FONTE DA RAIVA 2023

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1- 12 FEV CUCHA CARVALHEIRO
DA RAIVA
© Estelle Valente
FONTE

FONTE DA RAIVA, UM ESPELHO IMPIEDOSO

Fotos de ensaio © Estelle Valente

Uma casa em ruínas, cinco mulheres, dois homens, e uma criança que vive um presente que, anos mais tarde, recordará como passado, tentando situá-lo na sua história, que é também a nossa, a de um país onde o obscurantismo impera, onde se temem Deus, as autoridades e o olhar dos outros – esses “outros” que, como escreveu Malraux, “não são os meus semelhantes, mas os que me olham e me julgam” – que exigem a rigidez do luto, a defesa acéfala de uma Pátria tão irreal como os mafagafinhos do trava-línguas que a tia Augusta obriga Amélia a repetir, que condenam a maternidade sem casamento, a homossexualidade, a dissidência, enquanto admitem a miséria, o desemprego por razões políticas, a prostituição, a esmola… Uma casa onde, como em tantas outras nesses anos, se ouvem A Hora da Saudade e o folhetim do TIDE, se tecem sonhos para o regresso desses soldados que se apadrinham e a quem se escrevem cartas que grande parte deles não sabe ler, ou para um fim feliz para as suas vidas infelizes, à semelhança do que acontece nas novelas escutadas na rádio – essa rádio que, sem disso se darem conta, além das mensagens dos soldados (“Adeus e até ao meu regresso!”), do hino que proclama “Angola é nossa!” (“Angola”? Tirando a tia Assunção, professora, o padre Afonso, seu irmão, missionário, o pai de Amélia, “Zé Café”, alguém mais saberá, em Fonte da Raiva, onde fica essa tal Angola que “é nossa”?) além dos folhetins e das músicas românticas, pode trazer também outras vozes, outras ideias, dessas que só se devem ouvir às escondidas e podem causar a prisão, quiçá a tortura, a quem as ouve…

Uma rádio que, exceto para o padre Afonso, reforça as ideias, as frases e termos que se ouvem em Fonte da Raiva, mas que todos nós, mais velh@s, ouvimos na infância, que de um modo ou outro nos marcaram, que na nossa memória, como na de Amélia, correspondem a situações e pessoas que conhecemos – a mãe solteira a quem nem todas as pessoas davam emprego, as homossexuais, as madrinhas de guerra de quem se esperava, muitas vezes, o casamento com o afilhado, a vigilância ativa e maldosa sobre as mulheres, as namoradas, as irmãs dos mancebos partidos para a guerra, as professoras proibidas de ensinar por falta de confiança política.

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E sessenta anos depois da época em que a peça se situa – datada que está pela referência à fuga de dezenas de estudantes das colónias, muitos deles ligados à Casa dos Estudantes do Império, que teve lugar em 1961, e às manifestações contra a proibição do Dia do Estudante em 62 – é impossível não ficarmos a pensar como é agora esta Amélia quase septuagenária, que raiva, que mutilações, que traumas a habitam.

E ainda que Amélia agradeça a essas tias e tio e até ao pai ausente e fugidio que a fez, além de ilegítima, não-branca, e saúde nesses e nessas a quem chama “asas quebradas” o terem-na ensinado a voar, a dúvida permanece: será o seu vôo, poderá ser o seu vôo, idêntico ao de mulheres e homens nascidos em liberdade, sem o peso criminalizante do obscurantismo e da miséria?

Que peso, que raiva, vivem ainda não só nela, mas em cada um de nós, esperando um momento de repouso, de desatenção, para nos acusarem de sermos tão desconformes com esse modelo que durante anos nos impuseram, de banirmos a ilegitimidade das crianças nascidas fora do casamento, admitirmos o amor entre pessoas do mesmo sexo, repudiarmos o racismo, admitirmos formas diferentes de pensar e até de acreditar?

Ou, quem sabe, para nos fazerem admitir a violência contra os diferentes, os outros, os imigrantes, impedindo-nos de, como o padre Afonso, nos sabermos colocar no lugar do Outro?

Num texto centrado no passado, numa aldeia onde a chegada de uma rádio a pilhas é um raro contacto com o mundo exterior, numa família submetida à autoridade crítica do prior, das vizinhas, do “que pensam os outros”, Cucha Carvalheiro recria o Portugal dos pequeninos que foi o nosso, das gerações mais velhas, estendendo-nos um impiedoso espelho que interroga o nosso presente e, com ele, o nosso futuro como país, a nossa capacidade de ultrapassar os condicionalismos e receios que marcaram a nossa formação.

Quando festejamos o aniversário do 25 de Abril, quando vivemos já há mais anos na democracia que nos trouxe do que os vividos em ditadura, teremos de facto vencido os nossos fantasmas – ou, como vemos neste momento acontecer em outros países em nosso redor, estão apenas escondidos atrás de um qualquer penedo, prontos a opor à Liberdade e à Democracia anátemas que acordem aqueles que os anos de fascismo incutiram em nós?

Que medos, que traumas, guardamos em nós sem disso termos consciência?

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1 a 12 fevereiro 2023 teatro / estreia

FONTE DA RAIVA

CUCHA CARVALHEIRO

Sala Luis Miguel Cintra quarta a sábado, 20h; domingo, 17h30 Duração: 1h40 (aprox.); M/12 €12 a €15 (com descontos) 12, domingo, 17h30 10, sexta, 20h e 12, domingo, 17h30

Texto e Encenação: Cucha Carvalheiro; Assistente de encenação: Miguel Sopas; Cenografia e Figurinos: Ana Vaz e Pedro Jardim; Desenho de Luz: Cristina Piedade; Direção musical: Madalena Palmeirim; Intérpretes: Bruno Huca, Cucha Carvalheiro, Inês Rosado, Joana Campelo, Júlia Valente, Leonor Buescu, Luís Gaspar, Sandra Faleiro; Apoio ao Movimento: Bruno Huca; Execução de Cenário: Pedro Jardim; Direção de Produção: Rita Faustino; Produção Executiva: Mariana Dixe; Agradecimentos: José Manuel Pureza, Maria Gonzaga

Coprodução: Causas Comuns, RTP e São Luiz Teatro Municipal

Causas Comuns é uma estrutura financiada pelo Governo de Portugal – Ministério da Cultura / Direção-Geral das Artes e é membro da Performart – Associação para as Artes Performativas em Portugal

Direção Artística Aida Tavares Direção Executiva Ana Rita Osório Assistente da Direção Artística Tiza Gonçalves Adjunta Direção Executiva Margarida Pacheco Secretária de Direção Soraia Amarelinho Direção de Comunicação Elsa Barão Comunicação Ana Ferreira, Gabriela Lourenço, Nuno Santos Mediação de Públicos Téo Pitella Direção de Produção Mafalda Santos Produção Executiva Catarina Ferreira, João Romãozinho, Marta Azenha Direção Técnica Hernâni Saúde Adjunto da Direção Técnica João Nunes Produção Técnica Margarida Sousa Dias Iluminação Carlos Tiago, Cláudio Marto, Ricardo Campos, Sérgio Joaquim Maquinaria António Palma, Miguel Rocha, Vasco Ferreira, Vítor Madeira Som João Caldeira, Gonçalo Sousa, Nuno Saias, Rui Lopes Manutenção e Segurança Ricardo Joaquim Coordenação da Direção de Cena Marta Pedroso Direção de Cena Maria Tavora, Sara Garrinhas Assistente da Direção de Cena Ana Cristina Lucas Camareira Rita Talina Bilheteira Diana Bento, João Reis, Pedro Xavier

teatrosaoluiz.pt

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