CABARET REPÓRTER X 2021

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13 A 31 JANEIRO 2021 TEATRO/ESTREIA

A CLASSIFICAR PELA CCE

CABARET REPÓRTER

X

ANDRÉ MURRAÇAS


À CONVERSA COM ANDRÉ MURRAÇAS

políticos: as peixeiras do Cais do Sodré, os marinheiros dos cabarés, os aristocratas falidos do Maxim’s e do Bristol Club. Este homem também me atrai porque é uma porta de entrada para uma época de que gosto muito, a dos anos 20 em Lisboa. É uma época em que se vive uma liberdade extrema, em que se descobre uma série de coisas contemporâneas que depois se vão perder nos anos 30 com a ascenção dos fascistas ao poder e com o aparecimento do Salazar, do Marcelo Caetano e do Pedro Teotónio Pereira… e de todos esses que cortam com esse progressismo e esse modernismo dos anos 20. Até isso acontecer, para mim, era de sonho viajar através das crónicas do Repórter X para os clubs que existiam na altura em Lisboa: o Maxim’s, o Bristol, o Palace, o Avenida… e imaginar como era a vida naqueles sítios de jogo e também dos espetáculos. Para mim, ele é o guia a esse mundo.

Quando foi a primeira vez que se cruzou com a figura de Reinaldo Ferreira e do Repórter X? Sinceramente não me lembro da primeira vez, mas recordo-me que é uma figura que me acompanha desde a adolescência esta figura do jornalista que escrevia e me levava para sítios exóticos e me confrontava com outras personagens fora do vulgar. E isso fez-me querer saber mais sobre quem era este homem chamado Reinaldo Ferreira, conhecido como Repórter X, e que obra era esta que tinha deixado. Comecei a colecionar muitas coisas que fui apanhando em leilões e segundas mãos: revistas, novelas policiais editadas como jornais e a descobrir este mundo maravilhoso dele.

Imagina-se a viver nesses loucos anos 20? Completamente. É um tempo muito fascinante por várias coisas. Artisticamente foi nessa altura que chegou o modernismo nas artes plásticas e na literatura. E houve uma vivência incrível que, na verdade, tinha algo inocente. E ninguém sabia que tudo aquilo ia acabar em dez anos e desaparecer. Há uma imagem muito engraçada: o Charleston e o Foxtrot são danças em que, pela primeira vez, as pessoas dançam sozinhas e não em pares. E os clubs permitiram essa individualidade, essa evolução que diz muito sobre a sociedade. Musicalmente também é uma época inacreditável. É uma época sensual, disruptiva e muito atraente a todos os níveis.

O que o atraiu nesse mundo dele e criado por ele? Atraiu-me aquela voz que, por um lado, tem um fascínio por coisas fora do normal – como por exemplo, um colecionador de cabeças, uma cantora de ópera que morreu no palco assassinada pelo ex-marido – e, por outro lado, dá uma perspetiva humanizadora a pessoas que naquela altura, anos 20/30, não tinham destaque nas notícias como tinham os 2

O que o fez agora, nestes novos – e, até agora, tão diferentes – anos 20, levar tudo isto para o palco? O Reinaldo Ferreira/Repórter X é o símbolo de um homem que, durante anos, fascinou os leitores a contar histórias. É verdade que se foi descobrindo que metade do que contava não tinha acontecido, mas o engraçado nesta personagem é que ele nunca escreveu nada como uma mentira. Quando ele inventou as últimas palavras do Sidónio Pais ou quando disse que tinha viajado para a Rússia e conhecido o embalsamador do Lenine, mesmo que não tenha assistido a nada disso, a maneira como conta a história é tão envolvente e tão real que é muito fascinante para quem gosta de ler histórias. E é isso que este homem é: um contador de histórias, um ficcionista que vai até ao final do mundo para contar uma história. E nunca conseguia parar de escrever, estava sempre a escrever num papel ou com a máquina de escrever. E penso que cada vez mais e sobretudo nestes tempos de pandemia precisamos deste poder das histórias de nos prenderem e nos levarem para outros mundos. Para mim, o Repórter X é tudo isso. Não podia, por isso, haver altura melhor para contar a história dele.

escrevia para O Século. Saía à noite e escrevia mais peças de madrugada, que entregava de manhã… praticamente não dormia. Por causa desta aceleração toda, desenvolve o vício em morfina, faz várias curas de desintoxicação, casa-se duas vezes e tem 4 filhos… e morreu com 30 e poucos anos, foi um homem super acelerado em tudo. O que escolheu levar de toda essa vida intensa para a peça? Quis ter um lado histórico geral, a História de Portugal vai sendo contada através das reportagens do Reinaldo Ferreira, e também um lado biográfico, que conta o seu trajeto e que fala deste poder que as histórias têm para nos cativarem e nos darem inspiração e força para continuar a viver. E escolher as histórias para contar em cena foi um quebra-cabeças, porque ele escreveu muito! Ele publicava notícias, folhetins semanais, romances que depois adaptava ao cinema… tudo aquilo é um desvario. Quis mesmo fazer um cabaré em palco, em forma de teatro musical. O que o encanta tanto neste género? É o estilo de espetáculo que mais admiro. Por muito que adore teatro, o espetáculo de teatro musical é a minha grande paixão. Os musicais conseguem, tal como as histórias do Repórter X, ser um escape e levarem-nos para um mundo de fantasia, onde as pessoas estão a lavar loiça e começam a cantar sobre os seus problemas. E é assim que vejo o mundo, é isso que me faz sobreviver aos problemas e levar o dia: lavar a loiça e cantar ao mesmo tempo. Penso que não havia outro género com o qual poderia contar a história do Reinaldo

… Ele, que foi o pai das fake news… Sim, tem um lado que poderíamos chamar de fake news, mas nele não havia malícia, não havia nunca intenção de denegrir a imagem de alguém ou de criar distrações de outros assuntos. Nada disso. Era genuíno e isso é maravilhoso. Nunca estava quieto, era um pró-ativo. Na altura, era aquilo a que hoje chamaríamos um freelancer, fazia peças para o Diário de Notícias, à tarde 3


Ferreira. Tudo aquilo que ele escrevia era uma fantasia onde ele se refugiava para continuar a viver. Essa mentira e essa ilusão – que são os musicais também – encaixaram aqui perfeitamente. Eu costumo chamar a este espetáculo “um pequeno musical”, é uma espécie de café-concerto. Quis recuperar aquele teatro mais intimista, com um piano e em que os atores cantam e dançam. O cenário é um cabaré que se vai transformando noutros lugares também. Sim, transforma-se em Paris, transforma-se noutros cabarés, transforma-se numa volta ao mundo que também acontece em cena… Foi o André que fez, além do texto e da encenação, o cenário e os figurinos. A peça sai toda da sua cabeça! A minha formação é cenografia e figurinos, fiz o curso do Conservatório. Sempre gostei muito da parte da imagem e da parte do texto e isso levou-me à encenação. Quando faço espetáculos com outros atores, vou sempre visualizando o espetáculo na sua totalidade. Neste caso, esta história passada nos anos 20 era mesmo um bombom que estava à minha espera para ser provado. © André Murraças

É uma imersão total nos anos 20. Promete que será melhor do que estes que estamos a viver agora? Certamente, muito melhor. Este espetáculo é o melhor escape para o que estamos a viver. Espero que o público se divirta. ♦ Entrevista realizada em janeiro 2021, por Gabriela Lourenço / Teatro São Luiz 4


REINALDO FERREIRA (1897-1935) foi jornalista, romancista, dramaturgo e, também, realizador de cinema (sublinhe-se o também). A sua primeira relação com o cinema dá-se em 1914 quando, aos dezassete anos, inicia no jornal Capital a primeira secção de cinema da impressa portuguesa (segundo o próprio – o que é sempre de desconfiar). Ferreira foi igualmente autor do folhetim O Mistério da Rua Saraiva de Carvalho, que seria adaptado ao cinema em 1918 por Leitão de Barros com o título O Homem dos Olhos Tortos (que por falência da produtora nunca seria terminado e, talvez por narcisismo, Leitão de Barros sempre renegou). Anos depois, em Espanha, consegue financiamento, “com o seu conhecido poder de persuasão e de hábil eloquência e sagacidade” (como lembrou Félix Ribeiro), para o primeiro filme por si escrito e realizado, O Groom do Ritz (1923), de que não se conservou qualquer material fílmico. Em 1927, com o financiamento de Joaquim Alvez Barbosa, “negociante de solas e cabedais” (como o descreve Jorge Leitão Ramos no seu dicionário), Ferreira forma a empresa Repórter X Film, capitalizando do seu famoso pseudónimo jornalístico. Daqui surgirão quatro títulos: O Táxi n.º 9297, Rita ou Rito?…, Vigário Sport Club e Hipnotismo ao Domicílio. Destes, apenas o primeiro título corresponde a uma longa-metragem, sendo os outros três filmes curtos (e dos dois últimos apenas subsistem materiais fílmicos incompletos). O seu cinema manifesta, de modo directo, o seu jornalismo, como o explica Felix Ribeiro: “com a decidida tendência

que tão marcadamente o caracterizava (…) para as reportagens e os artigos à sensation”. A pergunta que importa colocar, diante dos filmes, é de que modo essa tendência irrisora da sua escrita se manifestou no seu cinema, em particular, de que modo o jornalista-romancista-cineasta encenou narrativas que põem em causa os alicerces da sociedade de então (e de hoje, ainda): como os papéis de género, os papéis de classe e as diferenças de etnia, através de soluções visuais e formais inovadoras (penso nas diferentes significações da mão na sua obra ou o recurso ao fundido encadeado como forma de, literalmente, fundir opostos e diluir diferenças). Não é portanto coincidência que a maioria dos seus filmes se baseie em peças jornalísticas por si escritas: Táxi baseia-se na série de artigos sobre o assassinato da atriz Maria Alves a bordo do táxi do título e Rita ou Rito?…, por sua vez, resulta de uma reportagem que se foi desenvolvendo por “vários números do jornal O Primeiro de Janeiro no início de 1927: a história de Rita Ferreira que, vivendo como mulher e funcionária da Estação Telégrafo-Postal de Vagos, seria, afinal, um homem que deixara por onde passara um rasto de donzelas desonradas” (citando, de novo, Leitão Ramos). A investigação sobre a morte de Maria Alves deu grande popularidade ao Repórter X, especialmente por ter sido ele (e não a polícia) a descobrir que o assassino fora, afinal, o produtor da artista, o empresário Augusto Gomes. Felizmente Reinaldo Ferreira não se demora muito na transcrição desse caso. Pelo contrário, esse é apenas o pano de fundo sob o qual dispõe uma série de per6

sonagens improváveis às avessas num casarão (cheio de portas, corredores, escadas e janelas). No entanto, a tendência para o sensacionalismo (conhecido também por “reinaldismos”), no jornalismo e no cinema, oferecem à filmografia de Reinaldo Ferreira uma qualidade diferenciadora: Manuel Cintra Ferreira refere, sobre Rita ou Rito?… que há nele “um toque de modernismo, se não mesmo de surrealismo” e Bénard da Costa escreve que “os filmes de Reinaldo Ferreira foram saudados como antídoto para o provincianismo dos «Filmes do Porto»”. A par disto, a obra de Reinaldo é por vezes enquadrada na história do cinema português juntamente com a dos realizadores da geração da primeira vanguarda (à cabeça, Manoel de Oliveira, Leitão de Barros, Lopes Ribeiro, Chianca de Garcia e Brum do Canto). Esta inserção dos filmes na corrente das vanguardas justifica-se por o cinema de Ferreira representar a sociedade portuguesa dos anos 1920 à luz de um multiculturalismo europeu e norte-americano, tão vivido quanto imaginado – se Ferreira viveu em Madrid e Paris, também é certo que vários das suas histórias têm personagens norte-americanas e longas descrições de Nova Iorque, cidade e país que Ferreira nunca conheceu pessoalmente. A este respeito convirá lembrar que O Táxi n.º 9297 constitui a primeira figuração de uma personagem explicitamente homossexual no cinema português, o espanhol Don Alfonso. Esta personagem foi inspirada na figura de Luis Fernando de Orleans y Borbón (“el rey de los maricas”), infante da cor-

te espanhola que perdeu o título pelos escândalos que armou por Paris e que “namoraria” com o poeta português António Botto – um dos protagonista da “Literatura de Sodoma” que abalou a “boa moral cristã” que dominava a sociedade portuguesa dos anos 1920 – que o Repórter X bem conhecia (dado o escândalo, ocorrido em 1926, em que Luis Fernando e Botto terão sido capturados ao tentarem passar ilegalmente a fronteira com Espanha, com contrabando e vestidos de mulher). Como o pôs a artista Susana Mendes Silva na folha de sala que escreveu para a sua instalação dedicada ao trabalho e à figura do Repórter X, intitulada simplesmente X: “as imagens, recolhidas de filmes realizados por Reinaldo Ferreira (…) dirigem a nossa atenção para termos significativos (…): a figura do travesti (…), e o duplo (…). Figuras que encarnam a margem e que desafiam noções simplistas de binariedade como homem/mulher, verdade/ficção, original/cópia, interpelando, deste modo, a crise destas categorias.” Aqui, encontra-se sumariado, de forma particularmente precisa, aquela que é a qualidade mais forte do cinema de Ferreira, a saber: os modos como o pandemónio do burlesco ou a tensão da história de detectives coloca tudo em causa e leva-nos a questionar todas as convenções, a favor de um desmascaramento exaustivo de todas as figuras e papéis sociais de uma época, ela própria em rebuliço. A sua obra é um marco histórico fundamental e um importante manancial sobre os costumes da sociedade portuguesa antes da implantação do Estado Novo. Ricardo Vieira Lisboa 7


© André Murraças

13 a 31 janeiro 2021 teatro estreia

CABARET REPÓRTER X ANDRÉ MURRAÇAS Sala Mário Viegas Quarta a sábado 19h30; domingo, 16h. Duração: 1h50 (aprox.) A classificar pela CCE 24 janeiro, domingo, 16h Texto, Encenação, Cenografia e Figurinos: André Murraças; Música: James Uhart; Letras das canções: André Murraças (exceto “Ay que Trabajo me Cuesta” com letra de Federico Garcia Lorca); Atores: Francisco Goulão, Joana Manuel, João Duarte Costa, Miguel Raposo, Mónica Garnel e James Uhart; Construção do cenário: Rui Azevedo/Cenário Peculiar; Confeção dos figurinos: Romana Mussagy e Dino Lima; Chapéus: André Murraças; Make-up e Cabelos: Joana Cornelsen; Desenho de luz: André Murraças; Fotografia de cena: Alípio Padilha; Registo vídeo: Três Vinténs; Produtora: Diana Almeida; Direção financeira: Mónica Talina; Apoio financeiro: Direção-Geral das Artes e Fundação GDA Coproducão: Pinguim Púrpura e São Luiz Teatro Municipal Agradecimentos: André Marques Moreira, Cândida Murraças, Cristiana Couceiro, Fernando Ribeiro, Filipe La Féria, Filipe Melo, Fundação Portuguesa das Comunicações, Ricardo Vieira Lisboa, Joel Lima, Joana Leitão de Barros e Herdeiros José Leitão de Barros, Susana Mendes Silva, Teatro da Trindade Um espetáculo um marido ideal O Teatro São Luiz/EGEAC é parceiro no Projeto Europeu Inclusive Theater(s) Datas e horários podem sofrer alterações, conforme medidas de controlo da pandemia. Direção Artística Aida Tavares Direção Executiva Ana Rita Osório Assistente da Direção Artística Tiza Gonçalves Adjunta Direção Executiva Margarida Pacheco Secretária de Direção Soraia Amarelinho Direção de Comunicação Elsa Barão Comunicação Ana Ferreira, Gabriela Lourenço, Nuno Santos Direção de Produção Mafalda Santos Produção Executiva Andreia Luís, Catarina Ferreira, Tiago Antunes Direção Técnica Hernâni Saúde Adjunto da Direção Técnica João Nunes Produção Técnica Margarida Sousa Dias Iluminação Carlos Tiago, Ricardo Campos, Tiago Pedro, Sérgio Joaquim Maquinaria António Palma, Miguel Rocha, Vasco Ferreira, Vítor Madeira Som João Caldeira, Gonçalo Sousa, Nuno Saias, Ricardo Fernandes, Rui Lopes Operação Vídeo João Van Zelst Manutenção e Segurança Ricardo Joaquim Coordenação da Direção de Cena Marta Pedroso Direção de Cena Maria Tavora, Sara Garrinhas Assistente da Direção de Cena Ana Cristina Lucas Camareira Rute Valadares Bilheteira Cristina Santos, Diana Bento, Renato Botão

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