessoas que nascidas em outra época não conseguiram avançar no pensamento, evoluir na perspectiva e abandonar as visões e opiniões deturpadas que contribuem para os julgamentos. Culpei também os homens que dificilmente conseguem sair da posição privilegiada que ocupam em uma sociedade patriarcal. Por que eles iriam ter empatia por esse grupo de mulheres se raramente poucos deles conseguem se pôr no lugar de qualquer outro ser feminino? No lugar daquelas que inclusive os trouxeram neste mundo? Constatei que não, descobri pelas mães solos deste livro que infelizmente não. O buraco é mais embaixo e de fato 17


nem tudo que parece realmente é. Mulheres jovens, adultas e velhas também estão frequentemente as condenando e tecendo comentários maldosos sobre elas. Nem as mães foram capazes de fazerem exceção à regra. Independente de não configurarem a família monoparental feminina, pensei que estariam isentas. Pelo contrário, parece que são as que mais reforçam e endossam o preconceito. Quando sai do campo das ideias, retirada de lá pelas histórias das minhas entrevistadas, entendi por que conseguiam se identificar no meio da multidão. A empatia e a sororidade ocorrem em maior grau e sinergia entre elas. Mães solos compreendem outras que são como elas. A razão para isso? O que escrevi no início desta introdução explica. Vivem as mesmas experiências, sentiram em seus próprios ossos as belezas e durezas de serem quem são. Moldadas e lapidadas de modo semelhante, tiveram suas forças questionadas e posta à prova igual. Ocupam diferentes empregos e estão em diversos grupos. As classes sociais se distinguem, os níveis de escolarização divergem, crenças e ideais são opostas. A maternidade solo as atingiu em diferentes passagens de décadas e idades. Enquanto umas dispõem de privilégios, outras são afetadas por problemas causados pelo poder aquisitivo, cor e demais problemáticas do meio no qual estão inseridas. Carregam seus filhos nos braços, os levam pelas mãos, andam com eles pelas avenidas, ruas e outros caminhos da cidade. Os conduzem, sendo guias particulares através de cada curva do percurso e só deixam de ser no momento em que eles já não se perdem se forem sozinhos. Podem passar despercebidas para alguns, todavia estão por aí, sempre estiveram e sempre estarão. É só reparar, elas não são invisíveis, são mães, avós, ir18


mãs, tias, primas, amigas, colegas de trabalho, curso e graduação. Deixam de ser retratadas de forma frequente na televisão, cinema, música, arte e outros meios, mas elas existem sim. A falta de representatividade só reforça a urgência de começarem a ter um espaço. É importante dar atenção a elas e aquilo que tem a dizer. Os versos, a melodia e as rimas me tocaram desde a primeira vez que ouvi a música “Mãe”. Sobre mim ela teve um efeito poderoso, significativo e chorei mais de uma vez ao colocá-la para tocar. Posso dizer sem sombra de dúvidas que me acompanhou durante todo o processo de execução deste trabalho. Reproduzida de forma seguida várias vezes, considero ela quase uma trilha sonora do meu livro e ainda que não seja possível utilizar esse recurso aqui dei um jeito de a incluir. O título desta introdução é um dos versos da canção do Emicida inspirada em sua mãe, Dona Jacira. A homenagem dele para ela, de certa maneira, sempre remete meus pensamentos para a minha. Processo semelhante ocorreu quando me atentei a escutar as palavras das mulheres retratadas aqui. “Em tudo eu via a voz de minha mãe”. Por meio delas e de suas trajetórias muitas vezes me recordei das coisas que havia escutado na minha infância. Ouvi a minha mãe através de diferentes lábios, timbres e tons de voz. As mães solos, ao meu ver, fazem jus a frase “Ver o peso do mundo nas costas de uma mulher”. A gestação e o ato de dar à luz não as libertam de carregar o peso de outra vida, pelo contrário, é ali que tem início o momento que irá perpetuar e só terminar no dia em que fecharem os olhos e não puderem mais os abrir. Minha mãe hoje não é mais solo, já não era quando teve a mim e meu irmão mais novo. Ainda assim carrega o peso das experiências, emoções, sacrifícios, cobranças e outros acúmulos 19


que viveu naquele tempo. Penso que o mesmo pode ocorrer com as meninas com quem tive contato. Um dia, talvez, não sejam mais solos. Independente do que acontecer, no entanto, nunca irão perder as somatórias que esse papel trouxe a elas. O peso de carregar um mundo nas costas deixam marcas que boas ou não irão permanecer. Depois de tantas entrevistas, minutos a fio e noites adentro imersa no que disseram, lendo textos, artigos e livros, tenho a sensação que são profundas demais para entendê-las completamente. Descrições sobre elas sempre serão rasas e atingirão camadas superficiais. Em vista disso, sinto que fiquei na borda, retida nas beiradas do complexo assunto. É difícil pôr em palavras a importância, o significado e a relevância da vida de alguém e das experiências que ela traz consigo. Deixei de chegar a uma conclusão, aliás a única que tive não se parece com uma finalização de ideia. É uma aspiração e um desejo relacionado às mães solo. No fim, “o sonho é um tempo onde as minas não tenham que ser tão fortes”.

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INTRODUÇÃO Ii

QUANTAS DELAS ESTÃO POR AQUI? A presença dessas figuras atravessa décadas, gerações, movimentos políticos, culturais e sociais. A mãe solo, a maternidade solo e a família monoparental feminina não são novidades do século XXI. Mulheres que criam seus filhos sozinhas, por escolha própria ou imposição da vida, sempre existiram. Contudo, demorou para ocorrer a legitimação deste arranjo familiar perante a sociedade. Seria interessante dizer que o reconhecimento resultou na aceitação e respeito por elas, porém tal constatação seria equivocada. Em 2020, o preconceito e a estigmatização social contra a mãe solo persistem. Relatos fornecidos pelas fontes que integram este livro são exemplos de que continua difícil para a mulher desempenhar o papel sem ser julgada. A mentalidade conservadora mantida e reproduzida pela maioria da população contribui com a perpetuação da intolerância vivenciada por essas mães. O machismo, o enaltecimento dos “bons costumes” e a predileção pela família tradicional são alguns dos pilares sociais que sustentam e regem a conduta de muitos brasileiros. Tudo que deixa de se encaixar nos padrões reproduzidos como “íntegros” é visto e colocado de exemplo que foge do correto e ideal. Logo, é classificado de modo ruim. Nada de positivo pode sair de um lar que foge do padrão: homem, mulher e filhos. Consequentemente, a figura feminina sem o apoio da masculina não consegue criar e formar sozinha um bom futuro cidadão ou 21


cidadã. Você pode se perguntar, mas que tipo de pessoa ainda detém tal pensamento? Certamente várias poderiam ser citadas, entretanto, irei poupar tempo e expor aqui somente uma. A frase é de autoria do atual vice-presidente da república, Hamilton Mourão. Em 2018, época que realizou a declaração, o general da reserva concorria ao cargo. O comentário do político ocorreu no contexto onde afirmava que o Brasil vivia uma crise de valores. “Família sempre foi o núcleo central. A partir do momento que a família é dissociada, surgem os problemas sociais que estamos vivendo e atacam eminentemente nas áreas carentes, onde não há pai nem avô, é mãe e avó. E por isso torna-se realmente uma fábrica de elementos desajustados e que tendem a ingressar em narco-quadrilhas que afetam nosso país”. O país que na visão dele passava pelo período de declínio moral no qual os lares sem a presença de um homem formavam indivíduos inapropriados é o mesmo que o delas. As figuras femininas responsáveis pela criação de suas proles representam o total de 11,6 milhões de famílias que constituem atualmente a nação. A somatória emerge de uma estatística que indica o crescimento de arranjos compostos de mulheres com filhos e sem cônjuges. Em dez anos, entre 2005 a 2015, o Brasil ganhou 1,1 milhão de mães solos. Passaram de 10,5 para a marca que conhecemos hoje. Os dados apresentados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e compõem a publicação “Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira”. Divulgado em 2016, o levantamento é o último oficial ao se tratar deste assunto. No caso, é provável que os números sejam bem maiores nos dias de hoje. Se na última década cresceram para mais 1,1 milhão, então quantas delas serão daqui mais uma? Irão se expandir ou reduzir? Apenas as pesquisas do futuro nos trarão as respostas. 22


Além desse, outro estudo que retrata a existência das mães solos através dos números é o da Diretoria de Análise de Políticas Públicas (DAPP) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Utilizando dados do Sistema Único de Saúde (SUS) com o recorte de 2013 a 2014, a FGV computou quantas mulheres declararam serem solteiras no momento do parto. Vale ressaltar que as opções fornecidas às parturientes incluíam: solteira, casada, viúva, separada judicialmente, união consensual e ignorado. No primeiro ano, agregando todas capitais do país, dos 936.257 mil nascidos vivos, 397.638 mil eram filhos de mães solos. O segundo ano registrou um aumento comparado ao anterior. Dessa vez, os recém-nascidos somavam 957.484 mil. Dentre eles, 414.772 mil provinham de mulheres que manifestaram estarem solteiras. O percentual de alegações dessa natureza subiu de 42% para 43% nos respectivos anos acompanhados. Nas datas observadas, Campo Grande ocupava a terceira posição da classificação geral de capitais do país com a maior proporção de mães que se identificaram com esse status civil. Na cidade morena, as gestantes que deram à luz e possuíam o perfil de solteira somavam 57% dos casos. Respectivamente, Manaus e Rio de Janeiro ocupavam o primeiro e segundo lugar com 70% e 61%. A quantidade de figuras que no momento do parto já estão inseridas no grupo da família monoparental feminina é exorbitante. Embora seis anos tenham corrido de lá para cá, é inevitável não se surpreender. Separações e reconciliações podem ocorrer após o nascimento do bebê. Mesmo assim, é inquestionável um fato: a chegada de uma vida frequentemente precede a partida de outra. Levando isso em consideração, onde estão os homens que iguais a elas são responsáveis pela concepção de um ser? Complicado atestar o paradeiro deles. No entanto, estatisticamente, é possível garantir o lugar onde deveriam estar, porém não estão. 23


Responsável pela coleta de informações da educação básica, o Censo Escolar é o principal instrumento a reunir estatísticas educacionais do Brasil. Elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o Censo de 2011 revelou algo grave. Cerca de 5.494.267 milhões de crianças brasileiras não possuem o nome do pai na certidão de nascimento. Os dados regionais apontam que no Mato Grosso do Sul o número consiste em 53.741 mil. Apesar da soma significativa, o Estado é um dos poucos a deter menos de cem mil alunos sem a filiação paterna no documento. Rio de Janeiro, São Paulo e Pará são as regiões com os maiores índices. Em sequência, calculam, 677.676, 663.375 e 505.247 mil estudantes que sem o registro paterno não têm seus direitos garantidos pela lei. Agora, imagine se o balanço não abarcasse exclusivamente aqueles que estão na fase escolar? Quantos adultos tem apenas as informações maternas em sua certidão? Qual a dimensão verdadeira da ausência desses nomes? Novamente, outra composição do Emicida é evocada como exemplo verídico de um cenário que compõe fielmente a realidade brasileira de muitas mulheres e consequentemente suas crianças. O abandono que costumam sofrer e uma das consequências dele podem ser resumidos com algumas palavras da canção “Levanta e Anda”. O verso “A mãe assume o pai some de costume no máximo é um sobrenome” é uma definição de caráter atemporal. Mães deixadas para trás com suas crias não residem exclusivamente no passado e o presente é uma prova viva disso. Quantos pais sumiram no mundo e abandonaram as companheiras e o filhos? Que quantidade de homens não quiseram assumir a paternidade? Qual o número exato dos que deixaram para a mulher toda a responsabilidade? Quantas serão largadas no futuro a própria sorte ainda gestantes? Não existem 24


apurações suficientes que possam responder de forma completa e satisfatória as indagações feitas agora. Homens podem escolher assumir ou não um filho e frequentemente decidem pela última opção. Enquanto dispõem de possibilidades, o mesmo é impossível para elas. Algumas mulheres não escolheram serem mães, a condição apareceu imposta a elas e não existiam alternativas disponíveis semelhante ao exemplo deles. As mães solos convivem com os resultados de uma escolha que não fizeram e diversas vezes com as consequências daquelas feitas por eles. Caminham lado a lado, causa e consequência, complementares, pautas do mesmo assunto, inseparáveis e opostas. Onde uma não se cria a outra sobrevive, ausência e presença são atributos que podem ser utilizados para descreverem a maternidade solo. Atrás da expressiva presença da figura materna há uma ausência maior de outra parte, a paterna. A carência de participação, interesse e colaboração deles resulta no acúmulo de deveres e sobrecarga delas. O vazio criado, expandido e mantido pelos homens que em certos casos são mais genitores do que pais é o mesmo que elas tentam preencher. Nas tentativas de suprir o afeto, o alimento e o teto daqueles que conceberam, enfrentam constantemente perguntas que chegam a ser invasivas em determinadas ocasiões. As que ouvem rotineiramente é: cadê o pai da criança? Essa seria uma boa indagação se na maioria das vezes não fosse feita com o intuito de causar constrangimento às mães. Conforme dito no primeiro parágrafo, o reconhecimento não culminou para a aceitação social. Persistem no conceito de família ideal, defendem a imagem que ela simboliza e são contra aquelas que não se encaixam no modelo esperado. Esqueceram que instituições familiares se constituem de variadas formas e jeitos. Logo, não é a composição que irá alterar seu status. Família é família e fim de discussão! 25


A delas também é reconhecida constitucionalmente sem distinção perante as demais. Claro, necessário frisar que os arranjos familiares anteriores a esse importante momento na história nacional sempre estiveram presentes, no entanto, somente foram vistos e reconhecidos anos mais tarde. A promulgação da Constituição Federal Brasileira de 1988 marcou o início da significativa legitimação do modelo de família monoparental. “Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”, diz o capítulo VII, artigo 126, do 4º parágrafo. Ainda que ela possa ser formada por qualquer um dos pais, os dados evidenciam que as mulheres representam a maior parte das composições da entidade monoparental. Neste aspecto, a maternidade solo corresponde ao modelo de família monoparental feminina no qual as mães são as responsáveis pela tutela de seus filhos. O “Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça” é um trabalho que tem a finalidade de divulgar estatísticas descritivas sobre a realidade de brasileiras e brasileiros. A abordagem realiza o recorte de informações priorizando as desigualdades impostas aos cidadãos devido a raça e gênero. A iniciativa é resultado da parceria de várias instituições, sendo elas: o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres, conhecida como ONU Mulheres, e a Secretaria de Políticas para as Mulheres do Ministério da Justiça e Cidadania (SPM). Graças ao resultado do trabalho que reúne indicadores da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE, podemos conhecer com mais detalhes aqueles que integram as famílias monoparentais. Informações de cor, sexo e moradia estão disponíveis nas tabelas que agregam percentuais consolidados do ano de 1995 a 2015. 26


Anteriormente, obtivemos conhecimento de quantas mulheres se tornaram mães solos nos últimos dez anos. Agora podemos realizar um comparativo que embasa a afirmação do porquê elas estão em maior número no arranjo monoparental em relação aos homens. Atrelado a isso, conseguimos compreender o perfil dos indivíduos segundo a segmentação de grupo étnico. A referência é importante para saber o conjunto de particularidades que definem as famílias monoparentais do Brasil. A quantia é mínima, é quase nula e seria insignificante se os minúsculos valores não revelassem a enorme defasagem numérica que distanciam a vivência deles e delas. Os baixos números expressados são significativos justamente para ressaltar a disparidade antiga que se mantém atual. A discrepância acontece há décadas e eles nunca conseguiram equivaler à metade da proporção liderada por elas. A distribuição percentual sofreu poucas alterações de lá para cá. Enquanto as mulheres se conservaram acima de 15%, os homens estiveram abaixo de 3%. Na data inicial, 1995, arranjos formados pelos pais e filhos totalizavam 1,8% ante aos 15,8% constituídos pelas mães. Em 2005, os números saltaram para 2,2% e 18,2%. Superior a 17%, a marca atingida pelas mães solos é a máxima dentre todos os anos contabilizados. Na última atualização, em 2015, a taxa reduziu para 16,3% ao mesmo tempo que eles se mantiveram nos 2,2%. Aliás, as estimativas jamais ultrapassaram 2,5%, no entanto, oscilaram entre 2,1% e 2,2% nos últimos cinco anos. No âmbito da divisão étnico-racial, citando unicamente as figuras femininas e deixando de lado as masculinas, mulheres brancas com filhos de 1995 a 2002 seguiram com proporção acima das negras. Registravam, no último ano a frente, 50,5% diante de 49,5%. No período, a divergência não era excepcional, contudo, viria a ser. A partir de 2003, as mulheres negras ultrapassaram os índices e chegaram a diferença atual que corres27


ponde a 58,8% contra 41,2%. Diante disso, constatamos que as entidades monoparentais do país, além de serem superiormente femininas, são liderados especificamente por mulheres negras. Família monoparental feminina, 27 letras no total, a palavra é enorme em tamanho, reduzimos para 15, maternidade solo. É desse jeito que me refiro nos instantes que preciso mencioná-la. Nos cantos por onde andei busquei os significados que trouxessem sentidos e emoções particulares que jamais encontraria na Carta Magna Brasileira. Para todo lugar que ia, o caderno com roteiros de perguntas me seguia. Tinha medo que no meio de tantas conversas, nomes, histórias e dúvidas minha mente esquecesse a questão primordial. A mantinha ali na ponta da língua presa para que não fugisse à memória. A soltava quando encontrava a brecha que todo entrevistado em algum minuto concede sem perceber. É simples obter no decorrer de uma entrevista a definição de algo sem as respostas terem partido da pergunta específica. Todavia, o intuito não se tratava unicamente disso, mas sim entender qual o discernimento que elas possuíam sobre essas 15 letras. Queria compreender o significado da maternidade solo na vida de cada uma através da maneira exata que externavam suas experiências. Por isso, alguns dos capítulos deste livro apresentam nos títulos uma frase ou expressão que as mesmas usaram em dada oportunidade. Almejava que cada um conseguisse exprimir as reflexões que revelaram e nesse aspecto fosse fiel a elas. Toda mãe solo tem seu jeito, traço, olhar e uma expressão que a individualiza e caracteriza. A face da mulher que desempenha o papel da maternidade solo é múltipla, distinta e infinita em sua individualidade. Pluralidade e singularidade são dois conceitos que as contemplam. Sim, elas são muitas. Ainda assim, dentro do enorme conjunto onde estão inseridas, cada uma se destaca a seu modo. Respeitando os princípios citados, as ilustra28


ções que acompanham as narrativas desta obra têm o intuito de não retratar precisamente as mulheres escutadas. Primeiro em respeito a imagem e privacidade delas, em segundo porque o objetivo é provocar no leitor a capacidade de imaginar figuras próximas do cotidiano dele e não especificamente às mulheres entrevistadas. A cada página virada, quando os desenhos capturarem a atenção de quem está lendo, espero que qualquer linha, rabisco, ponto ou círculo possibilite a referência de alguém conhecida. O conceito que segue uma estética fantasiosa e não realista tem justamente essa finalidade, provocar a imaginação. A intenção é que as imagens proporcionem a alusão de diversas mães solos. Afinal, elas são singularmente plurais. Quantas delas estão por aqui é uma pergunta complexa para ser respondida com exatidão. Sim, eu sei, os dados estatísticos expostos antes fornecem uma boa e segura resolução. Mas, na verdade, a indagação evocava a quantidade de histórias que circulam pelas ruas e desconhecemos. A magnitude de uma vida não se dá por meio de números porque esses deixam de revelar vivências que só serão obtidas se você parar e escutar as vozes daquelas que sentem na pele o peso das estatísticas. Dentre milhares de nomes, sobrenomes e endereços, encontrei alguns que me possibilitaram a chance de entender como é estar à frente de uma família monoparental feminina. Desfrutei da oportunidade e o prazer de conversar com quatro mulheres que são mães solos e agregaram de forma indescritível para a produção deste livro. As narrativas trazidas no conjunto de palavras que compõem este projeto são pequenas amostras de tantas outras que também poderiam estar aqui. Caso você seja uma mãe solo e esteja lendo isso saiba que você não está sozinha. Tenho certeza que sua história é igualmente valiosa e única como as daquelas que foram apresentadas aqui. 29


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na cara e na coragem Thamires de Almeida é mais uma entre tantas jovens que não planejava ser mãe. Por certo que também nunca imaginou que um dia estaria falando sobre filhos e maternidade, especificamente a solo, para uma estranha. Ela que é uma amante de livros, ainda que possa ter uma imaginação muito fértil, certamente não previu que acabaria sendo a inspiração e personagem real de um. Sua história, suas palavras e uma parte de si integram a partir de agora as linhas colocadas por mim aqui neste pedaço de papel. Princípio, meio e término Ela ficou com esse cara durante meses, o vínculo era supérfluo, casual, sem amor, apego ou juras de compromisso eterno. “Eu não amava ele, não gostava dele tipo paixão e essas coisas. Era só uma pessoa que tipo estava ali”, comenta. Começou porque buscava um motivo que a tirasse de casa e consequentemente de perto da pessoa com quem detinha “uma relação muito difícil”, o padrasto. “Usava a casa dele meio que pra fugir da minha”, justifica. Mês chegou, passou, veio outro lugar 32


e ela continuava com ele até que decidiu pôr um fim naquilo. “Teve uma hora que estava bem comigo mesma e terminei com ele”, diz. O término veio a acontecer quando completaram cinco meses de relacionamento. Na mesma data que o desfecho entre ambos ocorreu, outra caso tinha seu princípio instituído. Na parte da tarde daquele dia ela, recém solteira, estava no serviço quando de repente passou mal e foi levada ao hospital. Todo mundo alguma vez na vida já deve ter ido parar na emergência de um lugar como esse, por isso é possível imaginar o que aconteceu por lá. O interessante deste episódio é que ela fez todos os exames solicitados, tudo dentro da normalidade hospitalar até então, mas antes que o diagnóstico saísse algo ocorreu. A figura profissional, no alto de sua experiência e conhecimento, chegou para a mãe e sem estar com os resultados prontos afirmou ter certeza que o motivo do mal-estar da filha tinha uma única razão. Inteligente ele, não? Coube então, a futura avó a responsabilidade de repassar a notícia dada em primeira mão pelo médico. “Ela sabe que sou nervosa, então já veio rindo, sorrindo: Tá tudo bem! Não me assustou nem me apavorou. Minha mãe que falou: Olha você está grávida”, relata. Estava de três semanas, a desconfiança de um suposto atraso no ciclo não surgiu, pois segundo ela a confirmação da gestação aconteceu bem antes do dia previsto para menstruar. Logo, a “pulga atrás da orelha” nem teve tempo de aparecer e trazer consigo a famosa dúvida. A repentina novidade resultou na bruta mudança no presente e futuro. Os aspectos que tangiam sua vida foram caindo um a um como se seguissem a lógica do efeito dominó. Só bastou uma peça perder o equilíbrio para que as outras fossem afetadas. Diante disso, perdeu o primeiro emprego, abandonou o plano de intercâmbio, teve a saúde deteriorada e reatou com o ex, pai 33


da criança a caminho. Todas essas coisas, somadas com o histórico de ansiedade dela, propiciaram um quadro frágil no período gestacional. “Eu tive uma gravidez de risco, muito difícil, porque não aceitava. O meu corpo meio que começou a rejeitar o bebê e eu tive um pré aborto”, revela. Por ter tido a placenta descolada do útero e encolhida começou a tomar remédios. Thamires passou os cinco primeiros meses acamada, chorava o dia inteiro, sentia ânsias, vomitava e não tardou para que perdesse peso. Diz que sobreviveu de soro e bolachas de água e sal. A indisposição, os degraus do local onde residia e a necessidade de ser cuidada são alguns dos motivos que a levaram a se reconciliar com o rapaz que a engravidou. “Eu morava em um prédio que tinha que descer escada e eu não podia me movimentar, andar e nem nada. Tive que voltar com ele justamente porque estava doente, então voltei pra ele me ajudar. Na época ele estava desempregado e ficava comigo lá em casa, fazia tudo pra mim. Aí eu voltei, mas sabe? Não querendo”, pontua. A gestação definitivamente deixava de ser seu assunto favorito, compartilhou com pouquíssimas pessoas a informação, mantinha a mente em conversas que de preferência não incluíssem a maternidade ou nenéns. A fase pode ser bonita para alguns, suspiros, realização, preenchimento, benção, a eterna aurora dos momentos felizes. Entre as quatro paredes que vigiavam o crescimento do bebê dentro dela semana após semana, a claridade sublime jamais invadiu ou penetrou aquelas divisões de concreto. Fechada para o mundo lá fora, impossibilitada de fazer com a mesma facilidade as atividades usuais de outrora, a jovem de 19 anos detinha pensamentos melancólicos. Imagine como é estar iniciando os primeiros passos rumo à vida adulta. Querer ir estudar no Chile para aprimorar o inglês e o espanhol, conseguir um emprego, ganhar um salário 34


que traz mais independência dos pais e terminar um relacionamento que não lhe faz bem. Além disso, pensa ter disponibilidade para ir e vir com os amigos, sair, interagir com outras pessoas e manter diálogos leves. Sua vida pode não ser aquela que você gostaria, contudo, segue uma ordem que a torna agradável e suportável. Surge a noite, bate o cansaço e milésimos antes do sono vencer e a pálpebra finalmente fechar, a ponderação advém. Todos têm uma breve recapitulação segundos antes de dormir, parece uma chamada que traz rapidamente à tona os principais atos que formar sua realidade. Dorme sabendo o seu lugar no mundo, porém ao acordar tudo muda. Ela experimentou algo semelhante ao descrito. De dentro para fora era consumida, o corpo rejeitava, sangrava, doía, talvez o coração doesse também porque os pensamentos deprimidos mencionados parágrafos acima prosseguiram. “Pensei muitas vezes em me jogar da escada porque são três lances e é bem alto. Eu morava no último andar e ficava pensando: Eu quero me matar, eu não quero essa criança, eu acabei com a minha vida”, desabafa. Ressalta que se manteve firme devido a força que recebeu. “Minha mãe falava assim: Eu não tô triste, tô muito feliz. Acho que o que não me deixou afundar foi isso, a minha mãe. Toda vez quando ela falava comigo só tinha sorrisos e apoio. Fazia de tudo pra eu ficar melhor, me sentir bem e aceitar a gravidez”, expõe. O cenário começou a mudar depois do sexto mês, o humor melhorou e pouco a pouco foi se acostumando e aceitando a ideia de que teria um filho. “No sétimo mês que comecei a ficar feliz, começava a rir, passava a mão na barriga, falava da gravidez e sorria”, declara. Com o dinheiro que guardava para o intercâmbio fez as compras para o bebê que estava prestes a nascer. E o nome? Teria ela definido algum? Apaixonada pela saga do Harry 35


Potter, a escolha veio inspirada em um dos personagens da obra: Dominique. Fugindo de um costume narrativo que deixa o leitor surpreso ao se defrontar com uma alteração no enredo, antecipo que o nome Dominique nunca seria registrado na certidão de nascimento. O motivo? Mais pra frente saberão. Posso ter estragado de antemão a surpresa, contudo, por hora reinará o silencioso mistério do porquê. Como não podia sair de casa, os amigos faziam visitas frequentes, estouravam pipoca, viam filmes, levavam comidas e “faziam um monte de coisas” juntos com ela. O companheirismo se estende para os tempos atuais, continuam por perto e a ajudam com a criança que hoje já tem dois anos e meio. Afirma que nenhuma amizade se perdeu durante o processo e que nunca foi julgada por ter engravidado cedo. “Sei que tive muita sorte com os meus amigos, todo mundo me deu apoio, acho que só dou conta por causa deles. Ninguém nunca chegou pra falar nada ou jogar na minha cara tipo: Nossa você é muito burra, engravidou!”, comenta. Presa a maior parte das tempo na cama, conquistou a liberdade quase no finalzinho da gestação. Daí, não demorou muito, logo deu à luz, três semanas antes do esperado. O parto tão complicado quanto os meses anteriores também não deu moleza a ela. “Eu tive uma pré eclâmpsia, então não consegui fazer o parto normal. Na hora que estava fazendo força o meu coração deu aquela parada e eu sangrei. Ai, tive que ir para a cesárea”, narra. Quem era pra ser Dominique, na verdade, nasceu como Murilo Castiel. O primeiro nome foi escolha dela, o segundo do pai. Durante meses achou que carregava uma garotinha, entretanto, só depois de algumas consultas que o garotinho resolveu revelar seu verdadeiro sexo. “Era pra ser uma menina porque ele 36


não abria a perna. No ultrassom de sete meses que foi ver que era um menino e eu falei: Gente, mas escolhi um nome de menina e agora?”, relembra. Retornou para a casa da mãe com o recém-nascido e pelo menos quatro meses passaram quando resolveu mudar de endereço. Aprovada para cursar Letras na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), estabeleceu que seria conveniente residir mais próxima do campus universitário, por isso foi morar com o pai do neném que vivia nas imediações. Na ocasião, o mesmo prometeu que a ajudaria. Não demoraria para perceber que as garantias morreriam nas palavras e jamais ganharam vida através de ações. A separação definitiva entre ambos ocorreria em menos de um ano. Provações, crescimentos e significados Realizou a prova do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), gestante e apesar das dificuldades impostas pela sua condição teve a proeza de passar entre os dez primeiros colocados. “Cara eu passei em oitavo lugar, eu tava muito feliz. No dia do Enem minha perna estava inchada igual uma coisa e eu passei no oitavo lugar pensa!”, ressalta com entusiasmo. A animação e o orgulho pessoal de conquistar a aprovação para estudar dentro de uma federal duraram instantes. A ajuda prometida acabou em menos de uma quinzena, o homem alegou que não “dava conta” de trabalhar e ainda cuidar de uma criança. Começou então a levar o menor com ela nas aulas matinais. A partir daí deixou de entender o que estava sendo dito nas salas de aula. A atenção direcionada somente para 37


o professor se perdeu ao tentar supervisionar um bebê naquele ambiente. Passou três dias consecutivos chorando depois de trancar a faculdade em menos de dois meses. O acúmulo de afazeres, os cuidados dispensados unicamente da sua parte para com o filho e o pouco tempo que restava para estudar são algumas das causas. A mãe ofereceu pagar uma babá para o neto, mas nessa altura do campeonato Thamires estava desmotivada e derrotada pelos empecilhos diários, sendo um deles a falta de comprometimento do companheiro. “Ele não queria me ajudar de jeito nenhum, fora que também não ajudava na casa. Trabalhava, dava um pouquinho de dinheiro e achava que tava ótimo. Quando estava de folga eu falava: Me ajuda hoje, fica com ele. Mas não, simplesmente virava a cara pra criança”, recorda. Terminou e dessa vez sem volta, saiu da casa dele, morou dois meses com o pai, uma semana com a mãe e posteriormente encontrou um cantinho para si e o pequeno. Do cantinho saiu, pulou para outro, mais um e nele ficou. Murilo cresceu, sabe andar, falar umas palavras, pegar coisas na geladeira, servir o próprio copo de água da torneira do banheiro e roubar a atenção como ninguém. Dedicado, vai pra creche, volta e nas horas de estudo da mãe fica ali ao lado dela, na mesinha particular, estudando, melhor, rabiscando. Ainda que estivesse acompanhada antes, detinha sozinha os encargos de cuidar do filho e de tudo que correspondia ao universo dele. O rompimento com o genitor do garoto, todavia, oficializou o fato de ser uma mãe solo e desde então aprendeu muito. Embora o crescimento dela seja diferente, o mesmo não deixa de deter significado e valor. A jovem há muitos anos sabia como se mover, comunicar, apanhar o próprio alimento e servir sua própria água. Entretanto, administrar as próprias finanças, 38


comandar uma casa e criar outro ser humano são saberes que careciam e agora segue absorvendo. O desenvolvimento e o discernimento veio a cada nova etapa desconhecida. Através delas, sentimentos e significados sobre a imensidão de seu papel se afloraram e trouxeram uma reflexão poderosa. “Eu só me senti mãe de verdade quando na primeira crise de cólica tive que cuidar sozinha porque o pai dele estava trabalhando e não podia ajudar. Só depois que ele nasceu, que olhei pra cara dele e comecei a tomar decisões, tipo cancelar a faculdade para cuidar dele. Quando você começa a priorizar de verdade que você entende que ali você é mãe”, afirma. No âmbito de prioridades, busca um emprego que ofereça horários flexíveis, pois o pequeno tem crises de asmas que ocasionam internações. Mais de uma vez virou a noite sozinha no hospital ou no posto com ele. “Mês passado mesmo a gente ficou uns dois dias no oxigênio internado”, relata. Na hora desses apertos, amigos e parentes contribuem com caronas para facilitar na locomoção até o atendimento médico. “Se eu precisar e ligar: Olha o Murilo tá passando mal e preciso ir no hospital agora. Eles vem e me levam”, explica. Depois dos vais e vens, considerou retomar os estudos em Letras, porém deixou para lá e resolveu fazer algo que provocasse nela uma maior afinidade e identificação. Em 2018, começou o curso técnico em Farmácia e um ano depois está perto de concluir. Setembro é a data prevista para a finalização dos estudos, falta só mais um mês agora. A seguir, quando possível, pretende iniciar a graduação na mesma área. “Antes só me via indo pro lado de humanas, fiz letras, jornalismo, direito e nada me serviu e agora não me vejo fazendo outra coisa”, anuncia. Discrepante do cenário anterior, obtém um amparo genuíno para ser capaz de cuidar da casa, do filho e dos estudos. 39


Avó e bisavó se revezam para supervisionar o menino quando ela precisa, e também contribuem financeiramente para suprir as necessidades de ambos. “Minha mãe me ajuda muito financeiramente, mas o dinheiro que ela passa é por mês e minha vó ajuda sempre. É uma comprinha do dia: Ah preciso comprar uma mistura hoje. Aí é com a minha vó, ela me dá muita estrutura. No dia que vou pro curso técnico e ele não tem aula quem fica com ele é a minha vó”, expressa. A rotina dos dois é organizada e bem estabelecida com o cumprimento de horários. Os dias da semana seguem um roteiro previsível, somente sábados e domingos são mais soltos, inusitados e relaxados. “7h da manhã ele vai pra escola, 16h30 chega, come, faz a bagunça dele. A gente brinca, tento ensinar ele a falar e ler. 19h coloco um desenho pra ele assistir e faço a janta. Ele toma outro banho e vai dormir isso já 21h ou 22h. Quando é final de semana acordamos o horário que for (risos). Já me falaram que tenho que criar uma rotina até no final de semana, mas às vezes fico tão cansada e ele mesmo não quer acordar porque todo dia levanta 6h da manhã, então acabo deixando”, conta. A mãe é uma escaladora de árvores, lutadora, personagem lúdica e principalmente companheira fiel de todas as brincadeiras. “Eu subo em árvore com ele, brincamos de lutinha de travesseiro, às vezes brincamos de monstro e de correr. Tento fazer as brincadeiras que dá”, fala. Além das recreações, busca construir uma criação desprendida de estereótipos de gênero que atribuem papéis específicos para mulheres e homens. “Eu tento o máximo possível não ser o tipo de pessoa que: coisas de menino e coisas de menina. Por exemplo, a mochila dele é de espaço, peguei na sessão feminina. Algumas roupinhas dele que são blusinhas tem babadinho no braço. Eu deixo livre pra escolher o que ele quiser”, diz. 40


A palavra é ausente de significado, exemplo, peso, valor e estima. É como uma junção daquelas frases que você é ensinado a reproduzir nas fases iniciais da alfabetização. Reproduz, porém carece a ponderação e interiorização do conteúdo dela. Fala da boca pra fora, sem sentimento, seu coração não pulsa tanto por aquelas sentenças. Elas não tem gosto algum na boca, quer dizer, caso as papilas gustativas pudessem, atestariam um sabor nulo a elas. Segundo Thamires, o filho sabe como pronunciar “papai”, contudo o mesmo acredita que o termo faz referência a ela assim como “mama”. “Ele fala papai só que eu acho que pra ele é uma palavra meio vazia ou que se refere à mim. O pai dele via ele e ele o conhece, mas não tem aquele reconhecimento de uma figura paterna. Se ele cair e machucar não vai no pai dele. Ele não vê o pai dele como uma figura que pode ajudar e proteger, mas acho que isso é mais pela ausência”, declara. Falando em ausência, faz um tempinho que visitas não acontecem. No dia dos pais deste ano, faltou o pai na comemoração. Libertação, exemplos e dualidade Sentada na ponta daquela cama, coberta pelo lençol e uns brinquedos, papo vai e vem. Em meio às idas e vindas descubro que a história dela também é um relato de sobrevivência a um relacionamento abusivo. Ciúmes, chantagens e ameaças são algumas das coisas que passou na mão do ex-companheiro. Ele, aliás, chegou a usar a pensão como um meio de justificar seus atos. 41


O término da relação deu início aos episódios de abuso que só cessaram quando realizou uma denúncia formal na Casa da Mulher Brasileira. Em fevereiro de 2019, sozinha e sem contar a ninguém, prestou queixa e obteve o direito da medida protetiva. A decisão assumiu variados significados para si, dentre eles, emancipação. Deu adeus aos resquícios da garota antiga, a menina ingênua e dependente de opiniões externas. Deu ouvidos a si e pôs os pés na direção que queria ir. Naquele momento seguiu o caminho que a levaria à justiça. Internalizou por um tempo excessivo se deveria buscar ou não os seus direitos. Havia uma cisma que persistia e tentava a persuadir da ideia de buscar ajuda e amparo legal. “Sempre teve aquele pensamento: Ele é pai do seu filho tem certeza que cê vai fazer isso?”, comenta. O alerta que partia da mãe provocava reflexões que a deixavam indecisa. Quando se livrou delas pode ir adiante e tomar providências. “Eu peguei um dia e falei: Quer saber? Eu tenho que ir pela minha cabeça! Se eu ficar indo na onda da minha mãe vou continuar sendo a mesma menininha de sempre, a inocente que fugiu de casa e engravidou quando perdeu a virgindade. Aí falei: Eu tenho que crescer agora!”, exclama. O ex “sumiu de vez” ao ser denunciado. A medida estabelece ele não pode ir na casa dela, fazer ligações ou tentar qualquer outro tipo de contato direto. Caso tente, ela pode acionar as autoridades no mesmo instante com um aparelho especial. “Se ele chegar aqui no meu portão ou perto de mim tem o dispositivo ali guardado que você aperta e já chama a polícia”, explica. O aparelho disponibilizado fez com que ela se sentisse mais tranquila. A sensação é diferente das vividas anteriormente, daquelas da época de quando era alvo dos sentimentos de alguém que a prejudicava e afetava. Aos poucos vai se desvencilhan42


do das impressões deixadas pelos acontecimentos do passado. “Era um ciúmes doentio dele, tanto que só me livrei a pouco disso mesmo tendo me separado há muito tempo”, relata. Todavia, antes de ter conseguido se libertar, cita algumas das situações e violações que sofreu. Indícios a fizeram perceber que sua privacidade virtual havia sido violada. O rapaz sabia de conversas privadas que ela mantinha e chegou a invadir sua casa para saber se estava acompanhada pela pessoa com quem trocava mensagens. “Desse negócio dele me hackear ele tinha pulado o muro da minha casa pra saber se o cara tava lá dentro comigo. Foi bem pesado, foi uma época que não quis ficar com mais ninguém porque fiquei com medo”, desabafa. Passado o episódio, trocou o endereço de e-mail, contas das redes sociais e o aparelho celular no qual instalou um sistema para evitar outras invasões. Tentou atingir a mãe utilizando o próprio filho o envolvendo na sua trama de ciúmes. Fez do menino uma desculpa para tentar justificar e respaldar as atitudes que tomava. Nos dias de visita aproveitada a oportunidade para a cuidar de perto ao invés de dar atenção ao pequeno. “Ele vinha uma vez por semana e ficava uma hora, mas o problema é que ele não queria ver o Murilo, queria me vigiar. Eu falava: Ó vocês ficam aqui na sala que vou ali pra cozinha. Ele incitava o menino a ir atrás de mim pra ver se eu estava falando com alguém no telefone e vigiar o que eu estava fazendo”, conta. A pensão virou uma artimanha, caso não fizesse o que era pedido a consequência seria parar de receber o dinheiro. “Quando queria ver o Murilo fazia chantagem de: Só te dou a pensão se eu ver ele”, relembra. O estopim foi quando a insultou e ameaçou tomar a guarda dela. “Ele mandou um monte de mensagem me xingando, falando que ia tomar o Murilo de mim 43


e que eu nunca mais ia ver o meu filho. Falou que ia pegar ele na escola e sumir com ele”, expõe. A ameaça a levou finalmente direto para a delegacia. Agora tenta resolver judicialmente o assunto da guarda e a regularização da pensão já que por enquanto o acordo é exclusivamente de caráter verbal. Por hora, o valor combinado dificilmente é entregue mensalmente. No início o dinheiro chegava certo, porém ele deixou de repassar integralmente a quantia que eventualmente ela recebe quase a prestações. “Tínhamos combinado em trezentos e cinquenta e durante quatro meses ele pagou certinho, mas depois começou a pagar tudo enrolado. Tem mês que dá quinhentos, depois dá cem e aí tem outro mês que fala que não vai dar nada. É tipo isso, ele é de lua, é tudo no tempo dele”, aponta. Na sexta-feira anterior à entrevista aconteceu a audiência que iria julgar o processo, o pai avisou que estava a caminho, no entanto, não compareceu. “A mulher ligou e ele falou: Em quinze minutos chego. Depois ela ligou e ele: Não, eu não vou mais”, resume. O caso voltou para o Ministério Público e ela espera uma nova data para comparecer ao tribunal. “Demorou seis meses para marcar a audiência, acho que vai ser mais uns seis para remarcar”, supõe. A história da Thamires é semelhante com a de várias outras mulheres que hoje são mães solos. Engravidou jovem, sem planejar e de uma pessoa que não amava. Por incontáveis razões, talvez principalmente pela criança concebida, buscou manter um relacionamento. Quando não deu certo, colocou na mala os pertences, partiu e optou por criar o filho sozinha. Coragem, é necessário ter bastante disso para escolher encarar a maternidade solo sabendo que socialmente muitos irão criticar ao invés de apoiar. Mesmo com as adversidades que enfrenta, admite que prefere lidar sozinha com a criação do menino. “Eu prefiro mil 44


vezes ser mãe solo, ter toda dificuldade de sair e arrumar emprego. Prefiro porque são as minhas regras com ele e ele vai ver que sou a autoridade aqui. Vai ser uma educação que acho que é certa pra ele e que vai fazer bem”, defende. Em momento algum da conversa demonstra arrependimento pela escolha de se separar. Reclama de coisas que qualquer uma reclamaria no seu lugar, mas nunca de ser só ela e o filho. O ditado popular “Antes só do que mal acompanhada” poderia ilustrar fielmente seu espírito. Acredita que a criança precisa estar cercada de pessoas que possam fornecer referências positivas. Atrelado à isso, menciona que o pai não é uma delas. “O que ele defende e pensa, ele é extremamente machista, então não acho que é um bom exemplo pra se seguir e pra estar perto dele. Eu quero o exemplo de pessoa digna de ser copiada porque criança copia tudo”, reforça. De acordo com ela, os modelos masculinos do Murilo são o avô materno e o tio. Desenvolver ou manter um relacionamento amoroso não é a principal meta da sua atual fase. Apesar disso, esclarece que o futuro companheiro deve ser alguém que vá aceitar o guri. “É igual minha mãe falou: Você tem que ter alguém que vai querer assumir ele com você senão essa pessoa não vai se encaixar na sua vida”, recorda. Para isso, é essencial que a mesma exerça um bom papel para o filho. O requisito é indispensável e primordial. “Quero alguém que esteja ali para que ele possa olhar e se inspirar de forma masculina porque por mais que eu me esforce não vou ser igual um pai”, salienta. Se dedica há quase três anos no único vínculo que diferente de outros continua dando certo e se fortalecendo. Os dois se entendem, criaram uma rotina juntos e são companhias um do outro. A união entre Thamires e Murilo se sustenta através de valores que são praticados de maneira mútua. “Eu construí 45


uma relação com ele, tenho que respeitar ele e ele tem que me respeitar. A gente tem que ter paciência um com o outro e uma terceira pessoa tem que se adaptar a isso”, afirma. Me olhou de um jeito desconfiado quando atravessei a porta. Os olhos pequenos e escuros miraram diretamente os meus e as sobrancelhas fizeram uma expressão interrogativa. Parecia querer perguntar quem eu era e o motivo de estar ali na casa dele. No caso, as indagações deixaram de serem feitas porque ainda está aprendendo a falar. Passada a primeira impressão, logo depois já nem se importa mais com a minha presença. No passar das horas continua brincando, quietinho permanece ali envolvido em si mesmo. A mão manuseia alguns carrinhos, peças, o livro com um desenho de circo e opa! Pega alguma coisa e põe na boca. O movimento rápido não escapou dos olhos da mãe que o adverte. “Assim não, cospe, cospe!”, ordena. Tão veltoz como colocou o papel na boca, escarra os pedaços mastigados para fora no mesmo instante. Superada a travessura, Murilo volta a brincar sozinho. Enquanto fala sua atenção é dirigida duplamente, conversa comigo, porém a todo segundo está vigilante com os movimentos do filho. Thamires descreve alguns aspectos da personalidade do garoto e diz que o deixa solto para se entreter nessa fase de descobrimentos. “Ele é bem tranquilo na dele, tendo brinquedo e comida fica ótimo. Mas, deixa esse guri entediado, vai pular pra tudo quanto é lugar igual toda criança, criança é hiperativa tem muita energia e precisa descobrir o mundo. Ele tá descobrindo o mundinho dele, então deixo ele muito livre pra brincar com as coisas”, declara. O menino mal começou a conhecer a vida, iniciante, precisa da tutela de alguém que o ajude, ensine e conceda as respostas para as dúvidas inocentes que podem surgir no caminho. 46


Com 22 anos, jamais idealizou que seria encarregada de cumprir esse papel na vida de outra pessoa e ensinar coisas que nem ela sabia. “Nunca quis ser responsável por ninguém, mal era responsável por mim, imagina por outro ser humano”, desabafa. Por isso, a seu modo, Thamires também está realizando descobertas de um novo universo, o maternal. A jovem de queixo fino, olhos grandes, meio claros e expressivos, prendia os longos cabelos no improviso de um penteado meio coque e vez ou outra ajeitava alguns fios soltos. Falava com grande animação sobre os livros, os amigos, os estudos e contava com humor algumas peripécias que o baixinho já aprontou. “Esses dias ele pegou um monte de pomada, cheguei aqui e essa parte do colchão tava tudo lambrecada”, lembra. Em outro episódio, o gurizinho abriu o estojo de maquiagem e comeu um dos produtos. “Você via no dente, na língua dele pedaços do batom roxo”, narra. Além de relatar os eventos protagonizados pelo menor, expõe a si e recorda uma certa “traquinice” de adulta que fez devido ao fascínio pelo mundo mágico criado pela J.K. Rowling. “Tem esse óculos da Luna de uma coleção da Chilli Beans e só tinha aquele no stand. Era trezentos reais e eu estava com esse dinheiro, mas eram cem da internet e duzentos do curso”, diz. Deveria pagar as contas, ela pensava, por outro lado queria realizar o agrado pessoal, pois geralmente comprava mais itens para a cria do que para si. “Acabei gastando no óculos, nunca contei pra minha mãe e só falei que tinha feito uma dívida. Agora sei que só vou fazer uma loucura dessas se estiver trabalhando”, garante. Vai em direção ao armário, procura, revira algumas caixas e logo acha o estimado objeto. É redondo com tons de rosa que são claros nas hastes e um pouco mais fortes nas lentes. Como nos filmes, a armação é meio diferente, fantasiosa e tem 47


pequenas estrelinhas desenhadas. O óculos da Luna Lovegood representa um pequeno traço que compõe Thamires. É divertido, alegre e jovial. A aquisição narrada por ela aos risos, poderia ser unicamente um delírio de consumo. Contudo, traz um outro símbolo. É um desses artigos que uma jovem compraria e não se sentiria culpada pelo gasto supérfluo. No entanto, a mãe que cria seu filho sozinha e sustenta um lar, cedo ou tarde se culparia pelo gasto de menor prioridade. Thamires é ambas as coisas, jovem e mãe. Neste caso, o segundo fator pesou mais. “Uma das primeiras irresponsabilidades que tive como mãe foi comprar esse óculos e não é uma coisa que uma mãe deveria fazer. Ela deveria priorizar a criança, comprar um brinquedo ou uma roupa que precisa e não foi, mas a gente aprende com os erros”, afirma. Faz uma reflexão que traz o significado de ser e carregar a dualidade desses papéis. A observação contém um resgate do que almejava antes, dos objetivos que pretendia alcançar se a vida não tivesse decidido mudar o enredo de uma hora para a outra. Acima de tudo, o desabafo traz à tona a questão que toda mãe solo deve viver em dado momento: O abandono definitivo de quem desejava ser para então se tornar quem o filho precisa que ela seja. “Minha vida era outro planejamento. É muito difícil você desapegar da pessoa que você era e dos sonhos que tinha. Quando você é mãe sem planejar sua vida se transforma, você tem que ser diferente, tem que ser responsável”, acentua. Há ocasiões nas quais as coisas que gostaria de fazer entram em confronto com as desempenhadas atualmente. A batalha é interna, ninguém vê os vestígios dela, lá dentro somente ela sabe como é comportar esse conflito de aspirações, desejos, vontades, deveres, obrigações e necessidades. É uma guerra sem vencedores ou derrotados. “Às vezes eu fico: Cara, olha no que 48


eu transformei a minha vida, podia tá curtindo, fazendo faculdade, terminando ou fazendo uma pós e tô gastando com fralda. Então as vezes isso puxa um pouco, ainda mais pela minha idade, por ser jovem, mas não é todo dia que acontece”, comenta. Não sabe como, porém consegue, vai lá e faz, simples assim, quer dizer, simples deixa de ser um bom adjetivo para abarcar a imensidão desse cenário. A maternidade solo pode ser inserida e descrita através dos variados valores semânticos do nosso idioma. Entretanto, tudo que é sinônimo de fácil perde o sentido se faz referência ou é empregada na mesma sentença que ela. Ser mãe solo pode ser tudo menos simples. A simplicidade não caracteriza as ações daquelas que andam pela vida a criar uma outra que depende exclusivamente delas. É uma tarefa árdua, claro existem as perdas e os ganhos porque nem tudo na vida de uma mãe solo se resume a infelicidade. Seria injusto contar a história delas e falar somente das cicatrizes que carregam já que essas marcas não as definem permanentemente e completamente. Mas, afinal, como elas conseguem fazer tantas coisas e no meio de tudo ainda darem conta de criar um filho? Vocês se perguntariam. Só vocês não, me incluo nessa dúvida junto. Talvez, as mães solos se questionem sobre o mesmo, talvez quem achamos que possa sanar a dúvida também não faça ideia de qual é a resposta correta. No fim, como tudo neste mundo, pode ser um daquelas circunstâncias que como diz a música “Tá Escrito” você só “Mete o pé e vai na fé”. “Até hoje não sei como dou conta. Mas, também é muito engraçado porque mesmo não querendo ser mãe você dá conta, você só vai e segue o fluxo na cara e na coragem”, finaliza Thamires.

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De cabeça para baixo Sábado, 24 de agosto, faltavam somente dois dias pro aniversário de 120 anos de Campo Grande, a cidade morena. Essa foi a data escolhida para realizar a entrevista com Rafaela Donatti. No caminho, o veículo seguia pela avenida Duque de Caxias em direção a casa dela, através da janela o sol despontava no meio do céu limpo. A previsão do tempo indicava mínima de 18ºC e máxima de 34ºC. Desço do carro e às 15h de um dia com clima ameno chego no endereço localizado na região Vila Planalto. Por meio de uma mensagem informo a minha chegada, Rafaela sai, me recepciona e, após uma breve apresentação, ambas avançamos para dentro. Caminho atrás dela, a seguindo, pelo corredor sinuoso com paredes altas da cor cinza escuro. Esse curto trajeto é a via de acesso que leva ao interior do local onde existe um conjunto de casas que têm o mesmo tamanho, aparência e espaço. Apesar das semelhanças, logo ao passar pelo portão noto no ambiente conjugado como varanda e lavanderia diversos brinquedos espalhados no chão, além de alguns móveis infantis. Essa é uma das coisas que diferenciam o lar da mulher, de “quase 30 anos”, que de forma educada me oferece água. 52


chegadas, renúncias e mudanças Antes da chegada da Analua, Rafaela cursava o 2º semestre de Ciências Sociais na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), participava do movimento do Diretório Central dos Estudantes (DCE), realizava alguns freelas no agora extinto bar Baraúna e nas folgas aproveitava para ir beber no bar próximo à faculdade, o Escobar. No ano de 2015, frequentava as aulas no período matutino, mas permanecia na faculdade no vespertino para estudar. “Ciências Sociais é muita coisa pra ler”, relata. Já a noite, ela ia até o bairro Monte Castelo onde trabalhava de freelancer às vezes dentro do bar, às vezes como garçonete. “Eu chegava em casa uma, duas horas da manhã e ia dormir, acordava às seis e era assim todos os dias”, lembra. A vida de Rafaela, porém mudou de forma abrupta ao descobrir naquele ano, no mês de agosto, que estava grávida de cinco meses. Dessa forma, o dia a dia que antes era vivido por ela somente no singular, tornou-se plural. A rotina, explicada com a palavra “minha”, foi ressignificada mudando-se para a “nossa”. “Nossa rotina é assim, a gente acorda, ela pede alguma coisa pra comer ai dependendo da hora eu dou café da manhã ou almoço, ela come e fica assistindo os desenhos dela”, conta, sentada em uma das cadeiras que provavelmente pertencem à filha devido ao tamanho e design infantil. Ali, apoiada no móvel estampado pela cor azul com desenhos dos dálmatas filhotes que remetem aos da Disney, a maquiadora fala que fica o dia todo com a filha já que a mesma ainda não frequenta a creche. Nos cinco dias da semana, elas compartilham o tempo uma da outra, brincam juntas, vão à orla, 53


ao supermercado, ao shopping, além disso Analua às vezes também acompanha a mãe quando ela realiza seus trabalhos de maquiagem. Elas se separam só aos finais de semana, e são nesses dois dias que a menina fica na casa do pai. Apesar de considerar um privilégio poder trabalhar próxima à menina de três anos e meio, Rafaela desabafa que alguns momentos são difíceis. “Ficar o dia inteiro interagindo com uma criança é complicado porque chega no final do dia e você só quer ter uma conversa adulta ou ficar em silêncio”, expõe. É nesse ponto que ela exprime que existem os momentos onde ocorre o conflito dela enquanto “mãe” com o seu “eu” pessoal. “Além de você ser mãe, você tem seus próprios problemas, dificuldades e tem dias que você só queria não ser mãe, mas isso não quer dizer que você não ama a criança é só que você não queria ser mãe naquele momento. ‘Cê’ só queria ficar tranquila, de boas sem nenhuma criança o dia inteiro, queria dormir até tarde, queria poder sei lá sair no meio da semana. Eu não sei o que é fazer isso faz anos, eu não sei o que é sentar numa quarta-feira no bar umas cinco horas da tarde”, comunica. É nessa “divisão” entre a pessoa mãe e a pessoa que é definida por tantas outras qualidades e características que um lado acaba abdicando mais em razão do outro. Por pelo menos 26 anos, Rafaela não tinha vivenciado essa abdicação já que ainda não tinha sido atribuído a ela o status da maternidade. Porém, foi ao descobrir que uma nova vida estava a caminho que ela começou a renunciar um pouco, senão totalmente, aquela que vivia até então. As leituras obrigatórias da faculdade cessaram, as frequências nas aulas foram perdidas, as noites trabalhando no Baraúna chegaram ao fim, assim como pouco a pouco as saídas para se divertir foram reduzidas. 54


Hoje, ela explica como há três anos se sentiu ao fazer tais renúncias e mudanças. “Pra mim foi um baqute, eu era daquela pessoa que ia no bar, sentava, bebia e ia umas dez horas pra casa, essa era minha vida antes da Analua. É bem complicado você abandonar, abdicar da sua liberdade para criar uma criança que é uma coisa maravilhosa, mas não é fácil nem um pouco você abrir mão do seu eu”, desabafa. Depois de ter que deixar algumas coisas para trás, ela manifesta que somente em 2019 começou a se recuperar, nisso reflete que outras mães solo podem não ter o mesmo “privilégio”. “Este ano eu estou me recuperando, procurando alguma coisa profissional, procurando outras coisas e isso é um privilégio porque tem muita mãe solo que com seis meses tem que voltar a trabalhar”, diz. Naquele sábado à tarde enquanto a música sertaneja ‘O alvo’ tocava na casa do vizinho e as vozes dos cantores se juntavam para cantar o refrão, alguém acompanhava de perto a entrevista que acontecia. Contudo, para falar sobre ela seria necessário antes falar de Fred, pois a partida dele aconteceu na mesma época da chegada da filha caçula de Rafaela e dela. Fred acompanhou toda a gestação da Rafaela, no entanto, após o nascimento da Analua seu comportamento mudou. “Ele ficou muito mais estranho, acho que várias coisas desestabilizaram o Fred”, expressa em meio a risadas. O gato siamês de pelo cinza e grosso era o animal de estimação criado naquele tempo. “Quando a Analua nasceu, ele chegou, olhou pra Analua, pra mim e ficou com uma cara tipo: Mãe o que que é isso?!”, relembra a ex-dona do felino em tom de risada. Entretanto, não foi só a chegada da bebê que culminou para o sumiço do bichano. Magali chegou sem ser convidada e com uma personalidade assim de intrusa acabou conquistando seu espaço. A gata de pêlos finos com tons que mesclam o branco e marrom é 55


hoje uma próxima companheira de Rafaela e Analua. “Ela é carente, dorme grudada comigo todo dia. Às vezes tenho que brigar com ela tipo: Sai! Às vezes tô dormindo de barriga pra cima e ela deita em cima de mim, acordo e ela tá me olhando”, conta. E foi assim com o desaparecimento de Fred e a usurpação de seu posto pela “grudenta” Magali que a casa de Rafaela ganhou de vez ares femininos. Dúvidas, última despedida e por fim a realidade Não se lembra com exatidão a data na qual descobriu estar grávida, sabe somente que foi antes de setembro e “no meio de agosto”. A mãe da Nalu, apelido carinhoso pelo qual chama a filha, afirma ser uma pessoa “péssima com números”. Desconfiança foi o sentimento que levou Rafaela a fazer o teste que deu uma resposta positiva à sua maior dúvida. “Achei que estava de dois meses e meio porque fiquei com o pai dela duas vezes e eu engravidei na primeira, mas achei que tinha sido na segunda”, esclarece. A natureza e método científico que definem as características de um exame de gravidez foram eficientes e precisos para sanar a suspeita de Rafaela. No entanto, o resultado não marcou o fim de um questionamento, mas sim o início de diversos outros. Essas questões carregadas de complexidade e sentimentos tão humanos já não seriam mais resolvidas pelo positivo ou negativo da ciência. Rafaela relata que na época ela e o pai da criança consideraram abortar. “Eu tomei o remédio e graças a Deus ele era placebo”, diz. “Eu não teria resistido, eu teria hemorragia in56


terna porque tava quase de seis meses”, ela prossegue e destaca que após o ocorrido tirou uma semana para ponderar o assunto. Para absorver os últimos acontecimentos, pensar no próximo passo e abstrair a evidente mudança de vida que ocorreria nos próximos meses, viajou para São Paulo. Lá, a quase mil quilômetros de distância de Campo Grande, deu o último adeus pra tudo que sabia sobre si e seus planos. “Foi meu último final de semana de liberdade sem contar pra minha mãe, pai e família”, declara. Segundo ela, tudo mudaria quando revelasse para eles a gravidez não planejada. “A partir do momento que eu contasse para eles ia ser real, real mesmo. Minha mãe ia postar na internet e todo mundo ia ficar sabendo aí viraria aquela coisa gigantesca”, pontua. Com ambos os familiares em Rondônia, o pai em Vilhena e a mãe em Porto Velho, Rafaela vivia na cidade sul-mato-grossense somente com o irmão, portanto, a notícia cruzaria o país através de uma ligação. Apenas uma e não duas, pois ela admite que não teve coragem de falar diretamente com o pai, assim coube a mãe repassar o recado. Em meio à lágrimas e soluços, Rafaela ligou para a mãe e sentiu de vez a “realidade da situação”. Ela define assim o momento, dando ênfase na palavra “realidade”, já que foi naquele telefonema aflito que caiu em si e viu que não havia mais para onde fugir. “Comecei a ligar e chorar. Porque acho que foi o momento que tipo assim…. antes eu pensava que poderia fazer alguma coisa. Mas, a partir dali não tinha mais jeito. Ai eu chorei, chorei, chorei, foi o choro da realidade”, relembra. O riso foi a primeira reação que a avó materna da Analua exprimiu ao ouvir o “tô grávida” da filha. Em seguida a tranquilizou e garantiu que com o pai dela, se viraria. Reação oposta teve o avô materno ao ser comunicado sobre a novidade. “Mandei ela arranjar um emprego e não uma barriga”, 57


exclamou ele naquele dia ao receber pela ex-mulher a notícia que a filha estava gestante. Rafaela pediu para que o pai da Nalu também informasse sua família sobre a gestação, todavia isso não aconteceu de imediato. De acordo com ela, passaram-se meses e ele ainda não havia comunicado ninguém. “Eu deixei ele ter o momento dele até a hora que não podia mais. Ai falei: Não, não dá, você tem uma semana pra contar pra sua família se não eu vou”, recorda. A maquiadora lembra que o diálogo aconteceu no final de outubro, no entanto, somente em dezembro ele tocou no assunto com a mãe. Acompanhada pelos pais e a madrasta que vieram de Rondônia, todos seguiram até a casa do rapaz para finalmente informar a avó paterna da criança. Diante da situação, Rafaela diz ter sentido constrangimento. “Eu fiquei parecendo um bicho, aqueles avestruz, queria me enfiar dentro de um buraco”, descreve. Nessa hora, a mulher de pele clara e cabelos pretos retrata a situação, ali sentada na cadeira infantil, abaixa a cabeça até os pés para imitar a ave. “Não era por falta de coragem, era por vergonha da situação de ter que ir lá e contar. Tipo, a pessoa ter sido tão infantil ao ponto de não contar para a mãe”, desabafa. Posteriormente entendeu o porquê dele ter sido “infantil” em não ter contado pessoalmente para a mãe. “Ele achava que não era dele”, exclama. Na frente de casa perante a três mulheres desconhecidas, a avó paterna, Lene, ficou emocionada ao notar um detalhe importante em uma delas. “Ela olhou minha barriga e os olhos dela encheram de lágrimas porque ela já sabia exatamente o que estava acontecendo”, relembra Rafaela. A partir dali, o apoio que não encontrou de imediato no filho, encontrou na mãe do mesmo. 58


Nascimento, semelhanças e aprendizados “Analua e é junto viu?!”, respondeu na maternidade quando perguntaram o nome da recém-nascida. A ideia inicial era colocar somente “Lua”, porém a família disse que a menina poderia sofrer bullying futuramente e ela acabou mudando de ideia. “É Analua tudo junto pra ninguém chamar de Ana. Aí eu chamo ela de Nalu”, explica Rafaela quando pergunto se foi ela que escolheu o nome da criança. Nascida no mês de fevereiro a menina é aquariana igual o pai, a coincidência astrológica é só mais uma das coisas que têm em comum. Após um mês de vida se conheceram, no Baraúna, quando Rafaela levou a bebê para o aniversário de um conhecido. “A Analua tava no colo do meu irmão quando ele viu ela... eu acho assim que ele travou”, detalha. Depois de ver a menina, cumprimentar os presentes, seguiu para outro canto do local. Lá, conversavam com ele e dele não se ouvia nenhuma resposta. O silêncio dele naquela ocasião pode ser justificado por diversas razões, por exemplo, talvez o assunto da roda não estava interessante, talvez ele não tinha nada de relevante pra dizer ou talvez pensava na menina que tinha acabado de ver. É na última possibilidade que Rafaela acredita e defende o porquê. “Ele viu ela, o nariz dela é igualzinho o dele, ela é a cara dele”, afirma. Depois do primeiro contato, ambos voltaram a se falar, contudo o tema era sempre sobre a filha, aliás esse permanece sendo “estritamente” o único assunto entre os dois até hoje. Rafaela recorda como foi naquela época inserir pouco a pouco o pai na rotina das duas. “Depois de um mês que ele conheceu ela, comecei a chamar ele pra fazer tudo”, revela. Ao ver dela, ele ficou “balançado” quando conheceu a Analua. 59


Atualmente, a mãe garante que pai e filha compartilham um vínculo amoroso. “Ela tem uma relação tão boa com ele que quando o carro chega aqui eu abro a porta e ela: Não, eu vou voltar com meu pai. Às vezes ela chora na hora de voltar, mas eu entendo porque lá é casa de vó, casa da bisa, sempre tá cheio de gente”, fala. Para confortar a menina de três anos e meio, diz que sempre explica o porquê de ocasionalmente ela estar só com a mãe ou só com o pai. “Eu converso pra ver se ela realmente entende que tem duas casas. Eu falo assim: Cê sabe que quando você tá aqui o papai gosta muito de você, mas é que você tem tempo comigo e com o papai e é assim que é”, narra. Os primeiros meses de vida foram para a mãe um ciclo marcado de descobertas. Descobertas que surgiram de dificuldades e da necessidade de apreender e se moldar ao novo cotidiano. Dessa maneira, virou malabarista, pesquisadora e pouco a pouco desvendou os diferentes motivos que causavam o choro da filha, além disso descobriu com o tempo a utilidade dos presentes ganhos no chá de bebê. Resistiu o que pôde para não perder a pouca privacidade que tinha, mas depois de dois meses acabou abrindo mão disso também. “Imagina cê ter uma criança e não poder ir no banheiro fazer xixi?”, indaga. “Não gostava de levar ela comigo no banheiro porque é anti-higiênico. Até os dois meses segurei, mas teve um momento que falei: Não, vamo! Aí comecei a levar ela no banheiro, fazia xixi com ela no colo, tomava banho com ela junto”, comenta. Foi nesse momento que Rafaela aprendeu a usar uma mão só. “Eu tomava banho com ela assim”, nessa hora mostra que com um braço segurava a Analua e com a mão esquerda esfregava a cabeça. “Cê vira malabarista, muito malabarista, você se lava com uma mão só porque você perdeu a outra”, alega. 60


Devido ao receio de ser julgada por não saber algumas coisas, Rafaela utilizou as ferramentas que tinha para tirar dúvidas corriqueiras sobre o universo infantil. “No início com a Analua eu utilizava muito o Google. Pesquisava as coisas mais bestas, mais idiotas porque me sentia com muita vergonha de perguntar pra minha mãe e ela se sentir falha por não ter repassado o ‘instinto materno’. Então eu pesquisava muito para descobrir as coisas”, pontua. Com o tempo percebeu que normalmente somente três fatores implicam o choro dos bebês: Fome, sono e “sujeira”. “Ah não, hoje não, é que naquela época era tudo muito novo, acho que agora tô mais acostumada a lidar com outra pessoa”, responde quando questiono se ela ainda costuma fazer as pesquisas na internet. Há determinados momentos onde são permitidos um ensaio breve, uma preparação ou um reconhecimento daquilo que será enfrentado. Porém, saber antes de viver não é de fato saber. Assim, existem algumas coisas na vida que só se tornam aprendizados verdadeiros depois da experiência empírica. É possível ensaiar para uma entrevista de emprego, mas isso não garante a contratação na empresa, o jogador pode fazer o reconhecimento do gramado onde irá jogar e mesmo assim isso não assegura a vitória do time, uma mulher pode estar ciente que daqui a meses dará à luz, entretanto isso não faz dela alguém pronta para a maternidade. Rafaela ainda nem tinha visto o rosto da filha, ainda assim, meses antes do parto previu que na hora certa aprenderia o que fosse necessário para criá-la. “Depois do chá de bebê eu olhei e falei: Pra que serve metade dessas coisas?! Eu não sabia e perguntavam: Pra quê que serve isso? Eu falava: Não sei, vou descobrir, na hora que precisar eu descubro. Foi exatamente isso, na hora que precisou, descobri”, fala. 61


Julgamentos, maternidade solo e uma autoanálise Gestação, parto, pós-parto, a maquiadora seguiu as recomendações médicas de todas essas fases, por isso, abriu mão de costumes e deixou de lado o estilo de vida que levava antes da gravidez. Quando recuperou parcialmente o direito de retomar antigos hábitos tudo ganhou uma perspectiva de novidade e o que para muitos pode ser considerado banal, para ela foi significativo. “Quando eu fui no mercado, parecia que eu tava… vendo pessoas”, diz com uma expressão de quem ficou maravilhada com o momento. “Primeira balada? Nossa senhora!”, discorre de forma vibrante. “Eu assim tomei duas cervejas e fiquei...”, ela imita como foi o instante, dança sem coordenação, jogando o corpo de um lado para o outro. “Eu parecia um boneco assim … meu Deus!”, ri. Conseguiu recuperar aquilo que estava ao seu alcance e, ainda que tentasse outras, já não foram mais possíveis. Compareceu a diversas entrevistas, processos seletivos, mudou até a cor do cabelo para se encaixar nos “padrões” do mercado de trabalho. Ocupações diferentes, empregadores diferentes, dinâmicas diferentes e no fim sempre o mesmo desfecho. O status de mãe solo não agradava quem deveria assinar a carteira. “Nos dois primeiros anos da Analua tentei arrumar emprego, toda vez perguntavam: Ah, você é mãe? Mas você tem um companheiro? Você já via na cara, era palpável a feição que a pessoa fazia, você não iria para um próxima etapa”, desabafa. Ao perceber que por mais que procurasse não lhe dariam a oportunidade de trabalhar se arranjou da forma que podia para sustentar a casa, a filha e a si mesma. Com o dinheiro que recebeu do seguro maternidade e o precatório do pai, resolveu inves62


tir em algo que gostava e na qual já tinha certa vocação. “Sempre tive aptidão com maquiagem, sempre gostei. Aí eu paguei o curso, sorte que paguei um curso barato na época”, ressalta. Depois do investimento, começou a trabalhar na área, porém não se limitou somente a isso. Participa de freelas em bares, entregando panfletos e diz realizar o que pode para ganhar dinheiro. “Qualquer coisa que pague e não tire minha dignidade eu tô fazendo”, comenta. O preconceito vivenciado pelas mães solos ocorre de todos os lados, parte de conhecidos e desconhecidos. Não importa o cenário, a situação, a hora ou lugar, o julgamento sempre acontece. Por vezes ele é proferido através de vozes que se disfarçam atrás de tons macios e cordiais, mas nem sempre quem diz tenta disfarçar o que pensa. Desse modo, algumas palavras carregam o peso da indelicadeza, rispidez e ignorância. “Parece que as pessoas insistem em julgar o fato de você ser mãe solo, por você estar fazendo isso sozinha só que as pessoas nunca pensam em como é solitário, como é complicado abdicar de tudo sozinha e ainda vem mais todo esse julgamento”, lamenta. “Até hoje eu escuto da minha família, falando aquela frase: Ué, quem mandou? Faz e não sabe que engravida?”, destaca. A discriminação, no entanto, não acontece só através de diálogos e sentenças, mas também por ações como o simples e natural ato de olhar. Esses olhares, Rafaela já sentiu diversas vezes, encarou por diferentes olhos, íris e reflexos. Segundo ela, o olhar de pena com julgamento é o que mais dói. Devido ao visual mais despojado, as diversas tatuagens como o Meowth, conhecido pela franquia Pokémon, Rafaela não aparenta a idade de uma mulher já adulta. Em razão disso, estranhos já acreditaram que ela fosse uma mãe adolescente. “Já aconteceu de eu estar no ponto de ônibus com a Analua e a pessoa: Ah é a sua irmã? e eu: Não, minha filha. Na hora você 63


vê dentro dos olhos da pessoa aquele olhar de pena”, acentua. Ela afirma que nesses episódios, ao revelar a idade, o olhar de piedade some e no lugar dele resta o de julgamento. “Você é casada? E o pai da criança? Cadê seu marido?”, essas são as perguntas que toda mãe solo já ouviu. As indagações ocorrem no dia a dia, quando levam os filhos ao médico, shopping, parque, mercado, escola ou quando simplesmente estão andando na rua ou no transporte público. Ela já passou por esses interrogatórios diversas vezes, admite que já deixou de falar a verdade só para evitar que o assunto se prolongasse. “Já teve vezes de eu mentir na rua e falar que sou casada pra eu não ter… pra eu não precisar ter um debate com uma pessoa totalmente desconhecida”, argumenta. Reforça que faz isso para preservar a própria saúde mental. “A gente acaba se desgastando mentalmente tendo esse tipo de diálogo com pessoas desconhecidas”, atesta. Embora, em certas ocasiões decida abstrair as perguntas invasivas, ela salienta que na presença da menina assume uma postura firme quando é insultada. “Eu acho que isso é um exemplo pra ela de que as pessoas não podem nos ofender gratuitamente. A pessoa não sabe se sou solo porque meu ex me batia extremamente ou se o cara literalmente morreu ou me abandonou. A pessoa não sabe qual é a sua história e tá te julgando sem ao menos te conhecer, então assim o que tenho que fazer é responder pra mostrar pra ela que nunca é aceitável ter uma ofensa gratuita”, pontua. Rafaela nunca namorou o pai da Analua, não se separou, não ficou viúva, a gravidez sempre trouxe a certeza de que seriam só ela e a filha. Talvez nunca tenha almejado a maternidade, menos ainda a solo, mas reconhece e defende o papel de ser mais uma mãe solo entre milhões. “Quando alguém da minha família falava que eu era mãe 64


solteira, eu corrigia, porque hoje em dia solo não é solteira. Tudo bem você usar tipo: Aquela mãe está solteira e não mãe solteira. Mas, assim desde o início eu me identifiquei”, declara. Mesmo que não seja a única mãe solo da família, Rafaela é a primeira a “combater” a estigmatização direcionada contra o grupo. “A minha tia nunca respondeu, as outras pessoas solo que conheci nunca responderam e aceitaram até disseminavam o mesmo preconceito. Então, acho que o que tá mudando hoje em dia é que a gente tá revidando”, reflete. Do âmago, em cada parte de si, preenchendo-a por completo de dentro pra fora e de fora pra dentro, as modificações aconteceram de forma gradual, pouco a pouco, a cada novo mês de vida da Analua. A maternidade solo trouxe um profundo processo de ressignificação. Rafaela já não era a mesma, jamais voltaria a ser a mesma que era antes da filha. Porém, certas etapas dessa transformação não vieram e não aconteceram de maneira afável. A solidão foi uma companhia indesejada, constante e permanente nas passagens dos dias vividos por ela. “Ser mãe solo é muito solitário, principalmente quando se mora sozinha é muito solitário, muito mesmo, principalmente no início. Você fica o dia inteiro com uma criança e no final do dia a criança dorme e só fica você. É um momento solitário, eu pelo menos sinto”, confidência. Ao decorrer dos dias sós, refletiu sobre o que sentia e vivia, pensava no passado e no tempo presente, no fim sem ter a quem recorrer fez uma autoanálise. “Eu penso muito sobre o que tô sentindo, por quê tô sentindo isso e tento analisar os sentimentos. Acho que uma boa forma de você se autoanalisar”, observa. Nas conclusões que tirava, recordou de outras amigas mães e questionou que emoções a maternidade solo causavam a elas. “Eu ficava: Será que toda 65


mãe solo se sente assim? Aí pensava: Será que toda amiga minha se sentia assim?”, conta. Ao sentir na pele toda a bagagem de ser uma mãe solo, reavaliou atitudes que a Rafaela de antes tomou. “Eu comecei a ver que quando minhas amigas tiveram filho eu dava espaço, eu me afastava, mas nunca cheguei a perguntar se a pessoa queria o afastamento. Eu mudava minha reação com elas, mudava meu tratamento com elas. Aí percebi que na verdade as minhas amigas que se afastaram de mim estavam fazendo o mesmo que eu fiz”, conclui. O afastamento dos amigos, as falhas, as ideologias nas quais acreditava, a pessoa que era antes, todos esses fatores e muitos outros foram colocados por ela na balança. “Você muda muito, muita gente sai da sua vida e se afasta. Param de te chamar para sair, fazer as coisas, param simplesmente de te introduzir. Fiquei pensando nisso durante muito tempo e eu fiquei… cara eu fui uma feminista muito falha, fui uma mulher muito falha com outras mulheres antes da Analua. Então, acho que isso (maternidade) me fez melhor”, constata. Rafaela reconhece que todos os resgates do passado no tempo presente fizeram com que ela evoluísse. Não poderia voltar atrás e reparar certas ações. Logo, procurou se resolver não só consigo mesma, mas com os outros também. “Pedi muitas desculpas para muitas pessoas do meu passado de muito tempo atrás. Tipo: Desculpa por ter sido assim. As pessoas acharam que eu tava doida, talvez e não deixei de estar, mas é que muda, muda muito e eu acho que é ótimo”, frisa. A maternidade, na visão dela, trouxe modificações abruptas. “É uma mudança muito: Pá! Mas te faz evoluir”, afirma. Ainda que tenha sido difícil viver e sentir o impacto dessas transformações que a vida como mãe solo proporcionou, Rafaela garante que hoje é alguém melhor. 66


“Eu sou uma pessoa muito mais empática hoje em dia, muito mais de conversar calmamente pensando no lado dela e sem julgamentos. Sou mais de ensinar, a pessoa tá precisando de tal coisa, eu tento ensinar e ajudar”, diz.

Rede de apoio, mitos e preciosidade No início da jornada como mãe contou a princípio somente com a empatia de duas mulheres, sendo elas a mãe, Sandra, e a avó paterna da Nalu, Lene que procuraram auxiliar da forma como podiam. Em meio ao processo para tratar um câncer de mama, Sandra veio para Campo Grande ajudar a filha e a neta. “Ela tentava ir duas vezes na semana e fazia comida pra mim, deixava bem claro que não era pro meu irmão tocar naquela comida, porque se ele comesse não ia ter como eu fazer. A Analua demandava (tempo), tem criança recém-nascida que é calma a Analua chorava o tempo todo se eu não tava perto”, comenta. Devido a quimioterapia e a radioterapia passava por um momento delicado no combate à doença. Sentia dores físicas, algumas regiões do corpo estavam com queimaduras e sua força era limitada. Mesmo com essas restrições, Rafaela reforça que a mãe fez o que estava ao seu alcance para ampará-la. “Nessa época nem tinha estilingue quem dera tivesse, então eu tinha que cozinhar com ela no braço e com o outro no fogão. Minha mãe tentava ir lá me ajudar e tentou o máximo que podia. Ela não podia mais que aquilo porque sentia muita dor por causa das queimaduras”, elucida. 67


Mesmo com a cooperação da mãe, expressa que não deixou de passar por muitas adversidades. “As outras pessoas têm a mãe perto ou a mãe que vem ajudar quando o bebê tá pequeno. Minha mãe não conseguia pegar a Analua, então quando ela estava lá não tinha como eu tomar banho, ir ao banheiro sozinha”, rememora. Desde que soube da gravidez, Lene procurou dar a assistência necessária para mulher que seria a mãe de sua neta. Quando recebeu a ligação que o tão esperando momento do parto havia chegado, largou tudo e correu para o hospital. Depois dos médicos, enfermeiras e é a claro a própria Rafaela, Lene foi uma das primeiras a conhecer a menininha que recém chegava à essa vida. “Ela (Lene) ficou comigo alguns dias na maternidade. Minha mãe não podia por causa da quimioterapia, assim nem entrar podia, então ela ajudou bastante. Quando a Analua nasceu ela tentava ir lá, levava compra pra mim, levava comida às vezes. Ela tentou ajudar, ajudou bastante porque entende como é”, diz Rafaela. Ressalta que a distância entre as casas atrapalhou Lene de ir com mais frequência onde ela morava. “Era difícil pra ela conseguir ir lá, mas acho que se fosse perto teria tentado ir mais vezes”, avalia. Pensar na própria trajetória a fez refletir que, apesar das semelhanças, existem várias diferenças que distinguem a realidade de cada mãe solo. Algumas mulheres executam diariamente sozinhas as tarefas que envolvem a criação de sua prole, outras, no entanto, contam com o apoio de familiares, amigos e conhecidos. Dentre as diferenças, Rafaela cita justamente o grupo de pessoas que frequentemente ou ocasionalmente prestam assistência à mãe. São denominados por ela como uma “rede de apoio”. 68


“São pessoas que estão em volta de você para te ajudar. Exemplo, conheço mães solos, não solos que tem amigas que ficam com o bebê quando precisa ou vai na casa e leva marmita. Pessoas que não são da família ou da família mesmo. A rede de apoio é onde você pode se apoiar”, desenvolve. Ao seu ver, com raras exceções, é muito difícil uma mãe solo ter para si uma rede de apoio e por vezes quem decide ajudar é alguém que passa ou já passou pela mesma situação. “É uma coisa que já analisei, socialmente quando você é mãe solo a rede de apoio é quase inexistente. As pessoas que são sua rede de apoio é porque querem realmente ser. A mãe do pai da Analua é minha rede de apoio porque ela passou pela mesma situação, ela sempre foi solo só que morava com a mãe e avó”, conta. Segundo ela, mulheres casadas contam mais com esse tipo de solidariedade. Em contrapartida, aquelas que não seguiram os “padrões” sociais devem viver a maternidade solo como uma espécie de penitência. A ausência de um grupo de assistência nessa circunstância é só mais uma evidência da intolerância contra a família monoparental feminina. “Quando você é mãe solo a rede de apoio é menor para quando você é casada porque querendo ou não, às vezes querendo sim, as pessoas olham para você como se você não merecesse descanso”, destaca. Uma mulher faz sexo sem a intenção de engravidar, uma mulher descobre que terá um bebê, uma mulher é abandonada, uma mulher arca sozinha com as responsabilidades de algo que foi feito a dois. Os outros esperam tudo da mãe, mas nada do pai, elas continuam sendo condenadas mesmo quando fazem o impossível pelos filhos, eles são louvados quando fazem o mínimo. A absolvição da mulher ocorre somente, perante a sociedade, quando a criança criada é um modelo de “cidadão de bem”. É claro, caso não seja, a culpa será sempre da mãe. E en69


quanto os filhos crescem, elas seguem sendo culpabilizadas, para elas nenhuma ajuda, para eles nenhuma cobrança. Rafaela disserta sobre a visão punitiva da sociedade com a mãe solo. “Eu não segui o padrão, simplesmente fiquei com o pai da Analua e tive um filho, então eu devo ser culpada por isso e sofrer esse trajeto sozinha. Só no futuro quando a criança se tornar um adulto muito bem sucedido aí sim a sua trajetória vai ser uma trajetória de luta, mas até você não ter uma criança super bem sucedida parece que a sociedade quer que você sofra por isso”, anuncia. Por serem cobradas, tratadas como transgressoras e receberem censuras através de palavras ou olhares, às vezes ambos, começam a acreditar naquilo que ouvem. “Acho que o maior fato da maternidade solo é a gente se culpar o tempo inteiro porque a sociedade nos culpa o tempo inteiro”, lamenta. A maternidade é cercada de mitos que criaram em torno da figura materna uma aura de super-heroína. Perfeita, incansável, sábia, justa, benevolente, forte e tantas outras designações são utilizadas para caracterizá-la. A jornada da heroína-mãe é um fardo para as mulheres que são exatamente as mesmas desde o dia que nasceram: humanas. Nesse contexto, Rafaela aborda como é a sensação de ter atrelada a maternidade a figura de alguém sobre-humano. “Todo mundo fala: Você é uma super mulher. Não, eu sou uma mulher exausta, sou uma mulher que tá cheia de tarefas, sou uma mulher que poderia ter dormido até mais tarde hoje, mas acordou cedo para fazer um freela. Poderia ter saído ontem, poderia ser uma mulher que não teve um filho e estar tipo de ressaca agora”, discursa. Longe de situações fictícias, romantizadas e idealizadas, através da trajetória particular enquanto mãe solo, ela aprendeu que é indispensável reconhecer e aceitar as próprias limitações. 70


“Você não precisa ser sempre perfeita, ser tudo perfeito, estar tudo lindo e maravilhoso. Vai ter momentos que você não vai conseguir e tudo bem você também não conseguir. Então ser mãe solo é fazer o que você pode e entender que você pode não fazer tudo”, pontua. Entendeu isso depois de meses, ao descobrir que as promessas feitas por terceiros de que tudo daria certo e ficaria bem após o nascimento eram carregadas de perspectivas irreais e vazias. A outra face do mito da maternidade insinua que as vivências da heroína ocorrerão em um cenário sublime, tudo ficará sempre bem, todos os finais levam para o desfecho feliz. “O maior erro que a sociedade faz com a gente é o amor materno que a partir do momento que o bebê nascer vai ser tudo lindo e maravilhoso, é mentira. Eu demorei meses pra sentir aquele sentimento real de amor que enche a gente, mas isso não significa que eu não gostava dela, eu gostava, mas é que tudo era muito complicado, muito difícil”, relata. Enfatiza que atualmente é alguém satisfeita com a maternidade. A afirmação não ocorre porque hoje as coisas deixaram de ser atribuladas ou fáceis de encarar. O cenário continua sendo tecido pelos fios da realidade. Existem momentos bons e ruins, partes felizes e tristes, momentos perfeitos e imperfeitos. Longe de fábulas e contos para dormir, Rafaela define a maternidade com suas próprias palavras, palavras que fogem de qualquer alusão fantasiosa. “A maternidade faz sua vida virar de cabeça para baixo e na verdade você descobre que a vida é certa de cabeça para baixo e a gente que tá errada. É mais ou menos isso, sou péssima em analogias”, diz em tom bem-humorado. Quase duas horas de entrevista, a tarde passou por nós, o feijão que ela fazia continuava cozinhando no fogão. Já havia 71


feito quase todas as perguntas elaboradas e outras que surgiram no momento, Rafaela articulou assuntos não só sobre a maternidade. Explicou como fez cada uma das seis tatuagens, contou algumas das histórias por trás delas, disse que adorava a vista da árvore próxima à sua casa na época da seca, falou sobre encontros que teve e afins. Pouco a pouco pude saber um pouquinho por trás da mulher com olhos verdes expressivos. Da Analua só vi alguns dos seus vestígios deixados pela casa, seus rabiscos de giz verde na porta principal, a bola de basquete jogada no chão, o lobo cinza e branco, os carrinhos azuis. Além da coelha rosa com laço vermelho na orelha e vestido da mesma cor. Não cheguei a conhecer a Nalu, mas pude saber um pouco sobre o imenso significado que tem para Rafaela. Quando pedi para ver uma foto, ela imediatamente respondeu de forma animada que sim. A menininha branquinha tem os cabelos cacheados e claros, segundo a mãe “é um castanho que na verdade às vezes puxa pro loiro e às vezes puxa pro acobreado”. Analua sorri na foto, Rafaela sorri ao mostrar a próxima fotografia e falar que a filha é “bem moleca”. São quase 17h30, ali perto, na Orla, grupos de amigos e familiares passeiam, fazem exercícios, tomam tereré, levam os animais de estimação para passear. Ciclistas sobem e descem a ciclovia com seus sinalizadores vermelhos, o comércio local se prepara para atender os clientes noturnos. A cidade pouco a pouco é invadida não mais pelo clarão do dia, mas pelas luzes dos faróis de carros, motos e ônibus. Os postes começam a acender as lâmpadas para guiar os caminhos daqueles que retornam e daqueles que partem. “Rafaela o que a Analua significa pra você?” Digo que a indagação pode ter um tom sentimental, meio clichê, mas segun72


do ela não importa, diz ter uma resposta pronta porque sempre pensou na questão. “Ela é a coisa mais preciosa no sentido de pra mim sentimentalmente falando e no sentido dela ter me tornado também alguém mais preciosa. Eu acho que é um espelho, então é uma coisa que eu olho e falo: Meu Deus do céu, toda aquela coisa ali fui eu que fiz e sou eu que estou criando. A toda e qualquer coisa que ela faz de positivo e exemplar de uma pessoa boa, penso que tem uma grande parte de mim ali, então isso também me torna uma pessoa boa. É basicamente isso, ela é uma preciosidade, uma estrelinha”, responde de maneira afetuosa, sorri, os olhos dela parecem brilhar como estrelas também. Na calçada da rua dela, conversamos algumas banalidades, observo mais uma vez a vista da árvore que ela mencionou. Na direção oposta, distante, no alto de um prédio, a Arara-Vermelha pintada por Clair, observa de lado duas recém-conhecidas se despedindo.

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VOCÊ SERÁ MÃE SOLO Na região leste da cidade, em um complexo residencial com “Castello” no nome, sentada no sofá, Andrezza Alves termina sua fala, faz uma pequena pausa, após um suspiro ela ri. Ao lado dela, com as perninhas rechonchudas dobradas, está Elisa Helena. Sem sapatos ou chinelos ela parece estar confortável, vestindo uma blusa fresca de mangas curtas, Elisa nem precisa de shorts ou saias, como uma boa bebê apenas as fraldas já lhe são suficientes dentro de casa. As orelhas são decoradas por brincos minúsculos que parecem duas bolinhas brilhantes e os cabelos ainda escassos na cabeça são de um tom escuro. Ela parece saber que é o assunto da conversa, por isso dá alguns longos gritinhos agudos e balbucia algo em uma linguagem que somente a mãe é capaz de entender. Seguida de uma curta e rápida interação, ambas acabam em um consenso. Os gritinhos, por hora, chegam ao fim.

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ANUNCIAÇÃO Era só mais uma segunda-feira típica, começo de semana, a vida cotidiana acontecia sem maiores alterações. Apesar de estar alguns dias com a menstruação atrasada não deu muita importância a situação, pois não era a primeira vez que algo assim sucedia. O corpo havia rejeitado antes alguns dos contraceptivos que tomava e as mudanças no ciclo eram um dos efeitos colaterais. Sem temor ou desconfiança, decidiu tirar a dúvida por um “desencargo de consciência”. Os laboratórios, empresas e fabricantes garantem uma precisão de 97% a 99,5% no resultado de um teste de gravidez de farmácia. Tanto para o positivo ou o negativo a margem de erro é quase nula, ainda assim, mesmo com essa mínima probabilidade de falha e depois de dois resultados iguais, decidiu fazer mais um. O terceiro e último seria o exame de sangue, esse garantia 99% de exatidão. Em abril de 2018, aquela tarde terminou com o resultado do laboratório. Os caracteres impressos naquele papel concederam o resultado final para o caso dela. Confirmado, positivo para gravidez. Pronto, oito letras, apenas elas bastaram para terem o poder de modificar aquele dia, mês, ano e vida. A resposta causou nela um “choque tremendo”, “um baque”, não conseguiu ir para a faculdade. Elisa estava longe de abrir os olhos pela primeira vez neste mundo, mas involuntariamente ocasionava os primeiros efeitos no cotidiano da mãe. Aquela não seria a última ausência que Andrezza teria nas aulas noturnas. Quando confirmou a gravidez anunciou a descoberta pouco a pouco para os mais próximos. A princípio compartilhou a notícia com uma amiga íntima que também é mãe, a seguir com 77


uma colega do curso e depois chegou a vez do irmão mais velho. “Ele ficou alguns dias sem falar comigo, foi mais impactante acredito pra ele do que para os meus pais”, comenta. Essa diferença nas reações dos familiares, de acordo com Andrezza, ocorreu porque não vivia mais com os pais e sim com o irmão. “Eu não morava mais com eles, então era aquela coisa: Essa responsabilidade não é minha. Então é lógico que eles ficaram decepcionados, mas aceitaram tranquilamente, aceitaram com mais facilidade que o meu irmão”, declara. Na região Sudeste do país, um homem é contatado por uma mulher, os dois já se conhecem de outros contextos e espaços. O motivo da procura foge do tema de conversas e assuntos anteriores, agora a conhecida tem algo mais sério a dizer. No limbo entre felicidade e infelicidade, os sentimentos emergiram primeiramente a partir do medo, ficou “assustado” ao saber que seria pai. Aceitou porque tanto ele quanto ela estavam cientes sobre a possibilidade de uma gravidez ao não usarem proteção. Dessa forma, questionamentos de como aquilo teria acontecido não foram feitos. “A reação dele não foi uma das melhores. Não recebeu como se fosse um pai mesmo que tivesse uma reação: Meu Deus eu vou ser pai que maravilha!” expõe. “Foi: Meu Deus eu vou ser pai o que a gente vai fazer? Mas em nenhum momento ele recusou, não ficou feliz, mas também não ficou triste”, relembra. Por morar em outro Estado, disse que procuraria alguém da própria família para prestar um suporte mais próximo, além de direcioná-la. Segundo ela, na época, percebeu que ele não demonstrou nenhum nervosismo. “Ele também não poderia para não me assustar”, acrescenta. E assim, depois de deixar todos cientes sobre a gestação, deu o primeiro passo rumo a um destino ambíguo. 78


DESVIO Aos 23 anos, de todos os planos que traçou para si, a experiência da maternidade sem dúvida não estava como prioridade. Antes disso, queria concluir o curso de Direito, passar no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), advogar, prestar um concurso público e seguir uma carreira na área policial. Além de sonhar com o sucesso profissional, Andrezza também ansiava por coisas simples como ver o mar pela primeira vez e assim finalmente realizar algo que desperta nela muita curiosidade. “Esse era meu objetivo antes né… não que tenha mudado, mas antes de ter minha filha esse era o momento de trabalhar, viajar, conhecer o Brasil”, comenta. Antes da gravidez, os dias eram divididos em três etapas e sem tempo para moleza, deslocava-se de um lugar para o outro contando com a mobilidade do transporte público. De manhã ia no estágio da administração pública, a tarde no escritório de advocacia e a noite nas aulas da graduação. Acordava cedo, mal ficava em casa, quando chegava era só uma questão de poucas horas para começar tudo outra vez. Somente os finais de semana eram ocupados com um pouco de lazer e distração. “Minha rotina era bem cheia, bem punk, trabalhando em dois lugares e estudando. Eu tinha uma vida social agitada, não tão agitada, como a de qualquer jovem saía em alguns finais de semana e outros não”, diz. A gestação não deixou a agenda de compromissos dela mais fácil ou leve, porém, dizer que continuava “punk” seria eufemismo. Enquanto uma nova vida crescia dentro dela, Andrezza continuava a frequentar as aulas, ler os livros, cumprir com as tarefas do trabalho, seguia subindo e descendo dos ônibus, andava pra lá e pra cá. “A gestação em si foi uma correria por conta do estágio, porque se eu saísse eu não teria 79


nenhum seguro desemprego nem uma licença maternidade. Então eu sabia que não teria renda, então insisti em trabalhar até as últimas semanas”, fala. O ditado “primeiro a obrigação e depois a diversão” não se aplicava a sua realidade, pelo contrário, deveres eram seguidos de mais deveres. Parou com as saídas de lazer, só trabalhava, dava duro e se esforçava. Tentava garantir que teria tudo acertado para se dedicar somente a criança. “Estava trabalhando para quitar as contas, depois que ela nascesse eu ia ficar sem trabalhar e eu ficaria até mais tranquila”, afirma. Segundo ela, os gastos após o nascimento de Elisa ficariam a cargo do pai já que ela estaria em casa de licença. Devido a esses e outros fatores, ao pensamento constante que só projetava a próxima tarefa, a urgência de resolver as pendências financeiras, Andrezza relata que não teve um momento para parar e assimilar a gravidez. “Eu não consegui filtrar, falar assim: Eu estou grávida, vou aproveitar minha barriga. Então eu não curti, teve um período que eu não curti gestar que foi bem difícil para mim”, confessa. Algumas mulheres conseguem vivenciar uma boa experiência na gestação, outras não, acontece. Várias dizem que é o melhor momento de todos, é lindo, poderoso, gratificante e coisas nessa vertente. Em contrapartida, outras já não compartilham da mesma perspectiva, tiveram outras vivências sobre o fato, são honestas e assumem não terem apreciado tanto. A maternidade não tem um ponto de vista absoluto, um não pode ser sobreposto a outro, assim como uma concepção não é menos significativa em detrimento de outra. Por isso, nenhuma dessas vivências tão diferentes entre si poderiam fazer exceção à alguma regra. As duas não existem no âmbito da maternidade, e insistir nisso, seria injusto com cada mãe, com cada mulher. No entanto, infelizmente, acontece. 80


Naquele tempo, a estudante sentia o cansaço e a “pira” de pensar como seria depois só ela e a filha. É incisiva, diz ter passado pela fase de forma dura. “Não foi aquela gestação linda e maravilhosa como todo mundo passa, pra mim foi bem seco no seco mesmo”, salienta. A gravidez é repleta de mitos e verdades, alimentos que podem ou não ser digeridos, a relação do formato da barriga com o sexo do bebê, hábitos para serem adotados e outros abandonados. Além desses, existem costumes como o chá de bebê, chá revelação, chá de bênçãos e outras celebrações características de cada cultura e sociedade. Perguntada sobre qual dessas fez, cita só uma. Por insistência de uma amiga, Andrezza realizou o ensaio fotográfico onde exibia a barriga no auge de suas 38 semanas de gestação. Não disse, entretanto, esse momento pode ter sido um dos únicos que escapou um pouco da rotina. “Das coisas que acontecem de praxe com a mulher grávida foi essas fotos. Fiz nas últimas porque uma amiga disse que ia pagar, falou que depois eu ia sentir falta da barriga. Eu fiz foi mais por insistência dela, como eu falei teve uma época que não curti gestar”, conta. Sem agravantes, riscos e complicações o período gestacional ocorreu bem fisicamente, contudo, o mesmo não pode ser dito sobre a saúde emocional dela. “Foi um pouco estável, não me sentia preparada, sentia que era eu e ela e que de alguma forma eu teria que me virar”, declara. E ela se virou, a jovem só parou com os estudos e o trabalho quando já “não aguentava mais”. Aconteceu na trigésima e oitava semana, duas antes de dar à luz a Elisa. “Eu trabalhei até as últimas, foi bem puxado, eu peguei minha licença antes porque já não aguentava mais o cansaço físico e emocional”, diz. A partir de abril de 2018, Andrezza viveu um roteiro inédito da própria história. O prólogo anunciando a gravidez a 81


tirou do arco da narrativa que vivia e o presente era o menor dos afetados por essa mudança brusca. Na verdade, o impacto dessa reviravolta ia repercutir e surtir maiores efeitos no futuro dela, pois era nele que estava contido tudo que mais almejava e sonhava, nele havia projetado uma parte de si. Esse desvio inicial se tornava cada vez mais palpável, assim como a barriga que crescia semana a semana, ele a aproximava para o capítulo inédito da maternidade. Como dito no começo, aos 23 anos, Andrezza não planejava nada disso, mesmo assim teve que se adaptar com a modificação da própria trajetória. Seu nome que ocupava listas de chamada, folhas de pagamento, contas e tantas outras coisas passaria também a integrar um novo espaço, a certidão de nascimento da filha. Há um antigo provérbio idiche que diz “O homem planeja e Deus ri”. Em dezembro de 2018, Elisa Helena nasceu e deu os primeiros risinhos neste mundo. Andrezza riu também, tendo planejado ou não, estava feliz.

retorno Maneki Neko, o gato japonês da sorte acena com uma das patas, a girafa de grandes dentes cobertos pelo aparelho ortodôntico sorri, o coelho não expressa saudação e segue sentado na minúscula cadeira de balanço. Talvez um sofá marrom simples nunca tenha sido ocupado por criaturas tão ilustres e diferentes entre si, a situação é atípica, coisas assim não são vistas todos os dias em qualquer canto. Permanecem no móvel, quietos, a música da formiguinha segue preenchendo o pequeno espaço da sala com sua melodia. “Fui ao mercado comprar café e a formiguinha subiu no 82


meu pé”, diz a letra. Ao decorrer dela, o atrevido inseto segue subindo na pessoa que só queria fazer as compras em paz. No fim da canção só um ser demonstra alegria e satisfação com o que acabou de ouvir. A garotinha está feliz, mas seus companheiros de sofá seguem inanimados na mesma expressão de sempre. 31 de agosto de 2019, Elisa já tem oito meses, no dia sete da semana seguinte comemora mais um. Andrezza hoje se sente uma “expert” em relação aos cuidados com a menina, contudo, levou um bom tempo para orgulhosamente se descrever assim e demonstrar essa autoconfiança. As primeiras semanas foram delicadas, sentia um milhão de sensações, tudo a flor da pele. Estava inserida em um universo totalmente distante e distinto do infantil e quando a aproximação aconteceu foi através da filha. “Eu não sofri essa rejeição em relação a ela, mas eu fiquei muito sensível emocionalmente de ficar pensando que eu não iria dar conta”, desabafa. Recebeu a alta, seguiu para casa com a nenê nos braços, um dia depois passou mal e regressou sozinha ao hospital. Diz ter sentido os sintomas causados pela cefaleia, tomou os remédios e ficou bem, logo não precisou mais voltar. A cirurgia da cesárea não teve nenhuma complicação e tudo foi “tranquilo”. O mesmo já não podia ser dito sobre seu emocional. “Eu não sei dar banho em um nenê”, “Eu não sei segurar um bebê”, “A amamentação dói”, foram alguns dos pensamentos que teve naquele tempo. Segundo ela, a adaptação para amamentar causou muitas dores, sendo esse um dos primeiros desafios com o qual teve que lidar. “No começo foi muito difícil porque dói, você tem que insistir e é aquilo tá doendo, seu filho tá chorando porque quer mamar e você tem que dar de mamar”, discorre. Elisa, recém-nascida chorava, Andrezza, recém-mãe, chorava junto. Duas pessoas que não sabiam o que acontecia, 83


precisavam de ajuda, uma dependia mais da outra e essa não sabia muito o que fazer. Só havia um único modo, uma única saída possível, fazer sem saber e assim ir aprendendo. Nos primeiros dias, a mãe de Andrezza veio de outro Estado para ajudar a filha, tentou repassar ao máximo o que entendia sobre recém-nascidos. “Eu tive uma semana para aprender tudo que eu tinha que aprender, eu aproveitei bastante”, fala. Com a partida da mãe, seguiu só na nova saga da maternidade, agora era tentar pôr em prática os conhecimentos que tinha absorvido na curta estadia dela. Pegou a manha para amamentar a filha, compreendeu como segurar, dar banho e vestir. Aprendeu “perfeitamente” os sinais emitidos pela nenê, algo perceptível quando interrompe a entrevista ao perceber a agitação da filha. Liga a tv acoplada na parede da sala, conecta na Netflix e seleciona o programa da “Galinha Pintadinha”, logo Elisa já está entretida e dando pulinhos sentada. Volta a comentar sobre esse processo de aprendizado, relata que o amadurecimento pessoal acompanha o crescimento da criança. “Você vai conhecendo seu filho na medida que ele vai crescendo e entende as necessidades. Você também acaba amadurecendo com isso”, enfatiza. Para quem acreditou que não daria conta, atualmente, se enxerga como uma boa mãe. Consegue conciliar os deveres da maternidade com as outras áreas da vida, claro, fazer isso não é fácil. Descobriu como é ceder uma parte de si e da sua vida em prol de outra, soube como é se colocar de lado e dar prioridade às pequenas e grandes coisas primordiais para o bem-estar da filha. “Hoje eu me sinto uma mãe orgulhosa, é puxado o trabalho de ser mãe é extremamente puxado. É um se doar, você deixa suas vontades, seu sono, a sua disposição. Na verdade você 84


tem que ter disposição para cuidar do seu nenê só que você deixa suas vontades de lado para atender ele”, explica. Decidiu que 2019 seria definitivo para terminar o ensino superior, dessa forma, passou a conciliar a maternidade solo, graduação e as tarefas do lar. “Esse é o ano que eu preciso concluir a faculdade pra ano que vem voltar a trabalhar”, pontua. A marca dos três meses de Elisa sinalizou o retorno ao ambiente acadêmico da mãe. A volta transcorreu de forma dramática, precisava regressar para a vida universitária e concluir os períodos finais, porém estava preocupada com a filha e com a forma como iria adaptar ela a nova rotina. “Eu voltei para a faculdade, mas foi difícil deixar ela”, atesta. Só que não demorou muito, com uma parte da antiga vida nos trilhos, Andrezza se acostumou novamente, estava satisfeita de voltar as aulas e ter contato com pessoas além dos muros do condomínio. “No começo foi uma pira, pensei com quem iria deixar ela pra estudar e isso durou uma semana. Eu precisava voltar pra faculdade, precisava voltar a ver pessoas, conversar, ter assuntos diferentes com elas”, exprime. No primeiro semestre do ano, ficava o dia todo cuidando da menina e a noite ia para a aula. Conta que acordava cedo, dormia mal, arrumava a casa, cuidava e interagia com a bebê. “É cansativo, se torna extremamente cansativo”, revela. No segundo semestre a dinâmica não sofreu grandes alterações, exceto com o acréscimo das aulas matinais. Agora, acorda cedo e deixa a Elisa com a babá, e segue para a faculdade. Já a tarde busca a filha e fica o resto do dia com ela. O irmão regressa do trabalho a noite e quando a irmã vai para a aula noturna ele fica com a sobrinha. “Fico com ela e faço o que tenho que fazer, mas da faculdade não dá tempo e faço por lá mesmo”, conta. “Em dezembro eu espero”, ela responde rindo ao ser 85


perguntada sobre a conclusão do curso. Conforme conta, terminar a faculdade é uma questão de “satisfação pessoal” para ela. Além disso, também seria uma forma de aliviar a rotina já que na sua percepção essa obrigação é uma das que mais “pesam” . Pretende ao final do ano prestar o exame da Ordem, espera passar, mas se a aprovação não vier desta vez “tudo bem”. O pensamento tranquilo não significa que essa conquista não teria importância agora. A questão é que absorveu muitas coisas nesta (ainda recente) experiência como mãe, sendo uma delas a de viver um dia por vez. “Uma coisa que a Elisa me ensinou é um passo de cada vez. Agora eu não posso querer abraçar o mundo pelas mãos porque não sou eu sozinha”, manifesta.

aceitação Andrezza é uma mulher de longos cabelos pretos, os fios não chegam a ser totalmente cacheados, porém dispõem de ondulações entre si que trazem volume ao seu penteado. Tem menos de um metro e sessenta e cinco de altura, dizer que ela é baixinha seria um equívoco, pois está dentro da média de estatura da mulher brasileira. As sobrancelhas são bem marcadas e arqueadas nas pontas, característica que Elisa deve ter puxado dela. O rosto com feições sutis e joviais não aparenta os 24 anos, parece mais jovem como se tivesse chegado aos 20 anos recentemente. Na entrevista, a jovem mãe realiza diversos resgates sobre si mesma, relembra como era a vida antes de Elisa, revela acontecimentos que a marcaram na gestação e depois do parto. Naquela tarde de sábado, Andrezza permitiu que uma estranha entrasse pela porta de seu apartamento e em uma parte da sua 86


vida. Desabafou, ponderou, afirmou, reviveu, refletiu e respondeu tantas questões, dentre tantas importantes, falou sobre a própria aceitação com o status da maternidade solo. Embora hoje se identifique e consiga se ver como uma mãe solo nem sempre existiu tal reconhecimento de sua parte. A gravidez, trouxe a certeza imediata e inquestionável de que seria mãe, no entanto, aceitar a condição de que seria solo levou quase toda gestação. A identificação só veio depois de muitas negativas, pensava que sua situação era diferente uma vez que contava com o amparo dele, ainda que de longe, e da família dele. “Eu tinha uma visão assim: Eu não sou mãe solo, minha filha tem um pai e o pai dela aceitou tranquilamente, a família dele me dá apoio, eu não sou mãe solo”, rememora. Diz que demorou para “cair a ficha” e caiu quando percebeu que independente do pai da Elisa ter apoiado a gravidez, no fim, era só ela por ela. “Teve uma parte da gestação que eu não tive apoio emocional dele, então eu fiquei muito sozinha. Acho que esse foi o estalo que me deu de falar: Olha, coloca o pé no chão, você é mãe solo, você será mãe solo”, lembra. Passou por todo um processo, define como uma “construção”, para compreender a situação e admitir a circunstância na qual estava. Segundo ela, durante determinado período da gestação buscou e realizou um acompanhamento psicológico que a ajudou a lidar com a negação e aceitar a própria realidade. “Você é mãe, você vai ser mãe solo, você também não precisa se preocupar e nem se desgastar com isso”, conta ter ouvido essa frase do psicólogo em uma das sessões. Não bastou, entretanto, ouvir do profissional, precisou dar uma bronca em si mesma, sentir o próprio choque de realidade. Aspirava progredir, ir em frente, tocar a vida e percebeu que não iria conseguir se não parasse de se enganar. “Chegou um de87


terminado momento da minha gestação que eu tive que falar: Para! Pensa! Dessa realidade que você quer, você não viver”, recorda. Ao conceber a criança, pode, finalmente compreender o que tentou trabalhar consigo mesma toda a gestação. Quando a nenê abriu os olhos pela primeira vez, Andrezza que viu tudo claramente. “Eu não quis enxergar que eu seria mãe solo, mas logo depois que ela nasceu eu falei: Ok né, é eu e ela, eu não posso insistir em uma coisa que eu estou imaginando na minha cabeça, sendo que a realidade é outra”, narra. Além dela, toda a família sabe e aceita que ela é uma mãe solo. De acordo com ela, não existe cobrança excessiva de grande parte dos familiares, acredita que isso se deve porque eles veem que ela está “dando conta”. De qualquer forma, afirma que também nunca deu espaço para comentários negativos a respeito da sua maternidade. Ao se identificar como mais uma integrante do grupo de mulheres que compõem a família monoparental feminina, Andrezza levanta certas pautas como a importância da união entre elas nesse meio. Essa unidade não seria para todas juntas fazerem uma revolução ou uma rebelião contra o meio, e sim para simplesmente partilharem as bagagens umas com as outras. “Deveria ter mais uma união dessas mulheres de você poder se encontrar, trocar experiências porque eu acredito que isso faz toda a diferença”, fala. Se ver e se identificar como uma mãe solo não significou necessariamente que a maternidade e os encargos trazidos por ela se tornaram menos complicados. Andrezza sabe das belezas e tristezas que a responsabilidade de criar um filho trazem e para ela isso é descrito como um desafio, mas é um desafio maior ainda justamente por ser somente ela a enfrentá-lo. “Desafio porque tudo é você sozinha, é sempre a mãe, não importa se tem tem tio, tia, avó olhando, sempre é a mãe”, diz. 88


Os desafios são diários, por vezes mínimos, por vezes maiores, no entanto, estão sempre ali. Surgem como uma sequência onde um é seguido pelo outro e assim por diante, as mulheres mães acabam se adaptando um a um desde o período gestacional. Quando a criança nasce, a mãe acaba se acostumando a dormir menos, a dar o peito mesmo doendo, a adiar por horas o próprio banho, sono ou o momento de comer algo. A casa vai se bagunçando, os pratos se multiplicam na pia, as roupas sujas aumentam na máquina, a cama fica por fazer e assim por diante. A mãe se coloca em escanteio, o filho, naturalmente, deve vir primeiro, ela em segundo, terceiro, quarto, quinto ou quando der. Na situação de adiar os próprios compromissos, Andrezza já perdeu algumas aulas e conta que a mais recente aconteceu por não ter com quem deixar Elisa. “Tem coisas que eu deixo de fazer porque é só eu e ela e eu não posso deixar ela sozinha. Ontem eu tinha aula e meu irmão está viajando, eu tinha aula e a babá não podia ficar com ela. Eu estava sem celular e não tinha como ir lá a pé às cinco da manhã e deixar ela na babá aí tive que ficar com ela”, explica. Por viver todas essas situações, diz que não são poucos os dias nos quais gostaria de ter uma “folga” para simplesmente descansar. “É duro você ficar sozinha, é duro sua filha chorar, você querer descansar e você não ter pra quem socorrer. Eu tenho meu irmão aqui, mas ele é tio, meu irmão tem os compromissos dele e eu não posso falar: Pega a Elisa porque eu preciso dormir. Não posso, então é eu e eu sozinha”, desabafa. Sem tempo para curtir a própria “preguiça”, algo que podia fazer antes da gravidez, ela acumula os afazeres, leva Elisa consigo para onde dá e com o pai longe, literalmente todas as responsabilidades que envolvem a menina são cumpridas por ela. Outra vez, o desafio surge, outra vez tem que vencê-lo. “É desafiador porque você faz tudo sozinha, você vai no pediatra 89


sozinha, você vai na consulta sozinha e as pessoas ainda não sabem lidar com as mães solos”, pontua. Como Andrezza afirma, muitos ainda não sabem lidar com as mães solo, assim essa é mais uma das adversidades que essas mulheres enfrentam nos espaços que frequentam. Define que esse é outro desafio a ser combatido: o preconceito.

censura Aqueles olhares sempre estavam lá, em todos os cantos, por todas as partes, olhares onipresentes que carregavam diversos significados. Direcionam seu foco para ela sem nenhuma justificativa plausível, aliás acreditam que não precisam de nenhuma para encará-la. A olham diretamente, pelo canto do olho, quando ela não está reparando, quando ela dá as costas, a encaram de modo contínuo e ainda que decidam parar é certo que outro par de olhos continuará o serviço. Existem muitas frases, poesias, reflexões, músicas e obras que divagam sobre os olhos, o olhar, o ver. A ciência o tratou e o explicou como um simples órgão do corpo humano, a arte buscou outro significado, um mais sensível, romântico e simbólico. A personagem Capitu, imortalizada por Machado de Assis na literatura brasileira como uma criatura com “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Mona Lisa, obra de Leonardo Da Vinci, fez especialistas e tantos outros questionarem e analisarem o significado do seu misterioso olhar. Além do mais, o próprio pintor chegou a dizer no século XIV que “Os olhos são a janela da alma e o espelho do mundo”. É possível identificar diversas emoções pelo olhar de alguém, é possível através deles comunicar algo sem proferir uma 90


só palavra, por eles também dá para compreender muito sobre uma pessoa. Se os olhos são mesmo a janela da alma e o espelho do mundo, Andrezza descobriu ao escancarar algumas delas algo não tão bonito como esperava. Por não ter se visto desde o princípio como uma mãe solo também não refletiu que estaria propensa a ser julgada por tal condição. Não estava pronta para os julgamentos, contudo, os outros estavam preparados para julgá-la, ainda que silenciosamente. No momento que começou a reparar nas represálias direcionadas a ela, por diversos pares de globos oculares, percebeu como elas eram gritantes. Ao frequentar os mesmos espaços que antes, porém agora na presença da filha, Andrezza vivenciou novos acontecimentos que não foram agradáveis de se passar. Acabou que as situações que eram atípicas se tornaram comuns e frequentes, por isso, com o tempo ela acabou se habituando mesmo sem querer e por fim evitando se importar. “Antes no começo isso me machucava muito de ver e falar: Poxa eu tô aqui sozinha com minha filha. Hoje não eu acho… que tipo foda-se sabe? Não vou ligar pra isso, tenho outras coisa pra me preocupar além do julgamento das pessoas”, declara. Tornou-se vítima do questionamento que toda mãe solo tem que ouvir não só uma, mas sim diversas vezes. A célebre questão que é proferida em distintos contextos, por diferentes pessoas, atingiu Andrezza também. “Sempre tem aquela pergunta: Ah cadê o pai da criança? Cadê seu marido? As pessoas ainda não sabem lidar”, fala. Impossível datar a primeira vez que escutou isso, qual reação teve, como se sentiu ou de que forma respondeu. É fato, que disparada pela primeira vez, a indagação voltou a surgir. Como quem desenvolve um reflexo, vez ou outra já tinha a resposta na ponta da língua e assim não precisava pensar tanto no 91


que ia dizer. É claro que, mesmo se tornando comum, não deixa de ser desconfortável ouvir esse tipo de pergunta. Além das interrogações a respeito do companheiro, marido, pai da menina, também começou a receber um tratamento distinto. Involuntariamente ou não, passaram a lidar com ela de outra forma. “As pessoas querendo ou não elas te tratam diferente. Por exemplo, em uma loja de sapato infantil, tá lá você e sua filha sozinha, chega uma mãe, um pai e uma criança, você vai perceber que as pessoas te tratam diferente, que te olham diferente”, conta. Em meio a tudo isso, relata a descoberta de que as demonstrações de empatia partiam mais de mulheres, ainda que desconhecidas, sabia que elas eram como ela. “Você tá no shopping caminhando com sua filha, a bolsa cai no chão e cê tá com sua filha no colo, você vai ver que quem vai te ajudar serão mulheres que são mães solo. Você sabe, eu acho que você acaba identificando a mulher que é mãe solo”, explica. Algumas mulheres casadas não manifestam muita complacência com outras como Andrezza. Acabam repetindo comportamentos excludentes, preconceituosos e carregados de desdém. A estudante relata já ter notado e passado por episódios assim, por isso afirma que aprendeu a distinguir mães como ela. “Eu acho que você acaba identificando a mulher que é mãe solo porque até as mulheres que têm maridos, que estão com marido e filho, te olham torto”, lamenta. Seria errôneo pensar que ações assim partem exclusivamente de desconhecidos. Às vezes ao seu lado, sem estar esperando, você ouve de alguém próximo o mesmo comentário que já escutou na rua, na loja, no ônibus, na internet. Talvez, esses sejam os que doem mais, justamente por não serem esperados. O efeito pode ser muito mais impactante quando quem diz também vive maternidade. 92


“A gente vê muito isso das próprias mães, igual tem a minha amiga que é casada e a filha dela tem dois anos. Essa amiga passa pelos mesmos perrengues de criar o filho e ela fala: Ah amiga, mas você sabia, você engravidou porque quis. Então, você escuta isso de uma mãe, mas sabe que a maternidade dela não é diferente porque ela também faz sozinha”, pontua. No imaginário popular, mães que criam seus filhos sozinhas estão em uma busca desenfreada e incessante por um parceiro. Elas precisam disso mais do que tudo no mundo, necessitam de um pai para o filho delas. “Cuidado rapaz, aquela mulher é mãe solteira, vai querer que você crie a criança”, alertam alguns. A frase pode ser proferida, elaborada ou contextualizada de outra forma, porém o significado e a moral da história é sempre igual. A mãe, procura por um pai, aquele homem pode ser a próxima “vítima” dela. Andrezza podia até estar ciente desse tipo de pensamento, mas não esperava ser alvo dele. “As pessoas sempre falam: É mãe solteira, qualquer pessoa que ela se aproximar é por interesse, é porque quer um pai pro seu filho. Eu nunca imaginei que iria passar por isso, é difícil e a gente nunca espera, mas eu imaginava que seria diferente”, comenta. Enfatiza que esse tipo de pensamento parte mais das mulheres. Aquelas que são comprometidas assumem uma postura quase hostil quando acompanhadas por seus cônjuges. Não precisam dizer nada, um olhar já basta. “A gente tá ali só eu e minha filha e tá uma mulher com marido e a criança se você dá uma olhadinha assim ela já te olha de cara feia, tipo assim: Ela quer um pai pra filha dela, tira o olho. Esse preconceito vem mais das mulheres, bem mais”, expõe. Muito além de espaços comuns, revela ter sentido no próprio ambiente acadêmico uma certa diferenciação no tratamento direcionado a ela em comparação às colegas que também 93


são mães. A única diferença entre elas? Andrezza não é casada. Ainda que a gestação, assim como a sua, não tenha sido planejada, o detalhe do status civil pesa a favor de um lado. “Pode ser igual a minha gravidez, foi uma gravidez inesperada dessa pessoa que namora ou é casada, a mesma coisa, mas as pessoas não veem assim: Ah as duas tiveram uma gravidez inesperada. Não! As pessoas já te olham assim… diferente”, afirma. Segundo ela, os colegas demonstram estarem mais abertos ou dispostos a manterem alguma conversa com elas. Andrezza alega que alguns de seus professores a compreendem, sabem da sua “caminhada” e reconhecem as dificuldades que ela enfrenta, por exemplo, a questão do pai de Elisa não morar no Mato Grosso do Sul. Uns tentam ajudá-la da forma que podem. Já outros, mantém o pensamento de “não tenho nada a ver, se vira”. “É o que eu falo, as pessoas mesmo que elas não deixem explícito pra você, você sente a indiferença de te tratarem, olharem e isso é de um todo”, conta. Desde 1988, com a Constituição Federal Brasileira, a família monoparental é reconhecida como um modelo familiar. Mesmo sabendo disso, existem aqueles que mantêm o ideal conservador que confere credibilidade somente ao arranjo familiar formado por uma mulher, um homem e uma criança. Sem citar nomes, expõe que um dos professores do seu curso detém essa noção de família. Por mais que nunca a tenha destratado por não corresponder a esse “padrão”, diz ter sentido um desapreço vindo dele. “Não que eu e minha filha não sejamos uma família, mas ele vê como uma família um pai, uma mãe e uma criança. Ele meio que… eu nunca senti um certo deboche dele, mas a gente percebe pelo tratamento de falar: Olha Andrezza infelizmente eu não posso deixar de te dar essa falta porque você não tem ninguém pra ficar com sua filha”, esclarece. 94


Por todas essas coisas, Andrezza descobriu com a maternidade solo um outro lado da vida em si. Um mundo à parte que censura quase que diariamente as mães que representam a família monoparental feminina. Os olhos que condenam, as falas que as culpabilizam, as mãos que não são estendidas mesmo quando é necessária uma ajuda. Por fim, ela define muito bem o que acontece, o que viveu e vive. “Há muito preconceito, muito julgamento e isso é muito desconfortável porque você sabe que as pessoas te olham julgando tipo: Tá lá mais uma que engravidou, foda-se”, exclama.

vínculo Quando a menina nasceu, tirou uma licença do serviço, entrou no ônibus e veio de São Paulo para Campo Grande. Não ficou nem uma semana, a dispensa não contemplava tantos dias. A vida dele, por assim dizer, seguiu no mesmo ritmo, não foi acordado de madrugada por nenhum choro infantil, não trocou fraldas, não deu de papinha, não embalou a neném para ela dormir ou qualquer coisa similar. “Eu acho que essa é a realidade da grande maioria porque a responsabilidade cai toda no colo da mãe”, fala. Não há uma relação afetiva entre ambos, os dois se mantêm por um vínculo comum, Elisa Helena. O relacionamento é delicado, não existe uma amizade ou harmonia e é meio que cada um na sua. “A nossa relação atualmente não é muito boa porque ele também tem alguns problemas pessoais, acho que isso também que torna muito difícil a nossa comunicação”, explica. Financeiramente cumpre com a sua parte, com o que foi combinado desde a época da gravidez e é isso. “Ele ajuda 95


financeiramente desde quando eu descobri que tava grávida, ele falou que iria ajudar e ainda ajuda”, diz. Entretanto, Andrezza não notou até o presente um verdadeiro e genuíno zelo paterno vindo dele. “Faz o papel de genitor, mas como qualquer outro cara que deixa uma mãe solo ali, é aquela pessoa desinteressada, não procura a filha, não tem interesse”, complementa. O substantivo masculino “genitor” tem como sinônimo outros dois substantivos masculinos: pai e progenitor. Ainda que próximos no seu significado, ocorre uma pequena distinção entre eles. “Pai” apresenta uma maior pluralidade de sinônimos, dentre eles: mentor, protetor, criador e defensor. Enquanto o significado de um é resumido como “indivíduo que gera; aquele que gerou um ou mais filhos biológicos” o outro tem duas definições, sendo uma idêntica a de genitor e a outra como “indivíduo em relação aos seus filhos, naturais ou adotivos”. Na perspectiva de Andrezza, “ele”, que não teve o nome citado em nenhum momento e foi colocado apenas como “pai da Elisa”, ainda não é de fato um pai. Na sua interpretação, ele age dessa forma, pois a filha ainda é bebê. “Como ele faz agora, ele não tem interesse, não por agora, acredito que ele tenha esse pensamento porque ela ainda é pequena. Ela em tese não sabe quem é o pai e eu acredito que seja por isso”, esclarece. Saiu do hospital com a filha, preocupada com seu estado de saúde, levou ela até lá alarmada. “Ela me passou um susto porque aprendeu a prender a respiração, aprendeu, simplesmente ela prendia e se debatia com as perninhas. Eu pegava ela e ficava desesperada”, relembra. No dia da emergência, notificações de mensagens dele não chegaram, as perguntas para saber o que havia passado, o que o médico disse, o resultado dos exames e se estava tudo bem não vieram. “Ele não perguntou: Que horas vocês saíram? 96


O que ela tem?”, relata. “Então ele não tem um certo interesse pela filha”, completa. Sente simultaneamente que exerce e cumpre dois papéis, não se acostuma, aceita. Parece incorporar o que diz um poema de Paulo Leminski “Não discuto com o destino o que pintar eu assino”. De fato, sem oposições, vive, segundo ela, como pai e mãe. Duas funções, delegações e o peso das responsabilidades multiplicados por dois, segue com essa somatória sobre seus ombros sem ter quem ajude a dividir ou subtrair. “Eu acabo me tornando mãe e pai e eu acabo não me acostumando com essa ideia, mas aceitando que é só eu e ela e que eu não posso contar emocionalmente com o pai dela. Ele realmente não quer exercer o papel dele de pai só o papel de genitor que né são duas coisas diferentes duas coisas completamente diferentes”, diz. Vínculos se criam de diversas maneiras, independem de laços de sangue ou compatibilidade genética. Desenvolvidos por uma troca, uma busca pelo outro, vínculos podem ser emocionais, físicos e mentais. Distante ou próximo é possível conceber e manter esse elo com alguém, assim como rompê-lo. As relações humanas são formadas por encontros que ocasionam vínculos e desencontros que põem fim aos mesmos. De vez em quando, alguns dos encontros não visam formar uma ligação exclusiva entre os dois sujeitos. Mas, a partir dos dois, nasce um terceiro, e bem, aí está o vínculo, pode ser mantido para a vida inteira ou não. Como escrito, para formá-los é necessário ir atrás, procurar ter notícias, dar atenção. De acordo com ela, essas características carecem no relacionamento do pai para com a filha. “Ele não demonstra ter interesse afetivo pela nenê, eu vejo que para ele é mais uma obrigação, uma despesa. Acho que eu tenho esse sentimento, esse pensamento, pelo simples 97


fato dele não procurar de mandar mensagem, de saber como ela está”, argumenta. Na percepção dela, ele tem um entendimento diferente sobre seu papel. Legalmente está tudo ok, contudo, esperava algo que a Constituição não pode garantir ou obrigar um pai a cumprir. “Então eu acho que ele fala assim: Ok, eu sou pai. Só isso, não tem aquele: Meu Deus eu sou pai, eu tenho uma filha eu preciso dar amor e carinho. Não, não é, realmente ele não faz questão”, acentua. Em contrapartida, a relação entre Andrezza e Elisa segue para um caminho diferente, tem outros tons, formatos e sensações. Mesmo que tivesse a chance de voltar atrás, a mãe diz que jamais tiraria a filha do seu caminho. “Ela mudou tudo na minha vida, apesar dos desafios, cansaços, só mudou para melhor”, fala. Realista, pontua que tudo isso não significa que a maternidade seja uma “coisa linda e romântica” como pregam. “Ela melhorou a minha vida em tudo, hoje eu acredito que tenho mais objetivo, mais foco, acho que hoje eu realmente tenho motivo de ir atrás e conquistar as coisas”, afirma. Vez ou outra a vida prega umas peças, dá umas rasteiras, desafia a sua capacidade de se manter firme. Na mesma frequência que proporciona novas oportunidades também as tiras, concede desejos e nega outros, adia etapas e antecipa outras. Diferente de anos antes, hoje, Andrezza detém uma nova postura e dá créditos a Elisa por isso. “Hoje eu me sinto mais responsável, mais pé no chão, mais firme, apesar da gente dar uns deslizes aí por conta dos desafios da vida. Como eu falei ser mãe solo é muito difícil, mas ela melhorou tudo na minha vida”, conclui.

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primeiros passos No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declara estado de pandemia devido ao novo coronavírus (Sars-Cov-2), responsável por causar a doença Covid-19. O mundo sente o impacto, a vida cotidiana sai de vez da normalidade, presidentes, primeiros-ministros, senadores e toda a classe política trabalham para tentar conter os efeitos do vírus em suas nações. Escolas e faculdades fecham, campeonatos de futebol, jogos olímpicos e outras disputas esportivas são adiadas. Artistas cancelam shows, turnês e apresentações, bares, restaurantes, shoppings e o comércio fecham as portas, as decisões são para evitar aglomerações de pessoas. O tráfego no trânsito é reduzido, empresas dispensam seus funcionários para fazer o serviço de casa, outras decidem pela demissão. Enquanto medidas de segurança são adotadas, os hospitais começam a receber cada vez mais pacientes com suspeita da doença. O vírus que teve como epicentro de contágio a cidade de Wuhan, na China, conseguiu se espalhar para todos os continentes, países e cidades. No Brasil, o primeiro caso confirmado acontece logo após o carnaval, em 26 de fevereiro. O paciente é um homem de 61 anos com histórico de viagem da Itália. Em março, os testes com resultados positivos para a doença crescem no país, por isso, governadores e prefeitos passam a editar decretos que instituem toques de recolher, fechamentos do comércio e o estabelecimento da quarentena. O último dia do mês fecha com 5.812 casos confirmados, ainda assim, o país está longe de vivenciar o pico da doença. Duas semanas depois, 11 de abril, 20.964 mil pessoas testam positivo para a covid-19. Outras 1.141 morrem após contrair o vírus. 99


É início de abril quando contato Andrezza, passaram-se oito meses desde a entrevista. Diferente da primeira vez, a conversa não é cara a cara e sim por um aplicativo de mensagens. Os tempos de pandemia não permitem encontros, reuniões, diálogos olho no olho, comprimentos ou despedidas, por essa razão a interação ocorreu a distância. A conversa não é longa, ocorre com alguns espaços de tempo entre perguntas e respostas, a vida continua corrida para ela. É madrugada quando envia a mensagem e pede desculpas porque aquele tinha sido o momento no qual finalmente teve “um tempinho” para sentar e mexer no telefone. Ao contrário do que pretendia, o término da graduação não ocorreu no fim de 2019, Andrezza conta que não conseguiu entregar o trabalho de conclusão do curso e faltando apenas isso, infelizmente, teve que trancar a faculdade. “Acabei me endividando”, justifica. Os planos de retomar os estudos foram reprogramados para 2021. Mesmo sem estar matriculada e ligada a instituição, conseguiu arranjar um estágio no início de 2020. Trabalhou duas semanas no escritório, dentre os motivos que influenciaram a saída do emprego, cita a falta de sincronia nos horários dela e da filha. O turno do trabalho não batia com o da escola onde planejava colocar a Elisa. Em relação ao pai da menina, sete meses correram desde a mais recente visita dele. Esteve em Campo Grande pela última vez no mês de setembro e agora não existe uma previsão de quando virá novamente. Algumas medidas de saúde para evitar a propagação do coronavírus incluem evitar viajar para outras cidades. De qualquer modo, ao ser perguntada sobre o relacionamento dele com a filha, Andrezza diz que continua a “mesma coisa” e não se aprofunda mais na resposta. Cumprindo o isolamento social, mãe e filha ficam dentro do apartamento e evitam inclusive sair para o espaço recreativo 100


que tem no complexo residencial. Estão bem, contudo a monotomia do confinamento afeta o humor da menina algumas vezes. “O apartamento é muito pequeno, então ela fica entediada com os próprios brinquedos, com o espaço”, conta. Comunica que estão se virando como podem no período da quarentena, seguindo à risca os avisos do Ministério da Saúde e a OMS, Andrezza fala que está evitando qualquer coisa que pode ocasionar o contágio da doença. Elisa já tem 1 ano e quatro meses, começou a dar os primeiros passos, pezinho por pezinho vai aprendendo a caminhar. Já que não pode sair, segue andando pelo espaço do apartamento mesmo. Calma Elisa, logo, logo você vai poder sair e quando menos esperar vai estar correndo lá fora.

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amadurecer Anos atrás, escrito em algum lugar, li uma frase cujo o significado era “Uma mulher se torna mãe assim que engravida, o homem se torna pai somente quando o bebê nasce”. Não acredito que tais palavras representam um consenso geral, alguns podem concordar e outros não. Além disso, fazendo uma breve reflexão, certos homens não se tornam pais nem antes, depois ou nunca para seus filhos. De qualquer forma, evoquei essa sentença porque ao iniciar a escrita deste capítulo me questionei se ela já se considerava ou se sentia uma mãe no período da gravidez. Deveria ter feito essa pergunta a ela e não a mim, infelizmente, percebi ter perdido uma boa oportunidade quando ela já tinha passado. Conheci e entrevistei Daiane Soares na segunda-feira do dia 2 de setembro de 2019. Grávida de 32 semanas, independente dela se ver como uma figura maternal ou não, sabe que para todos os efeitos é uma mãe solo. Desde agora, inicia sozinha as primeiras etapas e responsabilidades da maternidade. Embora o pai do bebê esteja presente a sua maneira, ela é quem arca com a maior parte dos ônus e bônus de esperar um filho. “Eu espero que comece a aparecer os frutos (risos). Hoje em dia tem sido mais diferente porque eu passo tudo sozinha. Se eu não tô no trabalho eu tô sozinha, então eu acho que tendo o 104


meu bebê as coisas ficam mais justificáveis, então eu acho que vai ficar melhor essa questão. Não que ele vá suprir ou ser meu bonequinho, mas pelo menos eu vou ter ele”, ela responde sobre suas expectativas em relação a maternidade solo. Com 25 anos, Daiane vive hoje uma gravidez não planejada. Aliás, segundo ela, o pensamento de “vou ter filhos no futuro” era algo que não almejava. Por isso, devido à brusca modificação na sua vida atual e consequentemente futura, vive no processo de todo dia ter que processar “coisas diferentes” e as superar. O nascimento do menino está marcado para ocorrer no dia 23 de outubro e enquanto a esperada hora não chega, comenta se sentir “tranquila”. A afirmativa acontece depois de alguns períodos onde essa sensação não era a que prevalecia. “Eu procurei terapia, ajuda psicológica, então eu acho que foi a melhor coisa que eu fiz na minha vida. Coloca isso!”, ela diz em tom bem-humorado. Embora fale de um jeito alegre, a princípio não aceitou a gravidez com o mesmo sentimento e quando percebeu que só aceitar não seria suficiente decidiu buscar um auxílio profissional. Passou e continua a passar por mudanças externas e internas. No entanto, agora tem alguém que a ajuda a “lidar” com esses acontecimentos. prosseguir Buscava fortalecer a carreira, a estabilidade financeira e aprimorar o lado profissional de sua vida. Dentre as alternativas que encontrou para o último item, iniciou a pós-graduação em Gestão de Projetos e estava perto de concluir quando teve que interromper a especialização. 105


Ocupando o cargo de coordenadora de projetos na empresa, dificilmente saia no horário certo do trabalho, o expediente variava e havia dias que entrava sete horas da manhã e partia somente dez horas da noite. Depois de três anos no emprego passou a assumir a parte “mais difícil do trabalho”. Ao seu ver a época não era a mais ideal para uma gravidez. Longe do ambiente empresarial e das obrigações de uma jovem coordenadora, a rotina era preenchida por momentos dedicados às atividades físicas como a prática da luta de Muay Thai e encontros de lazer com amigos. Por ter adquirido recentemente um apartamento próprio também se ocupava com os ajustes do novo lar. Era uma migrante que finalmente se deslocava para um espaço só seu e começava a obter os primeiros resultados positivos da vida adulta. Por certo que ao adquirir as chaves do apê estava segura que dividiria o espaço só consigo. Não intencionava dividir o ambiente com outros, no entanto, um novo e pequeno inquilino estava a caminho com data precisa de chegada. Daiane deixaria de morar sozinha dali há uns meses, quer dizer... Parando para pensar… Ela já não se encontrava mais tão sozinha. Curta é a linha temporal que marcou a descoberta da gravidez e o momento no qual ouviu do médico que tinha sofrido um aborto. O ter e o perder se apresentaram a ela em dias diferentes da semana e ambos tiveram sua relevância e impacto. Porém, antes de chegar na segunda parte é necessário relatar como sucedeu a primeira. Por hora, basta dizer que os dois verbos com significados similares, mas opostos compõem o início da imersão dela em uma nova fase. Pelo menos uma vez na vida alguma mulher sofreu com a paranoia que a fez pensar estar grávida, Daiane sabia bem como era a sensação. Diferente de outras vezes, a situação saiu do âmbito imaginativo para ocupar o real. “Faziam 106


dois dias que eu estava estressada demais, gritando por causa de trânsito e enjoando”, lembra. Comprou dois testes no intervalo de almoço, tomou um sorvete, voltou para o trabalho e em seguida cumpriu as instruções para realizar o exame. Aquilo que supostamente era um delírio caiu por terra em questão de “5 segundos” quando o resultado positivo despontou no objeto. “Vou fazer um agora vai dar negativo e amanhã eu confirmo”, ela admite ter tido o seguinte pensamento minutos antes de fazer o primeiro teste. Desespero, choro e uma fuga no meio do expediente foram as três reações protagonizadas por ela. Após inventar uma desculpa para a chefe, saiu do trabalho e foi atrás de um local que fizesse exame de sangue. Duas horas depois da primeira resposta positiva saiu mais uma. Era uma segunda-feira quando essa sequência de fatos ocorreu. A colega de trabalho, amigos próximos e o pai do bebê foram os únicos a ficarem cientes. Diz que ao anunciar a gravidez para o rapaz o mesmo não “aceitou bem” e nem “deu ideia para a ideia”. Passou alguns dias um pouco nervosa devido a recente novidade e sem estar totalmente recuperada do primeiro ocorrido acabou sendo acometida por um segundo. Na sexta-feira da mesma semana que soube que seria mãe sofreu um sangramento que a fez ir ao hospital na manhã de sábado. Segundo ela, o médico teve uma postura que não deixou espaço para falsas expectativas sobre seu caso. “Ele foi super desesperançoso, falou que a minha placenta estava igual um ovo mexido toda bagunçada”, conta. O profissional a dispensou e solicitou que dali há cinco dias ela realizasse outro ultrassom e o acompanhamento do hormônio produzido pela placenta durante a gestação, o hCG. “O médico disse que eu tinha perdido o bebê e falou para eu ficar em repouso”, relembra. 107


Daiane sentiu ter “surtado” ao ser informada sobre a perda da criança que recém-tinha descoberto que teria. “Foi bem difícil quando achei que tinha perdido, fiquei desesperada porque no fundo eu não queria perder”, fala. A mãe que ainda não sabia da gravidez ouviu da filha que havia sofrido um aborto. A jovem afirma que na época recebeu o apoio necessário dela e também de amigos próximos. O carnaval não foi vivido nos blocos, o glitter, as fantasias e as marchinhas ficaram longe dela. Permaneceu em “repouso absoluto” poupada de qualquer circunstância que pudesse trazer mais complicações. No entanto, não conseguiu ficar isenta das atividades da empresa, pois a mesma passava por uma mudança de local. A solução encontrada foi cumprir as demandas solicitadas de casa. No regresso ao hospital, o ultrassom solicitado pelo médico apontou que o bebê estava vivo apesar do episódio de sangramento e o diagnóstico inicial de aborto. A nova indicação sobre a saúde do feto a deixou “mais tranquila”. A ocasião foi crucial para que ela tivesse uma nova certeza e perspectiva sobre a gestação. Iria prosseguir independente de estar sozinha ou não. “Nesse momento eu aceitei e falei: Não, beleza, não sei como vai ser, mas eu vou dar um jeito. Se eu não tiver ninguém ou se ninguém quiser me apoiar, eu vou dar um jeito de ter esse filho”, revela. Antes de viajar para curtir o carnaval em outra cidade, o pai do bebê já sabia sobre o aborto, porém só ficou ciente que era um alarme falso ao voltar para Campo Grande. “Ele voltou e eu falei que estava tudo bem, mas ele não deu muita atenção não. Acho que ele não queria”, ela expressa a última frase no tom de chateação.

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esperar Entre as duas não existe um ponto em comum, seguem para lados contrários, apresentam saídas desiguais que traçam linhas diferentes para o futuro. Ambas as alternativas elaboradas por ela podem ser resumidas através de duas ações: permanecer e partir. Tem para si e o filho essas duas possibilidades que dependem de como as coisas irão transcorrer quando o menino nascer. Juntos, eles ficam ou vão e por hora só resta esperar. A resolução o tempo trará em breve. Dançam em conjunto, harmoniosos executam os movimentos com precisão, apoiados um no outro se cruzam, vão para cima, para baixo e às vezes se afastam. Na superfície lisa do prato, os talheres metálicos pouco a pouco colocam fim ao pedido trazido pelo garçom. Corta, mastiga e faz pausas a cada nova pergunta, responde por vezes de modo prolongado ou curto. Esclarece alguns termos de palavras que ainda desconheço o significado e conduz de jeitos variados todas as questões que surgem. Sentada na cadeira de madeira é séria, engraçada, falante, silenciosa e energética. As emoções vêm à tona constantemente de forma sutil, às traz nas entrelinhas e as coloca na mesa de frente para mim. Fala com aspecto incisivo, reflexivo, chateado, indignado, feliz e eventualmente com humor. Ri, faz uma graça e por vezes me vejo rindo com ela. O ambiente é leve e independente da delicadeza do assunto essa qualidade se perpetua. Apreciava o corpo que possuía e sempre cuidou para manter a aparência. Antes do Muay Thai praticou boxe durante alguns anos e também fazia exercícios na academia. A gestação chegou e alterou a admiração que mantinha por ele. “Eu gostava do meu corpo, então mudou, acabou, explodiu”, conclui aos risos. A mudança física é uma das diversas que encara neste novo ciclo. Impossibilitada de continuar praticando esportes e ativida109


des que exigiam grande esforço, Daiane deixou a autocobrança estética de lado. “Aí eu já despiroquei, falei: Ah quer saber? Eu não posso beber, não posso fazer nada, então eu vou tomar refrigerante e comer doce. Coisas que eu não fazia antes”, conta. Por causa do sangramento deve se poupar de condições que exijam intensidade para que acidente semelhante não ocorra de novo. Abriu mão de velhos hábitos como a rotina de treinos e ainda que esteja no apartamento novo não finalizou completamente a mudança. “Até hoje eu não consegui mudar de vez porque eu não posso carregar peso e nem posso ficar pintando”, explica. Segue trabalhando, contudo de forma menos excessiva e diferente de antes. Escolheu deixar de sair para se divertir porque a dinâmica se tornou cansativa e “ruim” para ela, mas a ausência nos rolês da cidade não causou o afastamento dos amigos, pelo contrário. Desde o início essas figuras mais íntimas e próximas a surpreenderam em ajudá-la e o apoio é tão significativo que admite que sem eles não estaria sabendo suportar. “Eles que me levaram no hospital, se eu tô nervosa com algo porque a gravidez altera o humor, então acho que sem eles eu não estaria conseguindo. Tudo que eu estou fazendo eles estão: Peraí que a gente vai te ajudar com alguma coisa”, declara. Cita na lista de pessoas que a auxiliam a mãe de duas amigas, apesar de não compartilharem nenhum grau de parentesco, a chama carinhosamente de tia. “Ela praticamente me adotou!”, exclama. As nuances excessivas do humor é um dos efeitos da gestação mais nítidos na sua percepção. Enfrentar esse fator, a mudança no cotidiano, acasos não planejados e outras adversidades para ela não é o mais complicado. “O mais difícil da gravidez em si não são os problemas porque por eles você surta e tá resolvido. O problema é se você surtar o bebê sente, então é um duplo problema. Você não pode ficar mal porque seu bebê fica mal”, 110


explica. O sentir é algo compartilhado e experimentado a dois, por isso começou a se certificar sobre os próprios sentimentos e a influência deles. “O que você faz reflete no bebê, quando você chora, quando você dói ele mexe, então ele sente bastante e dá pra ver que ele tá sentindo”, justifica. Os três primeiros meses foram uma repetição diária de enjoos, azias e mal-estar. Detinha pouca ou quase nenhuma vontade de se alimentar e quando o fazia o desfecho não era o melhor. “Eu não conseguia comer e passava mal. Comia, passava mal e era assim o dia inteiro”, destaca. Naquela temporada também experimentava certo abalo psicológico causado pela gravidez repentina, além dos seus desdobramentos e impactos nas relações que nutria. A empresa reagiu negativamente ao saber da gestação chegando inclusive a direcionar comentários rudes a ela. Salienta que não ouviu falas semelhantes em nenhum outro lugar e nem mesmo da própria família até então. “No serviço foi complicado. Falaram que eu prejudiquei a empresa, que eles não podiam ficar um ano sem mim e que na hora da “festinha” ninguém chamou”, relata. Daiane escutou a frase na frente de diversos colegas durante uma reunião. Prossegue e revela que o caso não foi isolado. “Eu ia trabalhar o final de semana com dor, passando mal e mesmo assim eu ouvia um monte de coisa nesses três primeiros meses”, finaliza. Pretende tirar a licença-maternidade somente na data de nascimento do filho, conforme conta, a intenção é dispor de mais tempo com ele e encaixar o período previsto das férias. Se der certo ela ficará mais um mês afastada, totalizando cinco meses. Como não tinha aceitado ainda a gestação queria saber mais sobre as transições produzidas por ela. Procurou uma psicóloga e entrou em contato com algumas mães solos que pudessem falar sobre suas experiências. “No começo eu não me sentia 111


capaz, eu não conseguia gostar da gravidez, gostar da ideia de ter um filho”, confessa. A decisão de buscar informações e acompanhamento profissional tornou-se útil e fundamental para a própria saúde mental. Agora detém outro olhar sobre sua condição, a compreensão é realista, franca e equilibrada. Gosta e aprecia determinados momentos, todavia não têm a mesma sensação em relação a outros. “É gostoso sentir ele reagir, sentir ele mexer, é gostosa a ideia de ter um bebê. Essas partes são gostosas, mas não é esse mundo mágico de nasci pra ser mãe e é a maior meta da vida”, enfatiza. As partes significativas não tornam mais fáceis ou capazes de anular os cansaços, dilemas, desacordos e tensões do ciclo gestacional. “Pra mim não é: Nossa que coisa maravilhosa! É cansativo, além de você ter que lidar com tudo, com seus problemas você tem que fazer as coisas de casa porque se eu não limpar ninguém vai”, expressa. Daiane argumenta não ter vivido um “momento glorioso” e é categórica ao reforçar que não está se cobrando por isso. “Várias pessoas não tiveram isso, a psicóloga disse que é normal, então eu não tô nessa crise não”, pontua. Ela defende que o conceito projetado pelas pessoas sobre a gravidez é problemático. No seu ponto de vista, a idealização colocada sobre as mães nesta etapa é prejudicial e desagradável. “A mistificação de estar gerando uma vida e esse mundo perfeito acho que não existem. Cada um tem sua reação é claro. Conheço pessoas evangélicas, casadas e com filhos em relacionamentos de anos e elas também não tiveram esse sonho: Nossa estou gerando uma vida, minha barriga é preciosa. Todo mundo espera que você seja assim e eu acho uma coisa muita chata”, ressalta. Reduziu os muitos sonhos e planos que possuía antes, os de hoje são apenas dois e é neles que aposta. Irá escolher uma das duas opções projetadas por si, a decisão é pautada por uma 112


única prioridade: o melhor para ela e o nenê. Saberá apenas através dos dias que virão na companhia do filho e na forma como eles irão se desenrolar. Enquanto a hora de dar à luz não vem ela continua a esperar sem saber o que deve ocorrer depois. Daiane adianta as duas condições elaboradas e explica os porquês de cada uma afetarem ela e o bebê. “A primeira opção é continuar (na cidade) e quando ele nascer eu vou pra minha mãe ver como vai ser a rotina, ver se dou conta de conseguir fazer sozinha até eu voltar pro emprego. A minha segunda opção é ir pra Campinas porque eu já falei com minha família e minhas tias e avó são de lá. Na casa da minha vó tem três tias que ficam 24 horas, então pelo menos ia ter alguém pra me ajudar”, fala. No primeiro caso existe o obstáculo da distância de moradias entre ela, a mãe e a irmã. Pelo menos 40 minutos de carro separam os endereços de uma em relação à outra, por isso não sabe como a programação deve intercorrer. “Se elas forem me ajudar vai ficar tudo muito longe pra mim. Hoje o meu serviço é perto de casa, então pra eu ir lá e deixar ele e voltar… eu não sei como vai ser”, pondera. A segunda ideia é ir para o interior de São Paulo tentar um novo trabalho e se estabelecer já que os familiares se propuseram a auxiliá-la com o recém-nascido. “Em dezembro eu vou pra Campinas e a minha tia vai me ajudar, ela foi uma das primeiras que me apoiou. Eu vou procurar emprego e se eu conseguir não ia voltar não. Lá pelo menos eu teria alguém pra me ajudar a cuidar do bebê”, resume. conhecer Talvez seja impossível conhecer alguém completamente em todas as suas camadas, facetas e jeitos. Ter consciência sobre 113


quem o outro é independe do nível de proximidade e durabilidade do contato, pois certas partes podem demorar a virem à tona e exporem um lado desconhecido daquele que você jurava identificar pelo nome, sobrenome, idade, amigos, gostos e desejos. Expostos, os fragmentos de atitudes, falas e opiniões compõem uma nova criatura completamente avessa daquela que você conhecia. A sua frente está um desconhecido íntimo. No fim é um conhecer sem mais reconhecer. Compartilharam “praticamente” o ano de 2018 inteiro juntos e houve um tempo onde “ficaram” mais sério e outro não. O relacionamento casual possibilitou que ela o conhecesse e soubesse um pouco da pessoa que ele era. A gravidez proporcionou que ela visse outros aspectos sobre ele que anteriormente não tinham emergido. A relação presente entre os dois é “delicada” e ela se preocupa com algo. Que tipo de pai ele será? Cruzavam o mesmo lado da via em alta velocidade, apressadas, obstinadas, precisavam cumprir com as suas sinas. Nenhuma abriria espaço ou reduziria para a outra passar porque carregavam a urgência de se provarem certas. Expectativas vieram na contramão da realidade e ambas terminaram batendo de frente. Grave acidente da vida cotidiana. Idealizou ações que deixaram de se concretizar e terminaram por se chocar com os reais acontecimentos. Queria a realização delas não pensando em si mesma e sim no bebê. Quando ainda ficavam sabia sobre algumas de suas condutas, porém jamais supôs que as mesmas pudessem acarretar eventos iguais aos que vem passando. “Ele tem pai e mãe presentes, então esperava que ele fosse se empolgar com a paternidade e querer fazer as coisas pelo filho dele, mas não têm sido assim”, aponta. Os fios das ilusões romperam um a um, cortados sem ternuras, nenhuma ponta solta sobrou. Puxados com força para a realidade, agora, permanecem alinhados e amarrados firme114


mentes na trama da vida real. Apreenderam qual é o preço pago por se agarrarem a fantasias, por isso o engano não será repetido. Daiane estava vinculada a esses fios errôneos, situação após situação conseguiu a soltura. As causas que levaram a isso podem ser resumidas através de alguns fatos que ela apresenta. Um deles sucedeu na época do sangramento que a fez acreditar que havia sofrido o aborto. Precisava retornar ao hospital e não podia dirigir devido a uma recomendação médica, então pediu para o pai do bebê uma carona. “Ele falou que não dava por causa de um trabalho que tinha para fazer, mas aí ele foi pro bar”, diz. Relembrava o acontecido, narrava e parecia que ia acrescentar uma conclusão sobre o mesmo. “Então assim são coisas que…”, ela inicia. Não finaliza a sentença, o riso indignado desponta dela. Às vezes o óbvio não precisa ser dito, compreendi a carga daquelas palavras quando o seu longo suspiro as selou. Trabalhou incansavelmente, dormiu pouco e correu na frente do tempo para ter a certeza de que estaria tudo pronto na hora de começar. Deu certo, conseguiu, conta que foi “ótimo”. O chá de bebê, representou algo importante para ela. “Era uma questão de fazer por mim mesma porque uma das coisas da maternidade solo é entender suas necessidades”, alega. No dia seguinte tinha que organizar e limpar o espaço que comportou o evento festivo. “A casa não era minha, então precisava arrumar as coisas e pedi pra ele ir. Primeiro, disse que tinha um compromisso e só iria mais tarde, mas ele sumiu”, comenta. Posteriormente, soube a razão do sumiço. “Ele foi para uma rave”, fala. Reapareceu depois, pediu desculpas e ambos conversaram. “Você entendeu o que fez? Eu tô grávida de sete meses e tive que limpar sozinha porque você falou que ia”, ela indagou. “Ah, gravidez não é doença”, recebeu dele como resposta. 115


Outro diálogo, pauta diferente e uma réplica oposta a que gostaria de ouvir. “Falei: o que eu faço se meu filho ficar doente e você estiver no rolê, se eu avisar e mesmo assim você ir ou não responder? Ele falou assim: se seu filho estiver doente, leve ele pro hospital. Você não tem que ir atrás de mim não”, narra. As cenas protagonizadas por ele e o tratamento recebido nunca foram esperados por ela. “Achei que ao menos isso ele entenderia, mesmo a gente não estando junto, as coisas são pro bebê. Mas ele não. As coisas que ele já me falou eu não esperava não”, lamenta. A ausência da relação é algo regularmente manifestado, lembrado e posto também como um empecilho. No entendimento da família paterna, ela estar esperando um filho dele não é a condição de maior relevância e outros fatores são considerados. “Não me trataram mal, não me rejeitaram, mas desde o momento inicial falaram que como não estamos juntos é uma situação delicada, então não vão intervir de alguma forma por isso”, explica. Embora exista o pequeno conflito a respeito do relacionamento, a família dele ajuda de algumas maneiras, sendo uma a intermediação do diálogo entre Daiane e o pai da criança. “Quando eu peço ele deixa de lado e tá nem aí, então a cômoda pro bebê e outras coisas tenho que pedir pra eles, pra ele poder fazer”, esclarece. Apesar disso, impera e se sobressai continuamente a mesma lógica. “Eles me ajudam com essas questões, mas falam que como a gente não tá junto eu não posso querer demais”, exprime. Algumas mães solos, senão a maioria, parecem ter a obrigação de se contentarem com as miudezas cedidas pelo homem que é pai do filho ou filha delas. Esperam que exigências não sejam feitas, pedidos em excesso estão fora de cogitação e tudo que vier de volta é lucro. De gota em gota tem que encher o galardão, demonstrar boa vontade e gratidão por ele não estar vazio. A 116


sociedade espera que elas aceitem e não reclamem do mínimo que eles oferecem. Os “pelo menos” e “ao menos” costumam vigorar no começo de cada frase e nelas existem o equívoco do verdadeiro significado dos encargos do pai com o filho. Pelo menos ele paga a pensão da criança, a vê a cada quinze ou sete dias, fica com ela quando dá e ajuda como pode. Os diálogos costumam evocar convicções semelhantes a essas. As mães que as escutam deveriam se sentir aliviadas? É uma forma de consolo? É um modo implícito de advertir que elas não esperem muito deles? É um jeito de silenciá-las para não reclamarem do pai da criança? Interessante observar que o significado da palavra “pelo menos” é “razoabilidade” e o seu sinônimo é “mínimo”. O último contempla aquilo que é menor em tamanho, quantidade, qualidade e valor. À vista disso se questione. Tais significações quando empregadas a ação de um sujeito poderiam dizer o quê sobre o mesmo? Cumprir os deveres previstos nas leis que garantem o amparo dos menores não deveria ser motivo de exaltação da figura paterna. No entanto, infelizmente, a sociedade o faz. Por favor mães não peçam demasiadamente e fiquem satisfeitas porque ao menos eles estão fazendo! A todo tempo a moral da história para elas é essa e pouca gente entende o quão errado é propagá-la. A narrativa reforça os abismos de tratamento entre elas e eles, e no espaço que os separam existe uma densidade de injustiças e discrepâncias. Os homens, pais, genitores estão em uma posição privilegiada porque deles frequentemente vão pedir a menor parte, o menor sacrifício e a menor parcela de comprometimento com os filhos. A cobrança direcionada às mulheres, às mães e especialmente às solos é completamente contrária. Irão exigir delas o máximo empenho, as maiores demonstrações de participação na vida das crianças e se no 117


processo ocorrerem falhas serão mais criticadas. De praxe, o apoio em grande parcela é direcionado aos pais e sobra pouca porcentagem do mesmo para as mães. “Eu gostaria que as pessoas parassem de ser essas que sempre cobram da mulher e não entendem que são dois pais. A divisão não é: Parabéns por ajudar, parabéns por estar presente, por postar uma foto no facebook nos dia dos pais e falar que é a maior alegria da sua vida. As pessoas acham normal o homem não dividir e ainda te cobram, então você tem que fazer a sua parte e a do outro”, evidencia. A diferenciação de expectativas e incumbências colocadas nela e nele causam insatisfação. “Muitas vezes eu acho isso muito injusto porque fiz o bebê e ciente, mas a pessoa também estava. A responsabilidade tinha que ser dos dois, deveria ser dividida estando juntas ou não, e não é assim que acontece”, denuncia. Ao redor, colocam panos quentes e aspiram complacência da parte dela. “Por mais que o pai não esteja muito afim, não esteja interessado e não seja a melhor pessoa pra cuidar de alguém, acham que eu tenho que estar próxima dele. A migalha que ele der de atenção eu tenho que ceder”, explana. Os pequenos conflitos, as posturas não esperadas e a divergência das opiniões são dilemas que cercam o seu período gestacional. Imagina que alguns persistirão e outros surgirão ao longo do processo. A chegada do bebê irá demorar mais umas semanas e ela já olha pro futuro com o leve receio de não saber o que deve ou não esperar. A emoção é ocasionada pelo desconhecido, não tangível, aquilo que foge de seu controle e independe dela para acontecer. “Eu tenho medo de morrer ou ficar doente porque não sei o que será do meu filho. Enquanto eu conseguir sei que posso me virar e dar um jeito, então tenho medo das coisas que não são do meu alcance. Além disso, tenho medo de como vai ser com o meu filho, 118


como vou educar ele e como ele vai dividir o que aprende comigo e com o pai”, diz. A medida que carrega o menino dentro de si, lê livros, participa de grupos do Facebook sobre maternidade, conversa com aquelas que podem agregar mais a sua busca por informação e conhecimento. Nesse meio tempo também dispõe de uma doula que a ajuda a se preparar para a chegada dele. Antes de engravidar, as duas se conheceram no churrasco da turma da pós-graduação. Conversaram sobre o assunto e ela lembra que naquela ocasião achou a função dela incrível. “Quando eu engravidei lembrei dela e vi que o serviço que ela faz é muito bom”, afirma. Foi a partir do quinto mês da gravidez que iniciou o acompanhamento com a doula. “Como eu estava sozinha e perdida falei: Eu vou estudar, é isso mesmo! Eu vou fazer o melhor pra ele nascer melhor”, conta.

ii parte

florescer Previsto para chegar dia 23 de outubro de 2019, ele, a pequena criaturinha, resolveu dar as caras antes. O menino apressado veio de maneira antecipada e imprevista e, a mãe, é claro, foi pega de surpresa por ele. Bento Miguel tinha seus próprios planos e por isso optou que sua estreia neste mundo ocorresse antes, especificamente na data de 13 de setembro. 119


despertar A bolsa rompeu por volta das cinco horas da manhã, seguiu para o hospital e ficou por lá o dia todo. Esperou, a princípio, uma vaga na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) neonatal e posteriormente por uma na maternidade, ambas estavam cheias. Às oito horas, com o início das contrações, acompanhada pela doula, passou a realizar exercícios para aliviar as dores do trabalho de parto. A dinâmica teve que ser cessada após o médico a colocar em repouso absoluto. A interrupção dos exercícios fez com que ela se sentisse pior. “Descompassou tudo, não ficou mais ritmado e lá pelas dez e meia as contrações voltaram mais fortes. Foi horrível, uma dor insuportável porque eu estava parada e sem os exercícios dilatou um monte de uma vez e foi muito ruim”, lembra. Gritava de dor, esperneava, clamava e insistia pela anestesia, negaram, pediu pela cesárea até que aceitaram. Saiu da sala de parto e seguiu para o centro cirúrgico, e antes que recebesse a aplicação anestésica, Bento chegou naturalmente. O trabalho de parto durou quase duas horas e ele veio durante a madrugada. “Na hora que eu deitei na maca do centro cirúrgico ele nasceu”, fala. Embora pareça fácil e soe tranquilo, o processo foi complicado. Daiane conta um dos momentos principais que vivenciou no hospital antes de dar à luz. “Desci para a sala de parto e eles queriam fazer os exercícios e eu estava rasgando de dor porque já ia nascer. Achava que se ele nascesse eu ia morrer, então eu segurei pra que ele viesse pela cesárea, mas não deu tempo de nada. Não tive nenhuma manobra, foi tudo normal, tanto que no outro dia eu já tava de boa”, narra. Com um mês e meio antes do previsto, Bento Miguel teve um nascimento prematuro, por essa razão o bebê de 34 120


semanas ficou alguns dias hospitalizado. “Ele ficou quatro dias na fototerapia porque quando fizeram os exames estava alto o índice e ele tava bem amarelinho”, elucida. A fototerapia ou o banho de luz é um tratamento realizado quando o recém-nascido apresenta icterícia neonatal. O quadro é caracterizado nos nenês pelo tom de pele amarelo que eles apresentam. Mesmo tendo necessitado da fototerapia logo ao nascer, a mãe assegura que o bebê está bem. “Ele tá recuperando bem, a amamentação também foi tranquila. No começo ele pegou um pouquinho e agora é exclusivo no peito e mama bastante, olha essas perninhas gordas (risos)”, declara com a voz alegre. A caminho em direção a sua casa, a voz do Renato Russo ecoava dentro de todo o veículo. “E eu dizia ainda é cedo, cedo, cedo, cedo, cedo”, cantava o vocalista do Legião Urbana durante parte do trajeto. Sentada no banco de trás, observava só a nuca dele, o corte de cabelo era meio raspado, tinha um perfil sério e através do retrovisor dava pra ver que ele usava óculos de grau quadrados. Seguido da saudação, sobrou silêncio dos dois lados, exceto pelo Renato que berrava que era cedo, mas não era. O dia já tinha começado há horas, olhava pro céu todo azulado, abaixava o olhar e fitava a rua. As letras do comércios despontavam todas embaralhadas, grandes, médias, pequenas, coloridas e em preto e branco. Pela janela pareciam compor um grande alfabeto embaçado e desordenado. Poucas pessoas andavam nas calçadas, adiante mais na frente um pequeno grupo de homens com uniformes cinzas e capacetes brancos de proteção remendavam o asfalto. Deve ser dureza trabalhar debaixo de um sol escaldante, né? Depois de pedir licença pro porteiro, ser liberada, ficar confusa durante uns segundos sobre qual bloco ele apontou, enfim segui ao que torcia para ser o certo. Degraus, uma virada, mais degraus, conferi o número da porta com o instruído na 121


mensagem, bati, senti alívio quando a pessoa certa a abriu. Ia ser trabalhoso voltar para trás em busca do apartamento correto em meio a tantos iguais. Fisicamente continuava a mesma mulher de longos cabelos escuros, com dois pares de olhos castanhos e pele branca. Diferente do primeiro encontro, onde estava toda vestida de preto, agora usava roupas mais despojadas de tons claros, além disso os anéis prateados não vinham sendo portados nos dedos igual anteriormente. Excluindo a parte exterior, na primeira semana de dezembro quando voltou a ser entrevistada havia se transformado em outro ser. A alegação vem da própria Daiane que admite ter mudado completamente. Depois de discorrer sobre o dia do parto, os imprevistos, as dores, o nascimento seguido pela fototerapia, começa a relatar a rotina dela e do filho. Aliás, ali, deitado na cadeira está ele, o assunto da conversa. Bento parece dormir, quietinho, os olhinhos na verdade estão bem despertos e atentos. Após ela comentar sobre as perninhas dele, reparo que realmente, é, sem dúvidas, são gordinhas mesmo. “Quando ele nasceu fiquei um tempo com a minha mãe, umas duas semanas lá. Ela me ajudou bastante e aí eu vi que é difícil, mas é tranquilo”, inicia Daiane. Na breve estadia, a mãe a ajudou com a limpeza, lavagem das peças do nenê e outras coisas. Devido a boa recuperação do parto normal pode rapidamente retornar ao apartamento e assumir sozinha todos os cuidados com o filho. De acordo com ela, o menino costuma dormir bem e só desperta duas vezes, as noites são tranquilas, as manhãs e tardes nem tanto. “De dia é mais difícil porque não consigo limpar a casa, organizar, fazer comida e tenho que pegar marmita só essas coisas que são mais complicadas. Às vezes tenho que comer com ele no braço, mas me organizando certinho na hora que ele dorme 122


eu corro pra fazer tudo”, diz. Argumenta que tenta organizar a casa para evitar que ela fique “o cúmulo do absurdo”, porém não “liga muito” caso fique muito bagunçada, pois a prioridade é se dedicar ao Bento. “Tem momentos que ele está de boas e eu: Não, vem aqui no colo (risos)”, anuncia. Retrata os aspectos positivos na mesma sinceridade que fala sobre os negativos e faz questão de exprimir que o dia a dia não é completamente maravilhoso. Reconhece que por vezes gostaria de ter um tempo maior para se voltar às tarefas do lar, no entanto, a perspectiva que prevalece é que pouco a pouco tudo vai se encaminhando. “Às vezes queria ter mais tempo pra organizar a casa, cozinhar e fazer compras, mas aí é mais complicado porque demanda tempo e tenho medo de ficar com ele perto do fogão. Eu acho que tudo tá no caminho, não tá perfeito, mas vai se encaixando”, pontua. No início deste capítulo, ainda gestante, Daiane disse que esperava que a vinda do filho deixasse determinadas questões justificáveis. Sentia-se só e esperava a hora onde finalmente compartilharia tempo e espaço na companhia dele. Indagada sobre o assunto ela traz uma devolutiva positiva. “Ah mudou! 100%! 300%! Quando ele nasceu foi muito bom mesmo, um momento de: Agora foi!”, comenta de forma animada. A sensação de solidão de meses atrás é algo que não contempla o seu presente. “Não, não me sinto mais sozinha. Agora é bem mais gostoso”, garante. Os incontáveis choros, nervosos e estresses se ausentaram na nova fase e é algo tão raro que lembra exatamente o único momento recente no qual algo parecido aconteceu. “Desde que ele nasceu só teve um momento que fiquei mal. Teve um dia que eu estava muito suja assim e ele não parava de jeito nenhum. Eu tentava me limpar e não dava aí fiquei mais chateada. Mas, assim de resto é mais tranquilo 123


porque gosto de ficar com ele, ele é bonzinho eu pelo menos acho”, expressa. A gravidez proporcionou vivências novas e inusitadas, a colocou em sinucas de bico, a fez tomar decisões colocando outra pessoa em primeiro lugar, a tirou de modo repentino, brusco e intimidante dos trilhos que sua vida percorria. Flexível, tentou se encaixar pedaço por pedaço, aceitar circunstâncias, entender a realidade que despontava à frente de seus olhos e reconhecer que precisaria de ajuda para poder encarar a sucessão de novidades. É inegável, 2019 não foi um ano qualquer para ela. É impossível definir se ela viveu ou meramente sobreviveu a ele. Seja qual for a resposta exata, o amadurecer abarca as duas alternativas. Adquiriu experiências, aprendeu com elas, as absorveu, amadureceu e consequentemente floresceu. Movida pelo despertar de uma nova vida, por fim o florescer despontou. Capaz de soar piegas demais, entretanto, é necessário dizer que a nova vida, a do Bento Miguel, provocou também o despertar na existência da mãe. A maternidade solo foi um divisor de águas, imersa em si mesma, realiza uma reflexão profunda e traz para a superfície as conclusões complexas sobre quem era antes comparada com quem é agora. “Antes o meu foco era ter uma carreira, uma vida de sucesso, assim na parte profissional e agora eu acho que não é mais. O mais importante pra mim é ele, agora eu tenho um propósito que é cuidar dele e antes era a minha carreira. Mas, agora a carreira é a que tiver, o emprego é o que vier e se precisar fazer outra coisa eu faço, agora é só esse pequenininho”, fala.

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partilhar Em uma, existem duas, compartilham o mesmo espaço, sentem, pensam e agem com dependência total uma da outra. Ambas podem aparentarem serem a mesma, no entanto, nem tudo que parece realmente é. Divergem e cada uma vai pro seu canto porque existe uma discrepância daquilo que são e sentem. Nesses momentos a harmonia usual cede lugar ao conflito. “Eu falo pra todo mundo que existem duas pessoas em mim que é a mãe que ama acima de tudo e todo o esforço vale a pena, é maravilhoso e recompensado. Porém, também tem a mulher que tá cansada o tempo inteiro. É um conflito de duas pessoas, a mãe que ama e acha tudo maravilhoso e a mulher que acha tudo difícil”, relata. Meses antes da gestação as saídas para aproveitar a vida noturna na cidade eram feitas sem maiores preocupações e às vezes aconteciam de última hora. A dinâmica atual exigiu uma nova desenvoltura da mãe, portanto a programação do rolê visa medidas voltadas primeiro para o nenê. Nos momentos como esse, as duas mulheres que a constituem operam em união. Saiu apenas uma vez, onze meses começaram e terminaram desde então. Levou almofada, coberta, fraldas, o bebê conforto e a mala completa dos objetos infantis. Deixou ele aos cuidados da irmã que morava perto do lugar onde se encontraria com os amigos e pediu para ser avisada caso algo acontecesse no meio tempo. Daiane descreve como ocorreu o breve retorno a vida social noturna. “Eu fui com meus amigos na Daza e ficamos dançando. Umas três horas voltei e ele estava acordado, tinha acabado de acordar, mas foi ótimo. Eu não bebo ainda por causa da amamentação, mas foi bom porque eu vi um monte de amigo meu, embora não seja a mesma coisa de antes”, alega. Ainda que tenha sido diferente, ela fala que foi capaz de aproveitar a 125


noite sem preocupações. “Eu fiquei tranquila porque ele dorme a noite e não fica acordado. Minha irmã é muito apaixonada nele, entende tudo, então não fiquei preocupada porque sabia que ele ia tá bem”, conclui. Apesar de não ter ficado aflita na ocasião, expõe outra situação que provocou o sentimento contrário. “Quando saí com ele de dia, que fui para o hospital, e deixei ele com o pai dele aí fiquei preocupada”, assume. Logo ao mencionar o pai do menino, aproveito a deixa e questiono sobre a partilha de compromissos entre eles. “Ah não é bem uma divisão, ele vem na hora que quer, na hora que sobra tempo ele aparece ai”, responde. Visita o filho uma vez na semana, segundo ela, agora existe o combinado de quais dias deve ir para evitar que apareça de supetão. O acerto dos dois tem como finalidade a organização da rotina dela. “Estava meio bagunçado ele vir na hora que queria, então preferimos deixar assim porque são nesses horários que eu limpo a casa, faço compras e organizo as roupas do nenê. Eu prefiro que tenha um horário e dia porque assim posso me organizar e falar: Hoje eu vou fazer tal coisa”, esclarece. A família do rapaz aceitou que os dois não irão ficar juntos, Daiane comenta que a relação com os parentes dele vai bem, por isso se sente tranquila em poder contar com as eventuais ajudas. “Eu me dou muito bem com a família e depois que o Bento nasceu eu e a mãe dele ficamos mais tranquilas. A família dele é o que me deixa mais tranquila porque com ele não tem muita responsabilidade. Então se preciso de alguma coisa posso combinar com eles”, diz. Anteriormente o desacordo se tratava sobre pedidos e exigências, poderiam ser feitas desde que não em excesso. Depois do nascimento, decidiu evitar e se poupar de desgastes com o pai do menino. “Hoje em dia não peço nada, peço assim: Preciso de um remédio, preciso de uma pomada. Ele se dispõe a comprar, 126


mas as questões de rotina, tarefas e de se responsabilizar pelo filho eu não falo mais nada”, enfatiza. As consultas com a psicóloga prosseguem, por meio do acompanhamento, chegou a um entendimento do porquê não irá cobrar ou esperar comprometimento dele. “Penso que se for pra ser uma posição negativa na vida do meu filho é melhor que não seja. Não vou ficar impondo que ele tenha responsabilidade com o filho, que o veja, que fique e cuide dele. Se não quer, então não vai ficar perto. Eu não quero que ele rejeite o meu filho, então não peço mais, falo mais e só o mínimo mesmo”, afirma. Quer criá-lo alinhado com a realidade para que ele a entenda logo cedo, assim não correrá o risco de se frustrar. “Eu ficava preocupada de: Não, o meu filho tem que ter um pai presente. A minha psicóloga me ajudou nisso. É melhor ele entender a realidade e não adianta eu projetar que o pai dele será ótimo. Porque ele vai entender se decepcionar e é pior, então é melhor ele viver na realidade”, argumenta. No âmbito de criar, educar e ensinar, Daiane revela pontos que acredita serem essenciais para o Bento Miguel. Pretende compartilhar os significados que permeiam a vida, instruir sobre as coisas do mundo e a maneira de encará-lo. “O mais importante pra mim é que ele seja forte, tenha pensamento crítico, questione e que ele tenha empatia. Se eu conseguir cuidar dele pelo menos um tempinho acho que esse é meu papel principal e se eu morrer pelo menos ele vai tá tranquilo”, explica. Quando engravidou acreditava que somente ganharia da vida um “parceirinho” para cuidar e que tudo ficaria igual. Viver é sentir, testemunhar e até ser vítima dos planos mutáveis decorrentes desse processo. Constatou que é impossível tudo ser igual, ter o mesmo significado, sabor e cheiro depois de conceber um filho. A vida a transformou na mãe solo que é agora e por isso ela entende. “Depois que ele nasceu eu repensei 127


tudo assim da vida. Achei que ela iria continuar do mesmo jeito só que eu ia ter ele e não é assim. Muda completamente todos os aspectos”, expõe. A viagem para Campinas mencionada meses antes na primeira conversa está para ocorrer ainda no mês de dezembro. É uma questão de dias para ela partir de Campo Grande e seguir para lá. Os planos são os mesmos da gestação. Se for viável, arranjar um emprego e se estabelecer ela ficará. Caso contrário, regressará para a cidade morena com ele. No fim da entrevista, pergunto se gostaria de acrescentar alguma coisa e ela decide apenas mencionar mais uma informações sobre o filho. - Só que ele é lindo (risos).

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