Velhas histórias - livro-reportagem de perfil dos idosos do Asilo São João Bosco

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VELHAS HISTÓRIAS



VELHAS HISTÓRIAS Livro-reportagem com perfil de idosos do asilo São João Bosco

LUANA DE PAULA AFONSO Campo Grande - MS 2017


Textos: Luana de Paula Afonso Fotos: Ana Maria e Crispim: Acervo do asilo, não informado fotógrafo Jorge, Zé Pretin e Zezinha: Luana de Paula Afonso Revisão de Texto: Rose Mara Pinheiro Projeto e Produção Gráfica: Luana de Paula Afonso Orientação: Rose Mara Pinheiro

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Afonso, Luana de Paula Velhas Histórias - Perfil de idosos do asilo São João Bosco / Luana de Paula Afonso Projeto experimental, Curso de Comunicação Social - Jornalismo Campo Grande, MS: Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 2017 __________________________________________________________________


Dedico este trabalho e toda a minha vida aos meus pais, Ildeu Afonso de Carvalho Junior e Ana Claudia de Paula Dias, que sempre se esforçaram para me proporcionar tudo. Todo o meu amor e gratidão eterna a vocês. Agradeço ao meu irmão Lorenzo de Paula Afonso por ser anjo, amor e luz em minha vida. E a toda a minha família por sempre se fazer presente com apoio e carinho. Agradeço aos meus amigos pela atenção, conselhos e fidelidade. Um agradecimento especial a minha orientadora Profa. Dra. Rose Mara Pinheiro por ter entrado neste trabalho comigo, por me guiar, animar e, acima de tudo, por ser peça chave na concretização do TCC. Obrigada! Aos meus professores da graduação que sempre estiveram dispostos a ajudar e transmitiram, brilhantemente, conhecimento. Agradeço a Deus por tudo. E, por fim, um obrigada especial aos personagens, Ana Maria, Crispim, Jorge, Zé Pretin e Zezinha, por terem compartilhado comigo tanta vida.


Sumário O Asilo 13 O Solitário Crispim 19 As Travessuras de Ana Maria 23 A Briga de Paz do Zé Pretin 27 Zezinha Pernambucana 31 Jorge: O Carioca Malandro 35


Pré-texto O primeiro dia que visitei o asilo, sentei na recepção aguardando a assistente social e, de longe no corredor, vi uma senhora pequena, com vestido lilás de algodão, arrastando o velho chinelo em uma tentativa aparentemente difícil de caminhar. Fiquei intrigada pela resistência dos idosos em se aceitarem velhos, mas também pela força que muitos aplicam em atividades físicas comum, como andar, se sustentar em pé ou comer. A produção deste livro é a união de conhecer e contar histórias de vida que aconteceram em um tempo diferente do que vivemos e a tentativa de eternizar essas pessoas através do texto. Ana Maria, Crispim, Jorge, Zé Pretin e Zezinha, este livro foi escrito com vocês e para vocês, obrigada. O asilo permite que cada um tenha uma sensação diferente pelo local, há quem se sinta triste nos corredores brancos e silenciosos, por exemplo. Mas há também quem se sinta bem em ganhar um abraço ocasional de algum idoso carente. O livro traz foto dos personagens, mas não há sequer uma do asilo. Isso porquê, para mim, o local é encantador e quero que cada um possa ler, sentir e soltar a imaginação para idealizar um lugar através da descrição. Conheça agora algumas histórias de quem reside no asilo São João Bosco. Boa leitura!


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O Asilo A avenida estreita, mas movimentada, mescla condomínios e pequenos comércios. De um lado uma lojinha de roupas, do outro uma conveniência com a fachada cheia de anúncios de gelo e cerveja. A rua é de mão dupla, sem acostamento e faixa única, vez ou outra um ônibus invade a contramão para desviar de um carro estacionado em lugar indevido. A avenida traz consigo toda a agitação de um percurso bairro-centro e quem anda por ali, nem imagina a calmaria de uma das moradas do local. O muro, certa vez, foi branco. Hoje é coberto por desenhos coloridos que crianças, de algum projeto social, pintaram. Apesar da arte e aparência de abandono, a proteção das laterais e do fundo da grande quadra, quase no fim da avenida, é feita com mérito. Na frente um jogo de arames forma uma tela protetora de losangos. Por fora, não diria ser um asilo. Talvez não exista um padrão para esses locais e seja realmente difícil identificar um. Também poderia dizer que o asilo é mágico, só para prender a atenção de vocês, mas logo na entrada, o portão de pintura bege desgastada falha por falta de óleo e, se não falha, range. Esta história não é de ficção, mas sim um livro-reportagem. O verdadeiro encanto está nas tantas personagens que ali vivem. Do lado direito de quem entra no asilo está o salão de festas e o longo gramado verde que recebe os principais eventos do local. O salão é vermelho por fora, tem janelas grandes, mureta e pilares. Por dentro é claro, amplo e com espaço suficiente para várias mesas brancas de plástico em um dia de festa. O bloco no centro do terreno abriga a parte administrativa e o dormitório feminino. Por fora tijolinhos claros brincam de rusticidade, mesmo que não seja esse o estilo do lugar. O piso e o meio das paredes 13


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internas são de azulejo branco e uma pastilha vermelha acompanha do início ao fim e mostra que há charme por ali. Não há uma sala de recepção, apenas um conjunto de mesas de escritório formando um “L” e a recepcionista que, entre uma ligação e outra, abraça e conversa com os idosos que passam pela entrada. As próximas portas largas, de madeira, representam as salas do grupo que cuida do asilo: assistente social, financeiro, jurídico e outras burocracias mais. Adiante, barras de metal garantem a acessibilidade necessária para o corredor, quartos, banheiros e todo ambiente capaz de receber um idoso. A luz, moderna, é um quadrado embutido no gesso branco do teto. Poderia muito bem ser o corredor de um hospital qualquer, não fosse por tantos senhores e senhoras perambulando, vez ou outra, pelos ambientes. Na ala feminina, uma janela comprida no corredor principal indica o refeitório. Algumas mesas pequenas e uns jogos de cadeira compõe o ambiente que, à primeira vista, parece simples, mas suficiente. Entre os dormitórios femininos, milhares de histórias acompanham quem vive por ali. No primeiro quarto, por exemplo, tem cinco camas hospitalares, mas só a dona Maria Helena repousa por lá, na verdade, ela e um gato branco de estimação. Em um dia, o gato é a Mimosa, noutro tem um nome masculino. As camas são padrão: brancas, de ferro e baixas. Há também cômodas de três gavetas e um banheiro em cada quarto. Alguns têm geladeira, TV e armário, porque cada morador pode levar o móvel que lhe pertence ou comprar com o tempo (e com a aposentadoria). Há, porém, quartos com pouco movimento. Lá estão as histórias deitadas, paradas no tempo que passou. Algumas encolhidas, outras esticadas. Quarto meia luz. De lá ouve-se o som distante de alguma televisão. O lençol branco sem movimento. O soro pendurado no alto, pinga tão levemente, que parece esperar alguma novidade de quem não vem. Lá, a enfermaria. 14


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Na lateral externa a oportunidade de respirar ar livre. Um longo pátio é sombreado por árvores frutíferas e, por tanta idade, as mangueiras mostram que são verdadeiras moradoras dali. Coqueiros e grandes pés de jaca também compõem o ambiente. A maioria do piso é cimentado e o restante é grama, mas o verdadeiro aconchego é composto pelo grupo de bancos cinzas, também de cimento que, solitários, apreciam a companhia uns dos outros. Mais pra frente a opção de lazer dos mais religiosos: a capela. Todo arrumadinho, o lugar tem estrutura de madeira, conjunto de acentos no mesmo material, imagens coloridas com figuras angelicais penduradas e condições para realizar às quartas e sábados missas para quem quiser participar. No canto esquerdo do terreno fica a ala masculina. Dessa vez, a parede de fora é revestida com tijolos marrons mais escuros. Por dentro, a ala parece com a – azulejo branco no chão e em parte da parede, pequenas pastilhas azuis e barras de metal unem charme e acessibilidade. No bloco dos homens, além dos quartos, há diretoria, farmácia e refeitório. Aparentemente este lado é um pouco mais antigo que o das mulheres. Alguns senhores, por vezes parados, trazem vida ao local. Ora movemse nas cadeiras de roda, ora resmungam barulhos incompreensíveis. Mesmo que pareça que ali beira a inércia, desentendimentos agitam a ala. O senhor Crispim e o senhor Ribeiro, por exemplo, não se dão bem desde a discussão e briga pelo barulho do rádio de um terceiro senhor. Crispim quis ligar, Ribeiro deu-lhe uma bofetada na cara porque não queria ouvir o rangido do equipamento. Crispim nunca o perdoou, Ribeiro não se arrependeu. No fundo do terreno uma horta quase suplica por água e disputa um lugar por entre o mato alto. Árvores espalhadas garantem poucas sombras para aquele lado meio abandonado, mas cheio de vida. Toda essa estrutura que, aos meus olhos é linda, é mais recente. O Asilo São João Bosco foi fundado em 1923 e, na época, era uma casa 15


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pequena que abrigava idosos carentes. Nos anos seguintes, o grupo que administrava o local ganhou outros terrenos, abrigou outros idosos e, em 1976 mudou para o atual local. É possível dizer que a entidade já abrigou mais de mil idosos, mas hoje 77 deles residem lá. São milhares de histórias que, se não contadas, sumirão entre as tantas paredes do asilo.

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O Solitário Crispim José Crispim de Miranda nasceu em Cuiabá, Mato Grosso, no dia 21 de janeiro. Para saber o ano, segundo ele, é preciso fazer as contas: são 77 anos de vida. Crispim é negro, a pele escura e firme formam poucas rugas e seria até possível acreditar que ele é bem mais novo. Os cabelos, sobrancelha e bigode se destacam brancos sob a pele. As vestimentas lembram a época que trabalhou em fazenda. Um boné verde com detalhes em amarelo anuncia alguma propaganda de produto agropecuário. Camisa social branca de manga curta, calça social azul escura e uma botina de couro amarelada. Crispim tem quatro botinas, mas não usa uma delas porque espera uma ocasião especial. No bolso da calça as chaves que ele tranca os pertences no quarto. No bolso da camisa, o maço de cigarro divide espaço com o lenço xadrez que ele, constantemente, enxuga o suor. Organizado como é, Crispim mantém no braço esquerdo um relógio prata e monitora o tempo que passa, na espera de algo que parece demorar a chegar. Os olhos de Crispim confundem-se: ora pretos, ora azuis envelhecidos, possível resquício da catarata que ele recém corrigiu com cirurgia. Não há dentes na boca dele, mas há um sorriso fácil que se sobressai à dificuldade da fala. De volta à infância, na pequena casa com teto de babaçu, Crispim recorda-se da luta de dona Mariana, sua mãe. Ela era lavadeira, carpia quintal e, nos momentos de mãe brava, obrigava os filhos a ficarem abraçados após um desentendimento. Crispim, então, apanhava, já que raramente abria mão do orgulho. Do pai, ele só se recorda do abandono, mas, por bom exemplo da mãe, Crispim trabalhou muito e desde cedo. Com sete ou oito anos ele começou no garimpo e separava entulhos. Na adolescência e mantendo o ritmo de 19


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trabalho, Crispim diz que conheceu “o mundo da farra”. Ele não quis dizer o que isso significa, mas deixa no ar o registro que o fez gastar boa parte de seus salários. Ele não se lembra, ao certo, quando veio para Campo Grande (MS), ainda era novo e queria novas oportunidades de trabalho. Conseguiu. Crispim teve serviços em fazendas e fez de tudo um pouco. Satisfeito com a vida profissional, pergunto sobre os amores… Olhar longe, a cabeça busca na memória alguém, um nome ou uma presença. Mas Crispim é solitário e não lembra de alguém que o tenha marcado. Com o passar dos anos e a mocidade distante, ele enfrentou três sérios problemas de saúde. Precisou tratar uma úlcera, depois um problema na próstata. Quando tudo parecia melhor, Crispim foi passear de bicicleta e acabou atropelado. Já um pouco debilitado, uma conhecida quis levá-lo para o Asilo São João Bosco, mas veja só, o pássaro voante, o homem livre dançante, teria de restringir os passeios e diminuir seu espaço de convívio para a parte interna do local. Não quis. Não que seja um lugar ruim, mas Crispim não queria mesmo ir para o Asilo. Nem tudo na vida é escolha e ele se mudou para o local. Foi obrigado, repete. Reside lá há três anos, em um pequeno quarto no final do corredor. O aposento é dividido com um senhor que, segundo Crispim, é bondoso, exceto quando esquece uma fralda geriátrica suja no chão. Crispim é muito organizado. Uma cômoda branca pequena, encostada na parede, sustenta a também pequena mala com mudas separadas de roupas bem passadas. O cadeado mantém tudo seguro. À frente está a cama hospitalar, sobre ela um travesseiro fino e um conjunto arrumado de roupas e um pijama, tudo bem dobrado. Embaixo da cama a caixa de papelão guarda o par de botinas novas que Crispim não usa. Também há uma televisão, uma cadeira de fio verde e uma geladeira que ele guarda algumas frutas que traz dos passeios acompanhados ao mercado. Crispim envolveu-se em uma briga no Asilo. Ele foi ligar o rádio de 20


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um colega, mal sabia ele que o senhor Ribeiro tinha recém desligado o aparelho, incomodado com o som. Foi então que, revoltado, Ribeiro deu um safanão no rosto de Crispim. Ribeiro nunca pediu desculpas, ainda bem, Crispim não desculparia. Ele fala a quem quiser ouvir que tem um inimigo na casa e espera que a justiça seja feita. Amargurado, mas de bom coração, Crispim sobrevive a uma rotina sempre igual. Acorda às 5h30 e toma o remédio da pressão. Fica deitado na cama até às 6h, levanta e toma banho. Toma apenas um café preto pela manhã e depois dois outros remédios que ele já nem sabe pra que são. Ele anda pelo Asilo na espera do almoço. Almoça. À tarde é hora de trabalhar, Crispim pega uma cadeira branca de plástico, coloca próximo à grade da frente do Asilo e fica olhando o movimento na rua. Solitário, acompanha a vida passar. Enjoado do silêncio, decide andar pelos corredores, assiste TV no quarto, lembra que precisa vigiar mais um pouco o movimento na rua, depois toma um café preto na hora do lanche da tarde. Espera o tempo passar. Passou. Janta e, por fim, depois de tanto movimento da mesma rotina, deita-se até o próximo dia igual.

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As Travessuras de Ana Maria A pequena menina que tanto corria, hoje caminha com dificuldade para carregar o peso das costas curvadas. Nascida em 1923, Ana Maria Dias Batista foi criada por vários tios e tias após a vida fazer dela órfã. A mãe morreu na cama por alguma doença nos primeiros anos de dona Ana. Já o pai… “Um dia papai saiu de casa com saúde, mas demorou para voltar”. Ele pescava às vezes e, dessa, morreu afogado. “Tô velha e até hoje lembro de me levarem para ver papai na água. Eu chamei muito por ele”. Depois do trágico episódio, ela foi pra casa de uma tia, que não aguentou criar a menina. Depois, de casa em casa, foi dispensada pelos parentes a cada malcriação. Ana Maria era muito arteira. Ela me olha, diz “coitadinha de mim, eu era tão boazinha” e se curva em uma longa e gostosa gargalhada. Ela parece ter acabado de reviver uma boa fase da infância. De arte em arte, dona Ana subia em árvores grandes, jogava bola de papel nos amigos e quase se afogou uma vez. Pergunto se ela faz bagunça até hoje, ela abre novamente aquele grande sorriso na boca rosa e responde “não sei quando vou ser gente”. Nossa conversa aconteceu no quarto de dona Ana, ela sentada na cama, olha para longe atrás das lembranças. Os pés, feridos pelo tempo, sequer alcançam o chão. Eu vejo olhos marejados, cansados, pele cor de caramelo, cabelo cinza e ainda consigo enxergar uma menina. Alcançada a mocidade, dona Ana conheceu e se casou com um rapaz muito bom. “Meus tios até ficavam bravos por ele ser muito bonzinho”, isso porquê, segundo ela, nem depois de casar parou de aprontar. Ela ia em bailes durante o dia, se maquiava e se vestia sempre bem. Mas veja só: “nunca usei vestido curto, viu”. Naquela época não era comum uma moça 23


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ter tanta liberdade e dona Ana foi muito feliz assim. “Fiz a vida por ser boa”. O casamento deles durou trinta anos, até que o rapaz morreu. “Por falta de cuidado, eu acho, nenhum médico nunca me disse”. Os cabelos curtos formam ondas, como vibrações de alguma música que nunca parou de tocar, rente à pequena cabeça. O rosto delicado, bem cuidado, acumula algumas rugas de experiência. Ela tem dentes grandes na boca, que formam sorrisos puros e verdadeiros de quem superou dificuldades com a alegria da vida. Ana Maria usa um vestido verde escuro com pequenas flores, um agasalho também escuro de lã e um terço marrom que não sai das pequenas mãos agitadas. A risada é fácil, o riso frouxo. “Aprendi muito com a vida. O mundo é a escola”… E você, que pensa que a dona Ana terminou a conversa com uma bela filosofia, saiba: ela deu uma gargalhada e disse se lembrar das broncas que as tias davam e que vinham seguidas com um alto grito de “ê menina”.

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A Briga de Paz do Zé Pretin Lá vem Zé Pretin, em sua cadeira de rodas com vários penduricalhos. Uma mochila na parte traseira do assento carrega baralho, roupa, pano, sacolas plásticas e já vi até um pão francês lá dentro. Zé Pretin é manso, mineiro, negro e risonho. É também companheiro, trabalhador, jogador de baralho e asilado. Nos dedos, ele têm três grandes anéis. Em um braço, relógio, noutro, pulseira. No pescoço, um colar com peças pratas e douradas e um pingente com o símbolo da santa Maria. Ele diz que é católico de criação, mas que “viver em paz é a melhor religião”. Este perfil não é sobre crenças, mas sobre José Sebastião de Brito. Nascido em sete de novembro de 1949, em uma fazenda no município de Santa Tereza de Bonito, Minas Gerais. Ele brinca que não se lembra do parto, mas ficou sabendo que nasceu na cama, pelas mãos de uma parteira. Zé Pretin se recorda de muito trabalhar desde criança, sempre em fazenda e, aos onze anos, decidiu que era hora de sair de casa. A família era boa, mas a vida estava a chamar por ele. Zé não foi para o mundo, foi para outra fazenda onde trabalhou por mais oito anos em serviços braçais. Certo dia, Zé Pretin foi para o boteco – aqui eu gostaria de me prolongar em um suspense, mas logo digo – ele participou de uma briga, desferiu um par de pauladas em um sujeito e acabou preso. Foram onze meses de reclusão e, apesar de tanta dificuldade, passou firme e com sorte. Zé dividiu cela com dois fazendeiros, que haviam matado cada um, um; Ele conseguiu desfrutar de algumas regalias por isso, como jogar baralho e, vez ou outra, conseguiam um "goró". Ele garante que nunca sentiu raiva desta fase da vida. “Não achei tão dos pior”. Ao sair da cadeia, ele viu em Campo Grande uma oportunidade de se 27


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reerguer na vida. Seguiu os trabalhos em fazendas, namorou duas mulheres, tem uma filha e, agora, dois netos. Já com idade avançada, certo dia, Zé Pretin se sentiu confuso e com as ideias bagunçadas, saiu de casa e foi para um mato. Ele não se lembra de muito, mas sabe que uma assistente social o encontrou e o encaminhou para o asilo São João Bosco, onde mora há cinco anos. Ele teve início de derrame e hoje precisa da cadeira de rodas para sustentar as pernas e mãos dormentes. Mas isso não o impede de aproveitar e gostar do asilo. “A gente come, bebe e dorme. Nem precisa trabalhar”. Zé é simples, humilde, às vezes calado, outras gozador. Os grandes olhos dele se escondem por detrás de um óculos sempre embaçado com uma armação preta e fina. As poucas rugas se moldam ao redor dos olhos em cada nova risada. Com um estilo próprio, ele usa um chapéu de estampa camuflada, uma camisa amarela da Seleção Brasileira de Futebol e uma bermuda preta. Sereno, parece não se preocupar com a vida a passar, parece sequer perceber que a cada novo dia, a mesma rotina traz a comodidade, outrora percebida, como interno de um regime fechado.

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Zezinha Pernambucana A dona Zezinha tem uma história simples, mas a lembrança um pouco confusa. Maria José do Nascimento nasceu no dia 12 de agosto de 1954, na pequena cidade de Cumaru, em Pernambuco. O pai, Joaquim, era cobrador de ônibus e a mãe, Josefa, dona de casa. Os pais, conforme Zezinha se recorda, eram legais. A família foi grande, nasceram 14 filhos. Na época, as condições não eram boas e, com a renda muito baixa, seis crianças morreram de fome. Disto Zezinha pouco se lembra ou fez questão de esquecer. Ela e a família moravam em um sítio e a infância foi bem aproveitada, apesar de humilde, dessas em que se brinca muito e estuda pouco. No caso de Zezinha, só até a quinta série. Mas não por escolha. Ela e a família tiveram que mudar para Recife porque o pai recebeu uma boa proposta de emprego e, na época, Zezinha largou os estudos para trabalhar em uma mercearia com a irmã. As duas pequenas empacotavam e colocavam alimentos em prateleiras, tudo em troca de um pão, uma manteiga e um pouco de café. Como nem tudo é dificuldade, Zezinha namorou três rapazes. Um deles, inclusive, era primo dela e foi aprovado pelos pais. “Eles eram legais”, ela explica. Com o passar dos anos – e da vida – Zezinha teve um filho, João Paulo, que é o grande amor e orgulho da vida dela. O filho cresceu e, em tempos modernos, conheceu uma garota pela internet, ele em Recife e ela em Campo Grande. Por amor, João passou em um concurso em Mato Grosso do Sul e ele e Zezinha mudaram de estado. Esta história não é sobre João, mas sim Maria José. Zezinha é caricata, tem pernas longas e finas e o tronco pequeno. Pele branca, bem branca. O cabelo é curto e cinza, que ela arruma bem num penteado todo pra 31


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trás. O rosto é redondo e tem bochechas grandes e rosadas. Delicada, poderia facilmente ser uma boneca. Zezinha morou com o filho, mas, depois de dois AVCs e um grande medo de cair pela casa, decidiu que a melhor escolha seria se mudar para o Asilo. Há um ano reside no São João Bosco e parece gostar do local. No quarto que divide com mais uma senhora, Zezinha tem um espaço todo especial e bem equipado. A mesma cama hospitalar dos outros dormitórios, mas com um colchão alto de molas. Ao lado da cama, um frigobar armazena duas maçãs e três sucos de caixinha. Uma cômoda com roupas e um armário grande cheio de cremes e perfumes completam o ambiente. Na TV, o canal já é definido: “aquele das missas”. Zezinha pernambucana é vaidosa e gosta de roupas estampadas. Ora se veste com um vestido de onça, ora combina blusa e bermuda azuis. Os óculos e as chaves que trancam os armários ficam pendurados no pescoço por um cordão preto. Peço por uma lembrança de tempos antigos, Zezinha revira o baú das memórias, me olha firme e se lembra de uma vez que um rio inundou o sítio em que morava na infância. Era muita água. Pergunto: o que mais? Mais nada. Zezinha é de poucas palavras.

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Jorge: O Carioca Malandro Jorge Ayrolla Luiz é alto, branco e parece ser o mais lúcido e saudável do asilo. Ele não gosta de falar a idade, mas garantiu ter 45 anos. Nascido e criado em Nova Friburgo, Rio de Janeiro, é desses que faz piada aos quatro ventos, socializa e ajuda a todos com quem cruza. Falador como só ele, vive contando histórias e leva consigo toda bagagem de um carioca malandro. Aos 17 anos prestou uma prova e passou para o Corpo de Fuzileiros Navais. O interesse na área militar começou quando Jorge morava perto do sanatório naval e acompanhava a ida e vinda de pacientes no local – aqui cabe uma nota da autora sobre a possibilidade desta informação ser apenas para acalentar a história. Jorge foi, então, ser recruta na Ilha do Governador, também no Rio. Os dois anos que se seguiram foram difíceis. “O direito do recruta é não ter direito nenhum”, explica. Depois disso, ele quis seguir como paraquedista mas, em um dia chuvoso de sobrevivência na floresta, caiu em umas pedras e lesionou o tendão de Aquiles e meia dúzia de veias da perna. O que lhe rendeu uma gorda aposentadoria, mas isto é assunto para um outro dia. Antes de contar o restante da vida de Jorge, é preciso falar sobre a sua família. Filho de Maria, "uma mãe maravilhosa", e Osmar, “um pai difícil, vamos pular essa parte”. Irmão mais velho de outros quatro. Ele lembra com carinho da irmã Sandra e todas as vezes que precisou levá-la ao baile, porque Sandra só podia ir sob a vigia do irmão mais velho. Os dois aproveitaram muito a mocidade carioca. Dito isso, voltamos à época de fuzileiro. Durante um dos dias como recruta, Jorge precisou buscar um documento no antigo colégio em que estudou. "Chegando lá, avistei uma 35


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baixinha e gordinha, coisa mais linda”, recorda. Conheceu Célia Maria. Neste momento da conversa, ele tira do bolso da calça a carteira preta e me entrega uma pequena foto, em preto e branco, da mulher e esboça um sorriso nada tímido. Delicada, com olhos pequenos e um corte chanel volumoso. O amor foi recíproco, em uma semana estavam namorando e, em seis meses, casados. A família de Célia Maria era contra Jorge, em um romance digno de novela. No dia do casamento, os parentes dela assistiram a cerimônia do lado de fora da igreja. Ela era evangélica e, sempre que ia ao culto, Jorge ia para o bar do outro lado da rua. Com o peito cheio de bons sentimentos, Jorge lembra que Célia tinha uma letra linda, cozinhava bem, limpava a casa e ainda trabalhava em um escritório. Sempre organizada, quando Jorge saía da linha, Célia já impunha “não é esse Jorge que conheci”. Ele diz que o casamento durou mais de 30 anos, mas esse número não fecha e eu imagino que tenha sido, pelo menos, dez anos a mais. Juntos tiveram Rômulo, o único filho do casal. Ele tem uma filha, neta de Jorge. Há menos de dois anos, Jorge veio a Campo Grande visitar a neta e Célia Maria ficou no Rio para organizar alguns documentos. Célia sentiu dor no peito. Jorge mareja os olhos, se emociona e pede para mudarmos de assunto. O carioca, como é conhecido no asilo, tem o rosto fino, muito cabelo grisalho em um corte jovial, usa calça cinza de moletom, meias brancas e sandália de tiras pretas. Ele morou sozinho depois que a esposa faleceu, mas a família, preocupada, sugeriu que Jorge viesse morar no asilo e ele adorou a ideia. “É como um burro olhar um palácio”. Ele garante que se alguém não gosta dali, é porque não conhece. Apesar de conversador, Jorge mantém em segredo dos companheiros de morada, tanta vida e viagem. “Vou contar pra quê? Minha vida não é de interesse deles”. Então, para evitar histórias, Jorge, manso, joga baralho todas as tardes e fuma entre uma piada e outra. “Não sou Maria, mas sou cheio de graça”. 36


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Carioca me diz que está no asilo há quatro semanas, mesmo eu jurando tê-lo visto há mais tempo. Terminamos nossa conversa quando as cigarras já chamavam o pôr do sol, nos despedimos e, malandro, Jorge garante que, companhia igual à minha, não há. Eu que digo, agora, é esse o Jorge que conheci.

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Esta obra foi composta em Garamond corpo 16 Entrelinha 21,5 em Papel da capa: Colche 170 g/m Fosco, Papel do miolo: Papel Sulfite 90 g/m, Impresso pela Soluções Gráficas Pex Em Março de 2017



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