VIDAS EM TRANSIÇÃO H I S TÓ R I A S DA P O P U L AÇ ÃO LG BTI+ E M S IT UAÇ ÃO D E RUA E M C A M P O G R A N D E
MARIANA ALVERNAZ
MARIANA ALVERNAZ Título: Copyright © 2019 Mariana Alvernaz Todos os direitos reservados.
VIDAS EM TRANSIÇÃO HISTÓRIAS DA POPULAÇÃO LGBTI+ EM SITUAÇÃO DE RUA EM CAMPO GRANDE
Autora Mariana Alvernaz Orientador Prof. Dr. Felipe Quintino Monteiro Lima Design da Capa Norberto Liberator Projeto gráfico e diagramação Mariana Alvernaz Contato alvernazmariana@gmail.com
Projeto Experimental do Curso de Jornalismo 2019 Campo Grande, 2019 2
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul 3
Para todos aqueles que abriram seus corações e compartilharam comigo as suas histórias.
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Sumário Introdução...............................................................................................................7 Samyra Eduarda: os piores dias da minha vida................................................11 Uma Vida de Rupturas .......................................................................................23 Sarate: eu conheço os meus direitos, eu sou um cidadão ..............................29 Direitos Violados..................................................................................................39 Lidiane: eu vou pela minha cabeça, minha vontade e meu prazer................43 Serviços Ofertados...............................................................................................53 Carlos Eduardo: o que cura é o amor................................................................61
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Introdução O livro-reportagem tem como abordagem principal as vivências de pessoas LGBTI+ que estão ou estiveram em situação de rua em Campo Grande (MS). LGBTI+ é o termo utilizado para se referir a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, intersexuais e outras identidades de gênero e sexualidade representadas pelo “+”. O termo passou a ser adotado em 2018 pelo Manual de Comunicação LGBTI+ com o objetivo de uma comunicação mais inclusiva. Foi desenvolvido em sete capítulos: três deles trazem dados sobre essa população, seus direitos e serviços que são disponibilizados em Campo Grande; e quatro perfis. Os perfis foram desenvolvidos a partir dos relatos de quatro LGBTI+ que estão ou estiveram em situação de rua, por meio de entrevistas que buscaram compreender e retratar o seu cotidiano e a situação de vulnerabilidade social a que estão expostos, tanto por conta da situação de rua quanto da identidade de gênero e/ou orientação sexual. Entende-se que o desenvolvimento de um projeto como este contribui para conceder visibilidade a um tema “invisivel” na sociedade brasileira. A pesquisa documental mostra que pouco se fala no país sobre a população em situação de rua, ainda mais do grupo LGBTI+. Quando o faz, muita das vezes é de forma pejorativa, alimentando ainda mais o estereótipo de que se trata de uma população violenta, que deve ser temida. Compreende-se ser necessário 7
trazer dados e depoimentos, de modo a dar visibilidade aos que vivem essa realidade de negligência e violação de direitos.
posicionar contra os ataques que as diversas minorias do país vêm sofrendo, independentemente se nos identificamos com elas ou não.
Essas pessoas estão em transição o tempo todo, desde as mudanças dos locais em que vivem, até as alterações dos corpos, dos relacionamentos.
O livro-reportagem vem para demonstrar o contexto em que essas pessoas estão inseridas, a realidade que vivem, e principalmente mostrar que são seres humanos como qualquer outro indivíduo, que eles existem, erram, falham, mas também sentem, choram, sofrem e devem ser tratados com dignidade.
Durante as entrevistas, observar pessoas com histórias tão distintas e similares ao mesmo tempo, porém sem visibilidade, reforçou a importância da elaboração deste trabalho. O livro-reportagem deverá contribuir para uma maior compreensão do contexto que envolve essa população e pretende minimizar o olhar marginalizado que a sociedade apresenta perante essas pessoas. Apesar de tentar trazer um relato mais humanizado, não quis tratar essas pessoas como vítimas e muito menos fazer um julgamento sobre suas escolhas de vida. Além de compreender a complexidade do assunto abordado, o envolvimento com tema despertou maior sensibilidade com as questões que envolvem essa população. Cada uma dessas fontes-personagens me ensinou coisas extremamente relevantes; me ensinaram a olhar o próximo com mais empatia e, que embora podemos ter pensamentos completamente diferentes, é sempre necessário tentar se colocar ao máximo no lugar do outro e entender o que está se passando; a importância de conhecer os nossos direitos e de estar a todo momento lutando por eles; a necessidade de aprender a escutar de fato o que cada pessoa nos diz; e a importância do carinho, do amor, do afeto, ainda mais na vida dessas pessoas, que não tem a quem recorrer quando precisam. O livro-reportagem pode oferecer ao leitor um conhecimento geral sobre o tema, com um texto de fácil compreensão e com informações importantes sobre o assunto, como o direito à moradia, o dever do Estado com essa população e a vulnerabilização em que se encontram. No momento em que vivemos é extremamente importante se 8
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Samyra Eduarda: os piores dias da minha vida Todo dia Samyra Eduarda acorda cedo depois de uma noite de sono no quarto que geralmente divide com mais dez mulheres. É um quarto grande com cerca de dez camas, uma ao lado da outra. Ela toma seu café da manhã, depois almoça e passa o dia a espera do seu namorado, João Vitor, que chega do trabalho por volta das 17h. Ele sempre chega com as coisas que ela gosta de comer, seus produtos de higiene e seu cigarro – que não pode faltar – Samyra consome cerca de seis carteiras por dia. “Eu fumo igual a caipora”. Dois anos atrás, a rotina de Samyra era outra. Como sempre repete, passava pelos piores dias de sua vida. Ao sair de uma casa de cafetinagem, a menina de 22 anos não viu outra escolha a não ser fazer da rua seu lugar de viver, não havia um teto para morar. O local escolhido foi a rua 15 de Novembro, localizada no centro de Campo Grande. Para poder comer e beber, seu meio de sobrevivência era a prostituição. Fazer programa em troca de droga era comum. “A minha vida era mais usar droga mesmo, eu fazia mais programa para poder usar droga.” Quando sentia fome muitas vezes se alimentava de marmitas que as pessoas que participam de projetos sociais distribuíam. “A gente comia assim, ganhava marmita, terminava de comer, dava aquele trago e já saía pro corre para poder conseguir mais, e assim era a noite inteira, só usando, que essa droga é maldita.” 10
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A droga que Samyra se refere é a pasta base, derivada da cocaína e uma das mais utilizadas entre as pessoas em situação de rua de Campo Grande. Ela é a preferida por pessoas em situação de vulnerabilidade uma vez que tem o custo muito baixo. A pasta base causa uma rápida e intensa dependência nos usuários, seus efeitos são similares aos do crack, cada fumada mantém o usuário eufórico por um pequeno período. Ao passar o efeito, o usuário entra em estado depressivo e faz uso novamente, cada vez com uma frequência maior. “Velho, como eu vim parar aqui? Olha onde essa droga veio me trazer”. Era o pensamento que pairava a cabeça de Samyra, que nunca imaginou que chegaria naquela situação. Ela se perguntava o que havia feito para chegar naquele estado, a resposta que encontrava era sempre a mesma: a culpa era da pasta base. Como uma saída para esquecer seus problemas, ela se afundava ainda mais na droga. “Porque a pessoa não vai para a rua porque quer, a pessoa vai para rua por causa da droga, porque ali o acesso é mais fácil para você poder fumar, para poder usufruir da droga, deixar a droga te usar.” Samyra passava dois, três, quatro, cinco dias sem comer, virada usando pasta base. Quando a fome apertava era no meio da madrugada, horário em que não tinha a quem pedir um alimento, muitas vezes o que conseguia vendia para comprar a droga. Sentada em uma sala de atendimento do Centro de Triagem e Encaminhamento do Migrante e População de Rua (Cetremi), em um dia de chuva, a menina magra, dos cabelos trançados e unhas pintadas, relembra o tempo em que passou pelas ruas de Campo Grande: o frio, o olhar torto que recebia das pessoas, o modo que era tratada como se não fosse ninguém. Se fosse nos dias em que morava na rua, estaria na chuva, no frio, debaixo de uma lona tentando se aquecer e lutando para vencer mais um dia. “Porque na rua você mata um leão por dia, você tem 12
que acordar e levantar a mão pro céu por estar vivo, porque é complicado. São esses caras que passam e batem em morador de rua, espancam. Então eu ergo a mão para o céu de nunca ter passado por isso, mas foram os piores dias de toda a minha vida.” Depois da rua 15 de Novembro, Samyra foi para a antiga rodoviária, lugar que concentra a maior parte da população em situação de rua da cidade. Ela relata que aquele lugar foi o inferno em sua vida. Lá ela conheceu o Consultório na Rua, atendimento de saúde que é prestado para as pessoas em situação de rua e que a ajudou muito. Ela me pede para dizer que as atendentes do Consultório são MA-RA-VI-LHO-SAS – a escrita em letra maiúscula e separada é um pedido dela – “conselheiras, amigas, parceiras, mãezonas, o atendimento maravilhoso, são perfeitas, amo elas”. Após passar sete meses na rua, por meio da equipe do Consultório na Rua Samyra ficou sabendo do Cetremi, serviço de acolhimento do município para migrantes e pessoas em situação de rua. Ela queria melhorar, se reerguer. De primeira, ficou em dúvida sobre o local, pois muitas pessoas que conhecia reclamavam, mas cansada da vida de drogas, rua e prostituição, Samyra aceitou o acolhimento. “Se é para parar de usar droga, eu vou para lá sim”. Numa segunda-feira o carro do Centro Pop, serviço de atendimento da população em situação de rua, chegou na antiga rodoviária para buscar Samyra. “Realmente eu vou sair da rua, graças a Deus, agora sim vai melhorar as coisas.” Ela tomou o café da tarde no Centro Pop e foi encaminhada para o Cetremi. Ao chegar, entrou pelos fundos, passou pela revista, viu gente andando de um lado para o outro. “Puta que pariu, isso aqui é um presídio!”. Esse foi o primeiro pensamento que teve. “Eu vi gente andando pra um lado, gente andando pro outro, doido ali, doido lá”. Se acalmou ao lembrar que pelo menos não passaria mais fome, nem frio. Notou então que no abrigo estavam pessoas que ela já havia 13
convivido na rua e logo se enturmou. O medo de sofrer preconceito lá dentro era grande. Achou que ia ter que dormir no meio dos homens, porém assim que chegou, a antiga coordenadora do local a chamou e disse que poderia ficar no dormitório feminino. Samyra Eduarda de Lima é natural de Presidente Epitácio, cidade localizada no interior de São Paulo. Lá viveu até seus 16 anos. Por volta dos 14 tudo começou a mudar em sua vida. Samyra é mais uma das diversas pessoas que são expulsas de casa por causa da sua orientação sexual e/ou identidade de gênero. Samyra nasceu em um corpo masculino, mas nunca se identificou com ele. Aos 13 anos de idade, parou na frente do espelho e declarou pela primeira vez: “eu não aceito esse corpo que eu tenho”. As lágrimas saíram de seus olhos. Por conta disso passou um tempo se mutilando, entrou em depressão e parou de estudar, não queria saber de mais nada. “Porra, eu não quero esse corpo, eu não aceito, eu não aceito ter vindo no mundo dessa maneira que eu vim.” Através do facebook descobriu um grupo de transgêneros e uma página de “TH”. Ela pesquisou o que significava e descobriu então a terapia hormonal. “Porra, tá tão acessível pra mim, foi todo esse sofrimento e agora eu descobri como vou conseguir mudar minha aparência e ser do jeito que eu quero ser.” Começou então a terapia hormonal por conta própria. Ia na farmácia e tomava os medicamentos escondidos de sua família. Foi aí que a família começou a perceber as mudanças em seu corpo. A família descobriu primeiro que Samyra era um homem homossexual, ao ver conversas em seu celular com um homem que namorava na época. A família já desconfiava de sua orientação sexual. Após isso, Samyra percebeu que começaram a agir de forma diferente. Por conta do medo do preconceito que poderia enfrentar, a família começou a proibir que saísse de casa. “Chegou um momento que eu falei ‘porra, vou viver minha vida quando?’ Com medo do 14
mundo lá fora. Eu tenho que mostrar quem eu sou lá fora, não tenho que ficar reprimida aqui dentro debaixo de asa de mãe, de avó, eu tenho que conhecer o mundo como que é.” O nome Samyra foi escolhido por causa da novela Os Mutantes: Caminhos do Coração, transmitida pela Rede Record. Havia uma personagem com esse nome interpretada pela atriz Bianca Rinaldi. A vilã da novela com seus cabelos escuros conquistou o coração de Samyra. “Me apaixonei por ela e pelo nome, aí coloquei.” Em Presidente Epitácio, Samyra estudava e trabalhava, mantinha uma vida normal. Sua irmã e sua mãe foram as únicas pessoas que a aceitaram. Aos 16 anos, sua mãe foi presa e o preconceito bateu em sua porta. Samyra trabalhava cuidando de um homem com epilepsia. Ela que dava banho e seus remédios. Sem a proteção da mãe, seus tios iam até seu emprego a ameaçar, queriam lhe bater por ser homossexual. Um dia foram até o local com uma arma. Sua avó a expulsou de casa. Teve que sair correndo da cidade por conta das ameaças da família. Pediu dinheiro para seu pai, que nunca se importou com ela. Como ele também queria que ela saísse da cidade, deu o dinheiro. Ela juntou com as economias que tinha do seu trabalho e se mudou para São Paulo, foi morar com o namorado. Em São Paulo, Samyra não trabalhava, vivia como uma dona de casa. Seu namorado lhe dava o que precisava. Lá ela começou a usar o pó. Cansada de depender do namorado, resolveu arrumar um emprego. Por meio de algumas amigas foi apresentada a uma cafetina de Campo Grande e resolveu vir para a cidade fazer programas. Ela tentou mentir para o namorado dizendo que o emprego seria como faxineira, mas ele descobriu a verdade e os dois decidiram terminar o relacionamento. Se prostituir foi a única forma que Samyra encontrou para 15
conseguir se manter. Procurou outros empregos, mas as portas estavam sempre fechadas. O mercado de trabalho já é injusto com mulheres, geralmente recebendo salários mais baixos, ocupando cargos menores. Para uma mulher negra e transexual, é ainda mais difícil. “A gente não faz isso porque quer, a gente faz isso porque é obrigada. Porque o mundo, a sociedade, não oferece para a gente uma outra maneira de recorrer. A única maneira que eles mostram que a gente deve seguir é a prostituição. Todo mundo que vê uma travesti pensa que ela faz programa, porque eles não dão oportunidade. Era para a gente ser bem de vida, só que a sociedade põe uma barreira na frente, a gente não tem como passar por cima dessa barreira.” Samyra se mudou aos 17 anos para Campo Grande e foi morar na casa da cafetina com cerca de 20 garotas de programa. A rotina árdua se iniciou. “Ali também é onde o filho chora e a mãe não vê”. Eram 12 horas na rua para fazer programa, começava seis horas da tarde e ia até as seis da manhã. Ao voltar para casa, tinha que estar com o dinheiro da cafetina: na época era R$30 a diária. Se não estivesse com o dinheiro da diária tinha que voltar para a rua para conseguir. “Ela até deixa passar uma, duas, três diárias; na quarta diária apanha se não dar, apanha de facão, de mangueira, apanha de tudo quanto é jeito que você imaginar, a gente sofre.” O programa era um preço, mas para fazer outras coisas, recebia a mais. Para transar no motel era um valor, para transar no carro era outro, para transar sem camisinha outro. Muitos clientes pagavam apenas para que usasse drogas com eles. Foi sendo paga para usar droga que Samyra se viciou na pasta base. Apenas para usar a pasta base, Samyra já chegou a ganhar R$3.500,00. Já foi paga para usar pasta base, pó, LSD e até drogas injetáveis.
Vamos supor, você compra uma peruca de três mil reais, ela manda roubar sua peruca de três mil reais, manda dar uma facada em você para seu silicone estragar, manda cortar seu cabelo para poder fazer peruca, para poder fazer dinheiro para ela, é assim as cafetinas.” Fora a hospedagem, a cafetina oferecia almoço e algumas vezes café da manhã. A diária aumentou para R$40 e Samyra não aguentou mais. Depois de cerca de dois anos e meio, resolveu sair da casa de cafetinagem e foi para a rua. Após passar sete meses pela 15 de Novembro e pela antiga rodoviária, hoje Samyra permanece em situação de rua no Cetremi, onde está a cerca de um ano e meio. Por ser uma mulher transexual, mesmo dentro do abrigo, todos os dias sente a transfobia em sua pele. Apesar de dizer que a convivência com os outros usuários do local é “boa” – aspas que ela mesma pede para colocar – o preconceito ainda é vivo. Samyra enfrenta em sua vida um preconceito triplo: por ser uma mulher transexual, por ser negra e por estar em situação de rua. Ela está em um relacionamento com João Vitor, que também é usuário do Cetremi. Como ele é de Natal (RN) e chegou há pouco tempo na cidade, não é considerado uma pessoa em situação de rua e fica alojado na parte dos migrantes. Por causa desse relacionamento, o casal ouve diversas piadas. “O povo acha que não, mas ainda é vivo, porque quem passa sabe, ainda mais quando você já é casal, casal de dois homens, de duas mulheres, ou de uma trans com um homem. Ainda tem esse preconceito porque eles acham diferente, eles acham uma coisa ‘bizarra’, então alguns aceitam e outros não.”
Como era nova e não tinha experiência na rua, Samyra às vezes ganhava bem, às vezes não. As garotas tinham a liberdade de sair da casa, mas se demorassem muito, a cafetina colocava homens para irem atrás delas, seguirem, baterem. “Era pior que presídio. Se não tiver trabalhando, tiver fazendo outra coisa, apanha dos caras.
Segundo Samyra, algumas pessoas já reclamaram do casal para os assistentes sociais que trabalham no local. Em minha cabeça me pergunto como é possível uma pessoa reclamar do amor. Reclamam dos beijos e abraços que o casal se recusa a dar escondido.
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“PORRA” – Samyra me pede para escrever bem grande –
“Por que eu não posso abraçar e beijar meu marido se somos um casal normal como qualquer hétero que está aqui dentro?”. Como se não bastasse ouvir nas ruas diariamente as piadinhas, o deboche e a chacota, infelizmente, também é obrigada a ouvir no local em que atualmente vive. “O preconceito é grande contra os LGBTs. E os heterossexuais são o que? São os príncipes da Terra? São os únicos perfeitos? A gente é o que? A gente é imperfeito? Somos inferiores a eles? Qual é o motivo? A gente não é ser humano? A gente não tem sentimentos? A gente não chora? A gente é uma raça criada na Terra? Porque eu não escolhi ser do jeito que eu sou, eu não escolhi, apenas nasci no corpo errado, mas eu não escolhi. Eu não ia crescer querendo ser xingada, ser ofendida. Você ia querer? Não. Ninguém ia querer isso, nascer em uma sociedade que o preconceito é grande. Se eu soubesse que ia ser assim, eu não tinha escolhido ser isso. Isso não foi escolha, eu já nasci assim, eu já tenho essa essência, eu vim no corpo errado, eu sinto isso, entendeu? Acho que Deus falou assim ‘não, vou mandar você no corpo de homem para você ter um pouquinho de trabalho, para mais lá na frente você consertar’. Eu tô brincando tá, Deus? Eu tô muito satisfeita assim.” O coordenador do Cetremi, Odair de Jesus Martins, sugere que Samyra abra um boletim de ocorrência contra as pessoas que a agridem verbalmente. Ela me questiona como fazer isso sendo que sofre violência verbal diariamente. “Se for assim, vou ter que ir à delegacia todos os dias.” Para acabar com esse tipo de acontecimento, ela acredita que deveria haver uma regra mais rígida voltada para as agressões contra os LGBTI+ em situação de rua no Cetremi. Ela sugere uma punição ou então a criação de um espaço próprio para os LGBTI+ lá dentro.
disseram que ele não tinha o direito de falar nada porque é casado com uma mulher transexual. “Querendo fazer meu marido ser inferior a ele porque ele é casado com uma transexual, e ele é o que então? Ele não é nada? Só porque ele está casado com uma transexual ele é porra nenhuma? Não existe nesta terra um grão de areia?”. O preconceito não é só por parte dos usuários, ela me diz. Alguns funcionários também fazem piadas – mais discretamente – sobre o casal. Mas o preconceito não abala seu namoro. Com orgulho, ela me conta que ele não sente vergonha dela. Eu fico feliz em saber que apesar das adversidades da vida, ela encontrou um amor sem preconceitos. Um namorado que não se envergonha, que a ama, a abraça, a assume. Enquanto muitos acham errado, um segura a mão do outro e juntos atravessam essa onda de preconceito. “Mas isso é chato, ofende, machuca”. O namorado de Samyra passa o dia trabalhando. Ele não possui um emprego fixo, mas sempre consegue trabalho. Ela deixa claro que enquanto os homens heterossexuais passam o dia dormindo no Cetremi, seu namorado passa o dia trabalhando e tentando economizar para melhorarem de vida. “Então a gente que é travesti, a gente sim que é guerreira. A gente sim enfrenta, a gente sim luta a cada dia pela sobrevivência. Porque transexuais, gays, lésbicas e bissexuais, a gente luta todo dia pela nossa sobrevivência na terra, a gente luta todo dia pelo nosso espaço. Eu acho que deveria ter uma pequena mira de umas 15 horas para os LGBTs. Deveria ter esse olho na gente, esse foco, só para ver o que a gente passa, o que a gente sofre, saber o que a gente pensa, o porque muitos se matam, o porque muitos cometem suicídio, o porquê da opressão na nossa cabeça, a opressão que a gente tem que escutar da sociedade.”
O namorado de Samyra também é ofendido diariamente por conta do namoro. Alguns dias antes de Samyra conversar comigo, seu namorado estava discutindo com outros usuários do Cetremi e
A depressão que acompanhou Samyra na adolescência se fez presente até o início de 2019. Se não fosse forte, ela confessa que teria se matado. “Se eu não tivesse escutado minha consciência falando ‘pô, por que você está fazendo isso? Você é gente como qualquer
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outro, você apenas nasceu no corpo errado, você tem que mostrar quem você é, a sua orientação sexual não vai mudar nada no seu caráter, o que vale é sua personalidade, seu caráter, a sua humildade’, eu teria me matado.” Foi por conta de seu namorado que conseguiu sair da depressão, parou de usar pasta base e de fazer programa. Graças a ele, não precisa se preocupar em trabalhar para ter as coisas que precisa. Quando bate a crise de abstinência, ele compra tudo o que precisa para ficar melhor. Ela já está há oito meses sem usar pasta base. Samyra teve outros relacionamentos, mas nenhum deu certo. Chegou a fazer programa para bancar droga para o namorado. Por conta do ciúmes já apanhou, levou facada e teve seu cabelo cortado na época. “Porque eles não aceitam, se o viado é dele, é dele e já era. Graças a Deus agora achei um marido bom, Deus me ouviu.” O namorado de Samyra chegou ao Cetremi para ficar acolhido na parte dos migrantes. De primeira, ela se interessou pelo amigo que chegou com ele no abrigo, mas logo começaram a conversar. Um dia ele estava jogando futebol e dedicou um gol a Samyra. Alguns dias depois ele falou que precisava fazer uma proposta para ela, mas teria que esperar até o dia seguinte, uma segunda-feira. A segunda amanheceu e Samyra já estava louca para saber do que se tratava. Foi quando ele a pediu em namoro. Ela aceitou e estão juntos há oito meses. Nesses oito meses, o casal já passou por algumas brigas que são dignas de cinema. Quando brigam é o maior “babado”, como diz Samyra. Depois da briga, eles terminam e cada um vai para um lado. Na primeira briga, ele saiu do Cetremi; na segunda, ela voltou para Presidente Epitácio; na terceira e última, ela foi para a casa da irmã no litoral de São Paulo.
Da última vez, Samyra não queria ceder, mas o coração falou mais alto. “Como eu sou uma menina bela, recatada e do lar, eu fiz uma de difícil né, mas o coração não deixa, porque a gente ama a pessoa e a pessoa ama a gente, acabou voltando e tamo aí de novo.” A expressão “bela, recatada e do lar” gerou polêmica em 2016, quando a primeira-dama do país, Marcela Temer, usou essas palavras para se definir ao posar para a capa de uma revista. Samyra é muito ciumenta e está aprendendo a controlar o ciúmes. “Tô tentando, tô pedindo paz a Oxalá, mas tô me controlando.” Mesmo com o tempo em que ficaram separados, para eles é como se nunca tivessem terminado. Ficaram com outras pessoas, mas sempre pensando um no outro. Estiveram sempre ligados. “Eu acho até estranho porque quando eu tô mal, tô ruim, e ele tá longe, ele sente que eu tô ruim, que eu tô precisando, ele sai de onde ele estiver para chegar onde eu tô, parece que ele entra dentro da minha cabeça, parece que sabe o que eu tô pensando.” Essa conexão muito forte faz com que as pessoas tentem separá-los, afirma Samyra. Mas eles conversaram e não vão deixar que as pessoas acabem com o romance. O pedido de casamento já foi feito e Samyra aceitou. Atualmente, estão economizando para se casarem e conseguirem um lugar para morarem juntos. Depois de todo o sofrimento que passou em casa, aos poucos a família de Samyra está começando a aceitá-la da forma que é. Hoje já a chamam pelo seu nome de mulher.
Eu brinco e digo a ela que eles terminam o namoro já sabendo que vão voltar. Ela concorda: “é bem assim, a gente não consegue mais viver um longe do outro, não sei o que acontece”.
A mãe continua presa, mas elas trocam cartas, e quando está de “saidinha” sempre a liga, porém Samyra não sente nenhuma vontade de voltar para sua cidade. As lembranças de quando foi expulsa da cidade ainda a atormentam. “Quando eu fui pra lá eu chorei, chorei, chorei, eu não queria ficar lá, me traz muitas lembranças ruins da época que me expulsaram, então eu não gosto de lembrar daquela cidade, não gosto de lá.”
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Apesar da situação de vulnerabilidade e de tudo que passou em apenas 22 anos de vida, Samyra está satisfeita e hoje almeja um futuro melhor. Ela sonha com seu casamento com João Vitor, os dois morando juntos em um lugar que possam chamar de seu. No dia em que conversamos, ela queria encontrar um emprego de telemarketing ou algo na área de informática, que diz gostar muito. Um mês depois, ela conseguiu um trabalho como vendedora em uma loja de cosméticos.
Uma Vida de Rupturas
Mesmo estando satisfeita com o corpo que possui hoje, carrega um sonho: fazer finalmente a cirurgia de redesignação sexual. Segundo ela, essa cirurgia é o que falta para se tornar a mulher do jeito que queria vir ao mundo. “É o meu sonho, não é vontade não, é o meu sonho mesmo. Aí sim, nessa hora que eu vou estar realmente realizada. Eu ainda não estou realizada, estou satisfeita, realizada vai ser quando eu fazer a cirurgia de mudança de sexo.”
Uma vida marcada por uma série de rupturas. É assim que a defensora pública Daniele de Souza Osório se refere a vida de uma pessoa em situação de rua. A primeira ruptura acontece na transição da vida domiciliada para a vida em situação de rua. Depois há uma outra série de outras: familiares, dos laços de trabalho, da identidade da pessoa no âmbito da sociedade.
Por fim, pergunto se há algo que ela queira dizer para deixar registrado neste livro – ela clama por um maior apoio aos LGBTI+ no acolhimento. Pede para as organizações da pauta irem até o local para fazer palestras e abrir a mente do público heterossexual. Pede também regras mais rígidas para quem praticar a LGBTIfobia, assim como colocar trabalhando no local pessoas que já tenham trabalhado com outros LGBTI+ e que saibam como tratar esse público. “Esse é o meu apelo pelo Cetremi, olhar mais pelos LGBTs, porque a gente está esquecido aqui dentro.”
O termo “pessoa em situação de rua” é o correto para se referir à essa população. Além de ser o termo menos pejorativo para se usar, ele também sugere a transitoriedade. A pessoa está naquela situação, porém ela não é aquela situação. “Morador” também não deve ser um termo utilizado, o que a Constituição Federal prevê em relação a moradia, não é contemplado pela rua. É através do decreto 7.053, de 23 de dezembro de 2009, que institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPSR) e o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento (CIAMP – Rua), que se tem a compreensão oficial do que é considerada população em situação de rua pelo Estado:
Parágrafo único. Para fins deste Decreto, considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logra22
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douros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória. (BRASIL, 2009). O objetivo da Política Nacional é ser um instrumento governamental que garante acesso amplo, simples e seguro da população em situação de rua aos serviços, políticas públicas e programas oferecidos pelos ministérios que fazem parte dela. São princípios da PNPSR a defesa da igualdade e equidade; o respeito à dignidade da pessoa humana; o direito à convivência familiar e comunitária; a valorização e respeito à vida e à cidadania; o atendimento humanizado e universalizado; e o respeito às condições sociais e diferenças de origem, raça, idade, nacionalidade, gênero, orientação sexual e religiosa e atenção às pessoas com deficiência. Não existe no Brasil um censo próprio para identificar a quantidade de pessoas que estão em situação de rua. A pouca produção de dados oficiais sobre essa população aumenta sua invisibilidade e dificulta o desenvolvimento de políticas públicas. Mesmo dez anos após o decreto, há quase uma inexistência de dados sobre essa população, prejudicando seu acesso aos serviços e direitos sociais. Uma das grandes discussões é sobre a inclusão da população em situação de rua no censo promovido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mas que tem encontrado entraves para a sua execução. Os dados mais atuais em âmbito nacional são do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), de 2016. No relatório “Estimativa da População em Situação de Rua no Brasil”, foram estimadas a existência de 101.854 pessoas em todo o país. Em algumas cidades, pesquisas locais já foram realizadas para ajudar a conhecer mais sobre o perfil dessa população. São Paulo foi a primeira cidade a realizar esse tipo de levantamento no ano de 1991, que é realizado até os dias atuais. 24
Além da existência de um número predominante de homens em situação de rua, mulheres, crianças e adolescentes, imigrantes e refugiados também compõem essa população. No último censo realizado pela Prefeitura de São Paulo, foi identificada também uma grande parte da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros e intersexuais (LGBTI+) em situação de rua, que é vítima constante de violações e violências por sua dupla condição: de estar nas ruas e de possuir uma orientação sexual que não a heterossexual ou por se identificar por um gênero que não o de seu nascimento. O censo do município de São Paulo em 2016 foi pioneiro por mostrar que cerca de 10% dessa população se identifica como LGBTI+. De acordo com a pesquisa, essa população exerce mais mendicância e atividades marginalizadas, como prostituição, venda de drogas e roubos, do que os heterossexuais em situação de rua. Campo Grande Campo Grande (MS) é mais um município que não possui uma pesquisa geral com dados sobre essa população. Os dados encontrados ssão os que os serviços de assistência social e de saúde pública possuem sobre seus atendimentos. Trata-se de um público flutuante, que muda de tempos em tempos, que hoje está em situação de rua e amanhã pode não mais estar. Apesar de se tratar de um público que sempre se modifica, duas categorias saltam aos olhos: sexo e raça. A maior parte dessa população é de homens negros e pardos. Os dados do Centro Pop, que realiza atendimento à população em situação de rua e que conta com o Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS), mostram que em julho de 2019, 430 pessoas em situação de rua em Campo Grande foram abordadas pelo serviço. Dessas abordagens, 314 eram homens e 40 eram mulheres, 76 pessoas não foram localizadas pelo serviço; 237 eram pessoas 25
pardas, 70 brancas e 47 negras. Dessas pessoas, três se identificaram como LGBTI+. A maioria na faixa etária de 18 a 59 anos. No primeiro semestre do ano, março foi o mês em que houve mais abordagens, foram 469 pessoas abordadas. Os atendimentos feitos pelo Consultório na Rua, segundo a responsável pelo serviço, Maria Beatriz Almeidinha, também mostram uma maioria de homens em situação de rua, na faixa etária de 20 a 45 anos, pardos e negros. O Consultório atende de 250 a 300 pessoas por mês. Maria também diz que há uma tendência de idosos em situação de rua, um aumento de pessoas com transtornos mentais que a família abandona e uma maioria de pessoas usuárias de álcool. Segundo o coordenador do Centro Pop, Artêmio Versoza, de 80% a 90% dessas pessoas fazem o uso de álcool e/ou drogas. De acordo com a “Política Nacional para Inclusão Social da População em Situação de Rua” (BRASIL, 2008), os problemas de alcoolismo e/ou drogas correspondem a 35,5% das razões para as idas para a rua, o desemprego a 29,8% e as desavenças familiares a 29,1%. Em Campo Grande, Artêmio Versoza afirma que essas continuam sendo as principais causas da ida às ruas. O número de pessoas em situação de rua que são usuárias de álcool e/ou drogas é alarmante. Não se pode afirmar que uma pessoa está na rua porque ela usa drogas ou que ela usa drogas porque ela está na rua, mas uma coisa está ligada a outra. A vida na rua é dura, não é fácil aguentar.
à situação de rua, mas o caso de Samyra é um dos mais comuns. “Primeiro você é aliciado para a prostituição, porque você não consegue emprego, depende da família, sofrendo discriminação verbal, psicológica. A pessoa some e vai mesmo, se sujeita mesmo. Só que a pessoa vai para a prostituição e tem a questão da carência, a questão do álcool que está ali à disposição, tem os traficantes que se apoderam desses espaços, aí é onde há as cooptações. Aquelas que tem a mente mais fraca acabam não só caindo no mundo das drogas como virando mulas de traficante na rua. Aí elas vão mesmo e terminam indo morar na rua, dormir em prédio abandonado, debaixo de ponte. É triste, é complicado, mas é uma realidade constante.” Outro grande fator é a rejeição familiar. “Mesmo que a família respeite, trate bem, nós temos que entender que existem vários outros fatores, a religião, o convívio social, a comunidade onde você vive, a sociedade como um todo lhe apontando, a falta de empregabilidade, são uma série de fatores que vão empurrando para esse tipo de situação.” As pessoas em situação de rua, sejam elas LGBTI+ ou não, são completamente diferentes umas das outras. Os fatores que as levaram à situação de rua são distintos, porém, o que as caracteriza e as une efetivamente é a pobreza.
A condição dos LGBTI+ em situação de rua é um tema pouco debatido no país. Quase não há levantamentos feitos a respeito dessa população. É como se essas pessoas não estivessem ali, não existissem. A coordenadora das Políticas Públicas LGBT do munícipio e militante de maior reconhecimento em todo estado, Cris Stefanny, afirma que são diversos os fatores que levam a população LGBTI+ 26
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Sarate: eu conheço os meus direitos, eu sou um cidadão Quando chego pela primeira vez no Cetremi para conversar com as pessoas que utilizam o abrigo, o coordenador Odair de Jesus prontamente procura quais LGBTI+ estão por lá. Na sala de entrada, Sarate e Lidiane me esperam. Eu explico o meu projeto e os dois aceitam conversar comigo. O coordenador disponibiliza então a sala de atendimento para que eu possa conversar mais reservadamente com os dois. Assim que entramos na sala de atendimento alguém na sala de recepção grita por Sarate. Ele olha para mim rindo e brinca dizendo que o nome dele é o mais chamado do Cetremi. De fato, Sarate é uma das pessoas mais conhecidas no local. Todos sabem quem ele é e a sua alegria contagia quem está ao seu redor. Seu nome é Sérgio Sarate Júnior, mas todos o chamam apenas de Sarate, é a maneira que ele prefere. Ele tem 27 anos. Desde criança, Sarate percebeu que não sentia atração por mulheres, apenas por homens. Na escola, nunca se envolvia nas brincadeiras dos meninos, suas amizades eram sempre só com meninas. Sempre gostou de fazer “serviços de mulheres”, cozinhar, limpar, lavar roupa. Via as meninas fazendo e achava aquilo legal. Aos 14 anos, econtou sobre sua orientação sexual para a família, que já esperava por isso. Diferente de muitas outras famílias, a sua sempre o aceitou. “Eu não tenho o que reclamar da minha família.” Na época em que contou para a família, há 13 anos, ele re28
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lembra, muitas pessoas que conhecia foram parar nas ruas por conta do preconceito familiar e lá conheceram as drogas. O seu caso é diferente. Sarate sempre teve esse apoio que é fundamental na vida de todos nós. Sarate foi para a rua por um motivo completamente diferente da maioria das pessoas: por saber quais são os seus direitos. Sem trabalhar e sem poder colaborar com as despesas dentro de casa, uma vez que o dinheiro que conseguia era usado para comprar drogas, quatro anos atrás decidiu sair de casa porque não queria incomodar sua mãe e seus irmãos. “Se eu tivesse morando com a minha mãe, seria um peso a mais para ela.” Sabendo dos direitos que possui como cidadão, Sarate então foi para as ruas de Campo Grande. “Eu prefiro ficar aqui, porque é um direito que eu tenho como cidadão; como estou em situação de rua, estou aqui; morando aqui por opção, não por condições.” Em situação de rua há quatro anos, durante esse período ele já passou por diversos lugares: já viveu na antiga rodoviária, morou em casas abandonadas, conviveu numa área de mata no Jardim Tijuca e debaixo de uma ponte na avenida Manoel da Costa Lima. Há um ano ele está morando no Cetremi; já havia passado pelo abrigo em 2015 quando estava na antiga rodoviária, mas não ficou muito tempo; depois retornou, mas foi embora novamente; da última vez conheceu muitas pessoas que gostou e resolveu ficar. A rotina de Sarate é a mesma que a de muitos abrigados. Quem está no Cetremi e é considerado população em situação de rua, só utiliza o local para jantar e dormir, ao contrário dos migrantes, que passam todo o dia lá. Quando o dia amanhece um ônibus leva a população em situação de rua até o Centro Pop, local onde passam o dia. Lá eles tomam o café da manhã, almoçam e tomam o lanche da tarde, além de passarem por atendimento com os técnicos. Às quatro horas da tarde, o ônibus os levam de volta para o Cetremi, onde passam o resto do dia. 30
Quando o ônibus quebra e não está funcionando, a população em situação de rua passa o dia no abrigo e faz todas as suas refeições lá. É o que estava acontecendo em setembro de 2019. Quando o ônibus funcionava, Sarate acordava cedo e ia passar o dia no Centro Pop. Através do atendimento prestado lá, ele conseguiu arrumar todos seus documentos. Com alegria, ele diz que tirou seu título de eleitor e finalmente vai conseguir votar pela primeira vez. Com muito carinho, fala sobre a técnica Patrícia, que conseguiu o ajudar. “A minha técnica, meu Deus, eu tenho só a agradecer, porque ela conseguiu tudo, encaixou tudo, graças a ela eu sou uma pessoa ressocializada; porque antes eu não tinha documento, eu não tinha CPF, eu não tinha tirado carteira de trabalho, título de eleitor.” Ele acredita que o Centro Pop é um lugar que possibilita a mudança. “Só que tudo tem que vir da gente mesmo, porque não adianta ela fazer tudo isso e eu nem querer nada por nada; então foi porque eu quis isso, queria me ressocializar, estou com a minha documentação completa.” A técnica que o atendia no Centro Pop não trabalha mais lá, mas o amor que ela cativou no coração de Sarate ficou. Se tivesse alguma forma de fazer com que continuasse seu trabalho no local, Sarate me diz que faria qualquer coisa. “É uma assistente social perfeita, eu adoro ela, peguei um amor incrível; tanto é que no dia que ela foi embora meu coração ficou assim né, mas que Deus abençoe e sempre dê luz ao caminho dela.” Ele me diz que foi prometido que este ano aconteceria a Educação de Jovens e Adultos (EJA), uma modalidade destinada a quem não teve acesso à educação na escola convencional. Muitos se animaram, mas foi só uma promessa, não aconteceu. Sarate não culpa a equipe por isso e sabe dos entraves para que aconteça. “Não é culpa da equipe que trabalha, é culpa do financeiro, do governo e tudo mais.” 31
Todos os dias os abrigados do Cetremi vão dormir às 22h e acordam às seis horas da manhã. Como agora eles não estão passando o dia no Centro Pop, muitos acordam e voltam a dormir, porque não há nenhum tipo de atividade para fazerem lá dentro. Sarate me diz que se antes não tinha nada, agora com esse governo, tem menos ainda. “Porque como você é universitária, você viu; cortou dinheiro da educação, ficou mais difícil para vocês, como ficou mais difícil para a gente aqui. Se cortou dinheiro da educação que era uma coisa primordial do Brasil, vocês acham que vão ligar para cá? Aqui não tem um curso, uma capacitação, um psicólogo que pode nos ajudar, não tem.” Sarate se refere ao cortes feitos na educação pelo Governo de Jair Bolsonaro em 2019. Apesar de não ser desenvolvida nenhuma atividade lá dentro, e de muitas vezes passar o dia sem o que fazer lá, Sarate gosta muito do lugar. Essa realidade era diferente alguns meses atrás. Em março de 2019 eu estava fazendo uma matéria sobre as condições do Cetremi, pois um vereador do município havia feito queixas sobre o local. Eu e mais duas amigas tentamos conseguir autorização para entrar no abrigo, não conseguimos e começamos a suspeitar ainda mais da situação. Resolvemos entrar em contato com a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Ordem de Advogados do Brasil da Seção de Mato Grosso do Sul (OAB-MS), para saber como poderíamos entrar no lugar. Foi então que eles nos informaram que um advogado da Comissão já iria até o local averiguar a denúncia e que poderíamos ir com ele.
local, que na época estava sob licença-maternidade. O advogado que nós acompanhávamos definiu a situação dessas pessoas como desumana. Os maus-tratos eram tantos que os próprios abrigados se uniram e se articularam para tentar tirar a coordenadora do local e pedir a permanência do assistente social que estava coordenando o abrigo no momento, enquanto ela estava sob licença. Após a visita que o advogado fez ao local, Sarate se reuniu com mais três abrigados e juntos foram a uma audiência na OAB-MS para denunciar a negligência e os maus tratos sofridos. Após ouvi-los e verificarem as condições do Cetremi, a OAB-MS encaminhou um inquérito para a Guarda Municipal, a Polícia Militar e a Secretaria Municipal de Assistência Social. Através disso, conseguiram mudar a gestão do local. Atualmente o coordenador do local é o assistente social Odair de Jesus Martins, que tem o respeito e admiração de todos com quem conversei. “A gente pediu uma gestão do Odair, porque ele nos respeitou; ele não permitiu nenhum tipo de agressão, não permitiu que os cuidadores nos humilhassem; tanto é que tinha um cuidador que agredia, que era homofóbico, o Odair tirou, de tanto que ele nos respeita.” Sarate me diz que só as melhores pessoas continuaram trabalhando no local e faz questão de me falar de cada uma delas. “Tudo que eu preciso, se tiver ao alcance deles, estão aqui para ajudar.” Ele adora os técnicos que atuam no local e diz que todos o tratam muito bem.
Ao chegar no abrigo, uma sensação estranha tomou conta de mim, era um ambiente pesado. Quando falei com os abrigados, veio o choque de realidade. As denúncias dos usuários incluíam abuso dos guardas que trabalhavam no local, ausência de alimentos e materiais de higiene, falta de camas, colchões infestados de percevejos, além de uma série de negligências cometidas pela coordenadora do
Ele garante que a equipe é totalmente capacitada, apesar de achar que o local poderia ser bem melhor. “Só que não é culpa deles, infelizmente a culpa é do governo que temos; se a gente não tem um banheiro digno, não é culpa deles; se a gente não tem uma comida, não vou falar que é tão ruim, mas não é uma comida que a gente queria comer, mas não é culpa do seu Odair, é culpa do governo que
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não passa.” Sarate desconfia que a verba que deveria ser mandada para o Cetremi, não é enviada completa. Uma outra entrevistada, que já trabalhou no local, já havia me dito que também possuía essa desconfiança. Questiono como se dá o acesso à saúde, o que acontece quando alguém fica doente no abrigo, Sarate diz que, quando algo acontece, eles vão ao posto de saúde mais próximo, no bairro Tiradentes. A equipe leva e busca sem medir esforços – com um porém – se tiver gasolina, que muitas vezes não é mandada. Quando o carro não está abastecido para levar, eles chamam o Serviço de Atendimento Móvel Urgente (SAMU). Sarate me diz que uma semana antes de conversarmos, o prefeito Marquinhos Trad foi até o Cetremi para mostrar que estava fazendo algo pela população em situação de rua. Mas quem estava lá disse que ele só chegou até a porta, não entrou nas instalações do local. Sarate não estava lá naquele dia, mas me diz que, se estivesse, iria fazer o prefeito entrar para mostrar a situação do local. “Ninguém fez isso, porque coitados, eles têm medo; ninguém é como eu, eu bati no peito e tiramos a antiga gestão daqui, conseguimos tirar porque eu tomei a frente; eles têm medo, e de certa forma eles tem que temer mesmo, por que como que você vai mexer com políticos?”. Sarate não tem medo de lutar pelos seus direitos, ele sabe que é seu direito ser respeitado por quem ele é e ter um lugar digno para morar. “Se eu morrer, vou morrer lutando pelos meus direitos, e vou lutar até onde tenho que lutar; não vou aceitar nenhum tipo de humilhação de nenhum usuário, vou em frente até onde tenho que ir, porque eu conheço os meus direitos, eu sou um cidadão.”
local por um tempo se, por exemplo, arrumam briga. Há várias regras que as pessoas precisam seguir para ficar no abrigo, ele nunca quebrou nenhuma delas. As principais são: não fazer uso de álcool e drogas dentro do local, não estar sob efeito de substâncias químicas e entrar no local para passar a noite até as 19h. No Cetremi, afirma que possui uma convivência ótima com todos. Às vezes acontece algumas brigas. “Brigar é normal, porque a gente vive em comunidade, discutimos, porque um pega a roupa do outro sem pedir, essas coisas.” Mas em tudo que precisa, sempre tem pessoas que o ajudam. “Tanto os meninos do meu alojamento, quanto os meninos de fora; eu tenho muita amizade, eu tenho uma facilidade incrível de pegar amizade, então minha convivência é ótima com os meninos daqui.” No período em que passou na rua, a convivência era mais complicada. Apesar de já ter levado duas facadas em brigas na rua, da sua parte isso não era frequente. Mas sempre via as outras pessoas brigarem. Onde estiver Sarate leva alegria para todo mundo, assim como levou para mim no tempo em que conversamos. Com seu jeito de ser, suas conversas, suas brincadeiras, todos querem ficar por perto. O dia que não está no Cetremi – ele me diz – as meninas falam que é uma solidão. Dentro do abrigo me conta que gosta de ficar só nas rodas das mulheres. Ao ouvir Lidiane recitar um salmo, Sarate me conta que o que acha incrível nos LGBTI+ em situação de rua é que eles creem que um dia vão sair dessa vida. Muitas vezes – ele me diz – eles não têm força para sair de lá, mas independente de tudo, confiam em Deus. “A gente tem nossa parte de Deus, nossa parte humana.” Ele diz que caiu, teve sua fraqueza, mas só eles sabem o que passam.
Sarate se orgulha de sempre ter tido uma boa conduta e nunca ter sido desligado do Cetremi. Algumas pessoas são desligadas do
Dentro do abrigo, eu os percebo como uma verdadeira família. Eles têm suas amizades, servem uns aos outros, se ajudam quando precisam. “A sociedade tem uma má visão que ‘ai que é de rua,
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que é monstro’ mas não, a gente tem nossa parte sensível.” Sarate possui um hobbie: cozinhar. Dentro do Cetremi não pode, mas fora da unidade, eles possuem um fogão a lenha comunitário improvisado, onde sempre cozinham juntos. Eles vão até as casas perto da unidade ou na frente de um mercado próximo ao local e pedem doações de comida. Sempre aparece alguém solidário para doar. “Nós frita, nós faz uns pucheros, nós gosta de comida bem sustância; faz um macarrão, um arroz, um carreteiro, que a gente ganhas às vezes umas carnes de churrasco que sobra, aí a gente cozinha assim a nossa própria comida às vezes, pra gente mesmo comer.” Cada um contribui com um pouco e depois dividem a comida. Quando eles têm dinheiro, também compram algo para preparar. De vez em quando, Sarate consegue alguns trabalhos rápidos. Ele costuma ir às casas pedir algum dinheiro ou trabalho e, assim, ganha um pouquinho. Como sempre distribui currículo, às vezes ligam para ele no Cetremi; quando ligam, Sarate já se arruma e no dia seguinte vai fazer a entrevista. Ele costuma pegar serviços de casa para fazer; lavar e passar roupa, limpar a casa e fazer comida. “Só isso que eu sei fazer, não sei fazer outra coisa.” Desde os 14 anos Sarate usa drogas. Quando conversamos, fazia três dias que não usava. Quando resolve usar, sai do abrigo e passa o dia fora, só volta no dia seguinte. “Eu saio quando a abstinência tá muito forte, mas eu procuro não ficar saindo.” Sarate tem um namorado que também está em situação de rua e vive abrigado no Cetremi; ele estava trabalhando no dia em que conversamos. Ao contrário de Samyra e João Vitor, os dois não mantem relações afetuosas dentro do abrigo. “A gente convive no mesmo quarto só que se respeita, aqui dentro nem abraço, nem beijo, nem nada.” Se fizesse isso, ele considera que seria um desrespeito a todos que moram no local. Quando querem ter algum tipo de relação, é sempre fora do 36
abrigo, mesmo convivendo no mesmo alojamento. “A gente vai para um motel, para algum lugar, alguma coisa assim, a gente mantém relação para fora da casa, mas aqui dentro não.” O companheirismo entre os dois é grande, um cuida do outro. Sarate cuida da alimentação, das roupas, das coisas que Robson precisa, assim como Robson cuida das coisas que Sarate precisa, é uma troca. Sarate está em um relacionamento com Robson, mas sempre foi um rapaz namorador. Ele me diz que teve vários relacionamentos dentro do Cetremi. Teve uma época em que teve vários namorados por semana. Depois teve mais quatro namorados fixos. E agora está há seis meses com seu atual namorado. Ao contrário de Samyra, ele me diz que poucas vezes passou por preconceito em sua vida. Ele acredita que isso pode ser por causa da sua simplicidade. “Eu já tive amizade com pessoas que não gostavam de homossexual, mas gostavam de mim, em vez de me criticar, já teve agradecimento a mim.” Ele tenta ajudar todos que estão ao seu redor, e isso é o que o satisfaz. Com tristeza, ele pensa em como vai ser quando deixar o Cetremi. “Eu gosto de pessoas, amo pessoas; fico imaginando eu morando em um apartamento sozinho, não sei se eu vou conseguir, então tenho que me preparar, preparar a mente para ir, porque gosto de estar no povo, gosto de estar entre as pessoas.” Hoje, Sarate tenta se reerguer. Conseguiu tirar toda sua documentação e está tentando arrumar um emprego. Ele fez a inscrição para conseguir um apartamento através da Agência Municipal de Habitação (EMHA). “Depois dos 30 você tem que tomar jeito, a vida não é só curtição.” À procura de emprego, Sarate já entregou diversos currículos e agora está esperando. Esses dias o ligaram e ele não aceitou. “Não é porque eu tô na bosta que vou ter que pegar qualquer coisa que aparece, não é assim; eu tenho que receber um salário digno pelo 37
meu trabalho, nem que eu tenha que sofrer mais um pouco, que tenha que correr atrás mais um pouco; por enquanto casa e comida eu tenho, graças a Deus.” Sarate quer um salário para poder manter sua casa, se manter, e poder ajudar a sua mãe. Ele me diz que não pretende ter filhos, mas quer ser um exemplo para seus sobrinhos e ajudar na educação deles. Ele já está sofrendo com o fato de um dia ter que sair do Cetremi. Começa a me falar das amizades que construiu dentro do abrigo; nesse momento, a emoção toma conta e as lágrimas saem de seus olhos. O amor que desenvolveu por essas pessoas é profundo. “São pessoas muito queridas, pessoas muito significantes, as pessoas que eu convivo e que me ajudam aqui.” Para ele, a maior dificuldade em estar em situação de rua é estar longe da sua família; a distância machuca. Ele é uma pessoa que se apaixona muito fácil, então me diz que é muito difícil estar com uma pessoa que está com ele apenas pelo sexo. No seu último relacionamento, seu namorado não o assumia; imagino o quanto é difícil estar nessa situação. Hoje ele vive um relacionamento com Robson e, embora não mantenham relações afetuosas dentro da casa, todos sabem que se namoram. “Para mim tá sendo um pouco difícil entender ele, mas qual ser humano não é difícil? A gente briga, mas a gente está bem.” Pergunto o que Sarate espera daqui para frente. Ele me diz que pretende sair do abrigo com a cabeça erguida e agradecendo a todo mundo por tudo o que fizeram por ele. Sonha em voltar para a igreja, para um caminho de luz. Planeja voltar para o Cetremi para ajudar as outras pessoas iguais a ele, seja com um abraço, uma conversa, uma oração, uma roupa, um alimento. “Vir aqui um dia e falar para que eu passei por tudo que eles passaram e um dia eu tive força, acreditei em Deus e saí, e da mesma forma de Deus fez na minha vida, vai fazer na vida deles. É isso que eu espero para o ano que vem, eu voltar aqui e todo mundo ver o que Deus fez na minha vida, para acreditarem também, e eles saírem.” 38
Direitos Violados Como todas os cidadãos brasileiros, as pessoas em situação de rua são titulares de direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição Federal. Usarem as ruas para fins de moradia não configura a renúncia a tais direitos. Porém, o fato de estarem nela já significa que a maioria desses seus direitos foram violados. O histórico da pessoa que está nessa situação é de violação de direitos. Essa pessoa foi invisibilizada pelo sistema e sofreu todos os tipos de violência para chegar nessa situação. A moradia é um direito estruturante dos demais direitos, a ausência de endereço é a própria violência. Sem endereço, raramente se consegue um emprego. Sem endereço, muitas vezes há a dificuldade no acesso à saúde pública, à educação. A vulnerabilização em que se encontram as tornam mais passíveis ou suscetíveis de terem desrespeitados ou violados seus direitos e garantias fundamentais, além de estarem expostas ou serem vítimas de variadas manifestações de violência. Essa população é vista como um grupo que oferece ameaça e não como um grupo que se encontra em risco. São pessoas percebidas como um problema, quando na verdade o problema é a situação de rua. Na maioria das vezes essas pessoas dormem nos locais públicos sob o rigor do inverno ou do calor sufocante do verão. Cotidianamente lutam para sobreviver. Viver nestas condições de extrema 39
fragilidade significa estar privado de tudo ou pelo menos encontrar maiores obstáculos à efetivação de direitos e garantias fundamentais. A proteção da dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental do Brasil, está presente na Constituição Federal, onde a erradicação da pobreza, da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais são apresentados como objetivos da nação. Dizer que morar com dignidade é um direito humano pode parecer uma constatação óbvia, mas é necessário reafirmar isso a todo momento. A casa, tida na Constituição Federal como “asilo inviolável do indivíduo” e como um direito social, permanece não sendo uma realidade para as milhares de pessoas que atualmente estão nas ruas das cidades brasileiras. Mesmo a determinação legal expressa na Constituição de que é competência da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios “promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico”, não se trata de algo aplicado à população em situação da rua. A quase ausência de ações concretas para prover moradia é uma infração ao que está disposto na Constituição. Sem contar com a segurança de um lar, a população em situação de rua é constantemente criminalizada e vítima de violações de direitos, preconceitos e agressões físicas. Este cotidiano violento faz com que as pessoas não consigam organizar ou retomar suas vidas pessoal e familiar. As violências físicas e morais sofridas pelos que estão nas ruas constituem um grave ataque a seus direitos. O relatório de 2018 do Disque 100 aponta a ocorrência de 889 violações cometidas contra pessoas em situação de rua no país. Foram denunciados 481 casos de negligência; 131 de violência psicológica (xingamentos, hostilização, humilhação); 116 de violência institucional; 83 de violência física; 15 de discriminação; e 63 de outras violações. Segundo o relatório, as ruas e os albergues estão entre os locais onde as violações 40
mais ocorrem. O albergue, muitas das vezes, é a solução proposta pelos órgãos públicos, mas está longe de resolver o problema da moradia, além de na maioria das vezes não oferecer condições dignas. Embora seja muito comum o pensamento de que as pessoas em situação de rua não vão para os albergues porque não querem, há vários motivos para essa escolha: a precariedade das estruturas físicas das casas, o despreparo dos profissionais, a dificuldade de adaptação às regras impostas nestes locais. Como todos os cidadãos brasileiros, as pessoas que estão nas ruas têm direito à uma moradia digna, com divisão de cômodos que respeite sua autonomia e privacidade, com banheiro, cozinha, quartos e sala. Localizadas em áreas onde haja uma boa estrutura de serviços públicos, assistência social e transporte que lhes permitam serem reinseridos. A segurança representada por ter uma moradia fixa pode ser o primeiro passo para acessar demais direitos. Porém, não há programas habitacionais voltados para essa população e que possibilitem uma oportunidade real de saída das ruas, mesmo que uma pequena parcela consiga acessar moradia através de programas como o Minha Casa Minha Vida. Viver nas ruas expõe as pessoas a diversas condições que aumentam a vulnerabilidade e os riscos à saúde. Situações de impedimento de acesso às políticas públicas, preconceito, violências, privação de sono, estado constante de alerta e alimentação precária, geram agravamentos à saúde difíceis de serem resolvidos. Apesar de o atendimento nas unidades de saúde ser um direito das pessoas em situação de rua, muitas se recusam a ir até estes locais por já terem passado ou saberem da ocorrência de negação de atendimento, mau atendimento e impedimento de que entrem por causa da forma como estão vestidos ou por sua condição de higiene. Outro problema invisibilizado é o das pessoas LGBTI+ e a 41
questão da LGBTIfobia. Não se sabe sequer qual é o tamanho da população LGBTI+ do país. Nos registros de violência, também não fazem qualquer classificação da vítima segundo a orientação sexual. É uma tarefa extremamente difícil dimensionar e traçar diagnósticos para produzir políticas públicas sobre a violência contra essa população. O relatório de 2018 do Disque 100 registrou o total de 1.685 denúncias de LGBTIfobia no país. Foram 690 casos de discriminação; 482 casos de violência psicológica, 270 casos de violência física; 113 casos de violência institucional; 29 casos de negligência; e 101 outras violações. A maioria dessas violências foram cometidas nas ruas. Além disso, a LGBTIfobia causou, em 2018, 420 mortes no país, sendo 320 homicídios e 100 suicídios. Os dados são do relatório do Grupo Gay da Bahia, que recolhe estatísticas há 39 anos. Em junho de 2019, finalmente foi decidido que crimes de ódio contra a população LGBTI+ serão punidos na forma do crime de racismo, cuja conduta é inafiançável e imprescritível. A pena varia entre um e cinco anos de reclusão, de acordo com a conduta.
Lidiane: eu vou pela minha cabeça, minha vontade e meu prazer Lidiane Alves de Oliveira, de 35 anos, é mais uma das diversas pessoas que vão parar nas ruas por conta das drogas. Nos conhecemos quando fui ao Cetremi e a entrevistei junto de Sarate. Eles são amigos e preferiram falar comigo ao mesmo tempo. Lidiane nasceu em Paranavaí (PR), lugar em que morou até alguns anos atrás. Dependente química desde os 15 anos, há cinco veio para Campo Grande para tratamento na Clínica da Alma, que segundo a descrição em seu site, acolhe e trata as pessoas “por meio do avivamento espiritual e da fé no Deus do impossível”. Ela resolveu por conta própria se internar, mas contou com o acompanhamento da sua família, que permaneceu em Paranavaí. Depois de passar cerca de um ano internada, Lidiane descobriu a antiga rodoviária, viu o movimento e decidiu por lá ficar. “Eu olhava para aquilo e estava aquele fluxo, só via a luzinha acendendo, saí da igreja e baixei lá na rodoviária.” Desde então, está em situação de rua. Já são quatro anos vivendo assim. Atualmente Lidiane vive entre o Cetremi e o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD IV). Segundo ela, ficam em um “pingue-pongue”, mandando-a de um lugar para o outro. Desde o começo da nossa conversa, Lidiane foca na sua sexualidade. Ela é bissexual, mas deixa claro a sua preferência por mulheres. Desde quando morava em Paranavaí, já tinha essa preferência.
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Ela diz que é uma pessoa “de lua”. Se não tem um homem 43
para a satisfazer, tem a mulher que a satisfaz ao dobro. “Porque a mulher sabe onde a outra sente o prazer, ela vai no toque essencial.” Quando se relaciona com homens, tem hora que está tendo penetração e não sente vontade, nem prazer, ao contrário de quando se relaciona com mulheres. “Eu vou pela minha cabeça, minha vontade e meu prazer.” Dentro do Cetremi, ela diz que “respeita”, pois não está no ambiente apropriado. Ela brinca, conversa e, de vez em quando, dá umas cantadas fora de hora para ver no que vai dar. “Se a pessoa cai a ficha, né?”. Suas cantadas são sempre com muito respeito. “Sempre tem aquelas brincadeirinhas, mas nessas brincadeiras é um tiro que a gente dá, se a pessoa jogar na letra é porque gostou, porque tem muitas pessoas que é e não demonstram ser.”
dinheiro pra usar nossa droga, tem dinheiro pra pegar uma coisinha fofa, pegar no colo e falar ‘vem meu bebê’.” Enquanto Sarate parece tímido no canto, ela ri e diz que não é para negar, porque ele também gosta de sair com os novinhos. Ela relembra do seu relacionamento com uma outra mulher com que foi casada por um ano e meio quando morava em Paranavaí. Ciumenta, não deixava a mulher sair de casa. Carrega até hoje a cicatriz de uma facada que levou dessa mulher nas costas. Nessa época, Lidiane já fazia seus “corres”, buscava e vendia droga, limpava casa de traficante. Com o dinheiro, sempre conseguiu manter bem sua casa. Ela me conta que a casa que possui em Paranavaí tem de tudo. Sua mãe brigava porque ela gastava demais, adorava beber uma Crystal. “Minha casa ficava forrada de latinha.”
Quando sai com mulheres, geralmente faz seus “corres”. Ela prefere pagar para se relacionar com mulheres, com meninas bonitas. “A gente tem que pagar, não pegar esses noiados de rua, esses pé-rapados. A gente faz os nossos corres, a gente paga para a gente poder ter uma relação digna, com a pessoa certa. Eu mesma sou de pagar, eu não vou pegando qualquer baranga para me alinguar não, porque quem vai ficar sem a língua pode ser eu, né?”.
Lidiane pergunta para Sarate se ele não acha o homem mais carinhoso que a mulher, ele diz que sim. Ela então vira para mim e diz que acha a mulher mais carinhosa que o homem. É uma questão de se entender e conversar. “Tem horas que você senta com o cara assim, o cara já quer passar a mão, já quer te comer. Não, você tem que sentar, trocar ideia, o cara tem que entender o que o outro sente.”
No dia da entrevista, uma quarta-feira, ela estava planejando sair para fazer seu “corre”, mas Odair pediu que ela ficasse por lá. No sábado, ela planejava ir trabalhar como cozinheira. Com o dinheiro, queria pagar alguém para “pega-la”. “Tem um povo aqui dentro que eu vou pagar para me pegar, nem que eu dou de 200 a 300 conto, mas eu vou pegar, senão eu troco meu nome.”
As mulheres conseguem compreender melhor esse sentimento. “Não só aquele momento da vida de loucura, não existe isso, você tem que ter aquele carinho, você tem que ter aquele vínculo até você poder se achegar.”
Lidiane aponta para Sarate e diz que ele é o mais arteiro, só pega playboyzinho, novinho e bonitinho. “Não é legal, Sarate? Quando chega um gatinho, um novinho assim, você olha, aquela carne novinha, você não quer? Lógico que quer, pô. A gente tem que pagar mano, senão a gente vai pegar esse povo de rua aí.” Muitos homens, ela afirma, não valem a pena. “A gente tem 44
Desde pequena, ela diz ter um “instinto de homem”. Quando seu pai chegava no trabalho, ela relembra que estava sempre na frente em um campo jogando futebol, o lugar cheio de homens, só ela de mulher. “Eu tava ali era pelo meu esporte, pelo meu estilo.” Sobrinha de delegado, prima de policial civil e militar, em Paranavaí, vivia muito presa e rodeada pela família, não podia dar um vacilo, tinha muita cobrança. Sua família sempre soube de sua orientação sexual, exceto 45
seus filhos. Lidiane deixou em Paranavaí dois filhos, um menino de 15 anos e uma menina de 13. Desde que nasceram, sempre ficaram sob os cuidados da avó, a mãe de Lidiane. Quando o primeiro nasceu, a mãe disse que ela poderia sumir, mas os filhos não. Sua mãe sempre dizia: “você é muito louca!”.
Dizem muitos: Quem nos fará a felicidade? Guiai Senhor novamente em mim a luz de sua face.
Com muito carinho, me fala sobre seus filhos. Na sua primeira gravidez, chegou a pesar 120 quilos, o filho nasceu com mais de quatro quilos. Já na segunda gravidez, ela fez uso de muita pasta base. A filha nasceu com um quilo e meio, teve que ficar internada por 15 dias. A menina nasceu branca, dos olhos verdes e cabelo arrepiado. “Parecia filha do Supla, tadinha da minha branquela.”
Ela crê que Deus vai a instituir novamente ao lado de sua família. Acredita que o que está passando é uma prova, pois lá atrás fez algo de errado. Relembra de sua mãe dizendo que Deus iria cobrar, não ia dar castigo, mas ia jogar a cólera. “Na Bíblia está escrito, a cólera de Deus é pesada.”
Lidiane carrega o sonho de um dia poder contar para seus filhos sobre sua orientação sexual e seus sentimentos. “Eu acho que meu mundo tá perfeito, mas vai estar mais perfeito na hora que eu tiver ao lado da minha família, de poder sentar com os meus dois filhos e poder falar ‘ó, a mãe não deseja o mal a ninguém, a mãe é isso, não precisam vocês ser também, que eu não vou me sentir bem’.” Ela fica sem jeito, não sabe como falar isso para eles, mas acredita que Deus prepara tudo. Ela começa então a recitar o Salmo 4:1-8:
“Quando vos invoca, respondei a Deus sua justiça, que vos na hora de sua angústia, ele te reconfortaste e tende piedade de você. Os poderosos, até quando tereis o coração endurecido, no amor, na vaidade e na busca na mentira? Mas o Senhor nos escolheu como eleito uma pessoa de milagre, o Senhor nos pediu, quando invoquei. Tremei, mas sem pecar; refletimos em vossos corações, quando estivesse em vosso leito, calai. nhor.
Oferecemos nossos sacrifícios com sinceridade e esperai no se46
Puseste em meu coração mais alegria, porque quando o vinho e o trigo vir, apenas me deito e logo adormeço em paz.”
Lidiane está grávida de seu terceiro filho, sua mãe não sabe. “Se ela souber vai ficar em luta lá.” Um tempo atrás, sua mãe foi buscá-la no abrigo, mas ela não estava, havia saído para usar drogas. Embora também se relacione com homens, Lidiane não toca no assunto. Ela me diz não entender como engravidou estando dentro do Cetremi e longe de seus filhos. “Eu não entendi porque Ele quis me dar essa outra criança.” Pergunto como ela saiu da antiga rodoviária e foi para o Cetremi. Ela me conta que a equipe do Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS) do Centro Pop a encontrou e a encaminhou para lá. Estava grávida de cinco meses e abortou. Ela me diz que se não a encaminharem para o CAPS, vai tirar essa criança também. “Porque não tem condições de eu ter uma criança, aqui sem documento, vai saber como vai ser minha vida.” As técnicas que cuidam dela a dizem que essa criança pode ser o testemunho de sair das drogas, colocar a cabeça no lugar e voltar para sua casa, ao lado de seus filhos. Ela acredita. Lidiane não sabe qual vai ser o futuro da criança. Sem nenhuma documentação, sabe que se ficar com o bebê, ele vai para o juiz. Por isso, quando dar à luz, quer estar ao lado da sua família. “Se eu ganhar neném, minha mãe vai lá e tira na hora, já cria dois, não vai custar de criar mais um.” 47
Ela quer voltar para perto de seus filhos. Consegue imaginar a felicidade deles descobrindo que vão ter um irmãozinho, a filha falando que pode a ajudar a cuidar do neném. Pergunto se ela tem algum contato com eles. Ela diz que recentemente sua mãe mandou uma foto no celular de uma assistente social do abrigo. Com a barriga já aparecendo, Lidiane ainda não havia feito nenhum exame para acompanhar a gravidez. Se o futuro de Lidiane é incerto, o dessa criança é ainda mais. Ela me diz que quer que Deus mude o seu jeito de pensar, mas seu ritmo e aparência vão continuar o mesmo. “Se eu não me satisfazer com homem, vai ser mulher.” Acha que está na hora de parar de usar drogas. Tinha usado na terça-feira, um dia antes de conversarmos, na quarta ainda não havia usado porque o Odair pediu para que ela não saísse. Lidiane elogia muito Odair, que nem imagina o quanto é querido pelos abrigados do local. Diz que ele parece ser uma pessoa igual a eles. Ele já pegou Lidiane bebendo um “goró”, fumando um “brown”, mas chegou com toda educação pedindo para parar. Ele não liga que façam isso, desde que seja fora do Cetremi. Lidiane me diz que ele é um anjo das almas perdidas, recolhe as almas das trevas. As trevas são as ruas em que viveu, do portão do Cetremi para fora. “Eu me sinto protegida mil vezes aqui dentro do que lá fora.” Ela afirma que não é uma pessoa “envernadona” não. Envernar é o termo que ela usa para se referir a quando fica muito tempo seguido usando drogas. Já passou por um período de ficar quatro, cinco dias seguidos somente nas drogas, hoje já não faz mais isso. Segundo ela, Deus prepara tudo e usa as piores pessoas para confundir os sábios. Tudo o que passa, ela guarda em seu peito, e desabafa somente com seu Altíssimo. “Tô no meu canto, tô fumando meu brown, tô chorando, tô pedindo perdão pelas minhas atitudes, pelas minhas falhas, peço proteção da minha família lá fora, 48
dos meus filhos.” No dia da entrevista, Lidiane estava esperando o carro para a levar ao Caps. As técnicas queriam que ela fosse para lá, porque o cuidado seria maior. “Aqui se deixar eu vou para a pasta base.” No Caps ela tem suas “mãezonas”, técnicas que cuidam dela. “Quando eu fiquei lá, meu Deus, elas cuidam mesmo, compram shampoo, condicionador, roupa, me levam para sair, para distrair minha cabeça.” Ela conta que é uma pessoa muito higiênica e toma muito cuidado quando sai para usar droga. Ela não gosta de usar no cachimbo, prefere usar na lata. “Porque você não sabe qual boca passou por aquele cachimbo, o que se foi feito”. Ela se preocupa em não pegar uma doença. “Porque tem o tal da herpes, se a gente moscar, a gente pega na boca.” Como no Cetremi tem várias regras que a pessoa deve seguir para ficar abrigada, Lidiane vive com medo de cometer um vacilo e ser desligada do local. “No mundo hoje em dia a gente quer pecar, se não tiver um pecado em vão, não tá legal.” Ela e Sarate têm uma ótima amizade, se entendem bastante, apesar de ele sempre ficar na roda das mulheres e ela preferir ficar na roda dos homens, jogando futebol. “Tem hora que eu fumo um brown, aí eu sento ali no meio da galera, e esse aqui não fecha a boca, aí começa a tocar os funks, ele já começa. Hoje ele levantou desse jeito. Eu escutei a pessoa dando bom dia para ele três vezes, e ele com a boca fechada. Aí a pessoa falou ‘bom dia, Sarate’ e ele falou “bom dia”. Acho que era quase umas oito horas da manhã e ele bravo ainda porque acordou cedo, eu pensei ‘pô cara, será que o cara tá bem?’” Depois que acabo a entrevista, percebo que tem mais algumas coisas que quero saber sobre Lidiane e, principalmente, quero acompanhar a gravidez. Na quarta-feira seguinte volto ao Cetremi para falar com ela e com Sarate, nenhum dos dois estão. É quando 49
conheço Samyra e passamos a tarde conversando. Depois, falo com as colegas que dividem o quarto com Lidiane – Samyra é uma delas. Dizem que ela havia saído desde cedo para vender produtos de limpeza. Pergunto se conseguiu o encaminhamento que queria para o Caps, me dizem que sim, mas que ficou dois dias lá e voltou para o abrigo. Quando resolvo ir embora, perto das 19h, Lidiane chega e aceita falar comigo novamente. Pergunto se prefere que eu volte no dia seguinte, ela diz que não precisa, que só vai tomar um banho e podemos conversar. Quando sai do banho, pergunta se posso voltar no dia seguinte. Havia usado drogas e me conta que ainda está sob efeito, então não conseguiria falar direito. Me diz para voltar pela manhã. Quando acordo, mando mensagem para Odair, que me diz que ela não está por lá. Eu peço para ele me avisar quando aparecer novamente. Três semanas se passam e ela não volta, fico preocupada. Lembro então que pode estar no Caps. Ligo no local e descubro que está internada, em tratamento. Consigo o contato de Tânia, a técnica que ela havia dito que sempre cuida dela. Mando mensagem para Tânia, que me diz que ela está bem e me manda uma foto. Pergunto se pode ver com Lidiane se ela aceita falar comigo novamente, ela diz que sim e pede para eu ir na parte da manhã, mas antes, devo ligar para confirmar se está por lá, porque já está querendo voltar para o Cetremi. Quando chego no dia seguinte, vou até seu quarto e ela está dormindo. Com a gravidez, está sentindo muito sono. Resolvo ficar na sala de televisão junto das pessoas que estão internada. Uma hora depois ela sai do seu quarto andando bem devagar, parece não saber muito bem para onde ir. Eu dou um “oi” e digo que estou lá para falar com ela. Ela pede para eu esperar, que vai ao banheiro. Quando volta, me chama e me leva até uma sala. Na sala, estão alguns funcionários do Caps, 50
me apresenta a eles e feliz diz que eu nunca me canso dela. Para todos que perguntam, faz questão de dizer que eu sou uma amiga que conheceu no Cetremi. Vamos numa área ao ar livre do Caps conversar. Sua aparência é a mesma, a pele negra, os olhos escuros, o cabelo preto jogado de lado, raspado nas laterais e a barriga que continua crescendo. Mas o seu jeito mudou. Como no Caps passa o dia na base de medicamentos, embora esteja consciente, anda muito devagar, fala baixo, às vezes meio enrolado. Quando estava no Cetremi, já havia me dito que ficava desse jeito. “Eu não sei o que eles me dão, eles vêm com um copinho com água, a besta bebe, dá vinte minutos e você tá babando. Acordo depois de dois dias, daquele jeito, atordoada, que você não consegue nem abrir os olhos. Para comer você dá duas colheradas e deita a cabeça, que você fica tão pesada.” Apesar dos medicamentos que a deixam desse jeito, ela me fala que está bem. Digo que estava preocupada e pergunto como ela foi parar de volta no Caps. Ela me diz que foi por conta própria, mas que já quer voltar para o Cetremi e fumar um brown. Brown é a gíria que usa para falar da maconha. Não me preocupo em fazer muitas perguntas pela situação em que está. Ela diz não saber para onde vai, que depende do encaminhamento de Tânia, que quer mandá-la para o Esquadrão da Vida ou para a Clínica da Alma, para fazer seu tratamento lá. Tânia tem medo de que ela perca essa criança e já disse para Lidiane que se não quiser ficar com o bebê, as técnicas arrumam uma pessoa que cuide e dê amor. Lidiane parece ainda não saber o que vai fazer. Ao lado do Caps, tem um semáforo: Lidiane diz que quer trabalhar lá, mas Tânia não deixa por conta da gravidez. “Se eu vou na rua, ela vai atrás de mim.” Pergunto como está sendo a convivência com as pessoas do 51
local. Assim como no Cetremi, ela me diz que lá a convivência também é boa. Ela se relaciona bem com todo mundo. Inclusive, uma das pessoas que estava internada no dia que a visitei, ela já conhecia desde que esteve internada na Clínica da Alma. Finalmente, ela me diz que fez o primeiro exame para acompanhar a gravidez. O bebê estava sentado, não conseguiu descobrir o sexo, mas descobriu que está grávida de cinco meses. “Nem ele quer saber, tá igualzinho a mãe, jogando tudo pro ar.” Como tem um filho moreno e uma filha loira, agora ela diz que está vindo um ruivinho. Ficamos mais um tempo conversando, respondo algumas coisas que ela queria saber sobre mim e me levanto para ir embora. Ela me pede para visitá-la mais vezes. Eu digo que se ela não sumir, eu apareço. Ela me diz que permanecerá no Caps, mas que se for para o Cetremi, pede para Odair me avisar. Ela me leva até a porta do Caps e diz que está pensando em pintar o cabelo de vermelho. Eu pergunto o motivo e ela diz que é para ficar parecido com o meu. Digo a ela que volto na semana seguinte para vê-la. Na semana seguinte, mando mensagem para a Tânia, que me diz que Lidiane havia deixado o local na sexta-feira à tarde, mesmo dia em que conversamos. Mando mensagem para Samyra, perguntando se ela apareceu no Cetremi. Samyra diz que não e que, se ela não está em nenhum desses dois lugares, provavelmente está se envernando. Nesse tempo que passei com ela percebi que é assim. Ela dita as regras da própria vida e, como ela mesma diz, vai pela sua cabeça. Ela gosta de ser livre. Fica um pouco em um lugar, um pouco em outro, e assim vai levando a vida. Espero que fique bem, no lugar em que decidir ficar e vivendo a vida que decidir levar. Depois de a conhecer, posso dizer o mesmo que sua mãe: Lidiane, você é muito louca! 52
Serviços Ofertados A Prefeitura de Campo Grande, através da Secretaria de Assistência Social Municipal (SAS), possui o Centro de Referência Especializado para a População em Situação de Rua (Centro Pop), que oferece dois tipos de serviço: Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS) e o Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua. Esses serviços devem seguir a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, que estabelece uma matriz padronizada para a oferta de serviços e apresenta-se como uma referência para estados e municípios, indicando como devem ser ofertados os serviços. Estando em desacordo com o documento, ele serve como um orientador para a reestruturação e reordenamento dos serviços socioassistenciais. O Serviço Especializado em Abordagem Social é composto por uma equipe que vai às ruas para abordagem e busca ativa das pessoas, oferecendo os serviços de assistência social para construir o processo de saída das ruas e possibilitar condições de acesso à rede de serviços e a benefícios assistenciais. Já o Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua tem a finalidade de assegurar atendimento e atividades direcionadas para o fortalecimento de vínculos interpessoais e/ou familiares que oportunizem a construção de novos projetos de vida. O Centro Pop é uma unidade de referência para essa popula53
ção e é previsto no Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Ele oferece atendimento a jovens, adultos, idosos e famílias que utilizam as ruas como espaço de moradia e/ou sobrevivência. As pessoas podem chegar até ele por meio de encaminhamentos de outros órgãos ou por demanda espontânea. Nele, podem passar o dia, fazer a higienização e se alimentar; são ofertados café da manhã, almoço e lanche da tarde. São realizados atendimentos com técnicos e assistentes sociais, trabalhando a ressocialização. Os serviços ofertados pelo Centro Pop incluem construção da documentação pessoal, inscrição no Cadastro Único e no Programa Bolsa Família. Através dele é feita a recondução familiar ou o encaminhamento para o local mais apropriado. Os encaminhamentos para acolhimentos institucionais são feitos para o Centro de Triagem e Encaminhamento do Migrante e População de Rua (Cetremi) e para a Casa de Apoio São Francisco de Assis. Quando necessário, o encaminhamento também é feito para comunidades terapêuticas. O local de acolhimento da população em situação de rua mais antigo no município é a Casa de Apoio São Francisco de Assis, que foi fundada pela Paróquia São Francisco de Assis, 22 anos atrás. A casa é cofinanciada pela prefeitura e sobrevive também de doações. O atendimento pode ser por demanda espontânea ou por encaminhamento por qualquer órgão. Cada pessoa tem um período que pode ficar no local. Quando é questão de desemprego ou de falta de documento, o período é de dois meses; quando é questão do uso de substâncias químicas, o prazo é de seis meses. Na casa há o atendimento com enfermeira, psicóloga, nutricionista e assistente social, tudo voltado para a ressocialização do indivíduo. Quem precisa de tratamento para dependência química, também recebe todos os cuidados e encaminhamento para o Centro de Atenção Psicossocial (Caps). Sua capacidade máxima é de 50 pessoas e somente o sexo masculino pode se abrigar no local. 54
De segunda a sexta-feira, o local oferece almoço ao público externo. Qualquer pessoa em situação de rua pode almoçar no local e fazer sua higiene pessoal. Por dia, cerca de 30 pessoas vão almoçar. Por estar localizada perto da Favela do Mandela, muitas pessoas da favela que estão em situação de vulnerabilidade também almoçam no lugar. O Centro de Triagem e Encaminhamento do Migrante e População de Rua (Cetremi), que existia desde 1989 e fazia atendimento somente de migrantes, passou a receber também a população em situação de rua para pernoitar no local. Foi lá em que encontrei Samyra, Sarate e Lidiane. Embora seja o lugar de acolhimento que a maioria das pessoas nessa situação estão, o abrigo não segue a Tipificação Nacional, que diz que o acolhimento deve ser para pessoas do mesmo sexo ou grupo familiar. Pessoas de ambos os sexos são aceitas nele. Na Tipificação também é previsto que os abrigos devem apresentar espaço semelhante a uma residência, com limite máximo de 50 pessoas por unidade e de quatro pessoas por quarto. No Cetremi, a capacidade máxima é de 100 pessoas, mas nos meses de frio, chega a 150 o número de abrigados. Há muito mais que quatro pessoas por quarto. No feminino, por exemplo, são cerca de dez camas por quarto; no masculino esse número é muito maior. O local conta com quartos, banheiros, cozinha, lavanderia e bagageiro para os abrigados guardarem suas coisas, além das salas de atendimento com os técnicos e assistentes sociais. O alojamento da população em situação de rua é separado do alojamento dos migrantes. Apesar de ter um número grande de abrigados, muitas pessoas ainda preferem ficar nas ruas do que ir para o local, que recebe diversas queixas de quem já passou por lá. De fato, é um local que necessita de muitos investimentos. As estruturas são péssimas, os quartos lotados, banheiros quebrados, infestados de insetos. 55
A coordenação do local passou por mudanças e as coisas parecem estar melhorando. Nos dias em que fui ao local, notei o esforço dos funcionários em fazer um bom trabalho e ajudar essas pessoas, mas falta investimento do poder público. É como se jogassem aquelas pessoas ali e não oferecessem mais nada além de um teto, como se só isso fosse o suficiente. Desde 2013 o município conta com o Consultório na Rua, equipamento da Atenção Básica da Rede de Atenção Psicossocial, ofertado pela Secretaria Municipal de Saúde Pública. O Consultório atende exclusivamente pessoas em situação de rua e usuários de álcool e outras drogas. Conta com uma equipe de psicólogo, enfermeiro, assistente social, técnicas de enfermagem, técnica de saúde bucal, fonoaudióloga com especialização em saúde mental e o motorista do veículo. Ele atua de forma itinerante e há um cronograma semanal de atendimento; toda semana o Consultório vai nos mesmos lugares. O cronograma surgiu a partir da observação inicial dos campos onde existiam pessoas em situação de rua na cidade. Essas pessoas já sabem que o Consultório vai em determinado dia da semana em determinado local, então já ficam ali esperando o atendimento. O Consultório realiza todos os atendimentos da Atenção Básica de Saúde. Se for verificada a necessidade de levar o usuário a uma unidade de urgência e emergência ou a uma consulta médica, também é realizado esse encaminhamento.
Intersetorial. De 2009 para 2017, são oito anos de uma normativa existente, mas que não havia sido colocada em prática em Campo Grande. Em 2017, o Comitê Pop Rua é então criado. Indo in loco com o Consultório na Rua, Bárbara viu a situação dessas pessoas, que na maioria das vezes estão em situação de drogadição. Foi quando convidou as comunidades terapêuticas que fazem o tratamento da dependência química para irem nas reuniões do Comitê. Hoje, a prefeitura tem um termo de cooperação com as comunidades terapêuticas do município e custeia 100 vagas para tratamento das pessoas em situação de rua que estão em situação de drogadição. Em 2018, foi lançado o Programa de Ação Integrada Continuada (Paic), na antiga rodoviária. Lá, além do atendimento do Consultório na Rua, a coordenadoria leva a Defensoria Pública para prestar atendimento à essas pessoas, uma vez que algumas delas são egressas do sistema penitenciário. O Serviço Especializado em Abordagem Social também vai para fazer a busca ativa. Atualmente a coordenadoria está elaborando um projeto de moradia assistida com a Agência Municipal de Habitação (Emha), para que essas pessoas também tenham o direito de pleitear com as demais pessoas o sorteio para ser beneficiado com uma casa.
Em 2017, foi criada a Subsecretaria de Defesa dos Direitos Humanos. Dentro da subsecretaria, existe a Coordenadoria de Proteção à População em Situação de Rua e Políticas sobre Drogas, para monitorar as políticas públicas existentes para essas pessoas.
Dentro da Subsecretaria de Defesa dos Direitos Humanos, também há a Coordenadoria de Políticas Públicas LGBT. Ela tem a missão de promover as ações de direitos humanos e cidadania da população LGBTI+, fomentar as políticas públicas que garantam condições de dignidade humana, e combater as vulnerabilidades sociais, os preconceitos e as discriminações LGBTIfóbicas
Para iniciar o trabalho, a coordenadora Bárbara Cristina Rodrigues foi buscar o que havia de normativa voltada para essa população. Encontrou o decreto 7.053, que implementava a Política Nacional Para a População em Situação de Rua e a criação do Comitê
Como as coordenadorias estão dentro da mesma subsecretaria, em muitos casos, elas fazem um trabalho cruzado. Quando há o caso de algum LGBTI+ em situação de rua, as duas coordenadoras se unem para achar qual o melhor encaminhamento a ser dado a
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essa pessoa. O município não possui nenhum abrigo voltado somente para pessoas LGBTI+ e muitos abrigos não têm um espaço apropriado para receber essas pessoas. As comunidades terapêuticas, por exemplo, até pouco tempo atrás não aceitavam pessoas LGBTI+. Na Casa de Apoio São Francisco de Assis, quando ainda não trabalhava no local, uma funcionária me diz que já soube de casos de haver homossexuais e serem pegos tendo relações sexuais, os dois tiveram que deixar o abrigo. Já aconteceu de ir um casal de um homem e uma mulher transexual e não puderam ficar também. Como é um acolhimento masculino, se uma mulher transexual quiser ficar, ela tem que estar como homem, se desfazer de toda a identidade que construiu. Ao longo da pesquisa, me espantei ao ver o quanto muitos profissionais da área misturam suas crenças religiosas com os serviços assistências. Pouco importa a religião do profissional, ele não está lá por uma caridade religiosa, está lá pago pelo Estado para isso.
– que já foram desrespeitados por pessoas que deveriam prover um atendimento digno a eles – não virão a acontecer novamente. A pessoa que está em situação de rua teve um caminho para chegar até lá. Agora, ela precisa de um caminho para retornar. É um dever do Estado dar as condições que essa pessoa precisa para fazer seu caminho de volta. Os serviços que a cidade fornece para essa população, ainda não dá a elas uma oportunidade real de sair das ruas e reconstruir suas vidas. Infelizmente ainda vivemos em um estado onde o boi e soja continuam valendo mais que um ser humano. Se a pessoa quiser ficar em situação de rua, é um direito dela, não tem problema. Mas o Estado tem que garantir a ela alimentação, educação, documentos, acesso aos serviços públicos, e isso o Brasil não tem garantido. A pessoa em situação de rua, além da moradia, ela tem privada de si o acesso ao serviço público. E essa é a irregularidade de toda a situação.
A maioria das comunidades terapêuticas, por exemplo, são de pessoas religiosas, boa parte não respeita a questão de gênero e da sexualidade. É necessário entender que as pessoas estão indo para esses lugares buscar uma cura da sua dependência química e não da sua sexualidade ou sua espiritualidade. Grande parte dessas comunidades não atuam com profissionais como psicólogos para tratar a dependência química. Saúde mental e dependência química são questões que devem ser tratadas com profissionalismo e não com religião. A comunidade terapêutica deveria acolher quem precisa daquele tratamento, e ali precisaria ter atendimento psiquiátrico, que muitas vezes não há. É extremamente necessário que haja um investimento em formação dos funcionários de todas estas instituições para um acolhimento da população LGBTI+ e que respeite suas especificidades. Só através dessa formação que casos como o de Samyra e Sarate 58
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Carlos Eduardo: o que cura é o amor Diferente das outras histórias já contadas, a de Carlos Eduardo Rodrigues dos Santos, mostra o início, o meio e o fim de uma trajetória na rua que durou um ano e três meses. A decisão de contar o trajeto de Carlos Eduardo veio da necessidade que senti em retratar a vida de alguém que já passou pela rua e apesar dela conseguiu se reerguer, comprovando o que foi dito no início e que é necessário sempre reforçar: a pessoa “está” em situação de rua porém ela não “é” essa situação. Essa é uma história que se iniciou 15 anos atrás com os conflitos que Carlos Eduardo carregava em seu peito. Assim como Samyra, o gênero com que Carlos se identifica não corresponde ao que lhe foi atribuído em seu nascimento. Mas Carlos demorou mais tempo para compreender isso: 25 anos. Boa parte dessa narrativa acontece durante a parte da vida em que Carlos era Ana Caroline, período que durou até seus 25 anos. Por respeito a Carlos que hoje assim é chamado, mesmo tratando do período em que viveu como uma mulher, me referirei a ele da forma que ele prefere e que assim então deve ser: Carlos Eduardo. Carlos nasceu Ana Caroline 28 anos atrás, na cidade de Bebedouro, localizada no interior do estado de São Paulo e que hoje possui pouco mais de 77 mil habitantes. Parte de uma família extremamente religiosa que frequentava a Congregação Cristã no Brasil, aos 13 anos tudo começou a mudar em sua vida. 60
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Carlos sempre quis ser um menino, mas não sabia que isso era possível. Assim como qualquer adolescente de sua idade, Carlos frequentava uma escola da cidade. O bullying que é tão presente nessa fase escolar já fazia Carlos sofrer. Piadinhas o chamando de “macho/fêmea” já eram corriqueiras. Na escola, Carlos gostava de jogar futebol, de entrar em briga. Ele assustava as meninas naquela época. “Eu não tinha amiga menina, só a Vanessa que também gostava de menina. Até para entrar no banheiro elas não gostavam que eu entrasse, porque eu ficava olhando mesmo, isso é normal, eu achava que era.” Não sabendo que era possível se tornar esse menino que sonhava, Carlos, que aos 13 anos já gostava de meninas, passou a se entender como uma mulher lésbica. É nesse momento em que se inicia todo o sofrimento, não só para ele, mas para sua família. “Eles não entendiam, não sabiam lidar com essa situação, antigamente as pessoas eram um pouco mais fechadas, questão de homossexualidade a gente não conversava, não tinha esse diálogo com a família.” Frequentando a igreja com seus pais, tudo ficava ainda mais confuso em sua cabeça. Na Congregação Cristã no Brasil, igreja pentecostal, homens trajando seus ternos se sentam de um lado e mulheres usando seus véus se sentam do outro. Deslocado, nada fazia sentido em sua vida. Em sua mente martelavam as questões “por que eu estou vivendo isso? Por que eu tenho que me sentar aqui e não lá? Por que eu não nasci com a genitália masculina?”, questões que atormentaram sua infância. “Eu não aceitava meu corpo, meus peitos crescendo, tudo se aflorando, e eu não conseguia aceitar aquilo.” Na igreja era comum acontecer um recital, momento em que alguém ia na frente recitar uma parte da Bíblia. Atrás do recital Carlos já escrevia mensagens de amor para as meninas e as entregava. Em um desses dias de recital, uma dessas mensagens chegou até sua mãe através da mãe de uma outra menina. Como é comum na Congregação, as meninas se casam sempre 62
muito jovens, então ao receber o bilhete, a mãe de Carlos tentou arranjar um casamento para ele. O casamento seria com Adriano, um caminhoneiro de 29 anos, pai de dois filhos. Carlos não queria se casar, pois não gostava de meninos, mas aceitou o namoro para poder sair um pouco da casa da família que queria deixá-lo sempre trancado. Todos seus amigos frequentavam um lago na cidade, Carlos só poderia ir se fosse com Adriano. Sem que ninguém soubesse, um pouco antes do relacionamento com Adriano, Carlos começou a ter o seu primeiro relacionamento com uma mulher chamada Kathy, uma prima de sua mãe, dois anos mais velha que ele. Carlos então passou a namorar com a sua prima Kathy e com Adriano. Kathy também era da Congregação e mantinha um relacionamento com outro rapaz da igreja. “Nós tínhamos um relacionamento de praxe, mas nós nos relacionávamos.” Quando o relógio dava meia noite, Carlos pulava o muro da sua casa, andava oito quadras até chegar na casa de Kathy e lá ficava até por volta das quatro horas, horário em que voltava para sua casa. Às vezes sua mãe fechava a janela porque achava que ele estava na rua, e o batia para que não saísse. Quando isso acontecia, ficava um tempo sem ver sua namorada, às vezes se viam na escola, mas como não estudavam no mesmo horário, era mais difícil. Matar aula para se encontrarem algumas vezes era a solução. Um dia na igreja, Kathy ouviu a palavra que falava sobre Sodoma e Gomorra, cidade que muitos afirmam ter sido queimada por causa da homossexualidade. Depois de ouvir a palavra, tomou uma decisão e fez um pedido que mudaria a vida de Carlos: - Essa noite eu vou perder minha virgindade com o meu namorado e quero que você faça a mesma coisa, porque o que nós estamos fazendo é errado. Era uma sexta-feira, aquilo corroeu Carlos por dentro. “Como assim perder a virgindade?” Embora confuso, Carlos decidiu fazer o 63
mesmo, saiu com o namorado. Ele que nunca havia ingerido álcool em sua vida, aceitou beber a meia garrafa de vinho que Adriano levava. Fizeram a primeira tentativa. “Que dor dos infernos!” Carlos pediu para Adriano parar. “Às vezes eu fico pensando como é que as meninas conseguem perder a virgindade, porque dói muito. Aí as pessoas falam que ele foi bruto, mas ele não foi bruto, ele foi de boa até.” Quando chegou em casa, deitou-se em sua cama aguardando seus pais que tinham ido para igreja. Quando seus pais chegaram, uma irmã da igreja disparou para Carlos: - É irmã, eu fui à igreja e hoje a palavra foi para os jovens. - E qual foi a palavra? - Foi sobre a mentira dentro de casa. Nesse momento a família toda já estava reunida comendo uma galinhada, comida que até hoje Carlos não gosta. Estavam sentados à mesa os pais, os irmãos, os avós de Carlos e a irmã da igreja. Foi quando iniciou uma conversa com sua mãe: - Mãe, eu preciso falar uma coisa com você. - O que é? - Não pode ser ali no quarto? - Não, fala logo – interrompeu o pai. - Sabe o que é? Eu perdi minha virgindade com o Adriano, eu não gostei, e eu namoro a Kathy. Cada um reagiu de uma forma ao ouvir a revelação. A avó que estava mastigando um osso, acabou com ele entalado na garganta, que só saiu com oração. “Eu quase matei a velha.” Como morava no fundo da casa, a avó foi chorando para lá, dizendo que era culpa dos pais, que o demônio tinha entrado na casa por culpa da televisão. O pai parou de comer e começou a chorar. 64
“Parecia um funeral e realmente era, ali eles estavam velando o corpo de uma filha que nunca teve”, desabafa. Carlos foi para seu quarto e começou a chorar, entrou em desespero. Sua mãe entrou e disse que tudo que havia acontecido era coisa da sua cabeça, uma fase e iria passar. A mãe decidiu que iria chamar Adriano, que ele assumiria o que fez e que eles se casariam. Carlos não aceitou o casamento. No dia seguinte, a mãe chamou o primo dela, pai da sua namorada. Kathy desmentiu tudo, disse que Carlos estava doido e que nunca esteve em um relacionamento com ele, que são coisas de sua cabeça. Carlos ficou como um louco na família e Kathy como uma perseguida. Foi então que Carlos surtou e saiu de casa. Ao sair, foi para um bairro da cidade chamado Mutirão, local em que um mutirão de pessoas se assentou e aos poucos conseguiram suas casas. Lá ele ficou na casa de outras pessoas. Era um lugar periférico, com fácil acesso às drogas. Foi quando Carlos começou a ingerir bebidas alcoólicas e a fumar maconha. Certo dia ele encontrou uma outra mulher lésbica que diz que estava indo para Laranjeiras, uma cidade vizinha de Bebedouro, para trabalhar em uma colheita de laranjas, e perguntou se Carlos quer ir junto. Sem dinheiro, ele aceitou. Para ir, ele teria de voltar para a casa de seus pais para pegar suas coisas. Ao chegar na casa localizada na frente de uma sorveteria, em um dia de muito calor, Carlos foi surpreendido por sua mãe que já começou a lhe bater. Quando a mãe o soltou, quem começou a bater foi o pai. Foi a pior surra que levou em sua vida. Para não apanhar mais, ele fingiu um desmaio, mas foi surpreendido ao ouvir o pai pedindo um balde: - Pega o balde de água, vou enfiar a cabeça no balde para ela acordar já que está desmaiada. Foi nesse momento que os vizinhos apareceram dizendo que vão chamar a polícia. A partir daí começou uma história rotineira: 65
toda a oportunidade que tinha, fugia de casa, o Conselho Tutelar ia e pegava-o, os pais iam e o buscava. Foi a época em que ele pegou raiva de seus pais, que o deixava todo marcado das surras com a cinta. Carlos chegou a apanhar na frente do Conselho Tutelar. Essa era a forma que os pais achavam para expressar suas dores. “Eles queriam expressar a dor deles de uma forma que eles achavam que era certo, eles foram criados desse jeito, na surra.” Mas as surras não resolviam, pioravam. Ele fogiu de vez. Dessa vez encontrou com Michele, uma mulher que fazia programa em Olímpia. Ela o convidou para ir junto, que o ajudaria, e que a única forma de sair desse ciclo que ele estava vivendo era indo para uma outra cidade. Ele aceita. Na primeira semana que foi para Olímpia, Carlos ficou na casa de um traficante. Foi quando ele começa a usar crack. Ao ver que já estava em estágio de vício, o traficante começa a cobrança. - Você não tem dinheiro. - Eu posso limpar a sua casa. - Não, você vai fazer outro serviço para mim. Você vai levar a droga para as meninas e, se você fumar no caminho, eu vou cortar seu dedo. As meninas a quem o traficante se referia eram as garotas de programa que ficavam em uma chácara localizada há 11 quilômetros de lá. A maioria das garotas fumavam crack.
cara em tempo de ele surtar e me matar”. Além do medo de todo o trajeto no meio no mato para chegar à chácara, também havia o medo dos homens que iam procurar as garotas de programa. “A gente sabe que homem que vai na zona não tem medo, porque é um cara que não está feliz com a vida, porque você vai usar um produto. Tudo o que é ruim vai parar ali, ele vai lá para despejar uma coisa ruim. Porque o homem cis ejacula numa mulher e deixa toda aquela energia que ele estava, então fica na menina. Não adianta falar que ali vai pessoa boa, ali só vai pessoa ruim, principalmente naquela cidade, era muita bandidagem que ia lá.” Hoje Carlos agradece a Deus por nunca ter sido estuprado. Nesse período Carlos começou de fato a estar em situação de rua e passou a “morar” em uma rodoviária desativada, local que já tinha virado a “casa” de muitas pessoas na mesma situação, além de um ponto de uso de drogas. Faltando um mês para completar 15 anos, ele voltou para sua cidade para buscar um amigo. Adilson era um menino homossexual que estudava com Carlos. Assim como a família de Carlos, sua família não aceitava sua orientação sexual. Nem o próprio irmão de Adilson, que também era homossexual, o aceitava pelo fato de Adilson ser um homem mais afeminado. Seu irmão e sua mãe o batiam. Um dia, quando Carlos ainda frequentava a escola, Adilson fez um pedido: se você for embora, volta para me buscar. Carlos voltou.
Carlos ia de bicicleta, no meio de um monte de árvores de seringueiras. A noite o local era um breu. A cada ida e vinda que Carlos fazia, ganhava uma pedra de crack. Quando estava muito louco chegava a fazer esse percurso seis vezes ao dia.
Ao esperar Adilson na porta da escola, Carlos viu sua mãe passando. Na mesma hora ela chamou seu nome. Com medo de apanhar da mãe novamente, Carlos chamou Adilson e eles saem correndo até a rodovia. Só com a roupa do corpo, andaram cerca de oito quilômetros.
No fundo dessa chácara havia uma casa abandonada, onde ficava um fugitivo da polícia, o Tiba. “Era um puta de um negão, era muito forte”. Às vezes ele surtava e queria cortar as garotas com um facão. Muitas vezes, Carlos fumava com ele. “Eu fumava com esse
Chegando na BR conseguiram carona com um caminhoneiro. Em troca, ele quis que Adilson o chupasse, o que não foi aceito. Com raiva o caminhoneiro deixou os dois no meio da noite em um trevo na cidade de Monte Azul Paulista.
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Em Monte Azul Paulista, numa noite de muito frio, os dois decidiram dormir na frente de uma empresa chamada Bombas Leão. Eles se cobriram com um papelão que haviam achado para dormir. Nem na frente dessa empresa conseguiram dormir. Três horas da manhã, o guarda da empresa, um senhor de aproximadamente 60 anos, chegou até os dois os assediando. “Você acredita que ele foi lá e começou a tirar o pênis para fora e passou no Adilson e em mim? A gente teve que sair de lá umas três horas da manhã e ir para a rodovia de madrugada para começar a pedir carona. Que caminhoneiro para de madrugada para adolescente todo sujo? Conseguimos pegar carona só quando o sol raiou.” A segunda carona os deixou na entrada de Olímpia. Foram mais 18 quilômetros andando a pé da entrada na rodovia até a cidade. Chegam então na rodoviária, lugar em que Carlos estava morando. Carlos saiu para tentar roubar algo para comerem, mas nesse dia não conseguiu nada. Dormiram com fome. No dia seguinte, para matar a fome Carlos pensou em levar Adilson na boate em que entregava as drogas. Como lá havia pé de manga, o dono do local o deixava limpar o lugar e em troca dava algum dinheiro. Era pouco, mas o suficiente para conseguir fumar. O dono quase não ficava no local, mas a gerente o deixava pegar manga para comer. Com fome e sem nenhum tipo de comida, foi a manga que os sustentou por dias. Durante um ano e três meses, período em que esteve na rua, a vida de Carlos era esta: comer manga, entregar as drogas, fumar crack, quando anoitecer voltar para a antiga rodoviária para dormir. Ficar cinco dias sem tomar banho era comum. No período em que esteve na rua também apanhou por conta dos roubos que praticava. “Não podia ver uma casa que eu pulava, roubava roupa, sapato, o que tivesse eu roubava para poder sustentar o meu vício.” Adilson, que até então não fumava, começou a fumar. Passou 68
também a fazer programas. Ganhava dinheiro dali. Um certo dia os dois brigaram por conta do efeito da droga. Adilson sumiu e eles nunca mais se viran. Depois de muito tempo Carlos ouviu boatos de que ele teria voltado para Bebedouro como uma mulher transexual e fazia programa lá. Hoje a maior missão na vida de Carlos é encontrar Adilson. Depois da briga, Carlos foi novamente de manhã até a boate pedir para limpar o quintal, o dono permitiu. Duas meninas novas na boate apareceram. Gleyce, uma delas, se sentou debaixo do pé de manga, chamou Carlos e lhe oferece água. Ele aceitou. - Você é daqui mesmo? - Não, eu sou de Bebedouro. - O que você está fazendo aqui? - Eu vim trabalhar e moro aqui agora. - Onde você mora? - Por aí. A vergonha por estar em situação de rua impediu que Carlos falasse. Esse também era o primeiro contato que teve com outra mulher depois de sua prima. - Você está com fome? - Estou. Gleyce decidiu pegar a marmita dela para Carlos, que não aceitou porque sabia que o dono da boate não gostava que as garotas dessem as coisas para as pessoas. Gleyce disse que o dono já havia saído e pegou a sua marmita. Carlos se senta para comer, enquanto Gleyce voltou a conversar com ele: - Mas você não tem ninguém? - Eu não tenho ninguém. - Mas e seu pai e sua mãe? 69
- Não, a gente não conversa mais. - Você quer morar comigo? - Como assim? – disse Carlos surpreso. - Você não tem lugar para morar, você vive por aí, mora comigo se quiser. - Onde você mora?
Foi quando parou e viu que precisava sair daquele quarto, porém, ele não conseguia se levantar, o cérebro dizia “você tem que sair”, mas ele não conseguia se movimentar. Até que conseguiu bater a mão na trava da porta e se arrastando se levantou.
- Frutal, Minas Gerais. - É longe? - É bem aqui. - Eu quero! bom?
quilômetros da boate. Passaram a madrugada inteira fumando em um quarto pequeno fechado. “Eu estava alucinado. Eu olhava para aquelas paredes tudo encardida, só o colchão de solteiro no chão, todo mundo louco, a menina catando no chão umas bolinhas de coberta e fumando, eu mais louco ainda e o cara mais louco ainda tirando a camiseta, tirando a roupa, ele ficava nu, aí ele começava a colocar a roupa, toda hora ele fazia isso, cada um tem uma pira.”
- Eu vou viajar hoje, na sexta-feira eu venho te buscar. Tá
- Fecha a porta, fecha a porta, fecha a porta que eles estão chegando – disse a garota de programa. pirar.
- Tá bom. - Você promete que vai estar aqui? - Eu prometo. O “bem aqui” de Gleyce não era tão perto. Frutal fica a cerca de 120 quilômetros de Olímpia. Gleyce foi embora. Em Frutal, ela era casada com uma menina, mas o relacionamento já não andava bem. Ela voltou para a cidade para pedir que sua então esposa saísse de sua casa. Ela saiu e Gleyce voltou para buscar Carlos. Com grandes expectativas para morar com Gleyce, Carlos ficou esperando. Na quinta-feira, um dia antes de ela chegar, Carlos foi até a boate levar droga. Um cliente da boate apareceu com uma pedra de crack enorme. “A gente usava muito menor, aquilo lá parecia uma pepita de ouro.” O cliente chamou uma garota de programa para usar a droga e essa garota convidou Carlos. “Naquela hora já me deu dor de barriga, eu disse ‘vamo embora’, na hora você não pensa”, relembra. Foram então para a casa desse cliente, que ficava a uns 20 70
- Quem está chegando? – nesse momento Carlos começou a - Eles estão chegando, fecha, fecha, fecha.
Carlos saiu e fechou a porta. Fora do quarto havia uma varanda, onde ele se sentou na rede e começa a ter uma crise de falta de ar. “Isso é normal, quando você usa muito a droga, a substância te dá uma reação, se você não sabe administrar ela vai afetando sua respiração.” Ele tentou se controlar “estou bem, estou bem”. Ao olhar para a porteira, viu um táxi parando, mas estavaa tão louco que acha va que estava alucinando. Gleyce saiu do táxi, abriu a cerca e foi andando. “Ela estava tão linda aquele dia”, ele não esquece. Ela foi até a sua frente: - E aí, vamos embora? - Olha a condição que estou. - Ah, mas esse foi o nosso combinado. - Mas você vai querer me levar desse jeito embora? - É bem pertinho, bem ali, se você não quiser ficar mais lá você pode voltar. Ou você quer ficar aqui? 71
Eram dez horas da manhã, mas Gleyce viu a neura de Carlos e disse que estava anoitecendo. Carlos acreditou e aceitou ir. Gleyce pagou um táxi de volta para casa e Carlos teve crise durante todo o trajeto. Ânsia de vômito, falta de ar, ânsia de vômito, falta de ar. Quando chegou em casa, Carlos disse que queria ficar sozinho e Gleyce falou para ficar em seu quarto. Ele entrou no quarto, ela trancou a porta. Carlos quebrou tudo o que pôde quebrar dentro do quarto, ele quis sair e ela não queria deixar. Como ela morava em uma casa de fundo, ninguém escutou o que Carlos quebrava, foram cinco dias assim. Gleyce levava comida em um prato de bolo de aniversário, sem colher, sem nada, mas ele não comia. Carlos teve uma crise de abstinência em que começou a ver bigato (uma espécie de larva) saindo por seu corpo. Ele passou a unha por seu corpo e começou a arrancar sua pele, algumas partes ficaram em carne viva. Até hoje é possível ver algumas manchas em seu corpo. No quinto dia, Gleyce levou água para ele que tentou a agredir para sair. Ela saiu e um tempo depois voltou, abriu a porta do quarto bagunçado, que fedia a comida e decidiu: - Eu não vou te segurar mais aqui. Se você quiser ir, você pode ir, não vou mais te obrigar a ficar. A única coisa que eu tenho para falar para você é o seguinte: se sua mãe não quis, se o seu pai não te aceitou do jeito que era antes, desse jeito que você está agora eles não vão te aceitar. Você nunca vai se aceitar, e você nunca vai ser mulher, que é a pior parte de todas as aceitações, você. Aquelas palavras entraram como um furacão dentro de Carlos. Ele saiu e rodou a cidade inteira atrás de drogas, não achou nada. Rodando a cidade ganhou algumas moedas que usou para fumar um cigarro e tomar uma dose de conhaque com coca-cola. Já de madrugada, chegando em um posto de gasolina, avistou um homem fumando cigarro de palha. Foii até ele pedir um cigarro: 72
- Você mora aqui? - Não. - Mas você não tem casa aqui? - Não, uma menina me trouxe para cá, mas ela me trancou na casa dela e não me deixou sair – Carlos contou a sua história. - Mas você não está trabalhando não? - Não tem trabalho para mim aqui. - Tem sim, você quer trabalhar? - Eu quero. - Daqui a pouco o caminhão está encostando aí para a gente colher abacaxi, se você quiser ir com a gente você vai, eu levo você, está precisando de gente para trabalhar mesmo. O homem contou a sua história, ele havia perdido a esposa em um acidente de carro e desde então não conseguiu ter outra família. Oferecey sua casa para Carlos ficar caso precisasse. - O lugar que eu estava ficando era da menina e eu vou conversar com ela, eu aceito ficar na casa do senhor, porque aí ajudo com alguma coisa, lavo uma louça, a roupa do senhor. - Não, cada um lava o seu, você vai trabalhar. Entraram no caminhão e logo Carlos fez amizade com todos. Chegaram na roça bem cedo e colheram abacaxi até meio dia. Depois desse horário não trabalharam mais por conta do sol muito forte. O abacaxi colhido tinha que ser primeiro jogado de lado porque as cobras verdes ficavam enroladas na raíz, então não dava para saber se tinha cobra ou não. Depois de colher, faziam a cotação das caixas e deixavam tudo organizado. Com a colheita, Carlos ganhou R$17. “Pô, eu tava rico”. Na hora de ir embora, Carlos pediu para deixarem-no na casa de Gleyce. Desceu do caminhão e ouviu que no outro dia voltariam 73
para buscá-lo para mais um dia de trabalho. Quando chegou, Gleyce está sentada na porta de casa com as pernas para dentro. Eles se olharam e Carlos entregou o dinheiro que ganhou. - Aqui para te ajudar, pagar as coisas que fiz. Quero saber se eu posso dormir por aí pelo menos hoje, que amanhã vou dar um jeito de caçar meu rumo. - Como você conseguiu esse dinheiro? - Fui trabalhar colhendo abacaxi. - Foi trabalhar com o seu Nelson? – a cidade é pequena e todo mundo se conhece. - Fui. - Ele é gente boa, né? - É. - Vai tomar seu banho. Carlos se banhou e foram ao mercado, Gleyce quis fazer algo especial. “Eu fui ao mercado com ela, a gente comprou refrigerante, cerveja, fizemos uma comprinha com R$17 que se você vai no mercado com cinquentão você não compra.” Voltaram para casa e Gleyce fez uma comida. Se beijaram pela primeira vez. Foi também a primeira vez em que fizeram amor. “Todo esse tempo, toda essa história, ela se apaixonou por mim só de me olhar.” Depois da relação, Carlos fez uma promessa para Gleyce: “eu nunca mais vou usar crack na minha vida”. A promessa foi cumprida. Durante esse período de namoro, Gleyce o ajudou a se reencontrar com seus pais. Carlos morria de saudade de seu irmão pequeno, mas ainda tinha medo de voltar para a casa. A última visão que tinha de seus pais era da surra que levou. Era fim de ano e Gleyce o levou para visitar seus pais. Assim que chegou em casa e 74
tocou a campainha, eles apareceram. A mãe começou a chorar, o pai o abraçou enquanto dizia “o filho pródigo volta para casa”. Foi nesse reencontro que os pais finalmente aceitaram o filho da maneira como ele era. “Ela tinha razão, eles não iam me aceitar do jeito que eu estava antes, mas eles me aceitaram quando eu cheguei lá, eles viram eu gordo, bonito, corado, com casa, eu morava com ela, a gente tinha nossas coisinhas. Isso eu acho que mudou o ponto de vista, de pensar que eu ia viver uma vida ruim, negativa, o oposto de um casal dentro de uma sociedade heteronormativa.” Após se reencontrarem, sua mãe confessou que o procurou até em caixinha de leite. Na época, era comum colocar fotos de desaparecidos nelas. Foi a primeira construção que teve com sua família, “porque tinha uma divergência, eu não entendia meus pais e não conseguia compreender que eles estavam sofrendo, e eles não conseguiam compreender que eu também estava sofrendo, só que eu era uma criança, era um momento que eu precisava deles, e eles não conseguiam entender, nem eu.” O tempo se passou e Carlos só queria saber de boteco, cerveja e mulherada. “Eu era um moleque que queria descobrir o mundo.” Gleyce se cansou e o namoro terminou, nessa época ele tinha 19 anos. Mesmo após a separação, Carlos não se esqueceu que foi ela quem sempre cuidou dele. Mesmo se passando dez anos, Carlos carrega consigo a certeza de que Gleyce salvou a sua vida. “Até hoje eu sempre falo, uma garota de programa, não foi um pastor, não foi minha mãe e não foi uma Bíblia, uma garota de programa usada por Deus me tirou de lá.” Se não fosse por ela e seu amor, Carlos considera que não estaria vivo. “Eu não estaria na rua, eu estaria morto.” Após a separação, ele foi morar em Barretos, começou a trabalhar como barman, virou DJ e trabalhou com isso por um tempo. A partir de então, começou a entrar e sair de vários relacionamentos. Carlos voltou a morar com seus pais e em 2010 se mudou com 75
eles de Bebedouro para Campo Grande. Depois de um tempo os pais se mudam para Bodoquena e ele permaneceu na capital. Foi no tempo em que trabalhou como DJ que Carlos se deparou pela primeira vez com um homem transexual. O homem logo disse para Carlos sua identidade de gênero. “Como assim trans?”. Carlos até então não sabia o que isso significava, achava que se tratava de um homem intersexual, que possuía um pênis e uma vagina. Foi quando o homem explicou: - Eu nasci menina e aí eu transicionei. - Bicho, eu sou esse negócio aí que você falou para mim – esse é o momento em que Carlos descobriu a resposta daquilo que causou tanta confusão em sua mente. Mesmo após compreender que é um homem transexual, Carlos ainda levou um tempo para iniciar sua transição. Parte disso veio das batalhas em seus relacionamentos que nunca o aceitaram como um homem transexual. “Meninas lésbicas não aceitam homem trans porque realmente não é aquilo que elas desejam, sexo não tem nada a ver até porque nossa genitália é feminina, mas mais pela fisionomia masculina.” Depois de todos os relacionamentos que não deram certo por não aceitarem Carlos como menino, ele partiu para Curitiba para fazer um curso de estética animal. Lá ele conheceu Luana e namoraram um tempo. Foi ela quem dise para ele: - Você é um homem, não sei onde as pessoas veem que você é uma menina. Ela deu toda a força para Carlos voltar para Campo Grande e se assumir para seus pais como um homem transexual. Em 2017, Carlos começou a transicionar. Foi então que se iniciou uma nova guerra. A família que já tinha o aceitado como uma mulher lésbica, agora teria que o aceitar como um homem transexual. - Nossa, agora que a gente começou a aceitar uma coisa, você 76
veio com outra - disseram os pais. Sua mãe é a que ficou mais arrasada. Com o tempo, Carlos foi explicando para ela que aquilo era uma coisa que ele sempre teve. “Eu vejo que ela tenta entender, mas é difícil para ela, mas a gente tem que entender o espaço das pessoas, o tempo que ela leva para digerir. Poxa, eu sou da ninhada ali, o único que nasceu com a genitália feminina.” Algum tempo depois, o irmão de Carlos teve uma filha mulher. Depois de seu nascimento, as coisas deram uma acalmada. Em 2019, eles já conseguem se entender, seu pai o chama de Carlos, a mãe tem dificuldade, mas sai um “Cauezinho” de vez em quando. “Mas a gente está construindo junto aí e eles têm muito orgulho de mim pela pessoa que eu me tornei, a pessoa que estou construindo.” Finalmente, Carlos encontrou em sua namorada atual o que precisa, alguém que o enxerga como ele realmente é. “Hoje ela não me enxerga como menina, ela consegue me enxergar como eu realmente sou, independentemente do tempo de transição. Ela me respeita como homem e ai de quem falar que sou ela.” Ele está em um relacionamento heteroafetivo, com Hosile Araújo. Carlos está em procedimento há três anos, incluindo a terapia psicológica. Ele entende que é necessário fazer ainda bastante terapia para lidar com a questão de ter que toda hora explicar para as pessoas que é um homem trans. “É muito difícil, tem dia que você não tá com saco não, tem vez que você senta no lugar e você não quer ser chamado de ‘ela’, mas minha namorada sempre me ajuda com isso, porque ela sabe que é muito difícil ter que ficar falando, e é algo padrão e automático porque às vezes a pessoa fala sem querer. Como eu não alcancei ainda a minha expectativa masculina de fisionomia, então eu sinto muita necessidade de autoafirmação.” Em 2019, com 28 anos, Carlos trabalha com a estética animal além de ser professor em uma escola pet. É inclusive em seu local 77
de trabalho que ele me recebe de braços e coração abertos para me contar a sua história. “Posso dizer hoje que sou uma pessoa estabilizada financeiramente, realizada emocionalmente, e tenho uma família, acho que é o principal pilar a base familiar, bato muito em cima disso.” Ele também atua como coordenador do Instituto Brasileiro de Transmasculinidade (Ibrat), em Mato Grosso do Sul, voltado para a pauta de transexuais masculinos. “A gente faz trabalho comunitário com pessoas trans masculinos, trabalho com pessoas em situação de vulnerabilidade, em situação de rua. A gente sempre está trocando uma ideia, vendo o que está acontecendo, tentando tirar das drogas, evitar que entre, fazendo o trabalho social.” No Ibrat, sua namorada sempre o ajuda. “Porque sou bastante leigo, não tenho faculdade nenhuma a não ser a vida. É uma coisa que pesa realmente, eu parei nos estudos, consegui concluir uma parte do ensino fundamental e entrei no ensino médio.” Mesmo em tratamento de hormonização há dois anos, muitas pessoas ainda não o reconhecem como homem por não ter a estética, a voz masculina. Isso ainda causa em Carlos muito sofrimento. “Mas quem é anormal? Sou eu por querer ser quem realmente eu sou? Eu acordo cedo, venho trabalhar, sou digno, não roubo nada de ninguém, ajudo as pessoas na medida do possível, vira e mexe fico fazendo ação social para ajudar as pessoas que hoje não tem nem o que comer dentro de casa. Enquanto esse bando de crente, esse bando de homofóbico, transfóbico, só fica sentado na frente do computador falando mal da gente, criticando, chamando a gente de anormais”, questiona.
der ajudar as pessoas que realmente precisam. Depois de toda essa trajetória, Carlos tenta tirar as pessoas da situação em que um dia ele já esteve. “De uma forma bonita, de uma forma sem cobrar, assim como eu não fui cobrado. Porque se você analisar toda a história, em momento algum ela (Gleyce) falou ‘você é um nóia, você é tal coisa’ ela não fez isso. Ela foi amor e é o que nós devemos ser, porque o que cura é o amor, não é o ódio.” A jornada foi penosa. No período em que esteve em situação de rua, muitos foram os conflitos que enfrentou. “Quantas vezes já não passou na minha cabeça ‘Se mata! Acaba logo com isso! O que você está esperando? Vai viver o que? Sua vida acabou’, que é o que passa na cabeça dessas pessoas que estão aí na rua, eles acham que é o fim da linha, então se entregam.” Apesar de todo o percalço, por fim, Carlos deixa uma mensagem para as outras pessoas que estão nessa situação em que ele esteve um dia: “na verdade, ali é o começo de uma nova história, é só a pessoa querer escrever uma história, nem tudo é o fim, o fim é a morte”.
De todo esse passado na rua, uma única coisa ficou em aberto: reencontrar Adilson. “Eu não sei se é Adilson mais, como é que é, mas eu queria muito reencontrar ele ou ela. Não sei em que estado ele ou ela vai estar, mas quero ajudar, fazer o que fizeram para mim.” Hoje, o homem branco, de olhos e cabelos escuros, espera po78
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Para os Entrevistados Samyra, a menina dos cabelos trançados que carrega uma mala cheia de sonhos: eu espero que cada um deles se realize e que o amor esteja sempre presente em sua vida. Sarate, a pessoa que só com um olhar me cobriu de ternura e me contagiou com sua felicidade: que você continue lutando a cada dia pelos direitos que você sabe que são seus e nunca perca essa essência. Lidiane, a mulher que me fez rir e chorar em duas horas de conversa: que você possa voltar para os braços da sua família e encontre a coragem para dizer aos seus filhos o que você sempre quis. Carlos, o homem que me recebeu de braços e coração abertos para compartilhar sua história: que você encontre Adilson e consiga cada vez mais sucesso com seus projetos, cuidando das pessoas em situação de vulnerabilidade e dando o apoio que precisam Do fundo do meu coração, eu espero que um dia todos possam enxergar vocês da maneira que eu enxerguei: com muito brilho, amor e carinho dentro de cada um.
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Agradecimentos À minha mãe, Marcia Torres de Alvernaz, a mulher mais incrível desse mundo, que me criou para ser uma mulher forte e espalhar amor e compaixão. Ao meu paidrasto, Alexandre Ambrus, o homem que sempre me deu muita força em todas as minhas decisões e que é um verdadeiro pai para mim. Ao meu orientador, Felipe Quintino, meu anjo sem falhas, que sempre me incentivou e botou fé neste livro. À minha segunda família, Sousa da Luz, que sempre me deu amor. Família é muito mais que o sangue que corre em nossas veias. A todas as pessoas que me acolheram em Campo Grande, lugar em que não conhecia ninguém. Por fim, à todas as pessoas que se dispuseram a compartilhar suas histórias tão intimas comigo. Vocês me ensinaram muito.
Obrigada!
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