Siga, enfrente - A violência doméstica em Campo Grande (MS)

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JHAYNE LIMA SIGA, ENFRENTE

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“Você considera que as mulheres são profissionalmente tão capazes quanto os homens? Revolta-se quando alguém é discriminada, sofre violência ou é desqualificada por ser mulher? Acha que as mulheres, assim como os homens, têm direito ao prazer sexual? Se respondeu sim a essas questões, então você se identifica com uma importante bandeira do feminismo: a igualdade de direitos para homens e mulheres”

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- Joana Maria Pedro, SIGA, ENFRENTE 3 Nova Histórias das Mulheres no Brasil (2012).


AGRADECIMENTO

Copyright © 2019 Jhayne Geovana Santos Lima Todos os direitos reservados

INFORMAÇÕES TÉCNICAS Autora Jhayne Geovana Santos Lima Orientação Prof. Dr. Felipe Quintino Monteiro Lima Projeto Gráfico e Diagramação Mirella Pimentel Monteiro de Oliveira Contato jhaynegeovana@gmail.com

À minha mãe que sempre me apoiou e se fez presente Projeto Experimental do Curso de Jornalismo 2019 Faculdade de Artes, Letras e Comunicação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

em todos os momentos. À minha família e meus amigos que me auxiliaram durante todo o processo de construção deste livro. A todos os professores que me mostraram o verdadeiro sentido do jornalismo durante a graduação, principalmente meu orientador, que sempre acreditou no meu trabalho. À minhas fontes, mulheres fortes e corajosas, que confiaram a mim suas histórias. E à todas mulheres que sofrem ou sofreram violência de gênero.

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SUMÁRIO

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PREFÁCIO

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1. A PRIMEIRA DO BRASIL

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2. O MACHISMO MATA

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3. FORMAÇÃO PROFISSIONAL

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3.1 PROJETO COZINHA E VOZ

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3.2 PROJETO MAIS QUE DOCE

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4. DO TUDO AO NADA

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5. O CRIME E A TRANSFORMAÇÃO

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6. OS PRIMEIROS SINAIS

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7. AGRESSÃO SEM TOCAR

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8. A LIBERDADE QUE NÃO CHEGA

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9. DENUNCIE!

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PREFÁCIO

A gravidade das situações de violência doméstica contra a mulher tem exigido cada vez mais estudos e reflexões em distintos campos do conhecimento. O jornalismo pode contribuir para ampliar, contextualizar e aprofundar o debate a respeito do problema. Com essa preocupação e desafio, a futura jornalista Jhayne Geovana Santos Lima conta neste livro-reportagem as histórias de cinco mulheres, com detalhes significativos que marcam suas trajetórias de vida. O espaço de troca e confiança entre a autora e as mulheres e a potência dos relatos ajudam a evidenciar a questão da violência como um fenômeno complexo e desencadeado por uma multiplicidade de fatores. Ao mostrar relacionamentos abusivos nas mais diversas formas de incidência, como ameaças e humilhação, o livro também destrincha a realidade desse tema em Campo Grande, em especial, o trabalho realizado na Casa da Mulher Brasileira, as formas de atendimento, os serviços oferecidos, os marcos jurídicos (Lei Maria da Penha) e as especificidades das políticas de enfrentamento à violência. Em meio aos discursos de sofrimento e aos comportamentos de dominação do agressor no cotidiano, a narrativa tem o mérito

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de trazer à tona os sinais de alerta, a construção tensa dos relacionamentos, as barreiras que impedem o rompimento e, principalmente, as tentativas de superação do trauma. Sem dúvidas, a capacidade de Jhayne na articulação de um processo de escuta atenciosa dessas mulheres, expondo suas subjetividades e memórias, pode atribuir um novo significado às vivências e restaurar laços de compreensão, afeto e solidariedade.

Felipe Quintino é professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)

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1 A PRIMEIRA DO

BRASIL

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CAPÍTULO 1

A PRIMEIRA DO BRASIL

O silêncio e as duas pessoas aguardando atendimento escondem a magnitude do local. Apesar da tranquilidade e vazio do ambiente, mais de 60 mil mulheres já passaram por esta recepção. Os motivos causadores são distintos, variam de acordo com cada história, mas a ida até esse local é a busca de apenas uma coisa: ajuda. Atualmente, a Casa da Mulher Brasileira de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, possui cerca de 240 funcionários e já executou mais de 380 mil atendimentos para mulheres. Criada no dia 2 de fevereiro de 2015, a Casa foi a primeira a ser inaugurada no Brasil e até hoje é referência no atendimento de mulheres vítimas de violência. Foram mais de R$18 milhões investidos em uma organização que deveria ser modelo para a implementação em outras capitais brasileiras. A Coordenadora de Projetos e Ações Temáticas da Subsecretaria de Políticas para a Mulher de Campo Grande, Márcia Paulino, explica que a escolha de Campo Grande para receber a primeira sede da Casa da Mulher Brasileira se deu através de constantes destaques da capital e do estado no enfrentamento à violência contra a mulher.

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“Mato Grosso do Sul foi o primeiro a ter um organismo

A recepção conta com funcionárias treinadas para realizar

estadual de políticas públicas para as mulheres. Em 2005,

um atendimento humanizado e acolhedor para agir da melhor

Campo Grande criou a sua Coordenadoria de Políticas

forma durante a primeira etapa do atendimento da mulher na

para as Mulheres. Em 2009, o estado assinou o Pacto

Casa que é o preenchimento do cadastro. A porta de vidro que

Nacional pelo Enfrentamento à Violência Contra a Mulher,

separa a recepção das demais estruturas do local possui frases

assumindo a responsabilidade pelo desenvolvimento de

como “você não é culpada”, “chega de violência”, “coragem”, “é

ações que pudessem reduzir a violência. Na época, o estado

hora de denunciar”, “chega” e a maior frase é a informação de que

não era prioritário e foi a própria Secretaria da Mulher que

a Casa da Mulher Brasileira possui a primeira Vara de Medidas

se prontificou a assinar o Pacto. O estado reivindicou essa

Protetivas do país à disposição de todas as mulheres que

assinatura. Nós temos o registro de vários momentos que

necessitarem do pedido.

construiu o espaço para que Casa viesse para cá. A Casa da Mulher Brasileira é resultado de toda essa articulação

São muitas as frases que promovem o encorajamento da

política. Não concordamos com a ideia de que Campo

mulher. Chegar até este local não é fácil e a procura por ajuda já é

Grande foi escolhida porque era a capital com mais índices

um sinal de encorajamento. A psicóloga da Casa, Tatiana Samper

de violência. Os dados do Mapa da Violência não comprovam

explica que até a mulher tomar a decisão de se dirigir até a Casa

isso, então não seria uma justificativa”.

para procurar ajuda e denunciar o agressor, ela já passou por muitas situações de violência.

Localizada no Jardim Imá, a Casa da Mulher Brasileira possui uma estrutura que se destaca em meio às casas e terrenos do

A quietude do lugar não reflete a realidade de atendimento da

bairro. Em sua volta, poucas construções podem ser observadas.

Casa, que chega a receber mais de 200 mulheres por dia. É um

São mais de três mil e quinhentos metros quadrados de edificação

número que choca e leva a reflexão de quantas denúncias ainda

em um terreno de cerca de 12 mil metros quadrados que pode

não foram feitas, quantas mulheres ainda não buscaram ajuda

ser visto de longe por quem se aproxima da região do Aeroporto

e quantas estão correndo risco ou sendo agredidas neste exato

Internacional de Campo Grande. Logo na entrada do local, é

momento. Campo Grande não é uma capital populosa. Possui

possível observar a vasta presença do lilás, cor símbolo da luta

cerca de 900 mil habitantes e mesmo assim foi escolhida para

feminista desde a década de 1980. É uma cor tradicionalmente

receber a primeira sede da Casa da Mulher Brasileira. De acordo

usada para a promoção da igualdade de gênero. Além do lilás,

com a pesquisa “O poder judiciário na aplicação da Lei Maria da

o verde e o amarelo também aparecem na fachada da Casa,

Penha”, divulgada no ano de 2018 pelo Conselho Nacional de

fazendo alusão ao “brasileira” do nome.

Justiça, Mato Grosso do Sul foi o estado com maior quantidade de novos casos de violência doméstica contra a mulher a cada

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100 mil mulheres residentes no estado, entre os anos de

Campo Grande quatro vezes por ano e reúnem cerca de 30

2016 e 2017. Os números são exorbitantes. Desde a criação

mulheres em cada edição. É um momento onde as mulheres

da Casa, já foram concedidas mais 15 mil medidas protetivas,

dessa determinada região são convidadas a participar desse

sendo em média 10 por dia.

diálogo e troca de experiências para que haja o encorajamento e esclarecimento de dúvidas pendentes.

Após o preenchimento da ficha de cadastro, a mulher é encaminhada ao setor psicossocial, onde vai ser acolhida em uma

Verificada a gravidade de cada mulher na triagem realizada

sala por uma psicóloga e uma assistente social que irão conversar

pelas profissionais do setor psicossocial, se necessário, a mulher

e analisar quais são as necessidades dessa mulher e a gravidade

é encaminhada para a Delegacia Especializada de Atendimento

da violência sofrida. Essa é a etapa onde as mulheres podem

à Mulher (DEAM), que fica localizada no interior da Casa, ao

externalizar todos os seus medos, dúvidas e angústias com as

lado do espaço da recepção. A DEAM é uma das estruturas

profissionais. “O que vai acontecer com ele?”, “O que vai acontecer

mais complexas da Casa da Mulher e funciona com delegadas,

com meus filhos?” “Eu posso perder a guarda?” “Eu tenho direito ao

escrivães e investigadores 24 horas por dia para receber as

que?” “O que eu faço agora?” são as principais dúvidas ouvidas

denúncias e efetuar os mandados de prisão preventiva ou de

pela equipe que tem como missão direcionar, esclarecer e

busca e apreensão. A DEAM conta com uma recepção, quatro

empoderar essas mulheres que procuram ajuda. Toda a estrutura

cartórios, uma sala de reconhecimento e salas onde os boletins

é muito aconchegante e pensada justamente para proporcionar

são registrados. O local possui essa quantidade de cartórios

o acolhimento à mulher. As cores lilás e branco são muitos

devido à demanda de boletins registrados. Desde a implantação

presentes em todos os ambientes e logo ao ser encaminhada

da Casa, foram mais de 33 mil boletins registrados. A delegacia

para esse setor, é verificada a necessidade de utilização da

também possui uma prisão, onde os agressores presos em

brinquedoteca. Se a mulher se dirige à Casa acompanhada de

flagrante podem ficar por até 48 horas. A DEAM é responsável

filhos que ainda são crianças, eles são encaminhados para uma

por receber as denúncias do 180. O telefone que é amplamente

sala equipada com diversos brinquedos, jogos, TV e profissionais

divulgado nos veículos de comunicação, funciona como um

supervisores para que a mãe possa concluir seu atendimento

serviço de utilidade pública anônimo, que recebe denúncias

com tranquilidade. Além de realizar o encaminhamento interno

de casos de violência contra a mulher. A ouvidoria do serviço

e externo das mulheres, o setor psicossocial é responsável

funciona em Brasília e, ao final do dia, as denúncias de Mato

por realizar o acompanhamento psicossocial continuado. Esse

Grosso do Sul são encaminhadas para a DEAM, impressas pela

acompanhamento consiste na realização de visitas domiciliares,

equipe e é analisado o grau de gravidade de cada denúncia

entrevistas com as vítimas, encaminhamentos, além de oficinas.

para que possam ser feitas as averiguações. O sistema não é

As oficinas reflexivas são realizadas nas regiões urbanas de

prático. Demanda um tempo de execução que às vezes pode

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ser fatal. Mulheres que já fizeram denúncia por meio do disque

A Guarda Municipal e Patrulha Maria da Penha também

180 relatam que o formulário possui muitas questões, o que faz

possuem uma sede na Casa da Mulher Brasileira e são

com que a ligação também seja demorada. A equipe da Casa

responsáveis

orienta que casos graves de violência contra a mulher devem ser

acompanhamentos das medidas protetivas em execução. A

denunciados diretamente à Polícia Militar pelo 190.

equipe atua alinhada com a equipe do setor psicossocial para

por

realizar

as

visitas

em

domicílios

e

a realização das visitas e do acompanhamento das vítimas. A Casa da Mulher Brasileira também possui em sua estrutura

Além disso, a Casa da Mulher Brasileira também possui em sua

a 3ª Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que

estrutura os setores da Polícia Militar e de Transporte. Uma das

funciona ao lado da DEAM e já concedeu mais de 15 mil medidas

principais reclamações das mulheres que utilizam os serviços

protetivas desde 2015. A Vara está integrada à Coordenadoria

oferecidos pela Casa é a ausência de um setor do Instituto de

Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar,

Medicina e Odontologia Legal (IMOL) na sede da instituição. O

do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul e é a primeira Vara

trabalho de assistência e acolhimento só não é 100% integrativo

do país especializada em Medidas de Proteção à mulher. Além

porque as mulheres que precisam fazer exames de corpo de

das concessões, o setor é responsável pelas revogações de

delito e outros exames de competência do IMOL precisam se

medidas protetivas, realização de audiência de custódia, além de

deslocar por 10 quilômetros para realizar os exames.

executar outras decisões judiciais como despachos e sentenças. A Fundação Social do Trabalho de Campo Grande (Funsat) O setor da Defensoria Pública é responsável por orientar as

também

desenvolve

atendimentos

na

Casa

da

Mulher

vítimas juridicamente sobre a guarda dos filhos, divisão de bens,

Brasileira. A implantação do órgão é ferramenta importante para

medida protetiva e outros assuntos e realizar atendimentos

autonomia econômica de mulheres, que recebem orientações e

presenciais e via telefone relacionados à desistências de medidas

encaminhamentos para o mercado de trabalho, realizam cadastro

protetivas. Mais de 17 mil atendimentos de orientação jurídica já

no banco de vagas da fundação e recebem acompanhamento.

foram realizados pelos defensores públicos localizados na Casa da Mulher Brasileira. Ao lado da Defensoria, quase em anexo,

A Casa também dispõe um alojamento equipado com

ficam as salas do Ministério Público de Mato Grosso do Sul, que

geladeira, televisão, camas, sofá e tudo o que um lar convencional

desenvolve um trabalho jurídico por meio da 72ª Promotoria

possui, mas o mais importante: segurança. As mulheres que

de Justiça. As mulheres também são orientadas juridicamente,

se encontram em risco e por algum motivo não conseguem

recebem atendimentos de advogados e podem realizar

voltar para a sua residência, são acolhidas nesse alojamento e

procedimentos judiciais nesse setor que já realizou mais de 53

posteriormente podem ser encaminhadas para a Casa Abrigo,

mil atendimentos desde a inauguração da Casa.

casa de familiares, casa de amigos, podem voltar para a própria

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residência ou até ser encaminhadas para outro estado. Os

estados e no Distrito Federal, para a realização de atendimento

casos são avaliados pela equipe na busca da garantia da

de forma integral, com oferta de ações e serviços para defesa

seguridade da mulher atendida.

de seus direitos, acompanhamento e orientação psicossocial, jurídica, avaliação de riscos e proteção da vida, prevenção

No centro da Casa existe um jardim com bancos para que

de agravos à saúde e promoção de cidadania e autonomia

as mulheres possam aguardar os atendimentos. O local é um

econômica. A iniciativa foi lançada pela presidente da República,

espaço ao céu aberto que representa a liberdade que cada

Dilma Roussef, e pela ministra da Secretaria de Políticas para

mulher busca ao procurar a Casa da Mulher Brasileira. Todos os

as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR), Eleonora

setores encontrados na instituição servem como ferramenta para

Menicucci e propunha estratégias para melhoria e rapidez no

a garantia dos direitos das mulheres. A informação transmitida

atendimento às vítimas de violência de gênero.

por meio dos serviços oferecidos na Casa contribui para o desvencilhamento do ciclo da violência. Como o próprio nome já

Atualmente, apenas cinco capitais contam com a Casa em

diz, é um local onde as mulheres podem se sentir seguras, têm

funcionamento. Além de Campo Grande, São Luís, Fortaleza,

acesso aos seus direitos, são auxiliadas e protegidas e podem se

Curitiba e Boa Vista também realizam o atendimento integrado

sentir em um lar seguro. Quando a casa de uma mulher deixa de

à mulheres. A Casa de Brasília, inaugurada em 2015, foi fechada

ser um lar seguro e aconchegante e se torna sinônimo de medo

em 2018 pela Defesa Civil por risco de desabamento e tem como

e insegurança, é preciso procurar ajuda em órgãos adequados.

prazo para reabertura abril de 2021. Já a de São Paulo, apesar de pronta, ainda não foi inaugurada.

A Casa da Mulher Brasileira continua sendo uma enorme conquista para as mulheres da capital e do interior e é modelo a ser seguido, melhorado e implementado nas demais capitais como era o planejado. A iniciativa da construção dos centros integrados de atendimento à mulher surgiu por meio do Programa Mulher, Viver sem Violência, que pretendia criar sedes da Casa da Mulher Brasileira em todas as capitais do país. O Programa foi instituído através da Portaria Interministerial nº 01, de 13 de março de 2013, com o objetivo de integrar a rede de serviços públicos de atendimento às mulheres em situação de violência, ampliar e assegurar os pontos de acesso aos serviços para mulheres em situação de risco para violência ou vítima de violência nos 26 22

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2 O MACHISMO

MATA

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CAPÍTULO 2

O MACHISMO MATA

O papel da mulher, na maioria das vezes, é relacionado à submissão ao homem. A mulher é vista como o ser responsável pela casa, pelos filhos, que tem que obedecer os comandos e prezar pela família, além de servir ao homem sexualmente. De acordo com a professora do curso de Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Zaíra de Andrade Lopes, a violência de gênero é desencadeada pelo fato do masculino se sentir com posse do feminino e isso ocorre por causa da estrutura patriarcal da sociedade. “Com relação à violência contra a mulher, além de acontecer no âmbito do privado, do lar, também está vinculada à uma relação de hierarquização entre a identidade feminina e masculina. É uma violência de gênero, porque além dela acontecer no âmbito doméstico, essa violência é estabelecida entre pessoas que possuem ou possuíam alguma relação de proximidade”. A organização estrutural da sociedade determina que a mulher deve pertencer e respeitar um homem, seja o pai, o marido ou o irmão. Se a mulher tenta infringir ou romper com essas normas de posse, ela pode ser impedida ou silenciada e isso é a violência de gênero, seja de forma psicológica ou física. 26

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Quando a mulher nasce, é ensinada, pela sociedade em si, a

método contraceptivo ou ações que a force ao matrimônio,

ser responsável pelo afeto, amor, união e pela família. Quando

à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação,

pequena, brinca de boneca para no futuro ser mãe e ter uma

chantagem, suborno ou manipulação. A violência psicológica, de

família. Se não consegue seguir essa representação estabelecida

acordo com a alteração de 2018, se trata de qualquer conduta

pela sociedade, é considerada fracassada.

que cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise

Até a década de 1970, o termo “violência contra a mulher”

degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças

não existia. Ele surge através do movimento feminista e desde

e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação,

então, as mulheres vêm conquistando alguns direitos ao longo

manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição

dos anos. A Lei Federal Nº11.340, de 7 de agosto de 2006, ou Lei

contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade,

Maria da Penha, é uma das mais importantes do país referente

ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou

aos direitos das mulheres e determina que são consideradas

qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica

formas de violência doméstica e familiar contra a mulher a

e à autodeterminação. Já a violência física diz respeito à qualquer

violência física, psicológica, moral, patrimonial e sexual. Ao

conduta que ofenda a integridade ou saúde corporal da mulher.

contrário do que muita gente imagina, a violência doméstica

Ou seja, se ele te humilha, te diminui, controla seu dinheiro, sua

não ocorre apenas através de forma física.

roupa, seu comportamento, te agride, te xinga, força a relação sexual ou te manipula, ele é abusivo.

De acordo com as disposições da Lei Maria da Penha, a violência doméstica é entendida como a violação dos direitos humanos das

Perceber os sinais não é fácil, às vezes pode demorar anos. A

mulheres, sendo definida em cinco formas, que se expressam a

pressão em manter o relacionamento também pode ser muito

partir de uma relação de poder do homem sobre a mulher. A

grande. A ameaça, o constrangimento e as constantes falas de

violência moral está relacionada com qualquer conduta que

que ela precisa lutar pela família, pelo relacionamento e que o

configure calúnia, difamação ou injúria contra a mulher. A violência

parceiro vai mudar são comuns no dia a dia de muitas mulheres. O

patrimonial é a violação, retenção, subtração, destruição parcial ou

descrédito e desqualificação de mulheres que decidem terminar

total de objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais,

com os parceiros também é muito comum.

bens, valores e direitos ou recursos econômicos. A violência sexual se configura como qualquer conduta que constranja a mulher a

A independência econômica da mulher, às vezes, não é

presenciar, manter ou participar de relação sexual não desejada,

suficiente para garantir o término de um relacionamento abusivo.

mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força. Também

Em um cenário onde a mulher ganha igual ou mais que o homem,

está relacionada à indução do impedimento do uso de qualquer

em uma sociedade patriarcal, que determina que o homem

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quem é o provedor da casa, podem ocorrer atritos gerados pela falta de aceitação do parceiro.

“Ainda bem que me casei com você, senão você estaria solteira até hoje”. “Eu sou a única pessoa que vai te aguentar”.

A sociedade patriarcal não disponibiliza para as mulheres

“Você é feia, se terminar comigo não vai arrumar ninguém”.

a posição ativa no mercado de trabalho. Isso vem sendo transformado ao longo dos anos, mas ainda existem muitas

Frases assim são proferidas para que a mulher não tenha

mulheres que não se preparam ou prepararam para o

independência psicológica e emocional para sair da relação.

mercado pelo fato da sociedade determinar que o homem é o

Com a autoestima baixa, a saída se torna distante. A partir do

provedor da casa. Também existem casos nos quais a mulher

momento que ela percebe a violência e decide colocar um fim

se distancia do mercado de trabalho após o casamento ou

no ciclo da violência, procurar ajuda e denunciar o agressor

gravidez por conta da pressão da família ou até mesmo do

é essencial. A Casa da Mulher Brasileira é o órgão mais

companheiro. Esse distanciamento do mercado ocasiona

adequado para o atendimento da mulher. Em cidades onde

a dependência financeira, um fator que pode prejudicar no

não existe o funcionamento da Casa, é indicado a procura

desvinculamento da relação abusiva.

pela Delegacia da Mulher.

“Para onde eu vou? A casa está no nome dele”

Em muitos casos, denunciar pode não ser suficiente, mas

“Como vou sustentar meus filhos?”

é importante para que o direito da mulher seja garantido.

Não tenho formação. O que vou fazer?”

Existem registros de feminicídios contra mulheres que possuíam medida protetiva assegurada pela Lei Maria da Penha e casos

São questões constantes que fazem a mulher refletir sobre

que o julgamento do agressor demora anos para acontecer.

o término ou continuação do relacionamento. Apesar de

Após o registro na delegacia, o inquérito policial é feito e,

muito comum e presente na vida de mulheres, a dependência

quando concluído, é encaminhado ao Ministério Público, órgão

econômica não é a principal determinante em um relacionamento

responsável por fazer a denúncia. A partir do momento que a

pautado pela violência de gênero. A dependência emocional é o

denúncia é encaminhada para o juiz, o processo é iniciado. Um

principal fator que garante a permanência das mulheres em um

processo pode demorar meses e até anos para ser iniciado.

relacionamento abusivo. A insegurança, o medo, as dúvidas e as

Após ser iniciado, é dado um prazo para o réu se defender,

constantes ameaças fazem com que a decisão se torne cada vez

depois disso é marcada uma audiência de instrução e depois é

mais difícil de ser tomadas.

proferida uma sentença. O réu pode ser condenado ou absolvido e as partes podem recorrer à essa sentença. De acordo com a pesquisa “O poder judiciário na aplicação da Lei Maria da Penha”,

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do Conselho Nacional de Justiça, a taxa de congestionamento nos casos de violência doméstica no Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul era de 62% em 2017. A promoção da igualdade de gênero deve ocorrer em todos os âmbitos. Muitos direitos foram conquistados, mas ainda falta muito para que as mulheres tenham as mesmas condições que os homens. O encorajamento da mulher promove mudanças e deve

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acontecer em vários cenários. Existem muitos programas e projetos importantes que promovem o empoderamento e independência feminina, mas ainda falta muito. É preciso que existam políticas públicas, ações, projetos e debates que aumentem os direitos já conquistados e prezem pela obtenção de novos. Desde o início de 2019, o presidente Jair Bolsonaro sancionou pelo menos quatro alterações na Lei Maria Penha. As alterações podem gerar uma aplicação que promove um efeito não desejável. Uma dessas alterações é a que garante aos delegados o poder de determinar a aplicação de medida protetiva de urgência às vítimas quando os municípios não forem sede de comarca judicial. A alteração também permite ao policial a aplicação caso não haja delegado disponível no momento da denúncia. Ainda no segundo semestre de 2019, o presidente vetou o projeto de lei que determinava obrigatória a denúncia dos hospitais em casos suspeitos de violência contra a mulher em até 24 horas. A violência de gênero é social e cultural. Você não está sozinha. Procurar ajuda e compartilhar sua vivência é essencial para que isso possa ser mudado. Nenhuma forma de desigualdade de gênero pode ser tolerada.

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FORMAÇÃO

PROFISSIONAL


CAPÍTULO 3

FORMAÇÃO PROFISSIONAL

3.1 - PROJETO COZINHA E VOZ Todas as mulheres relatadas nos capítulos seguintes são participantes dos projetos Cozinha e Voz e Mais que Doce. Ambos projetos foram realizados pela Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul com o objetivo de proporcionar a autonomia financeira feminina. O Projeto Cozinha e Voz foi promovido pela primeira vez em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, em novembro de 2018. Nesta edição, formou 19 mulheres vítimas de violência doméstica, egressas e reeducandas do sistema prisional da capital. Anteriormente, foi realizado em outras capitais do país como São Paulo, Salvador e Goiânia com público alvo diferente, mas sempre visando capacitar grupos de risco que sofrem discriminações e preconceitos, seja racial, social ou de gênero. O projeto é uma iniciativa que busca a promoção da inserção e reinserção de grupos vulneráveis no mercado de trabalho por meio da formação em assistente de cozinha. Segundo a chefe de cozinha, jurada do programa de TV Masterchef e coordenadora técnica do Projeto Cozinha e Voz, Paola Carosella, a iniciativa é uma forma de reduzir os problemas sociais existentes no país. A chefe de cozinha destaca que é possível melhorar a situação de desigualdade por meio da 34

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educação, do amor e de oportunidades igualitárias.

dessas mulheres vivem ou viveram relacionamentos abusivos e entraram no mundo do crime em razão do relacionamento

“Esse projeto é incrível porque eu escuto e eu vejo tudo

abusivo”.

o que aconteceu, todas as coisas que a gente fez, todas as possibilidades, tudo o que eu aprendi, tudo o que eu me

De acordo com informações do Levantamento Nacional de

transbordei, a quantidade de pessoas incríveis que eu tive a

Informações Penitenciárias (Infopen Mulheres) referente ao ano de

sorte de ficar perto, as histórias que eu tive a sorte de ouvir, a

2016, Mato Grosso do Sul possui a maior taxa de prisões femininas

riqueza que eu ganhei”

do país, em números proporcionais. A pesquisa divulgada em 2018 apresenta que o estado possui 113 mulheres presas para

A execução do projeto em Campo Grande ocorreu através

cada grupo de 100 mil mulheres. Em termos absolutos, detém a

do apoio de instituições como a Organização Internacional

9ª maior população prisional feminina do país. O estado também

do Trabalho (OIT), Ministério Público do Trabalho (MPT),

possui a maior quantidade de casos novos de denúncias criminais

Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel),

em violência doméstica contra a mulher, com 13,2 novos casos a

Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), Casa

cada mil mulheres residentes no estado, segundo dados de 2017

Poema e Escola Judicial do Tribunal de Justiça.

disponibilizados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

A juíza e coordenadora Estadual da Mulher em Situação de

O projeto foi dividido em duas partes, uma voltada para o

Violência Doméstica e Familiar do TJMS, Jacqueline Machado

desenvolvimento da expressão corporal da mulher e outra

relata que conheceu o projeto por meio de publicações em

voltada à capacitação em processos básicos e essenciais de

redes sociais sobre edições voltadas à formação para transexuais

uma cozinha profissional. Para Jacqueline Machado, a etapa da

e travestis e entrou em contato com órgãos para auxiliar na

poesia é fundamental para reestabelecer a fala, expressão e

realização do projeto do estado. Todas as mulheres participantes

empoderamento da mulher.

foram convidadas pela equipe da Coordenadoria do TJMS após uma análise do perfil e condições vivenciadas.

“Tem esse aspecto de melhorar a autoestima da mulher e

“A escolha dos grupos se deu justamente por eu trabalhar

também o aspecto de realmente preparar uma pessoa para entrar

como juíza na Casa da Mulher Brasileira e trabalhar com esse

em uma cozinha. A postura que deve ter, o básico do trabalho do

público específico e saber das dificuldades que ele tem. As

dia a dia em uma cozinha, as questões de higiene, tudo isso é

mulheres em cárcere no sistema prisional foi pela dificuldade

visto no curso”.

que elas têm em serem inseridas e reinseridas no mercado de trabalho após o cumprimento de uma pena. E muitas 36

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A atriz Geovana Pires ministrou palestras e oficinas durante

A formatura do projeto ocorreu no dia 28 de novembro e reuniu

três dias para que as mulheres inseridas no projeto pudessem

empresários e representantes de instituições de toda a capital. A

se expressar melhor. De acordo com a atriz, as oficinas de poesia

cerimônia foi repleta de emoção. Formandas e público choraram

instruíram na harmonização, na coletividade e no indivíduo.

no momento em que cada mulher se dirigiu à frente do auditório do Senac e começou a declamar o poema escolhido durante as

“O projeto se chama Cozinha e Voz porque o que a gente faz

aulas. Algumas apenas declamavam, outras contavam um pouco

é trabalhar todas as nossas expressões para vida, não só a fala.

de suas histórias. Era a conquista de algo que todas almejavam

É como se a gente quisesse concatenar o nosso pensamento,

muito. Ao fim da cerimônia, empresários e representantes e

o nosso querer, o nosso gesto, a nossa fala e colocar todos os

associações afirmaram que as mulheres seriam direcionadas

nossos sentimentos aqui. Eu tive um prazer, eu vim aqui e eu

para vagas de emprego em estabelecimentos da capital. O Senac

me diverti, eu sofri, eu chorei e isso mostra que estamos vivos”.

ofereceu quatro vagas de estágio para as formadas, Fernanda foi uma das escolhidas pela chefe de cozinha para ficar dois meses

A chefe de cozinha e docente do Senac, Míriam Arazini, foi responsável por ministrar as aulas práticas de técnicas da

na instituição se aperfeiçoando e conquistando mais experiência. Você vai conhecê-lá em breve.

gastronomia para as mulheres na edição de Campo Grande. Ela chegou a acompanhar a edição do projeto em Salvador, Bahia,

Quase um ano após a formatura das 19 mulheres em situação

para conhecer a forma com que o projeto era executado e ter

de vulnerabilidade, a chefe e docente que esteve presente

a experiência de observar os processos adotados pelos outros

em maior parte da execução do projeto demonstra desânimo

chefes de cozinha. Para Arazini, o projeto é uma forma de

referente à forma com que o período pós-projeto foi encaminhado.

promover a dignidade para grupos que estão invisibilisados pela

Para Míriam Arazini, faltou acompanhamento e orientação não só

sociedade e que outras edições serão realizadas pelo país por

profissional, mas também psicológica.

meio de parcerias firmadas com empresas e instituições. “Algumas

mulheres

vítimas

de

violência

doméstica

“Essas meninas quando receberam a dolmã e viram o nome

ainda estavam com os parceiros e não conseguiam sair do

delas escrito na dolmã já tiveram a sensação de dignidade. É

relacionamento. Outras não conseguiam ir em entrevistas de

a única forma possível de mudar tudo o que está acontecendo

emprego porque se sentiam inseguras ou não permaneciam

no Brasil e é o mínimo a gente tem que dar de retorno da

no próprio emprego porque achavam que não eram suficientes

dívida que a sociedade inteira tem com pessoas que estão em

para aquilo”.

vulnerabilidade. Dar educação para as pessoas é o que vai fazer a gente transformar esse país”. 38

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A docente relata que, durante uma aula do projeto, uma das alunas chegou atrasada e era porque tinha sido agredida pelo marido.

tenho é que acontece um autoboicote. Acho que deveria ter um acompanhamento psicológico porque elas não conseguem sair disso sozinha. Elas precisam de muito apoio para conseguir sair

“Ela tinha apanhado, chegou chorando, mas não tinha coragem de jeito nenhum de terminar. Ele falava para ela que ela nunca

disso. É preciso um trabalho de acompanhamento psicológico longo, não é uma coisa que se resolve em uma terapia pontual”.

iria arranjar alguém melhor que ele, que ela nunca iria ter um emprego melhor. Então ela falava que o dia que ela achasse um

A chefe e docente afirma que a execução do projeto já é algo

emprego melhor, que ela iria finalizar o casamento dela, mas dava

muito difícil de acontecer, pois envolve muitas instituições e

para ver que era mais uma desculpa, que ela estava dependente

muita gente e conseguir fazer um acompanhamento posterior

daquele relacionamento”.

se torna mais difícil ainda.

Proporcionar a

formação

profissional pode

não

ser

“Se não tiver o envolvimento da sociedade inteira, se não

suficiente em alguns casos. A dependência emocional é fator

tiver todo mundo empenhado em se responsabilizar por uma

determinante para a permanência em relacionamento abusivo.

parte e ter um apoio efetivo, isso não acontece. Tem que ser um

Ao ser controlada, diminuída e/ou agredida a mulher tem sua

esforço muito grande para isso acontecer e acho que a gente

confiança e autoestima totalmente fragilizada. Sair do ciclo

está muito longe disso ainda. É extremamente importante mas

de violência é um processo demorado e o acompanhamento

ninguém tem bala na agulha para manter isso durante muito

psicológico é essencial para que a desvinculação ocorra.

tempo, não dessa forma com poucos apoiadores. Deveria ser

Cada caso é muito singular.

uma coisa muito maior. É um problema que demora anos para mudar. Mas precisa existir projetos assim para que isso comece

Para a docente, o desdobramento do projeto foi decepcionante

a ser mudado”.

devido ao número de mulheres que realmente conseguiram entrar no mercado de trabalho.

Apesar de algumas mulheres não terem conquistado a reinserção ou inserção no mercado de trabalho por meio do

“Desse projeto, foram pouquíssimas as que permanecem no

projeto, ele foi determinante na vida de algumas participantes.

mercado de trabalho. Pode ser que elas tenham imaginado que

Seja na conquista do emprego em um dos restaurantes mais

seria de uma forma e acabou sendo de outra. Seja em relação às

importantes da cidade, motivação para abrir o próprio negócio

condições, ao salário e até mesmo à rotina de um restaurante. Elas

ou encorajamento para terminar um relacionamento abusivo, o

se colocam nessa posição de vítima. Existe todo um bloqueio,

Cozinha e Voz marcou e modificou o futuro de algumas mulheres.

são vários fatores. As situações se repetem. A sensação que

Conheça um pouco dessas histórias nos próximos capítulos.

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3.2 PROJETO MAIS QUE DOCE

“Através do programa (Bake Off Brasil) pude me especializar, trabalhar na produção de outros programas e voltei para

O Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, por meio da

Campo Grande para montar meu ateliê. Esse projeto (Mais que

Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência

Doce) é muito importante e eu fiquei muito feliz pois foi através

Doméstica e Familiar, desenvolve diversos projetos que visam

da confeitaria que eu pude conquistar minha independência

a profissionalização e encorajamento de mulheres. A juíza

financeira e hoje eu vivo só de bolos e é isso que quero passar

Jacqueline Machado, responsável pela Coordenadoria, explica

para todas as participantes”.

que são em média 12 projetos em andamento sendo executados pelo TJMS, em parceria com outras instituições.

A confeiteira profissional comenta que a independência financeira deve ser incentivada a todo momento, seja para a

“Existem grupos reflexivos de mulheres e homens voltados para a discussão de gênero. A gente continuou o projeto Maria

mulher entrar no mercado de trabalho conquistando um emprego em um estabelecimento ou sendo dona do próprio negócio.

faz a diferença na escola. Tem também o Maria da Penha na roda de tereré, Mãos empenhadas contra a violência, empenhadas

“A gente tenta focar bastante no faça e venda. Então busquei

pela saúde e muitos outros projetos voltados pela disseminação

ensinar receitas de biscoitos, pão de mel, bolo de pote, cupcake e

de informação”.

outras receitas para que elas possam vender e ganhar o sustento delas e não tenham que depender de ninguém e não precisem

Em agosto de 2019, o Projeto Mais que Doce foi promovido

se sujeitar a tipos de violência”.

para mulheres vítimas de violência doméstica e encarceradas do sistema prisional. Inspirado no Projeto Cozinha e Voz, teve o

O curso foi dividido em dois módulos, da mesma forma que

Senac como parceiro novamente, só que dessa vez a formação

o Cozinha e Voz. A equipe envolvida na execução é formada

era voltada para técnicas de confeitaria básica. Basicamente,

por vários profissionais voltados para a promoção do bem

as etapas foram as mesmas que a do projeto anterior,

estar e profissionalização dessas mulheres. Foram 40 horas de

contendo aulas de teatro/poesia e aulas práticas na cozinha.

confeitaria básica, divididas em duas semanas, mais 26 horas de

A vencedora do Bake Off Brasil de 2016, programa de disputa

aula de teatro. Para Camila Poli, a formação é necessária mas não

entre confeiteiros amadores, Camila Poli, foi a responsável

é suficiente para que as mulheres possam se destacar.

por ministrar as aulas práticas de conhecimentos básicos de confeitaria para as mulheres selecionadas.

“Deu para aproveitar bastante, mas eu sempre falei para elas que a gente buscou dar o básico. Então elas precisam estudar mais, treinar bastante para poder começar a comercializar os

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produtos que elas estão aprendendo aqui. A prática é essencial para ter produtos de qualidade”.

A confeiteira comenta sobre a satisfação em participar de um projeto tão importante e motivador.

A promoção da profissionalização de mulheres em situação de

“Eu vejo elas orgulhosas e o objetivo é esse, fazer com que

vulnerabilidade é importante no processo de empoderamento

elas se sintam orgulhosas. Elas são prestativas, empenhadas.

e encorajamento. Para a confeiteira, a oportunidade pode

Elas querem fazer bonito, querem ter algo para se orgulhar. Elas

garantir a mudança de vida.

aprenderam muito comigo, mas eu também aprendi muito com elas. As histórias de cada uma são muito sofridas e mesmo assim

“Através disso elas podem ver que tem solução, tem uma

elas não desistiram”.

saída para o problema delas. A mulher que conseguir aproveitar essa oportunidade de mudar de vida através da confeitaria, pode

A proposta de incentivo ao empreendedorismo propagada

conquistar muitas coisas. Ela pode fazer seus produtos e vender

durante o curso deu certo pelo menos para Clara, formanda do

e ter uma esperança de um futuro melhor”.

projeto que já planeja abrir o próprio ateliê nos próximos meses. A história dela também será contada nos próximos capítulos.

No geral, a turma de 15 mulheres da edição do curso apresentou grande interesse em continuar a especialização na área. Muitas mulheres questionaram Poli sobre os principais cursos de confeitaria da região. “Eu pude perceber que a maioria quer dar continuidade à profissionalização, querem levar isso para frente. Elas não querem ficar só com o que aprenderam”. Ao final do curso, o Senac disponibilizou novamente quatro vagas de estágio no restaurante Escola Senac Terra das Águas para as alunas com melhor desempenho durante as aulas. A formatura da turma ocorreu no dia 29 de agosto. O projeto foi custeado pelo Ministério Público do Trabalho, por meio de recursos de condenações em ações civis públicas.

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4 DO TUDO

AO

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NADA


CAPÍTULO 4

DO TUDO AO NADA

O sorriso no rosto e a espontaneidade escondem a violência presenciada desde a infância. Clara*, antes mesmo dos 10 anos, já via a mãe sendo agredida pelo pai, que até hoje é alcoólatra e dependente químico. As discussões eram constantes e a garota já pensava: “Não quero isso para a minha vida”. As brincadeiras durante as tardes no bairro Taquarussu não foram capazes de proporcionar uma infância tranquila para a garota que vivia em um lar cheio de conflitos e com constantes agressões. Sua mãe nunca teve coragem de denunciar os abusos e humilhações. Já Clara, procurou ajuda quando passou por situações parecidas. Com 14 anos, a adolescente tinha vontade de sair de casa, ser independente e fazer suas próprias vontades. Como já trabalhava pelo Instituto Mirim de Campo Grande, órgão que atua desenvolvendo formação e inclusão de adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade social e econômica, decidiu dividir casa com algumas amigas. Essa não foi sua primeira ocupação. Já trabalhou como babá, vendedora, auxiliar de serviços gerais e como catadora de latinha. “Eu me virava. Sempre faltou recurso, então eu queria de alguma forma ajudar minha mãe e ter uma estrutura para ir 48

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embora, fugir daquilo que eu estava vivendo”.

os vizinhos era horrível, então eu chegava em casa e ficava o tempo todo com a janela fechada e trancada. Durante oito anos

Por causa dessa constante vontade de sair de casa, se casou aos 17 anos e logo foi morar com seu marido. Na época, trabalhava

foi assim. Vivendo com uma pessoa que eu não gostava, mas continuando por causa da minha filha”.

em um jornal da capital. Quando se mudou, sua mãe falou: “Se você for embora eu não te aceito mais porque com

Durante a infância, não teve o pai presente. Por conviver

certeza você não vai voltar sozinha, vai voltar com filho

durante muito tempo sem a presença afetiva do pai, refletia

no colo”.

a todo momento sobre os danos que a ausência do pai poderia causar em sua filha.

Depois de um mês, percebeu que gostava do seu marido como amigo e não como homem. Se arrependeu da escolha, mas decidiu seguir em frente com o relacionamento. A convivência

“Eu achava que minha filha precisava de um pai, mas chegou um momento que não aguentei e fui conversar com ela”.

diária mostrou para a jovem que ela tinha tomado uma decisão precipitada. Pensou em voltar para a casa da mãe durante diversas vezes, mas o orgulho não permitiu.

O diálogo surpreendeu a mãe já desesperançosa em relação ao casamento: — Filha, a mamãe vai separar do seu pai! Não está dando certo.

“Eu lembrava do que ela tinha me falado, de que ela não ia me receber mais e aquilo me dava forças para continuar. Eu falava

— Mãe, vai ser feliz com alguém que você ama. Você não está feliz assim.

que não ia dar esse gostinho para ela. Era orgulhosa, achava que estava podendo”.

Clara decidiu sair da casa e ir para outro lugar com sua filha. Seu ex marido não aceitou a decisão. Por causa da mudança,

O marido de Clara era 13 anos mais velho e, após três meses de casamento, começaram a surgir os questionamentos sobre

precisou continuar na casa durante duas semanas. Foram duas semanas conturbadas.

gravidez. A jovem concordou com a ideia e imaginou que isso poderia melhorar a relação e convivência do casal. Descobriu

“Teve um dia que eu ia sair para comer pizza com a minha

que estava grávida no mesmo mês que decidiu ser mãe. Passou

filha e ele me trancou dentro de casa. Ele tomou a chave

por uma gravidez turbulenta e chegou a ter depressão.

da minha mão e disse que não ia deixar eu sair. Eu chamei a polícia, falei para ele que aquilo era cárcere privado e

“Eu chorava muito, mas não percebia que aquilo era depressão.

consegui sair”.

Eu morava em um lugar que eu não gostava. A convivência com 50

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Após a mudança, sua filha, sua maior parceira, ajudava na

só ia arrumar outra pessoa quando ele morresse”.

venda dos sequilhos, famosos docinhos de leite condensado que derretem na boca. Durante as vendas, acabou conhecendo pessoas de uma igreja e passou a frequentar os cultos.

As diversas chantagens fizeram com que seu atual parceiro tivesse mais crises de ciúme ainda. Clara passou a deixar sua filha na casa da sua mãe para que seu ex-marido pudesse pegá-la

“Eu queria viver algo diferente daquilo que eu já tinha vivido. Antes eu conheci e vivi um relacionamento com uma pessoa do

aos finais de semana, já que seu atual parceiro tinha proibido o ex de aproximar da sua casa.

mundo, sem a direção de Deus. Depois de algum tempo, acho que por causa da carência, acabei começando um relacionamento com uma pessoa da igreja e pensei que seria tudo diferente”.

“Meu namorado começou a achar que minha mãe não gostava dele e nessa de levar minha filha e buscar, ele quem levava e buscava ela e ele passou a não deixar eu ir na casa da minha mãe.

O casal namorou durante três meses em castidade. Não chegavam a pegar na mão um do outro. Durante uma noite,

E ele foi me privando das coisas. Eu não podia ter amizade. Não podia ir na casa da minha mãe”.

quebraram a castidade. A partir desse dia o relacionamento nunca mais foi o mesmo. Começaram a surgir várias discussões, ciúmes excessivo.

Esse segundo relacionamento foi muito mais traumatizante para Clara. Foram quase sete anos de privação, ciúmes excessivos e agressões verbais.

“Tudo o que estava sendo lindo e perfeito acabou naquele dia, mas como a gente se gostava, resolvemos continuar e manter o relacionamento”.

“Chegou um momento que a gente não saía mais de casa. Teve um dia que ele virou para mim e falou: ‘A gente não vai sair porque você sorri demais. Os caras ficam te olhando e pra eu não

Foram constantes brigas e reconciliações. O casal terminava e voltava diversas vezes. Em uma dessas voltas, Clara acabou

arrumar confusão no meio da rua, a gente não vai sair mais, é melhor ficar dentro de casa’”.

engravidando novamente. Ainda nesse período, seu exmarido realizava chantagens e sempre tentava atrapalhar seus possíveis relacionamentos.

Clara sempre pensou muito na sua família. Passava muito tempo refletindo sobre o futuro pois a infância traumatizante deixou algumas marcas e pressões. Tentava relevar os abusos e

“Quando ele ficava com a minha filha durante os finais de

agressões porque acreditava que o companheiro era um bom pai

semana, ele pedia para ela falar na frente das pessoas que ele

e novamente se pegava refletindo sobre como seria a infância

era meu marido, que eu nunca ia conseguir outra pessoa, que eu

dos filhos sem a convivência com o pai.

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“Eu vim de um lar horrível, uma família totalmente desestruturada, então eu abria mão porque estar com a minha

separados, logo começavam os envios de presentes, declarações amorosas e uma enorme pressão psicológica.

família era o que realmente importava para mim. Não importava se era na rua ou não”.

“Ele falava que ia mudar, que ia ser diferente, que me amava, que eu era a mulher da vida dele, que a gente

Acatar não significava se silenciar. Nos momentos em que tentava se impor, seu parceiro não aceitava suas opiniões e

tinha que lutar pela nossa família e nisso a gente sempre acabava voltando”.

acabava afirmando que precisava sair de casa para desestressar. Durante essas saídas, acabava colecionando amantes.

Foram seis anos de separações e reconciliações e 17 mudanças de casa. A cada término, toda a rotina da casa mudava. Sua filha

“Nos momentos de conflito ele falava que precisava de tempo, precisava respirar...Nessas ele arrumava mulher e eu

mais velha não aguentava mais mudar tantas vezes de escola. A situação se tornou desgastante para todos. Não era nada fácil.

acabava descobrindo. Eu não era de ficar falando, mas Deus

Depois de tanto sacrifício, quando seu caçula completou 10

sempre me mostrava tudo e na hora certa eu chegava nele

meses, decidiu se separar de vez. Em junho de 2015 tomou a

para questionar”.

decisão final: seu parceiro iria sair da casa. Já era algo certo entre o casal, ambos aceitaram a decisão. Como estava com o filho

Como já sabia e tinha certeza das traições, tentava rebater o

pequeno, decidiu aceitar o convite da sua mãe de morar com ela.

parceiro e ele sempre acabava decidindo separar ou afirmava que precisava de alguns dias para pensar. A decisão de

“Minha mãe chegou e falou: ‘Você está com o bebê de 10

continuar ou não com o relacionamento era interferida pela

meses, vai ficar difícil para você trabalhar. Eu prefiro que você

condição financeira de Clara.

venha para cá e a gente se aperta, dá um jeito. Eu fico com o neném para você ir trabalhar e te ajudo’ e eu acreditei…”

“Às vezes eu aceitava o período que ele decidia dar um tempo, às vezes eu já separava logo. Tudo dependia do meu

Após 21 dias da mudança, teve que ouvir sua mãe afirmando

estado emocional e financeiro. Quando eu estava bem eu

que tinha arrependido de ter chamado para morar junto. Ouvia

chutava o pau da barraca e falava: ‘vai embora mesmo, não

constantes reclamações do choro de seu caçula, a situação

quero mais, acabou’”.

estava ficando insustentável. Durante uma tarde, sua mãe saiu para trabalhar e quando voltou, Clara já tinha se mudado de casa

O casal vivia constantes idas e vindas. O discurso de mudança e arrependimento se tornaram rotina. Depois de alguns dias 54

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“Arrumei uma casa e me mudei no mesmo dia. Quando ela

solução foi trabalhar dobrado, mesmo no sacrifício.

chegou 18h eu não estava mais em casa. Era eu e meus dois filhos, só a gente”.

“Eu fazia de tudo. Fazia bolo, sobá, pastel. Comecei a fazer evento. Tudo o que aparecia eu fazia. Isso até aparecer minha

Seu ex-parceiro sempre estava presente na rotina da casa. Ele passava muito tempo com o caçula da casa e era muito apegado

barriga. Depois que começou a aparecer ninguém mais queria me aceitar como freelancer”.

com o filho, então passou a frequentar bastante a casa. Essa frequente aproximação tinha um único motivo; controle.

Em maio de 2016, a casa passou a ter uma nova caçula. A presença de outra irmã acabou despertando ciúmes na filha

“Eu não conseguia conversar com ninguém, eu só sabia

mais velha. Durante uma discussão, Clara se exaltou e agrediu a

trabalhar e cuidar das crianças. Ele se preparava e quando sabia

filha com três chineladas. No dia seguinte, a filha foi para a escola

que podia atacar, acabava atacando e a gente ficava junto. A

e não voltou mais. A primogênita decidiu ir para a casa da avó

gente ficou uma vez e eu engravidei novamente”.

materna e afirmou que não moraria mais com a mãe.

Quando foi contar sobre a gravidez para o ex-parceiro, ele falou

“Eu cheguei em casa, minha mãe tinha chamado o pai da

que estava com outra pessoa e cortou todos os vínculos. Foram

minha filha mais velha e ela tentou me bater. Eu estava com

nove meses sozinha, presenciando constantes provocações do

meu filho de 20 dias no colo. Foi algo horrível. Estava só eu e

ex e vivenciando a maternidade solo.

os dois pequenos”.

“Ele passava com a mulher dele na frente de casa, não me

O cansaço tomou conta da mulher de 33 anos. Os dois filhos

ajudava em nada. Não me ajudou nem a escolher o nome da

mais novos demandavam muita atenção. Ambos queriam colo

neném. Eu acabei tendo depressão novamente e não dormia,

ao mesmo tempo. Durante as poucas visitas, seu ex-parceiro,

não comia, não bebia”.

pai dos mais novos, acabava percebendo a fragilidade e cansaço e novamente tentava se reaproximar. Decidiram

Foram muitas noites de choro e medo. As contas não paravam

morar juntos novamente.

de chegar e não tinha outra solução a não ser criar forças e voltar a trabalhar. Por ser uma trabalhadora autônoma, pensava

“Eu estava morando em uma casa muito pequena e como

diariamente que se estivesse parada, não teria dinheiro para

nós dois estávamos pagando aluguel em lugar diferente,

pagar as contas. Sua maior preocupação era sobre o puerpério.

ele me chamou para morar com ele em um apartamento na

Como ela iria manter a casa com um bebê recém-nascido? Sua

Afonso Pena”.

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O parceiro a convenceu a vender todos os móveis e ir para

Conseguiu se mudar de casa, já que manter o apartamento

o apartamento na região central e nobre da capital. Durante a

na região central da cidade seria inviável e decidiu seguir

mudança, ele não avisou sobre um detalhe importante: as dívidas

a vida, na presença dos três filhos depois. Poucos dias

que ele possuía. Eram contas de luz, escola, estacionamento

após a mudança, o ciclo reiniciava. O ex parceiro abusivo

condomínio, todas atrasadas.

reaproximava com a conversa de que tinha se arrependido, tinha mudado. Chegava a passar horas na casa de Clara com

“Eu sempre trabalhei, sempre lutei muito para conquistar

a mesma postura de posse e controle.

minhas coisas, então não quis interferir na questão financeira dele. Na mesma época saiu meu auxílio maternidade, que era de

“Ele chegava e colocava a moto dele na frente do portão de

três mil e trezentos reais, mais o dinheiro da venda dos móveis e

casa para todo mundo saber que ele estava lá. Era uma forma de

fui lá e paguei todas as dívidas dele para que a gente pudesse

marcar o território. Ele achava que era meu dono”.

começar uma vida nova junto”. As constantes idas e vindas e promessas de mudança nunca Depois de alguns meses, sua filha mais velha acabou voltando

cumpridas lhe fizeram perceber que seu companheiro nunca

a morar junto pois a madrasta tinha agredido ela por algumas

mudaria. Decidiu que não queria um futuro dessa forma e passou

vezes. Logo as brigas voltaram a acontecer na casa e se viu

a fazer suas próprias mudanças pessoais. Teve a certeza de que

novamente no ciclo de vai e volta. Ficou desesperada pois tinha

precisaria terminar de vez o relacionamento quando o parceiro se

vendido todos os seus móveis e gasto o dinheiro que tinha. O

ofereceu para cuidar das crianças e acabou surtando por causa

que ia fazer? Para onde iria? Decidiu procurar ajuda na Casa da

de uma simples saída para jantar.

Mulher Brasileira e lá foi orientada pela Defensoria Pública a fazer um Boletim de Ocorrência e solicitar o afastamento do lar através da medida protetiva.

“Quando ele chegou, eu comecei a me arrumar e saí para levar minha filha na casa da amiga dela. Na volta, parei para comer um espetinho e desliguei o celular. Eu mal saía de casa. Era a

“Nessa situação de solicitar a medida protetiva de afastamento do lar, ele teria direito a pegar as roupas dele e ir embora. Eu

primeira vez que eu ficava cerca de uma hora fora de casa sem preocupação”.

achei injusto e decidi tentar fazer um acordo com ele em vez de abrir um boletim de ocorrência. Fui para casa e conversei com ele, ele falou que ia sair”.

Na volta, ao ligar o celular, percebeu que tinham registradas mais de 200 ligações perdidas. Se assustou com aquilo, já que a ausência tinha durado pouquíssimo tempo. O celular tocou e ela atendeu. Era a sua mãe lhe xingando de tudo.

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“Ela falou que eu era vagabunda, que eu ia perder as guardas

costas para a rua, e me gritaram. Meu funcionário me avisou que

dos meus filhos, que eu não podia sair de casa e deixar eles assim.

um cara tinha parado a moto e estava vindo na minha direção

Falou que eu tinha abandonado meus filhos”.

com a mão na cintura. Eu não sei o que está acontecendo. Eu apenas saí correndo. Minhas coisas ficaram tudo lá, por isso estou

Percebeu então que seu ex-companheiro tinha ligado para sua mãe contando sobre a situação. Ao chegar em casa, os dois

te ligando do celular da minha mãe. Eu não sei o que fazer. Você precisa se entender com seu louco.

estavam esperando na calçada e os xingamentos continuaram. Os dois proferiam acusações exageradas e vexatórias. Após cinco

Depois do ocorrido, seu amigo foi tentar registrar uma

minutos, um amigo de infância passou pela rua e a cumprimentou.

denúncia na delegacia do bairro, mas não conseguiu porque

Seu ex surtou:

afirmaram que quem deveria fazer o registro do boletim seria

— Tá vendo aí? Eu sabia que ela estava com homem.

ela. No dia seguinte, 13 de junho, retornou para a Casa da Mulher Brasileira e dessa vez resolveu fazer o registro efetivamente, já

E começou a agredir o rapaz que não tinha nada a ver com a história. A confusão e gritaria chamaram a atenção dos vizinhos.

que na primeira visita tinha recebido apenas orientação sobre as possibilidades de denúncia.

Decidiu então ligar para o advogado que estava responsável pela solicitação de pensão e questionou sobre o que poderia fazer naquela situação. Advogado: — Você está na sua casa?

“No dia que ele estava na porta da minha casa ele me ameaçou e falou: ‘Eu quero ver você com alguém por aí’ e foi por causa disso que consegui uma medida protetiva”.

Ela: — Estou! Advogado: — Então pega os seus filhos, entra para a

A medida protetiva era de 300 metros de distância. Após

casa e tranca o portão. Se eles continuarem fazendo isso

algumas semanas, decidiu jantar em um estabelecimento

você liga para a polícia.

com seu novo companheiro. Logo que chegaram, seu exparceiro entrou no mesmo lugar. Era uma noite de casais e

Após seguir o conselho, todo foram para suas respectivas casas e, por isso, imaginou que tudo tinha ficado bem. Na noite

ambos estavam acompanhados, por isso, imaginou que não aconteceria nada demais.

do dia seguinte recebeu a ligação de um número desconhecido. Era seu amigo de infância:

“Pensei que não poderia ser proposital. Logo que entrou, ele

Amigo: — Pelo amor de Deus, o que está acontecendo?

me viu e imaginei que ele iria falar para sua parceira o que estava

Ela: — Como assim? Por quê?

acontecendo e iria se retirar do local. Os minutos foram passando

Amigo: — Porque eu estava sentado na minha lanchonete, de

e nada dele se retirar. Fui tirar algumas fotos e de repente senti

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uma cotovelada. Era ele e eu vi que ele foi para a porta do salão, chamou um cara e apontou para mim”.

Após essa situação, a rotina passou a ser mais tranquila. Ele nunca mais tentou aproximação por causa da medida protetiva e, caso ele quebrasse a medida mais uma vez, ele seria preso.

Mesmo com medo, não se intimidou e avisou para o conhecido

Algumas

situações

constrangedoras

relacionadas

ao

ex

de seu ex que iria chamar a polícia pois ele não devia permanecer

companheiro ainda aconteciam. Ao buscar os filhos na escola,

no mesmo local que ela. Voltou para a pista de dança imaginando

ouviu o questionamento da diretora:

que estava segura e que seu ex tinha ido realmente embora. Logo

Diretora: — Eu preciso falar com você, mãe.

percebeu que ele estava sentado na mesa durante o tempo todo.

Clara: — Ok, pode falar. Diretora: — O pai das crianças veio aqui ontem e ele está muito

“Eu não sabia como agir no caso de descumprimento de

magoado com você. Primeiro porque ele está se sentindo traído

medida protetiva e fui na frente dele tirar uma foto dele. Meu

porque ele nunca imaginava você com outra pessoa e segundo

acompanhante chegou nele e falou que ele não poderia ficar

porque você colocou tornozeleira nele.

ali”.

Clara: — Primeiro que eu não tenho autonomia para colocar tornozeleira em ninguém. Isso é uma ordem que a juíza coloca

A discussão estava montada. Seu ex começou a gritar de que

e se ela determinou isso é por causa do mau comportamento

não era para ninguém mexer com a mulher dos outros, falou

dele, não sou eu. Eu não tenho o porquê de chegar aqui e contar

que não iria sair e começou a bater boca com quem tentasse

da minha vida pessoal.

pedir para que ele se retirasse. Clara precisou ligar para a Guarda Municipal para que ele finalmente saísse. No dia seguinte fez o

Atualmente, ficou sabendo que a medida protetiva

registro de quebra de medida protetiva. Por causa da quebra, seu

acabou há três meses. Possui guarda compartilhada das

ex parceiro teve que usar tornozeleira eletrônica por 60 dias.

crianças, mas não chega a ver o ex companheiro porque o filho mais velho dele é quem busca durante os finais de

“Durante

esse

período,

carros

rondavam

minha

casa

diariamente. Eu achava muito estranho e tinha muito medo. O

semana. Mesmo distante, ele usa as crianças como forma de atingir e prejudicar sempre que possível.

carro ficava dando várias voltas na quadra da minha casa. Teve um dia que a pessoa do carro deu três tiros para o alto. Chamamos

“As professoras já perceberam que o comportamento do meu

a polícia e informamos a placa. A placa do carro era trocada, era

filho altera quando ele fica com o pai. As crianças tiveram que

a placa de uma moto de Minas Gerais. Fizemos o B.O. mas não

passar por atendimento psicológico”.

tinha como provar que era ele”.

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Clara voltou a morar com a mãe após o término do

que preciso de um alvará, de uma licença e o curso me abriu

relacionamento de nove meses. O casal se dava muito bem, mas

horizontes porque agora eu sei que posso ser muito mais do

Pedro* passou a discutir, alterar o tom da voz e querer comandar

que aquilo que eu pensava que poderia ser, de forma séria e

seu filho do meio. Não aceitou esse comportamento e decidiu

profissional”.

terminar a relação. Após o término, passou por dificuldades financeiras ocasionadas pela depressão e pneumonia. Chegou a passar fome para não deixar os filhos sem comida.

Por causa das vivências anteriores, se sente insegura para ter um novo relacionamento. Está voltada totalmente para o cuidado com os filhos e o planejamento do seu café que possui um nome

“Eu perguntava para Deus onde Ele estava, por que Ele não me

que remete a um local bíblico.

ajudava. Eu não estava nada bem”. “Tudo isso me tornou uma pessoa muito desconfiada. Eu Contou com a ajuda de algumas pessoas e decidiu voltar para a casa da sua mãe. No final de agosto, realizou um curso

demoro um pouco mais de tempo para confiar nas pessoas. Mas a gente vai aprendendo”.

promovido pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, Serviço Nacional de Aprendizagem (Senac/MS) e Ministério

Sempre muito sonhadora, afirma que criou um padrão

Público do Trabalho de Mato Grosso do Sul, com o objetivo de

de família perfeita e acabou se decepcionando com os

proporcionar a reinserção de mulheres vítimas de violência

relacionamentos que teve.

doméstica e mulheres encarceradas. “Aprendi a viver com a realidade. Hoje sou uma mulher mais forte”. “Eu precisava desse curso porque eu precisava me recarregar, respirar novos ares. É muito problema para uma pessoa só. Eu não estava sabendo lidar com tudo isso”. Através do curso, pode aprender novas técnicas de confeitaria e aprimorar seus sonhos. Pretende abrir seu próprio negócio em breve. Por enquanto, aceita encomendas de bolo de amigos, vizinhos e conhecidos, mas planeja abrir seu café o quanto antes. “Eu pensava que era só reformar o espaço e começar a trabalhar. Mas o curso mudou todo o meu projeto. Agora eu sei 64

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*Nomes fictícios para preservar a identidade da vítima.

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5 O CRIME E A

TRANSFORMAÇÃO

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CAPÍTULO 5

O CRIME E A TRANSFORMAÇÃO

O olhar cansado e os braços com marcas de gordura revelam a exaustão de uma mulher que vive a rotina de um dos restaurantes mais famosos da capital sul-mato-grossense. O trajeto não é fácil. Mais de duas horas de ônibus entre o bairro Los Angeles e a Região Central de Campo Grande. A volta, durante a madrugada, é pior ainda. Mas Fernanda* passou por muito perrengue até conseguir um emprego fixo que, mesmo com todas as dificuldades é motivo de orgulho e realização. Caçula entre três irmãos, começou a frequentar festas desde muito cedo. Recorda que com oito anos de idade já acompanhava sua irmã que é seis anos mais velha. O sorriso no rosto sempre foi sua marca registrada. Falante e bem humorada, conquistava todo mundo e tinha muitos amigos. Amadureceu e passou a conhecer a realidade do mundo cedo. “Minha irmã sempre foi muito fechada, uma pessoa de poucos amigos e eu sempre gostei muito de falar. Eu saía com ela para conhecer a noite e fui indo”. As domingueiras de pagode eram famosas no bairros e reunia muita gente. Durante uma dessas festas, com 14 anos, começou 68

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a se relacionar com o pai da sua primeira filha. A diferença de

passou a consumir outros tipos de drogas.

11 anos de idade não impediu o andamento do relacionamento. O companheiro sempre foi muito tranquilo e parceiro, mas

“Eu não aceitei minha gravidez. Foi tudo muito conturbado.

a rotina de shows e as constantes traições fizeram com que o

Eu escondi dos meus pais até os cinco meses, eu não aceitava

relacionamento de seis anos chegasse ao fim.

aquilo. Eu tentei tirar ele mas não consegui. Durante essa gravidez eu comecei a usar pasta base. Comecei a fumar misturado, o

“Por ele ser mais velho, ele sempre foi muito cuidado e atencioso comigo. Ele me pediu em namoro para a minha mãe

pessoal chama de melado. Também comecei a cheirar cocaína, fiquei muito mal mesmo”.

e para o meu pai e a gente tinha um relacionamento tranquilo. Ele nunca foi de beber ou de usar droga, era bem sossegado.

Sempre pulso firme e de opinião forte, Fabrícia se viu em

Ficamos seis anos junto, mas ele era músico e me traía muitas

constantes situações de violência. Seu companheiro também era

vezes”.

usuário de drogas e extremamente possessivo e territorialista. A mulher falante começou a ser silenciada. Tapas e xingamentos se

A imaturidade da jovem também foi apontada como um dos fatores que auxiliaram o término. Não existia mais confiança entre

tornaram rotineiros. As expressões de desprezo passaram a ser ditas com gritos e apertos no braço.

o casal. O carinho e atenção deixaram de existir e ambos tomaram a decisão de terminar o relacionamento. Com o término, precisou

“Todas as minhas relações foram conturbadas. Ele quase

voltar para a casa da mãe, já com a filha de dois anos. Na época,

tentou me matar. Ele ia me dar um soco para desmaiar, quando

trabalhava como secretária em um curso pré-vestibular.

eu esquivei, ele me cortou e tenho a cicatriz até hoje”.

O segundo relacionamento resultou na gravidez de um menino.

Já estava exausta e com a autoestima completamente

A relação começou de forma inesperada. Fernanda começou

abalada. Resolveu colocar um ponto final no relacionamento.

a conversar com quem seria o pai de seu filho por intermédio

Mas o relacionamento com o parceiro não era a única situação

de uma amiga. No início não sentia atração, mas resolveu ceder

conturbada na vida. Seu irmão também era agressivo.

e aceitou o convite para sair com o rapaz. Depois de alguns meses, começou a sentir enjoos e frequentes dores no corpo.

“Meu irmão sempre foi muito machista e antigamente minha

Logo percebeu que os sintomas eram os mesmos que teve na

avó falava que o dono da casa era ele porque ele era o único

primeira gravidez. Comenta que sempre usou maconha desde

homem entre os três filhos. E ele é abusivo até hoje com minha

quando começou a frequentar as famosas domingueiras, mas

cunhada. Trata ela mal e tem filhos fora do casamento”.

que durante a gravidez não planejada, muito menos desejada, 70

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Os problemas começaram a ficar maiores. Com o constante

10 horas da noite a polícia parou o ônibus e pegou ela”.

uso de drogas, a mulher de presença e opinião começou a traficar durantes as festas. Como conhecia todo mundo da região

A “mula” era de Mato Grosso e não apagou as mensagens

e sempre fez amigos de forma muito fácil, não demorou muito

trocadas. Após a investigação, a polícia chegou até o casal

para estar fazendo negociações altas. Sempre foi tida como “irmã”

de amigos e posteriormente até a casa de Fernanda. Com a

dos “irmãos” do Primeiro Comando da Capital (PCC). Chegava a

apreensão de seu celular, a polícia também descobriu que

pegar R$10 mil em uma única entrega. Compensava a ausência

fazia “corre” pro Primeiro Comando e ela poderia ter sido

em casa com roupas e brinquedos das melhores marcas.

considerada como mandante do crime. Os “corres” eram feitos há mais de 15 anos. Entregas para pessoas de várias regiões do

Sempre foi muito conhecida e respeitada. Comenta com

país e até de países vizinhos.

orgulho o fato de possuir a única casa da avenida do bairro, algo que conquistou através dos “corre” que fez por mais de 15 anos.

“Eu estava no fundo da minha casa. A polícia chegou, tomou

Certeira e muito cuidadosa, sabia que só seria pega algum dia se

meu telefone e viu as conversas. Com as conversas, viram que eu

alguém a denunciasse para a polícia. E foi o que aconteceu.

fazia o corre pro Partido. Eu fui no fundo do poço”.

Era véspera do aniversário da filha mais velha. 29 de maio de

Acabou sendo ré confessa. Admitiu que tinha entregue a mala

2015. A data que mudaria para sempre a vida da mulher que se

para organizar a festa de 15 anos da filha porque precisava de

tornou mulher muito cedo. O esquema já estava certo, Fabrícia

dinheiro. Foram 15 dias na cadeia e depois um ano e meio em

entregaria uma mala às 10 da manhã. O local combinado era um

regime domiciliar vigiado e um ano no semi-aberto. Durante os

mercadinho do bairro, tudo planejado para que a “mula”, nome

15 dias na cadeia, continuou traficante e como tinha muito

dado à pessoas usadas para transportar drogas, não soubesse

contato com os “irmãos” do PCC, teve muitos privilégios

seu endereço.

durante esse período.

“Ela não sabia onde era minha casa. Eu ia sair do mercado e

“Me mandavam roupas boas, comida boa, as drogas para eu

subir com ela para o pasto, mas enquanto a gente ia, encontrei

traficar. No meio do crime a gente acaba conseguindo respeito. A

um casal de conhecidos que estava há dois bebendo e usando

hierarquia no meio do crime é só uma. Você vai fazendo os corre,

drogas e eles captaram que eu já ia fazer um corre para ganhar

vai se dando bem e você vai tendo seu nome respeitado. Então

um dinheiro e chamaram a gente. Como a menina era bem nova

15 anos fazendo corre pro Partido dentro do sistema, eu tinha um

e inocente, já enturmou com eles e foi entrando. Acabou que a

conceito”.

menina chamou um táxi sem eu ver. O táxi levou ela e quando foi 72

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Durante os poucos dias na prisão, fazia os “corres” por

com os serviços que o semi-aberto proporciona, a gente já pode

causa dos contatos que tinha. Eram muito anos de tráfico, a

trabalhar por conta. Tem que trabalhar, alguma coisa tem que

droga chegava fácil.

fazer, nem que seja uma declaração de autônoma. E como eu estava mudando de regime, nesse dia eu fui mandada embora

“O meu ex-marido ligava para as irmãs e as irmãs lançavam

do serviço e eu consegui sair mais cedo, porque tinha horário

para mim. Lançavam um pacotinho com 10 balas, às vezes faziam

pra entrar no sistema. Meu cunhado me ligou e falou que ele já

mais um pouco para mim. E têm leis lá na cadeia, não se pode

estava desenganado”.

passar por cima delas. Se passar por cima delas é passar por cima do Partido e isso não pode. Eles mandam e tem que fazer

A despedida foi determinante para que escolhesse novos rumos

do jeito que eles querem. Não pode confrontar eles, tem que ter

em sua vida. Sempre foi muito apegada ao pai e a partida fez com

disciplina. É diferente da rua”.

que ela refletisse sobre todas as suas escolhas e decisões.

Antes da prisão, chegou a passar alguns meses em Coxim

“Meu pai sempre foi minha figura masculina de personalidade

pois estava com o pressentimento de que seria pega alguma

porque eu nunca tive sorte com homem, com marido. Nunca.

hora. Logo voltou para a capital e percebeu que era algo que

Tanto que tentei várias vezes”.

aconteceria mais cedo ou mais tarde. Foi um período muito difícil para a família. Tudo aconteceu “Tinha situações que eu era a única mulher no meio e eu saía

muito rápido. O diagnóstico foi tardio e o baque fez com que

do bar e a polícia chegava. Eu nunca tive problema. Mas eu sabia

mudasse de vida. Foi procurada diversas vezes para fazer os

que alguma hora ia acontecer, eu sentia isso”.

“corre”, mas decidiu conquistar seu dinheiro de outras formas.

Os 18 meses em prisão domiciliar e a perda do pai fizeram

“Tudo o que aconteceu me fez crescer muito. Hoje eu trabalho

com que desistisse de traficar e parasse de usar algumas drogas

em um restaurante muito conhecido graças à uma oportunidade

ilícitas. Seu pai morreu de câncer. Conseguiu se despedir dele

que tive por causa da minha prisão. Fiz o curso Cozinha e Voz

por um momento de sorte, mas se arrepende de ter passado os

e depois consegui um estágio de dois meses no Senac e isso

últimos dias da vida de seu pai no semi-aberto.

foi muito para mim, porque a cozinha em si não é só aprender a cozinhar, ou fazer algum prato. É estar no dia a dia, é trabalhar

“Eu queria morrer junto com ele. Ele morreu no sábado de

sob pressão”.

manhã e na segunda eu mudei de regime, fui do semi-aberto para o aberto. No aberto a gente já não precisa mais trabalhar 74

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Reconhece que perdeu o crescimento dos filhos e que foi uma

por ser agressor de mulher.

mãe muito ausente durante muito tempo, mas está conseguindo reconquistá-los através da presença e diálogo, não comprando

“Meu filhos nunca presenciaram nenhuma situação. Esse

com presentes caros. Precisou viver situações caóticas para

cara gostava de cheirar cocaína e usar pasta base e como

refletir sobre seu papel como mãe e filha.

eu não aceitava, quando eu ia dormir ele usava muito. Ele começou a ficar muito estressado e a me agredir. Começou

“Eu vivia orando e foi muito difícil. Ninguém acreditava na

a ficar muito violento e a descontar em mim. Uma vez ele me

minha mudança. Pro crime, eles aceitam só se a pessoa parar

deu um chute que estourou tudo minhas veias e eu mandei

mesmo e eles chegavam a saber que eu não estava mais usando

ele ir embora”.

e eu consegui desvincular de tudo. Eu ganhava muito dinheiro, mas eu perdi muito, até minha liberdade. O dinheiro do tráfico é

O relacionamento chegou ao fim. Decidiu focar na vida

um dinheiro maldito, você não consegue segurar ele. Ele escorre

profissional e trabalhar com o que ama. Hoje, trabalha com a

pela sua mão, é uma coisa que você não vê”.

gastronomia, um dos seus maiores sonhos. Pretende ir embora

Um dos seus últimos relacionamentos também foi muito

de Campo Grande em breve. Planeja se mudar para o Sul e levar

conturbado. A relação que durou dois anos começou tranquila.

a família junto. Seus sobrinhos, que já moram na região, passam

Nos últimos meses de relacionamento o companheiro começou

as informações sobre o local para que possa se ambientar.

a não aceitar as suas opiniões e a querer controlá-la.

O sorriso no rosto permanece, mas as marcas e traumas de uma vida conturbada fazem com que seja mais reservada e

“Ele achava que eu tinha que ficar quieta e eu sempre fui muito bocuda e muito autoritária. Sempre tive muito pulso firme,

contida em alguns momentos. Sua essência continua, mas agora, ao lado de sua família.

principalmente, no meio da correria. Eu tinha muito contato com homem. As pessoas que eu tinha que procurar e conversar nos corres geralmente eram homens, eram poucas mulheres e ele não aceitava. Ele falava que eu tinha que ser mais humilde, mais submissa e ele ia me oprimindo. Desde falando que eu não era porra nenhuma. Ele me xingava”. Após alguns episódios, o denunciou na Delegacia da Mulher. Algum tempo depois, o ex-companheiro acabou sendo preso por tráfico e foi agredido na prisão justamente *Nome fictício para preservar a identidade da vítima.

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6 OS PRIMEIROS

SINAIS

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CAPÍTULO 6

OS PRIMEIROS SINAIS

O corpo que já possuiu diversos hematomas, hoje carrega uma vida e a esperança por tempos melhores e tranquilos. O bebê que está sendo gerado é o terceiro da mulher que viveu um relacionamento abusivo durante 11 anos. A filha mais velha tem nove anos e o do meio tem cinco. Ambos presenciaram diversas situações de agressões, tanto verbais quanto físicas contra a mãe. Joana* se casou quando tinha 18 anos e demorou muito tempo para perceber que estava vivendo com um parceiro abusivo. “A gente vai notar que está em um relacionamento abusivo com o tempo. São pequenas coisas que a mulher passa e não percebe. São sinais que eles dão, mas a gente não se toca”. Os primeiros sinais de abuso e controle foram relacionados à roupa. Sempre muito vaidosa, se preocupava com a aparência e amava se vestir bem. Seu parceiro passou a não aceitar que usasse roupa curta ou salto alto. Joana começou a mudar seus hábitos e seu guarda-roupa por causa desse controle. Não podia escolher as próprias roupas nem para visitar familiares. “Passei a usar só sapatilha. Se eu me arrumava para ir na casa do meu irmão, ele me questionava sobre porquê eu estava me 80

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arrumando para ir nesse lugar. E começa assim. São detalhes. Depois foi desenvolvendo”.

“Depois de um tempo ele voltou, mandou flores, veio com aquele papinho e a gente voltou”.

O cenário de violência foi apenas aumentando na casa da

Com a reconciliação, o casal teve o segundo filho. Ambos não

família. Tapas, empurrões, puxões de cabelo. Recorda uma

foram planejados. Na primeira gravidez, estava fazendo o curso

situação que aconteceu há mais ou menos quatro anos, após o

técnico em enfermagem e acabou tendo que abandonar o curso

noivado de seu irmão. Após a festa, ao retornar para a casa, seu

para cuidar da filha. Alguns anos depois, começou a fazer um

marido apertou seu pescoço.

curso de cabeleireiro. O marido a levava e buscava das aulas mesmo tendo dois carros na garagem da casa.

“Ele cismou que eu tinha alguma coisa com o noivo da minha amiga e eu expliquei para ele que o tempo que tínhamos de casamento, minha amiga tinha de namoro com o rapaz”.

“Durante o curso Cozinha e Voz mesmo, tiveram dois dias que precisávamos ficar o dia inteiro no Senac para poder terminar o curso. No primeiro dia ele foi me buscar para saber se eu estava

Apenas uma conversa entre amigas de infância, onde o

realmente nas aulas do curso. No outro dia ele foi me buscar de

namorado da amiga estava próximo e começou a rir das histórias

novo. Teve um dia que eu fui com o carro e não tinha lugar para

foi suficiente para que uma violência fosse feita no âmbito da

estacionar na rua principal e acabei estacionando na rua lateral.

residência do casal. E sempre era assim. Nunca na frente dos

Quando cheguei em casa ele falou: “Você não foi no curso. Eu

outros. Sempre em quatro paredes, onde a vítima estava sozinha e

passei lá e não vi o carro”. Tentei explicar que não tinha vaga na

não conseguia se defender. Entre amigos e familiares ele sempre

rua principal”.

foi um parceiro exemplar. Com o término do relacionamento, muitas pessoas chegaram a se chocar e a afirmar que

O marido trabalhava em um lugar bem distante de onde o

nunca tinham imaginado que o homem extrovertido e

curso era ministrado e mesmo assim sempre arrumava um jeito

sorridente era agressivo.

de controlar onde a esposa estava. A casa dos dois ficava longe da escola que as crianças frequentavam, que é no mesmo bairro

O ciúme era sempre presente na rotina do casal. O primeiro

dos pais de Joana. Teve um dia que ela levou os filhos para a

tapa foi dado quando a primogênita tinha apenas quatro meses

escola, passou no mercado, voltou para a casa para fazer alguns

e o primeiro boletim feito em um dia que o marido socou a

serviços domésticos e depois buscou as crianças na escola.

cadeira em que Joana estava sentada. A cadeira acertou a mesa

Quando o marido chegou do serviço, checou a quilometragem

da cozinha e a filha do casal acabou sendo queimada por chá

para saber se estava a mesma que nos dias anteriores.

quente. Na época, o casal rompeu a relação. 82

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“Ele cismou que eu tinha ido para algum lugar porque a

com o meu professor de química e ele é até casado. Estávamos

quilometragem estava maior. Aí ele zerou a quilometragem para

todos rindo e conversando na foto, era a foto da bagunça, a foto

fazer o percurso e ver se dava a mesma quilometragem”.

que representa nossa sala. E ele tacou o controle em mim e brigamos. Na época nossa casa estava em reforma e estávamos

A possessividade estava presente em todo o momento. Seu

na casa dos meus pais. Quando voltamos para a nossa casa ele

primeiro emprego com carteira assinada foi arranjado pelo

falou para mim que não iria sujar a vida dele, que se algum dia

marido. O dono da empresa era chefe do parceiro. O único lugar

ele fizesse alguma coisa, ele me mataria e se mataria depois. Isso

da empresa que não tinha câmera era o banheiro, ou seja, seria

eu nunca esqueci”.

uma forma de acompanhar cada passo que a mulher fizesse. Após toda essa situação, passou a refletir e a se questionar “Eu ia com meu carro, ele ia atrás e só ia embora depois que eu

várias vezes se o marido realmente tinha dito aquilo. Ele chegava

passasse pelo portão da empresa. Ele tinha acesso às câmeras,

a negar que tinha falado. Falava que a companheira tinha

então sabia o horário que eu entrava e saía”.

se enganado, que estava louca. Uma das últimas agressões sofridas foi quando decidiu terminar o relacionamento. Era

Em relação ao papel como pai, nunca foi presente ou atencioso. Nunca foi em consultas médicas, reuniões na escola. Mesmo

uma festa de aniversário, durante uma discussão acabou discutindo e indo embora da festa.

com a primogênita possuindo diversos problemas relacionados à alergias, nunca chegou a se preocupar.

“Meu pai foi buscar eu e as crianças e eu fui para casa. Quando cheguei em casa e fui pegar meu menino, ele me empurrou e

Em 2018, durante uma briga, Joana reagiu pela primeira

acabei batendo o joelho na porta e ele foi me empurrando até

vez. As agressões, verbais e físicas, aconteciam na frente das

na sala. Ele me apertou. E ele fala para todo mundo que eu

crianças. Uma das discussões aconteceu enquanto ainda

tropecei e bati na porta. Eu cheguei a entrar em depressão e não

estava grávida. A gravidez era de risco, mas iria acontecer um

conseguia sair. Eu era muito dependente”.

reencontro entre alunos do ensino médio e como seria no mesmo bairro em que morava, decidiu ir. Chamou o marido para ir junto, mas ele não quis ir.

Não conseguia passar nas entrevistas de emprego devido aos problemas existentes dentro de casa. Com o término, acabou descobrindo sequências de mentiras e está com uma dívida por

“Todos os colegas estavam com suas esposas, namoradas,

causa do ex-parceiro.

parceiras e no final do encontro a gente bateu uma foto entre todo mundo e a gente postou. Em uma das fotos eu estou conversando 84

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“Ele bancava o paizão, falava para todo mundo que pagava

minha então as crianças iam continuar comigo. E ele falou para

a escola das crianças, mas ele dividia o valor com o meu pai.

mim pelo telefone: “Você está me desafiando?” e desligou. Deu

Recentemente descobri que ele não pagava a parte dele e

quebra de medida protetiva. Ele tem duas, se tiver mais uma ele

tive que tirar as crianças da escola por causa dessa dívida. Ele

vai preso”.

comentava para todo mundo que pagava sozinho, mas nem pagava”.

A segunda quebra aconteceu quando o ex-marido começou a afirmar que Joana tinha feito transferência bancária da conta

Durante o casamento, seu marido chegou a vender o carro que

dele, como se a mulher tivesse roubado seu dinheiro.

Joana tinha ganhado de presente do pai. “Eu fui na Casa da Mulher me orientar e expliquei a situação “Ele sempre foi muito controlador e acabou vendendo o carro

para a delegada. Ela falou que eu podia registrar quebra de

sem eu saber. Ele vendeu o carro e acabou comprando outro

medida porque ele não podia ter contato comigo para buscar as

modelo. Eu falei para não comprar porque a parcela era quase

crianças e também por calúnia e difamação. Fui no banco, tirei

o mesmo valor que a escola das crianças. Com o processo da

o extrato da minha conta de todas as transações que fiz desde

separação, eu acabei ficando com esse carro e descobri que ele

quando a gente se separou e não tinha nada do que ele falou”.

não tinha pago as parcelas”. Começou a namorar em maio de 2019. No início do Atualmente, possui medida protetiva contra o ex-marido de

relacionamento, não passou o contato do atual parceiro para

300 metros de distância. Ele não pode chegar perto nem da

alguém, nem mesmo para os próprios pais. Durante um final de

família dela. A guarda das crianças está sob a responsabilidade

semana, ao buscar as crianças, seu ex-marido afirmou para seu

da mulher, o pai tem contato com elas a cada 15 dias. Mesmo

pai que sabia onde ela estava.

com o constante controle e possessividade do então parceiro na época, conseguiu concluir alguns cursos de cabeleireiro e hoje

“Quando eu estava solteira ele não me perturbava. Foi só eu

boa parte de sua renda vem disso. Durante um final de semana,

começar o relacionamento que ele começou a fazer essas coisas.

ao sair da casa do atual namorado e ir para a casa de uma cliente,

Teve um dia que dei um tapa na minha filha e ele registrou uma

recebeu a ligação do ex-marido questionando onde ela estava.

denúncia de maus tratos contra mim. Disse que eu não estava deixando ela comer, mas ela realmente não pode comer alguns

“Respondi que não era da conta dele, que ele não tinha que

alimentos por causa da alergia”.

saber onde eu estava. Ele falou que era para eu passar o endereço para ele buscar as crianças e eu falei que não, que a guarda era 86

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Relata que foi muito complicado perceber tudo o que estava

passei por isso?”. Quando a juíza começou a colocar os pontos,

acontecendo durante o relacionamento abusivo. Os excessos

foi o momento que a gente mais chorou. Eu me via em tudo no

de ciúmes, sentimento de posse, silenciamento e controle só

ciclo da violência, onde o parceiro faz a agressão e depois fala

passaram a serem vistos efetivamentes após a agressão física.

que mudou”.

“A gente não consegue ver. A gente só enxerga o

Recorda que o parceiro nunca foi de demonstrar afeto,

relacionamento abusivo depois que toma um tapa, depois que

mas sempre após as brigas e discussões ele retornava com

toma um apertão. Porque até então você não vê, você acha que

presentes e com o discurso de mudança. Todos os anos

é normal a pessoa falar coisas como: “você não vai usar essa

de constante violência fizeram com que a autoconfiança e

roupa”, “você não vai usar esse batom”. Eu cheguei a ficar sete

autocuidado fossem deixados de lado.

anos passando os finais de semana só com os familiares dele, passando a conviver em lugares só com os amigos dele. E a

“Eu ouvia minhas amigas falando que nunca tinham me visto

pessoa vai te colocando em uma dependência. Quando você

naquela situação. Eu me arrumava até para comprar pão e fui

se dá conta de si, acha que não dá para sair. Mas dá para sair”.

perdendo isso. Hoje estou mais tranquila por causa da minha gravidez, mas antes eu mudei toda a minha forma de vestir e me

As agressões sempre vão se tornando cada vez piores.

cuidar por causa dele”.

A mudança do agressor nunca é para melhor. No dia 15 de dezembro de 2018, motivada pelo Projeto Cozinha e Voz, decidiu

A violência é comum na família do ex-marido. A ex-esposa de

se separar e dar entrada ao divórcio. O convite para participar do

seu ex-cunhado registrou mais de 14 boletins de ocorrência de

projeto surgiu por causa de um boletim de ocorrência registrado

violência doméstica. A relação entre os irmãos também sempre

contra o parceiro na Casa da Mulher Brasileira.

foi muito conturbada e recheada de brigas.

“Durante o curso eu passei a acordar. São muitas histórias de

“No aniversário de um ano da bebezinha deles [ex-

mulheres que sofreram. A gente conversava bastante durante o

cunhados], a irmã deles maquiou a mulher para esconder o

projeto e eu ficava bem chocada com o que cada mulher passou.

olho roxo porque ele tinha agredido ela. Graças a Deus ela

Um caso que emocionou muito todo mundo foi a história da

conseguiu se separar e hoje ela está muito bem e se casou

índia que estava longe dos filhos e era ameaçada de morte pelos

novamente”.

familiares da aldeia. Eu visualizei muito durante as palestras que tinha tendo durante os dias porque eu via os pontos que eles

Ainda sobre a relação dos ex-cunhados, alguns meses após

colocavam e me reconhecia naquilo e pensava: “mentira, eu

o término, o ex-cunhado invadiu o apartamento da ex-mulher e

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chegou a agredi-la.

saísse do relacionamento naquela semana, ele iria me matar. Tudo aconteceu bem no período do projeto”.

“Ele entrou e bateu nela e no namorado. Ela tem boletim contra ele desde 2013 e aí durante essa festa ela me falou que ele bateu e logo veio a irmã dele maquiar para esconder. Meu ex e o ex dela nunca gostaram da nossa aproximação, mas a gente sempre se apoiou”. A dependência faz com que a mulher acredite que não é possível sair do ciclo de violência. “Nenhum deles chega na agressão física em si. A partir do momento que ele te deixa dependente, a mulher acha que não consegue. A mulher pensa: “eu não vou conseguir viver sem ele”. Hoje eu já falo sobre, mas antigamente quando eu tinha que contar eu chorava muito. Com a dependência, você abre mão de tudo. Abre mão das suas amizades, começa a trocar seu guardaroupa sem nem perceber”. O momento determinante para o término foi quando, durante a madrugada, tinha medo de dormir com o parceiro. Passava a dormir na sala em algumas noites para ficar distante dele. Não conseguia dormir direito, acordava várias vezes durante a noite com medo do que poderia acontecer. “Teve um dia que eu cochilei e acordei com ele escorado me encarando entre a cozinha e a sala. Uma outra vez eu acordei e ele estava me vigiando de novo. Eu não dormia. Eu cansei de cochilar e acordar e ele estar lá escorado me encarando. Teve um dia que uma mulher virou para mim e falou que, se eu não 90

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*Nome fictício para preservar a identidade da vítima

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7 AGRESSÃO SEM

TOCAR

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CAPÍTULO 7

AGRESSÃO SEM TOCAR

A primeira lembrança da denúncia é sobre um questionamento do escrivão. Eduarda viveu um relacionamento abusivo e quando decidiu procurar ajuda na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, integrada à Casa da Mulher Brasileira, ouviu do escrivão durante seu relato a pergunta: “Por que você namorou esse cara?”. O processo de encorajamento para procurar ajuda e fazer a denúncia é complicado, leva tempo e muitas reflexões. Para a vítima, tal questionamento foi humilhante. “Você está ali super sensível, isso porque eu nem tive uma violência de física, mas eu sofri violência psicológica muito forte. Então imagina alguém que foi estuprada e recebe uma crítica dessa. Quando procurei o pessoal da Subsecretaria da Mulher para receber orientação sobre a questão do atendimento psicológico, comentei com a equipe que achava o atendimento da Casa da Mulher maravilhoso, com exceção da Delegacia e eu ouvi que aquela era uma reclamação frequente no local”. “Como que coloca homem para fazer um atendimento em delegacia de mulher?” é o que questiona a vítima que recebeu julgamentos ao fazer a denúncia. Foram dois boletins de 94

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ocorrência registrados no local. Ambos contra a mesma pessoa,

“Eu lembro bem, foi no dia de Finados e aí depois disso a

seu ex-namorado. A medida protetiva que possui é de contato e

gente continuou conversando, mas parecia que ele não queria

aproximação. O primeiro boletim de ocorrência foi registrado em

nada. Depois de um tempo mantive conversa pensando que teria

18 de junho de 2016.

continuidade, mas percebi que ia acabar não dando em nada. A gente ficou um bom tempo sem se falar”.

“A medida saiu quatro dia após o boletim. Foi bem rápido por ser um trabalho de polícia, trabalho judicial. Na época eu até brinquei

No final de 2013 voltaram a conversar. A iniciativa foi de Eduarda.

porque ele passou de namorado para criminoso. A foto dele que

Sentia que existia uma sintonia e que a conversa fluía muito bem.

eu guardava na carteira, anexei no boletim de ocorrência. É muito

Mesmo distantes, se encontravam nas reuniões que aconteciam

bizarro isso”.

nas casas de amigos. Após a volta das conversas rotineiras, ficaram novamente e um mês depois foi pedida em namoro.

Em uma data próxima ao seu aniversário, recebeu uma intimação que afirmava que o processo de perturbação de sossego que ela tinha feito contra o ex-namorado tinha sido arquivada.

“Começo de namoro é sempre uma maravilha. Bem na época eu estudava para concurso e ele também. Fazia dois anos que eu tinha me formado em Direito. Ele passou em dois concursos

“Eu amassei o papel da intimação por medo e raiva. E tinham

e acabou perdendo o concurso na hora da posse. Em um

me falado que quando o processo judicial era arquivado ou

dos concursos ele não passou por causa da etapa do exame

quando ele era julgado inocente, a medida protetiva perdia o

psicotécnico. Ele não me explicou sobre o exame então não sei

efeito automaticamente. E eu enlouqueci. Fui no mesmo dia

o que aconteceu”.

no Fórum para pegar a senha do processo para saber porquê tinha sido arquivado. No processo consta como justificativa do

Seu ex-namorado era sustentado pelos pais e após, os

arquivamento a falta de prova, que eu não tinha como provar o

problemas que teve com o concurso, passou a não ter

que falei”.

motivações ou planos profissionais. A rotina do casal começou a ser alterada. O rapaz consumia bebidas alcoólicas todos

O relacionamento surgiu através de amizades em comum. No final de 2011, ambos começaram a conversar muito por uma

os dias da semana e isso foi incomodando a advogada que atuava em um escritório da capital.

rede social. Eram horas de conversa e surgiu um interesse entre ambos. Na mesma época, ficaram pela primeira vez.

“A gente tinha oito anos de diferença de idade, mas não é nem por questão de maturidade, eu vejo mais pelo próprio machismo mesmo, porque mesmo ele tendo essa idade, a

96

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postura dele não era das melhores. Chegou um momento

“Ele cobra dos pais e se não consegue faz chantagem

que ele não estava trabalhando nem estudava e às vezes

emocional. Lembro que um dia ele queria uma bicicleta que

eu passava na casa dele depois de sair do escritório e ele

custava mais de R$ 1 mil e ele ficou perturbando os pais para

estava tomando cerveja em plena quarta-feira no meio da

conseguir isso. Às vezes saía para passear no shopping e

tarde. E não era uma ou duas cervejas. E isso começou a ser

voltava com vários jogos, várias coisas. Tudo o que ele falava

um problema”.

era atendido”.

Com menos de um ano de namoro, já começaram a surgir

Diversas discussões aconteciam entre o casal por causa

problemas entre o casal. Eduarda se incomodava com as atitudes

do excesso de consumo de bebida alcoólica e falta de

do parceiro. O constante diálogo presente no início da relação

responsabilidade:

acabou sendo deixado de lado. A sintonia e gostos semelhantes não eram suficientes para que o relacionamento fosse saudável.

— Paulo, você toma remédio controlado, não pode ficar bebendo cerveja assim.

Os desentendimentos começaram a ficar frequentes. Paulo* era

— O médico falou que não tem problema tomar um pouquinho.

muito ansioso e fazia uso de remédio controlado. Nunca quis

— Mas é um pouquinho e você não consegue beber pouco.

comentar sobre o motivo e sobre sua saúde mental com Eduarda.

Você só bebe se for para ficar bêbado. — Você só enche meu saco, tá parecendo minha mãe. Para

“Eu tenho certeza que ele me escondia alguma coisa.

com isso, mãe!

Depois que tudo aconteceu e comecei a conversar com alguns

— Olha só, você não me chama de mãe. Eu estou falando as

profissionais e a ler algumas coisas, penso que ele pode ter traços

coisas porque interfere na nossa relação e se eu fosse sua mãe

de psicopatia, alguma coisa assim. Eu sentia alguma coisa fora do

a gente não teria a relação que a gente tem então pensa bem

lugar. Eu percebia que ele tinha uma postura de cobrar dos pais

antes de falar isso.

dele o que eles não deram durante a infância”. Os

pais

de

Paulo

trabalhavam

muito.

— Tá bom, desculpa. Quando

tinha

Por vivenciar várias questões familiares de traições e

aproximadamente seis anos, seus pais se separaram e por causa

términos, Eduarda tinha uma insegurança em relação ao seu

da rotina de trabalho, não recebia atenção da família. Faltava

namoro. Os casamentos de seus avós e tios sempre foram

contato, diálogo e afeto. Por essa falta na infância, cobrava os pais

relacionamentos muito conturbados. Em todos os términos,

a todo momento, principalmente de forma financeira. Sempre

existia traição por parte de alguém.

negou ajuda profissional. Eduarda conversava diversas vezes sobre procurar um psiquiatra. Ele nunca aceitou. 98

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“Eu acredito muito nesse peso de referência familiar. Então às vezes nem tinha nada, nenhuma suspeita, nenhum fato

insegurança ia ficando cada vez maior. Eduarda sente que a relação abusiva começou nesse momento.

que comprovasse algo, mas eu tinha uma insegurança. Com mais ou menos seis meses de namoro eu resolvi me abrir

“Eu não percebi. Fui perceber só quando estourou o negócio e

com ele sobre isso. Eu me senti confortável para falar sobre

ainda assim eu estava muito dependente dele e ainda fiquei com

isso com ele”.

ele por mais um tempo. Eu comecei a perceber que ele usava tudo o que eu tinha conversado com ele para me atingir. Acho

Após alguns dias, seu parceiro começou a utilizar formas de lhe atingir pois conhecia todas suas fraquezas. O desabafo, que

que ele não confiava no próprio taco e precisava fazer isso para sentir que eu gostava dele”.

foi feito como sinal de confiança e pedido de ajuda, se tornou uma ferramenta de provocação por parte do ex-parceiro. Atividades

A gota d’água aconteceu durante uma briga em um consultório

corriqueiras como sair para jantar se tornaram estressantes e

veterinário. Paulo encontrou com um primo com quem tinha uma

incômodas para o casal.

desavença de anos e ao chegar no consultório para buscar o

— Paulo, me incomoda a forma com que você conversa com essa pessoa. Parece que você faz isso para me provocar. — Tá, eu não vou parar de conversar com ela. “Ele não buscou nenhuma forma de dialogar sobre isso. Apenas ignorou a minha reclamação. Depois de algum tempo,

cachorro de Eduarda de um procedimento cirúrgico, começou a gritar e a xingar o médico veterinário porque ele não tinha passado as recomendações pós-cirúrgicas. “Ele gritava muito, surtou mesmo. A secretária falou que ia ligar pro 190”.

a gente ia comprar um lanche nesse mesmo lugar para comer em casa. Quando chegamos, eu estava descendo do carro junto

Após a discussão com o veterinário, algo que foi constrangedor

com ele e ele falou que só ia pedir o lanche e voltar para o carro,

e impactante para a advogada, seu então parceiro falou: “Você

que não era para eu descer. Ele desceu, ficou conversando com

viu? Você viu o que eu sou? Eu sou um monstro!”. Eduarda chorou

essa mulher e me deixou sozinha no carro. Daí eu desci e fiquei

durante o trajeto inteiro entre a clínica e a casa de seus pais e

sentada esperando o lanche. E deu discussão mais uma vez”.

ficou tentando entender o que tinha ocorrido. Ao chegar na casa, foi para o quarto e não quis explicar para a sua mãe o que tinha

A briga foi bem feia, mas não foi a primeira nem a última

acontecido.

entre o casal. Durante uma outra discussão, o ex-parceiro comentou que ficaria com a pessoa que trabalhava na

“Eu estava com susto, com medo, com raiva, com tudo. Eu fui

lanchonete. E a cada dia que passava ele provocava mais. A

para o meu quarto e ele ficou com meus pais. Quando eu voltei

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para a sala, meus pais estavam apoiando e concordando com ele.

menos não faz diferença para mim.

Me senti a louca da história. Me arrependi de não ter explicado logo o que tinha acontecido. Eu comecei a me questionar se aquilo tinha mesmo acontecido”.

A partir disso o namoro ficou completamente fragilizado e as discussões apenas aumentaram. Paulo passou a não frequentar mais a casa dos sogros e cortou toda a relação possível. Eduarda

Uma pessoa que trabalhava na clínica ligou para sua irmã

implorava para que ele pedisse desculpa e reconhecesse o erro.

e pediu para conversar com sua mãe para comentar sobre a

Ele nunca chegou a se arrepender ou tentar reverter a situação e

situação. A veterinária ligou por preocupação e disse para a mãe

a cada dia que passava a relação ficava mais insustentável.

de Eduarda que estava com medo pois, durante a discussão, todos pensaram que o parceiro de sua filha estava com uma arma na bolsa e isso seria um perigo para ela e sua família.

“Tinha vez que eu estava no trabalho e ele me ligava no meio da tarde falando que estava tomando cerveja em um quiosque que a cerveja mais barata custa 15 reais. Eu comecei a me

“Minha mãe assustou com aquilo e começou a explicar que

questionar se era realmente isso que eu queria para a minha vida,

ele era uma pessoa muito querida e atenciosa, que não faria algo

mas eu ainda estava presa. Não era nada concreto mas a gente

assim. E minha mãe continuou argumentando para que o médico

não estava bem”.

veterinário não registrasse boletim de ocorrência sobre a briga. Quando eu percebi, ele estava na janela ouvindo o que minha

Sempre fugindo da realidade e dos diálogos, o ex-concurseiro

mãe estava conversando. Depois disso ele mudou e começou a

tentava ignorar todas as tentativas de conversa e nunca facilitou

reclamar e falar mal da minha mãe”.

ou tentou mudar seu discurso. Depois de algum tempo, falou que iria conversar com a mãe da advogada apenas se o pai dela

— Paulo, o que aconteceu?

também estivesse junto. Eduarda pensou que seria bom, que

— Sua mãe ficou falando coisa de mim. Ela não tem que falar

naquele dia iria resolver parte dos problemas e voltar a ter a

nada. Se quiserem tirar satisfação sobre mim que venham tirar

mesma relação tranquila que tinha nos primeiros dias de namoro.

satisfação comigo porque eu não sou moleque para ficar sendo

Durante a conversa, Paulo começou a expor as fragilidades do

defendido por outras pessoas.

relacionamento, tentando culpabilizar a família pela falta de

— Cara, eu não acredito que você está falando isso.

confiança da parceira. Algo que era para ser uma reconciliação,

— Sogra é tudo igual, duas caras.

se tornou uma briga maior ainda.

— Você não fala assim da minha mãe. Como assim ela era duas caras? Ela estava te defendendo. — Eu não ‘tô’ nem aí, um boletim de ocorrência a mais ou um a 102

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“Ele tentou subir o tom de voz com meu pai e depois debochou perguntando se ele fazia gosto do relacionamento. Meu pai falou SIGA, ENFRENTE

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que a decisão era minha, mas que ele não aprovava o namoro.

Em junho de 2015, mesmo com o relacionamento enfraquecido

Continuamos juntos por um tempo e era discussão todo dia. Todo

e com as constantes brigas e discussões, um dia antes de ir

dia o assunto vinha à tona”.

para Portugal, combinou com o parceiro que iria na casa dele se despedir para viajar. No meio da tarde, recebeu uma ligação

— Paulo, a partir de hoje eu não quero saber da sua família enquanto você não se resolver com a minha.

falando que não poderia estar em casa pois estaria em um barzinho. Falou para o parceiro ir para o bar e voltar para a casa

— Ah, é assim? Olho por olho e dente por dente?

no horário acordado anteriormente. Ele concordou. Dez minutos

— Não, simplesmente não vou fingir que nada está acontecendo

antes do horário combinado, recebe outra ligação.

quando tudo está acontecendo. Eu não vou para a casa do seu

— Estamos aqui no bar. Você vai vir pra cá, né?

pai, da sua mãe e da irmã como se estivesse tudo bem. Eles

— Eu viajo amanhã, você acha que tenho pique e cabeça para

ignorando que meus pais existem, você ignorando que possui

ir em bar? Esteja na sua casa na hora que a gente combinou. Se

problema com meus pais e vou fingir que está tudo bem.

você não estiver, eu vou embora sem a gente se despedir.

Os encontros do casal foram diminuindo cada vez mais. Todo

— Tá bom.

feriado ou final de semana o namorado ia para a casa de sua mãe que ficava na fronteira com o Paraguai. — Paulo, você não pode ficar um feriado aqui pra gente ficar junto?

Naquele momento, decidiu que não deveriam permanecer juntos. Cansou de tentar dialogar e sempre ceder às coisas e nunca receber nada em troca. Estava exausta das brigas e

— Não, não posso.

discussões. No início, o parceiro não concordou com a decisão,

— Mas por quê?

mas depois ambos reconheceram que era a melhor coisa.

— Eu quero ir para Ponta Porã! — Mas a gente só fica junto em final de semana e feriado.

“Minha mãe tinha muito medo que ele fizesse alguma coisa

— Mas eu quero ir pra lá.

contra mim para atingir ela ou meu pai, então ela apoiou o

— E você não consegue dividir seu tempo?

término. Os 15 dias de viagem serviram para eu colocar minha

— Não.

cabeça no lugar. Eu precisava respirar”.

— Pelo amor de Deus, para de ser egoísta. — Eu faço o que eu quero.

Quando retornou ao Brasil, se encontrou algumas vezes com o

— E ceder nada?

ex-namorado ainda na tentativa de resolver algumas pendências.

— Não, eu não acho que preciso ceder nada.

Não queria voltar com o relacionamento, mas sentia que ainda

— Tá bom, tudo bem então.

gostava do ex. Decidiram que iam continuar conversando como amigos. Não deu certo. Em agosto, percebeu que não conseguiria

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desvincular se ainda continuasse conversando com ele. Cortaram

aconteceu em um sábado de junho, às seis horas da manhã. A

todos os vínculos para que ambos seguissem a vida.

cachorrinha da casa começou a latir pois notou algo estranho próximo ao portão. O ex-namorado estava parado na frente da

Lágrimas tomaram conta dos olhos castanho escuro ao

casa e ao notar a presença da mãe de Eduarda, arrancou com

lembrar de uma situação que o ex-parceiro pediu ajuda após um

o carro. Ele tinha deixado um jornal na calçada. A manchete

incidente em um bar. Ele tinha brigado durante uma discussão e

do dia era sobre a guerra de drogas no Paraguai e sobre a

estava muito machucado. Mesmo sempre falando para Eduarda

morte de alguns traficantes.

que entre ela e os amigos ele sempre escolheria os amigos, ela foi a única que se disponibilizou a ajudá-lo no momento de sufoco.

“Eu peguei o jornal para ver se ele tinha escrito algo. Quando

Em meio aos machucados, o homem que nunca reconheceu

minha mãe viu a manchete e mostrou para o meu pai, meu pai

os próprios erros ou tentou dialogar sobre os seus problemas,

lembrou do dia que a gente estava em casa, em uma época que

afirmou que iria mudar e pediu perdão.

ainda estava tudo bem, que em tom de brincadeira ele disse que

— Eu quero voltar a frequentar sua casa, quero pedir desculpa

a qualquer momento podia me pegar, me levar para o Paraguai

pros seus pais. Te amo e você é muito importante para mim. Me

e sumir comigo. Meus pais tinham muito medo do que ele podia

perdoa por tudo o que eu te fiz.

fazer comigo e me deu um baita medo e fui fazer o boletim de

— Tudo bem, Paulo. Eu perdoo e te desculpo, mas não tem como recuperar o que aconteceu. Não tem como voltar

ocorrência. Era pra eu ter feito o boletim em janeiro, mas pensei que não daria nada”.

atrás e consertar o que está quebrado. Eu renunciei a minha vida. Eu sempre te coloquei a frente de tudo e não acho que isso seja o certo.

Seu ex-namorado sabia de toda a sua rotina e conhecia toda a sua família e amigos. O medo tomou conta de sua rotina. Não conseguia fazer as coisas normalmente, pois sempre pensava

“Eu percebia que aquilo não me fazia bem, que o

que ele poderia estar por perto e fazer algo.

relacionamento estava me machucando. Não dava mais. Eu não conseguia mais. Ele chorou muito, mas continuei falando que não dava”.

“Eu fiquei com um terror psicológico que eu tinha medo dele aparecer a qualquer momento, em qualquer canto ou me esperar em algum lugar. Eu comecei a ficar ligada nos

Pensou que após a conversa estava tudo resolvido. Mesmo

carros que eram iguais ao dele e comecei a ficar prestando

com o término, recebeu ligações por algumas vezes. Quando não

atenção em placa o tempo todo. Foi um mês sem botar o

atendia o celular, o ex-namorado ligava para o telefone fixo da

pé para fora de casa. Nem colocar o lixo para fora eu podia

sua casa. Isso a incomodava muito. A atitude mais assustadora

porque tinha medo”.

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O medo e a insegurança ainda estão presentes em sua vida, mas agora de forma mais minimizada. Seu ex-parceiro se mudou para uma cidade turística do interior do estado. Mesmo sabendo disso, ainda precisa se controlar com a questão de conferir as placas de carro pois o trauma ainda está presente. Anda com a medida protetiva que possui contra ele dentro da sua carteira, não larga para nada. “Hoje estou mais tranquila, fortalecida e preparada para um esbarrão na rua, mas não é uma coisa que eu espero ou desejo. O máximo que eu puder estar longe eu fico”.

*Nomes fictícios para preservar a identidade da vítima

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8 A LIBERDADE QUE NÃO

CHEGA

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CAPÍTULO 8

A LIBERDADE QUE NÃO CHEGA

A agressão sofrida por Catarina* veio da onde ela menos esperava. Seu filho de 28 anos é seu principal agressor. Já registrou boletim de ocorrência contra ele algumas vezes, mas agora tenta apenas conviver sem “causar maiores confusões” como ela mesma diz. Ele é o filho mais velho e não mora mais na mesma casa que ela. Apesar de ser separada do marido e perceber que ele também precisava ser denunciado pela Lei Maria da Penha, sua denúncia é apenas contra o filho que já chegou a agredi-la fisicamente. Tem três filhos. Atualmente mora com a filha de 17 anos, o filho de 23 e a esposa dele em uma casa no fundo de um terreno. No mesmo terreno, em uma casa ainda em construção, mora seu ex-marido. Ele possui outra família e é casado com a ex-amante, mas continua morando no mesmo endereço que Catarina e interferindo diretamente em seu dia a dia. A residência fica no mesmo bairro da Casa da Mulher Brasileira, no Jardim Imá. A mulher demonstra inquietude e revolta pelo fato do ex-marido não sair da casa, muito menos tentar vender ou adotar uma solução para que ambos sigam suas vidas. O casal se conheceu há mais de 30 anos, quando a mulher tinha 15 e ainda morava com os pais. Quando tinha 17 anos, saiu de casa para morar com 112

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o então namorado na casa da família dele. Era responsável

“Estava tudo tranquilo e ele ligou do nada. Ele fala um monte

por ajudar nos serviços domésticos e recebia certa quantia

de coisa, me ameaça. Ontem ele falou que se eu prejudicar ele,

como pagamento. Após o casamento, se mudou para a

ele pode até ser prejudicado, mas na hora que sair de lá vai

casa que vive até hoje. A casa fica a menos de 100 metros

vir me acertar. Ele falou: “A senhora vai me pagar pelo o que a

de distância da casa da ex-sogra. Os dois filhos mais velhos

senhora fez. Está acontecendo tudo isso comigo porque a culpa

do casal nasceram durante o casamento e a caçula nasceu

é da senhora”. E eu não entendo essa revolta dele e acabo não

quando eles já estavam separados.

denunciando por dó dele”.

“Ele saiu de casa quando descobriu que eu estava grávida e

Mora no mesmo local há mais de 30 anos e todos os vizinhos

foi muito sufoco para criar esses meninos. Eles eram pequenos

sabem do histórico de agressões sofridas, tanto pelo ex-marido,

ainda e eu criei todos sozinha”.

quando pelo filho mais velho. Comenta que pensa em denunciar novamente, mas tem medo do que o filho possa fazer.

Quando foi agredida pelo filho mais velho usuário de droga e procurou ajuda na Delegacia Especializada de

“Sabe aquela pessoa que mexe com seu psicológico e te deixa

Atendimento à Mulher, recebeu a orientação de que não

mal? É ele. Ele é problemático e quer me deixar problemática.

poderia continuar morando na mesma casa que ele por

Ele me deixa depressiva e eu não mereço isso. Como ele tem

questão da medida protetiva.

coragem de fazer isso com a própria mãe?”.

“Eu ficava com dó dele. Filho é filho, então deixei ele continuar morando nessas peça da frente. Eu tentava conversar com ele

O ex-marido se demonstra abusivo e controlador há muito tempo. Catarina não entende porque não consegue se ver livre de ambos.

para ele melhorar e depois ele acabou voltando para essa casa e dormia na sala”.

“O pai dele me persegue e sempre me perseguiu. Eu me sinto presa no meio deles”.

Há mais ou menos cinco meses ele se casou e saiu da casa. Um dia antes da entrevista, Catarina recebeu uma ligação de ameaça

Grande parte de seu tempo é voltada para a participação de

dele. Ela pensava que como ele estava casado, trabalhando e

ações e eventos da igreja que frequenta e também para a produção

morando longe da sua residência, teria pelo menos um pouco de

de algumas comidas. A mulher que sempre amou cozinhar

paz em relação às agressões.

se dedica a fazer alguns salgados e pratos por encomenda. É formanda do Projeto Cozinha e Voz. Foi convidada a participar por causa da denúncia contra o filho. Reconhece a importância

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da formação mas sente que seu trabalho é prejudicado pelo aspecto físico do local onde mora. A parte da frente do terreno,

Sempre tentou prezar pelo diálogo. Quando o filho ou o exmarido a ofende ou agride, não aceita calada.

onde fica seu ex-marido, é repleta de mato e lixo. “Nessa última briga eu falei para meu filho ontem que nunca “Se a pessoa vem aqui buscar uma encomenda, ela acha que

fui na casa dele, nem sei onde ele mora, falei que não dependo

não tenho cuidado com a comida. Eu não posso colocar uma

dele e quer ficar vindo tirar minha paz. Eu não tenho marido, não

placa divulgando meu trabalho porque aqui é muito feio”.

tenho que dar satisfação para ninguém. Eu já sofri muito criando esses três filhos sozinha. Eu entreguei minha vida para eles, não

A mulher também realiza alguns trabalhos como manicure e

viajava e não saía para cuidar deles”.

pedicure. Conhece muita gente no bairro e as pessoas tentam ajudá-la indicando clientes. Os filhos e a nora trabalham fora

Após vivenciar diversas situações de violência em sua própria

durante todo o dia, sua única companhia é um filhote de Shih Tzu

casa, decidiu se dedicar à igreja. Imaginou que seria algo

muito carinhoso que cuida como se fosse um filho.

fortalecedor, que a fizesse crescer. Ouviu de “irmãos” da igreja deveria aceitar as coisas calada e precisava prezar pela família.

Admite que apesar das agressões verbais constantes, tem medo de denunciar o ex-marido ou denunciar o filho novamente.

“Eu já fui apontada e julgada como uma vergonha na igreja

O terreno onde mora está no nome do ex e ao procurar ajuda e

porque eu grito, não aceito desaforo. Eles falam que eu não tenho

orientação sobre divisão de bens, não recebeu o esclarecimento

libertação, que a gente precisa se libertar. Eles mexem com o

necessário para conseguir viver longe de ambos.

psicológico da gente, pressionam”.

“Quando procurei a Casa da Mulher Brasileira, elas falaram

Procurou ajuda na Casa da Mulher Brasileira há mais de dois

que não podiam fazer nada por mim sobre isso, que eu teria

anos, mas hoje não tem coragem de denunciar. Só registrou o

que ir em outro lugar pedir ajuda. O pai dos meus filhos acha

boletim porque foi trancada dentro da própria casa pelo filho.

que é dono de mim. Eu nunca fui na delegacia pra denunciar ele porque eu não quero. Se eu for lá vou prejudicar ele na

“Eu não quero ver meu filho atrás das grades. Ele é muito

empresa e eu não quero prejudicar. Só que ele não me dá paz,

sofrido. Se tornou uma pessoa muito amarga. E eu tenho medo

fica aqui o tempo inteiro. Não adianta conversar. Ele bebe e me

de denunciar ele. Em 1º de abril de 2017 eu denunciei ele porque

xinga”.

ele me bateu. Ele me trancou aqui e falou que ia pegar a faca e me matar”.

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Sempre que tenta resolver o impasse com o ex-marido, ele

mulher o tempo todo com medo de uma traição tinha até filho

joga na cara que o terreno está no nome dele e é a mulher

fora do casamento. Quando descobriu a traição que durava mais

que precisa sair. Continua sem ver solução para isso. Mesmo

de cinco anos, decidiu continuar com a relação mas falou que o

separada, continua sendo controlada. Se dependesse de sua

parceiro precisaria escolher com qual mulher ficaria. O homem

escolha, estaria com ex-marido até hoje.

decidiu se casar com a amante, mas mesmo assim continua morando no mesmo terreno que a ex-mulher.

“Se fosse pela minha vontade eu estava com ele até hoje criando nossos filhos. Ele acabou com o nosso casamento por causa de uma amante”

“Eu amava ele muito. Eu entrei em depressão e tentei suicídio. Eu não aceitava. Eu casei para ter um homem só, construir minha família e criar meus filhos. Foi muito difícil. Minha cabeça ficou

O controle por parte do ex-marido é presente na rotina de

conturbada. Para mim, não tinha sentido viver. E ele continuou

Catarina há muito tempo. Quando estudava a noite, em uma

lá e aqui e teve um dia que mandei ele ir embora de vez. Ele foi

escola do bairro, o então companheiro chegava a segui-la

mas voltou”.

durante o trajeto para a aula. Em uma ocasião, acabou xingando e humilhando ela na rua. A aula acabava 22 horas e o bairro não

Durante anos, teve até a compra no mercado controlada. Se

possuía muitas casas, então a mulher saía da aula e logo ia para a

alimentava muito mal. Chegou até a passar fome em um período.

casa com medo de acontecer algo na rua. Não sabia que o perigo

O ex-marido nunca deixou que ela comprasse alguma comida

estava justamente na pessoa com quem dividia o teto.

diferente. Era sempre o que ele determinava e escolhia, não importava a situação financeira da família.

“Eu voltava sozinha, vinha correndo porque tinha medo. Um dia eu percebi que ele estava em uma esquina. Fiquei feliz porque achei que ele estava indo me buscar. Ele começou a me humilhar

“Ele não me tinha como mulher, me tinha como escrava. E eu não podia viver do jeito que ele queria que eu vivesse”.

e falar que eu só ia para a escola ver macho. Ele tentou me bater, meu ex-sogro me protegeu. Quando cheguei em casa ele tinha

Seu maior sonho é conseguir um lugar para morar sozinha e

quebrado meu guarda-roupa e jogado todas as minhas roupas

reconstruir sua vida longe do filho e do ex-marido. Sente que

fora. Todos os vizinhos escutaram a briga. Era ciúme que ele

isso é um sonho distante, vê que a realização é muito difícil de

tinha”.

acontecer. Mesmo separada e com o filho morando longe, possui uma rotina cheia de agressões e controle. Espera conseguir sua

Acabou desistindo de terminar os estudos por causa da briga e agressões. O homem que sentia tanto ciúmes e controlava a 118

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liberdade algum dia. *Nome fictício para preservar a identidade da vítima

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9 DENUNCIE

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CAPÍTULO 9

DENUNCIE SERVIÇOS À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA: Polícia Militar 190 Guarda Municipal 153 Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência 180 Casa da Mulher Brasileira R. Brasília, Lote A, Quadra 2 s/n - Jardim Imá, Campo Grande - MS (67) 2020-1300 Centro de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (CEAM) R. Pedro Celestino, 437 - Centro, Campo Grande- MS (67) 3361-7519 Subsecretaria de Políticas para a Mulher de Campo Grande (SEMU) R. 15 de Novembro, 1373 - Centro, Campo Grande - MS (67) 3382-7541 Subsecretaria de Políticas Públicas para Mulheres de Mato Grosso do Sul (SPPM/MS) R. Pedro Celestino, 437 - Centro, Campo Grande - MS (67) 3361-6191 Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Assistência Social e Trabalho (SEDHAST) Av. Desembargador José Nunes da Cunha - Parque dos Poderes, Campo Grande - MS (67) 3318-4100

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