A IMPORTÂNCIA DE SER GEORGES BATAILLE 2019

Page 1

SÃO LUIZ TE ATRO MUNICIPA L

TE AT

ROS

AO LU

FOTOGRAFIA JOANA LINDA

MIGUE L BONNE V IL L E

R E S E D A I C A IMPORTÂ N GEORGE S BATA ILLE

IZ .P T

COPRODUÇÃO: TEAT

RO MUN ICIPA L DO

PORTO E SÃO LUIZ

TEATRO MUN ICIPA

L; A CLAS SIFICAR

PELA CCE


À conversa com Miguel Bonneville

Recuando um bocado, quando é que te cruzas com o Bataille? Mais ou menos em 2007, por causa de um filme do Godard, o Week-end. Estava a ver o filme com uma amiga e numa das primeiras cenas ela disse: “Isto parece a História do Olho”. E eu achei que era o Olho, a companhia, porque ela trabalhou com o Olho. Mais à frente percebi que não era isso, que era a História do Olho, do Bataille. Como gostei muito do filme, fiquei curioso e fui ler. E depois, passado um tempo, vi o Ma Mère, do Christophe Honoré. Fui vê-lo várias vezes ao cinema, porque era com a Isabelle Huppert, e porque era o Bataille, e o Honoré, e aquilo tudo fascinava-me bastante. Foi assim que começou, mas de uma forma até bastante dispersa, não houve logo um apego de pensar: “quero imenso trabalhar este autor ou a partir deste autor”. Acho que já te disse que a melhor forma para falar sobre o teu trabalho seria não falar. Dirias que é difícil classificar o teu trabalho? A minha questão é: não é preciso classificar. Interessa-me poder fazer o que tenho de fazer sem ter de pensar em categorias, mas é difícil, porque te pedem para seres homem ou mulher, dança ou teatro, música ou artes plásticas, e passei muito tempo preocupado

Entrevista realizada pelo jornalista Miguel Branco, durante os ensaios de A Importância de Ser George Bataille

Como é que aconteceu começares este processo com uma residência na La Box – École Nationale Supérieure d’Arts de Bourges, em França? Candidatei-me com o projeto e fui aceite. Andaste muito pela universidade? Visitaste outras coisas? Estive muito tempo no mesmo sítio. Tinha uma espécie de rotina. Havia sempre uma altura do dia em que ia caminhar, tentar conhecer a cidade ou os arredores, fui duas vezes a Paris e fui a Vézelay, onde o Bataille viveu e onde está enterrado. Estiveste com ele. Sim, mas isso já estava. Já tinha estado, de alguma maneira. E continuo a estar. Mas sim, há qualquer coisa de emocionante e de importante – saberes que estás no sítio onde aquela pessoa foi enterrada. Há qualquer coisa fetichista e meio xamânica ao mesmo tempo, seja uma coisa mais ou menos macabra; o poder tocar na pedra... ir um bocadinho mais longe na possível ideia de comunicação com aquela pessoa. 2

com isso porque estava sempre a ser chutado de um sítio para o outro. Acho que é bom falar sobre aquilo que é difícil de se falar. Só é difícil porque somos pressionados a inserir-nos nessas categorias, e o meu trabalho não pretende encaixar-se em lado nenhum. Apontei uma frase numa troca de emails onde sugerias que neste espetáculo e no teu trabalho, procuras sempre, não sei se é esta a palavra, uma reinvenção. Dizia assim: “Os espetáculos, as pessoas, os filmes, estão sempre a dizer-nos o que é que são, há um moralismo insuportável, é uma propaganda constante”. Pois, a questão é essa, é que mesmo as pessoas, mesmo os artistas – agora vou generalizar, que é uma coisa que não gosto muito de fazer a não ser para ter graça – se tornam uma espécie de marca, uma marca de si próprios; tens o bad boy do teatro e a bad girl da dança, mas depois aquilo também é altamente codificado, altamente fechado, uma propaganda de uma coisa que é muito básica, parece que não há profundidade nenhuma, que o que te estão a mostrar é um panfleto sobre o ser-se anti-não-sei-o-quê. Mas não há mais nada? Parece que há muito pouco para além do slogan, isso para mim é preocupante. E não sou a única pessoa a pensar isto e, portanto, sinto que não estou completamente louco.

Garantes que este espetáculo não vai dizer o que é que é? Não sei, isso já não está nas minhas mãos. As pessoas veem aquilo que querem, é impossível escapar a isso. Por mais que estejas lá parado e não faças “nada”, vai sempre lembrar qualquer coisa, outro espetáculo que já viste... É inevitável. Mas moralista não vai ser. Moralista nesse sentido de resumir o espetáculo a um slogan ou a uma frase ou a qualquer coisa, espero que não. Espero que seja o mais aberto possível, que dê espaço às pessoas para encontrarem alguma coisa, mesmo que seja difícil, mesmo que não se perceba. É contra essa ideia do perceber, contra essa lógica que, para mim, é completamente escolar e baseada numa coisa muito racional: o teres de fazer a sinopse e de no fim dizeres gostei-porque, não-gostei-porque. Interessa-me mais o desconhecido, a confusão, que é também aquilo que me atrai enquanto espectador. Esse lugar do desconhecimento fez-me recuperar uma conversa que tivemos em Montemor sobre o escuro, e sobre o escuro como esse lugar de medo, de indefinição. O escuro está muito neste espetáculo, certo? O que é que queres que te diga sobre isso? 3


Pode ser isso. Essa ideia do escuro... acho que podia dizer tantas coisas sobre isso. Estamos tão habituados a ver tudo, à imagem ser sempre aquilo que vem primeiro... Acho que estou à procura de ir para além disso; da superfície, da aparência, do excesso de visão, do excesso de luz... Isto abrange tudo, basta pensares nos restaurantes com luz de cozinha, com a televisão ligada, é um exagero...olha, olha, olha, olha, vê tudo o que estás a comer, distrai-te, é um massacre.

qual é o caminho para a loucura, porque acho que a loucura é a única saída, neste momento, para este excesso de racionalidade. É que ainda por cima nem gosto de dizer racionalidade, sabes? É pseudo-racionalidade. É uma coisa escolar, básica e muito insultuosa. O que é que posso dizer mais sobre isto? Está tudo bem. Está?

A história do olha. Exato. Parece que tudo gira à volta de como aparentas ser, daquilo que mostras que és, das tuas fotografias, o teu estilo de vida, sabes? O que é que acontece se arrumas isso tudo? E se, de repente, tens espaço para poderes ver alguma coisa que não está lá, que não é aquilo que te mostram? Sinto falta desse espaço e acho que o Bataille me permite esse espaço, de poder aceder à imaginação, a alguma coisa que quebra as regras. E acho que o nosso espaço para quebrar as regras está cada vez mais diminuído e, portanto, parece que já quase só resta a imaginação. Agora, até quando é que podemos ter imaginação? É que com tantas imagens que recebes até a imaginação está condicionada. Acho que estou sempre à procura de não enlouquecer, mas a tentar perceber

Maio 2019

4

A importância de ser George Bataille ou A importância de “desocultar” o Ser-outro e o seu-Ser

sentidos, incorporando outros corpos - aqui, incorporando Bataille. O corpo é sempre o mesmo (o do artista) e o que muda é a incorporação (António de Macedo, Beauvoir, Agustina, Preciado). É no contacto com um “outro” que Bonneville toma consciência do seu “eu”, pois é na alteridade que encontra a sua potência de germinar: a produção de novas incorporações. São precisamente estas composições que fazem com que não mimetize ou represente Bataille e que delas extraia apenas os afectos. Bonneville faz arte com a vida e não com a história. A vida e a arte são também tardes que nunca o foram. E destas tardes não há esquecimento ou memória…não há biografia ou autobiografia… elas são inacabamento permanente. Aquilo que não aconteceu, incluindo o que podia ter ocorrido mas não chegou a ocorrer, por tantos e tantos motivos, é o que verdadeiramente importa ao artista…é aí que ele encontra a singularidade, a importância de ser um outro…a oportunidade de abertura para um máximo de encontros existenciais. Não um existencialismo fechado, mas aberto, ou uma Fenomenologia metafísica em que as suas reflexões fazem com que, na análise da essência da obra de arte, esta passe do exclusivo domínio da Estética para o campo de uma onto-gnoseologia, ou seja, afinal a arte não trata da Beleza mas

Pedro Arrifano

Tudo começa na escuridão, na forma de uma palpitação. No início ignoramos o que isso significa. De seguida, emerge uma luz ténue… tentamos observar, perceber, distinguir o que está à nossa frente e depois, no fim, somos levados a agir. Na Importância de ser Georges Bataille não são os olhos que vêem, mas é a luz que os faz ver; tal como diria Goethe “Não estaríamos aqui se a luz, aqui, não estivesse para nos ver”. Uma espécie de metafísica numinosa, porque se pretende chegar ao real mais real, a uma realidade que está para além da aparência do real. Mais preocupado em ser reflexivo do que provocativo, Miguel Bonneville faz de cada incorporação que realiza um bloco de afectos e um motivo que habita o seu interior, visando a plenitude emocional. É uma experiência-limite de pensar outras formas de vida, de reflectir qual a condição de possibilidade da própria origem, onde o sentimento vital substitui a ironia conceptual. Não existe história pessoal nem existência individual, mas um conjunto de afectos que só se expressa na multiplicação de um corpo (o seu), atribuindo-lhe vários 5


na forma como lutam desesperadamente para se arrancarem de si próprias. Os corpos são a base da “experiência interior” de que fala Bataille, aquilo que nos vai levar numa viagem ao limite das possibilidades do Ser Humano, aos seus estados de êxtase e arrebatamento… Tanto para Bonneville como para Bataille o êxtase não é presença, mas ausência, provém dos limites. É através do êxtase que o artista tenta derrotar o pensamento… uma espécie de inquietude aporética que retoma incessantemente a questão sobre a importância de ser Bonneville ou Bataille. O artista tenta conduzir o Ser para além dos seus limites, e entende que é pelo desprezo à normatividade que encontramos a força para nos encantarmos com o mundo…para nos decompormos em Nada – momento soberano onde apenas conta o próprio momento, e em que passamos a estar para além da utilidade – C’est la fête – e é bem possível que surja uma forte vontade de entrar e dançar. Nesse caminho indeterminado é fundamental manter uma disposição para encontrar as coisas, um saber estar disponível, e isso implica necessariamente um excesso, uma coragem de não recear ser esvaziado ou absorvido. Compreender que o encontro com o outro é potência criadora. Esta série de espectáculos sob o título de A importância de… é assim a expressão dos motivos que fizeram acontecer

da Verdade. É pois a verdade aqui tida no sentido original do termo grego “alétheia”, literalmente, o “não-oculto”, ou “desvelado” que, de certa forma, Bonneville procura nesta sua série de espectáculos. Na sua essência e ao incorporar num outro, o artista visa a “desocultação” do Ser-outro e do seu-Ser. Os corpos que despontam no palco não são discurso nem narração, nem são apenas imanação de desejo ou carne. São figuras luminosas que simplesmente prometem calar-se para que algures se possa ouvir um grito… um estridente duplo grito…o do artista e o de Bataille, o da alma e da carne, numa minimização de movimento e maximização de intensidades. Bonneville torna-se arqueólogo, um arqueólogo esteta, pois escava/descobre/captura o grito que atravessa os corpos – aquilo que eles têm de mais íntimo – e amplifica-o artisticamente… Capta os elementos de libertação que estão a nascer, as invisibilidades que tornam as coisas visíveis, fazendo com que o corpo seja assim pensado através do grito que liberta, deixando frustrados todos aqueles que ambicionam querer entender a obra em si mesma. As cinco figuras singulares que surgem, qual sombras no espectáculo, são aforísticas, fragmentárias, singulares na sua distância, na tensão, na retenção, nos movimentos e no entrelaçamento dos seus corpos… nos gritos enlouquecidos… 6

permitem que consigamos respirar fora do saber e do poder, e conduzem o pensamento para o Fora, para a pura diferença: Uma espécie de mística especulativa, porque se entrega à especulação de movimentos que transportam o corpo ao interior de si mesmo, onde é possível encontrar a emoção interior que vive em cada um de nós, e que está oculta ao outro e a nós mesmos. Essa emoção auto-reflexiva aproxima-nos de uma harmonia primitiva tão necessária a qualquer forma de arte, e convida-nos a realizar um exercício de reivindicação dos corpos, isto é, actua como um instrumento de libertação do Ser. O ser humano não pode ser reduzido a uma coisa, e é graças a isso que ele faz com o seu corpo o que ele quer, sem prestar contas a ninguém. A consciência estética que proporciona a margem de liberdade existencial e criativa necessária para efectuar a transformação, é consciência espiritual na sua forma mais dinâmica. Como afirmou Kafka: “Desgraçado daquele que perdeu o poder de se transformar”.

a história da não história das figuras que elegeu (ou que o elegeram)… Os espectáculos são processos de passagem, eles não visam conseguir algo nem pretendem que se saiba a importância desta ou daquela figura, mas deixam ao espectador uma forma de lidar com algo que não tem começo nem fim. Pensadores do corpo, Bonneville/Bataille questionam-se sobre o que devemos fazer com o corpo que temos, e esta é uma questão existencial que o espectáculo coloca. Os corpos visionados nas pausas, nas contenções, nas regressões, nas retenções, não repousam…apenas pensam. A voz não merece essa palavra «voz» pois é impossível de exprimir e impossível de exteriorizar: a dança dos corpos – transformação e libertação das restrições tristes da linguagem, que são um poço profundo onde cabe o prazer e o luto humano. É pois este corpo excessivo que deslumbra, que visa escapar de tudo o que pretende regular as acções humanas, é ele “a parte maldita” que escapa e nos recorda que, paralelamente à razão e à moral, operam forças festivas e excessivas de transgressão. Na verdade, quem não transgride acumula, é poema preso; as melhores palavras são as líquidas que escorrem em estado de lágrima – dor e raiva derretida – e são aquelas que se soltam num grito, pois libertam, exorcizam fantasmas, expelem tudo,

O autor escreve segundo a antiga ortografia

7


© Joana Linda

14 a 19 maio dança estreia

A IMPORTÂNCIA DE SER GEORGES BATAILLE MIGUEL BONNEVILLE

Terça a sábado, 21h; domingo, 17h30 Sala Mário Viegas Duração: 1h10 (aprox.); m/12 €12 com descontos CONVERSA COM OS ARTISTAS

Direção e Interpretação: Miguel Bonneville; Interpretação e Cocriação: Afonso Santos, Catarina Feijão, Francisco Rolo e Vanda Cerejo; Música original: Luís Kasprzykowski; Sonoplastia: BlackBambi; Figurinos: Mariana Sá Nogueira; Desenho de luz: Nuno Patinho; Desenho de som: Miguel Mendes; Cenografia: Nuno Tomaz; Assistente de cenografia: Daniela Cardante; Acompanhamento: Pedro Arrifano e Miguel Branco; Registo vídeo e fotográfico: Joana Linda; Assessoria de imprensa: Sara Cunha; Coordenação de Coordenação de projeto: Cristina Correia; Produção executiva: Teatro do Silêncio; Apoios: Citemor e Residências da Boavista / Polo Cultural das Gaivotas; Agradecimentos: Alípio Padilha, Cão Solteiro, Catarina Vieira, Companhia Clara Andermatt, Décor Galamba, Escola Superior de Teatro e Cinema – IPL, Fosso Orquestra Associação, Jorge Bragada e Rita Só Coprodução: Teatro Municipal do Porto e São Luiz Teatro Municipal

19 maio, domingo

SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL

Direção Artística Aida Tavares Direção Executiva Ana Rita Osório Assistente da Direção Artística Tiza Gonçalves Programação Mais Novos Susana Duarte Adjunta Direção Executiva Margarida Pacheco Secretária de Direção Soraia Amarelinho Direção de Produção Mafalda Santos (Diretora), Andreia Luís, Catarina Ferreira, Mónica Talina, Tiago Antunes Direção Técnica Hernâni Saúde (Diretor), João Nunes (Adjunto), Margarida Sousa Dias (produção), Iluminação Carlos Tiago, Tiago Pedro, Ricardo Campos, Sérgio Joaquim Maquinistas António Palma, Paulo Lopes, Paulo Mira, Vasco Ferreira, Vítor Madeira Som João Caldeira, Gonçalo Sousa, Nuno Saias, Ricardo Fernandes, Rui Lopes Vídeo João Van Zelst Manutenção e Segurança Ricardo Joaquim Direção de Cena Marta Pedroso (Coordenadora), Maria Tavora, Sara Garrinhas, Ana Cristina Lucas (Assistente), Rita Talina (Camareira) Direção de Comunicação Elsa Barão (Diretora), Ana Ferreira, Gabriela Lourenço, Nuno Santos Bilheteira Cristina Santos, Diana Bento, Renato Botão.

TEATROSAOLUIZ.PT


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.