© Estelle Valente
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S ÃO L U IZ TE A TRO M 20, 21 E 23 UNICIP , 24 NOV E AL M B R O 201 9
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Fragmentos de ensaios
Lúcia Lemos (L.L.): em ópera, a interpretação é feita de dentro para fora, o cantor invade a intimidade do público, pelo artifício da voz cantada, pela sua exposição excessiva que cria proximidade e consequentemente veracidade. Este projeto, no cruzamento do canto lírico, da performance e da imagem em movimento, procura acentuar ainda mais esta proximidade pela força das imagens ampliadas.
Uma mulher sem nome, Elle, expõe a intimidade e o drama do último encontro telefónico com o seu antigo amante que rompe com ela. Nesta ópera de um só intérprete para ver de muito perto, a música de Poulenc e a prosa de Cocteau criam uma alternância entre o coloquial e o poético. Na interseção da cena lírica, da performance e da imagem em movimento, a proposta cénica sublinha a personagem central: uma voz, talvez mais humana porque cantada, assumidamente fora do registo naturalista pelo envolvimento físico e emotivo da expressão musical.
J.P.S. O material musical não se desenvolve, justapõe-se, não há evolução dos temas: a modernidade de Poulenc está numa construção sem desenvolvimento. Na Voz Humana, os fragmentos musicais não vão para lado nenhum: encontramos repetições e alterações de tonalidade, que põem a personagem num beco sem saída. Aqui, as evoluções harmónicas anteriores não são significativas, os pedaços são quase intercambiáveis. À medida que a separação se vai aproximando, o discurso já não é tão fragmentado, a melodia vai-se tornando mais consoladora, avança por grandes secções com objetivos maiores, de forma irreprimível até ao fim, à despedida.
João Paulo Santos (J.P.S.): na partitura, o compositor já definiu noventa por cento das intenções que condicionam o trabalho de um cantor. Temos que perguntar o que nos pede o texto, mas sobretudo o que se passa musicalmente. A liberdade interpretativa é limitada pelas inflexões musicais: há escolhas que já não são possíveis, o compositor já previu a encenação. Ao contrário do ator, que escolhe o ritmo ou o tom da personagem e da cena, em ópera há um ritmo de ação pré-definido. A execução do canto limita ainda mais certas escolhas porque obriga a um esforço físico muito específico. Não existe hipótese de ignorar esta realidade. Por outro lado, um cantor canta sempre sinceramente, pela necessária implicação física. A emoção subjacente ao ato de cantar pode sublinhar o texto, ou contrariá-lo, são escolhas que condicionam a interpretação.
L.L. A personagem de Cocteau / Poulenc é sobretudo uma afirmação sonora, uma Voz Humana. Não tem nome, é apenas uma ela (Elle), universal na temática da dependência e do amor. É uma mulher que sofre uma rutura amorosa, mas poderia ser um homem: aliás, a personagem foi criada por dois homens. É o que é, uma pessoa normal “medíocre, apaixonada de uma ponta a outra 1” (Cocteau, Préface à La Voix Humaine, 2015, p. 16). J.P.S. Na Voz Humana existem certos deslocamentos entre o que está a ser dito e a melodia e onde a emoção nasce da forma musical distanciando-se por vezes da
1 « Médiocre, amoureuse d’un bout à l’autre ».
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palavra cantada. Há momentos em que não se pode seguir o texto, nos quais o que se diz não é relevante. Nesses momentos, a música é a linguagem que impera, é necessário cantar mais, de forma mais vocal, mais melódica, para sublinhar a linguagem poética. Tentar exprimir emoção a mais pode estragar a emissão vocal e limitar a beleza da linha vocal, o elemento puramente musical.
J.P.S. O piano (a orquestra) é por vezes uma outra voz, não um comentário ao cantor, mesmo quando estão juntos. Existe um jogo de discordâncias, entre a linha do piano e a voz, ao contrário da música verista na qual a música está sempre a sublinhar o texto. Aqui, a linha do piano nunca é uma ilustração ou um acompanhamento. Os silêncios têm que ser ouvidos, correspondem a indicações de abandono total. Poulenc a Georges Prêtre a quando dos ensaios da estreia: “quero os meus silêncios 3” (In programa de radio Une saison d’opéra, Paris INA, Setembro 1972).
L.L. Na construção desta personagem, procurei afastar-me de algumas leituras onde Elle surge quebrada, num longo lamento de dependência amorosa. Nada indica a meu ver, nem em Cocteau nem em Poulenc, um desfecho obrigatoriamente suicida ou vingativo, como é muitas vezes inferido. Cocteau não pretende também encontrar uma solução para um problema psicológico: “a mistura do teatro, da pregação, da tribuna, do livro sendo justamente o mal contra o qual se deveria intervir 2” (Idem, ibid, p. 9, 10). Parti destas premissas para construir uma personagem que nos revelasse a todos, pelo menos em algum momento da vida: ambíguos, sinceros e cruéis, desprotegidos, esperançosos, mentirosos, chantagistas, frágeis e heróicos… Elle é todos e ninguém vive um momento intenso, mas não definitivo, de luta com as ambiguidades da vida e dos sentimentos. Talvez o pensamento de Cocteau, subjacente a toda esta historieta banal, esteja no Arioso p. 58, que Poulenc procura não enfatizar, não transformando esta página em nenhum clímax especial: “Pour les gens, on s’aime ou on se déteste, les ruptures sont des ruptures, ils regardent vite, tu ne leur feras jamais comprendre, tu ne leur feras jamais comprendre certaines choses. Le mieux est de faire comme moi, et de s’en moquer, complètement”.
L.L. Nesta versão, a figura do telefone desapareceu por completo: já nem ele existe. Entre o sonho, as memórias, o desejo e o terror do amanhã, Elle fala apenas para o piano, que lhe responde, que a ameaça, que a embala num diálogo de amor e de morte, substituindo a comunicação humana ausente. Procurei um final, sem desenlace, sem solução: um manifesto contra a convicção da redenção pelo amor, da tirania sexual, da complementaridade obrigatória. Uma voz na sua crueza, a humanidade na sua crueza. Revelada na sua intimidade, é apenas um apelo, nesta era em que vivemos conectados ao resto do mundo, mas em perca de contacto humano. A Voz Humana é a nossa solidão. No fim: “je t’aime” como uma interrogação.
2 “Le mélange du théâtre, du prêche, de la tribune, du livre, étant justement le mal contre lequel il faudrait intervenir”.
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“Je veux mes silences” Traduções nossas
© Estelle Valente
20, 21 e 23, 24 novembro ópera
A VOZ HUMANA FRANCIS POULENC E JEAN COCTEAU reposição
Quarta, quinta, sábado e domingo, 19h Sala Bernardo Sassetti m/12 €12 com descontos Duração: 1h (aprox.)
Direção de projeto, Elle (Soprano), Dramaturgia, Produção, Texto e Tradução do libreto: Lúcia Lemos; Direção musical e Piano: João Paulo Santos; Direção de cena, Imagem, Cenário e Figurino: Vasco Araújo; Desenho de luz: Pedro Nabais; Equipa de filmagem: Ana Rita Santana, João Leão, Mariana Santana; Legendagem: Catarina Wallenstein; Direção de produção: Isabel Machado; Assistência de produção: Matilde Menezes Ferreira; Agradecimentos: Alda Giesta, Alexandre Oliveira, António Câmara Manuel, Beatriz Jarmela, Catarina Wallenstein, David Cabecinha, Joana Ferreira, Jorge Ramos do Ó, Mariana Wallenstein, Paula Garcia, Rodrigo Delgado, Rodrigo Dâmaso, Bazar do Vídeo, Teatro Nacional de S. Carlos, Teatro do Bairro, Teatro Viriato, SPA. Coprodução: C.R.I.M. e São Luiz Teatro Municipal Espetáculo estreado em 3 novembro 2016
24 novembro, domingo, 19h
Direção Artística Aida Tavares Direção Executiva Ana Rita Osório Programação Mais Novos Susana Duarte Assistente da Direção Artística Tiza Gonçalves Adjunta Direção Executiva Margarida Pacheco Secretária de Direção Soraia Amarelinho Direção de Comunicação Elsa Barão Comunicação Ana Ferreira, Gabriela Lourenço, Nuno Santos Direção de Produção Mafalda Santos Produção Executiva Andreia Luís, Catarina Ferreira, Mónica Talina, Tiago Antunes Direção Técnica Hernâni Saúde Adjunto da Direção Técnica João Nunes Produção Técnica Margarida Sousa Dias Iluminação Carlos Tiago, Ricardo Campos, Tiago Pedro, Sérgio Joaquim Maquinaria António Palma, Filipa Pinheiro, Vasco Ferreira, Vítor Madeira Som João Caldeira, Gonçalo Sousa, Nuno Saias, Ricardo Fernandes, Rui Lopes Operação Vídeo João Van Zelst Manutenção e Segurança Ricardo Joaquim Coordenação da Direção de Cena Marta Pedroso Direção de Cena Maria Tavora, Sara Garrinhas Assistente da Direção de Cena Ana Cristina Lucas Bilheteira Cristina Santos, Diana Bento, Renato Botão
TEATROSAOLUIZ.PT