© Sofia B erb eran e Mário César
São L u i z T e at r o M u n i c i pa l
de J ean G e n et
TEATRO GRIOT
E n ce nação
Rogério de Carvalho
5—15 out 2017
OS N E G RO S
Teatro estreia
5–15 out
OS NEGROS
O Teatro GRIOT é uma estrutura apoiada por
TEATRO GRIOT Encenação
Rogério de Carvalho
Projeto financiado por
Sala Luis Miguel Cintra; m/14 Quarta a sábado, 21h; Domingo, 17h30 €12-€15 (com descontos €5-€10,50) Duração (aprox.): 2h30 com intervalo
Apoio
8 out, 17h30 conversa
8 out
conversa com a equipa após o espetáculo, moderada por Maria Helena Serôdio (professora e investigadora) Apoio à Comunicação
Texto: Jean Genet; Encenação: Rogério de Carvalho; Tradução Armando Silva Carvalho; Interpretação: Angelo Torres, Binete Undonque, Cleo Tavares, Gio Lourenço, Igor Regalla, Júlio Mesquita, Laurinda Chiungue, Matamba Joaquim, Mauro Hermínio, Orlando Sérgio, Renée Vidal, Sandra Hung, Zia Soares; Cenografia: José Manuel Castanheira; Assistente de cenografia: Pedro Silva; Assistentes estagiários de cenografia: Ana Sofia Lacerda, Inês Carrilho, Filipe Alexandre Fernandes; Luz: Jorge Ribeiro; Figurinos: Catarina Graça com execução de Aldina Jesus; Adereços: Mónica de Miranda; Desenho de som: Chullage; Voz e elocução: Luís Madureira; Coreografia: Rose Mara da Silva; Fotografia: Sofia Berberan e Mário César; Teaser: David Cardoso; Apoio à produção: Underground Railroad; Produtora executiva: Urshi Cardoso
Agradecimentos Branca Coutinho, Eszter Molnár, Mariana Sá Nogueira, Marlena Drobot, MovingDiáspora, Sara Santana, Teatro Nacional de São Carlos e Zala Vogrinc
INSTALAÇÃO FOTOGRAFIA E VÍDEO
FORA DE CENA Mónica de Miranda
Janelão da Sala Bernardo Sassetti Entrada livre A instalação coabita com a peça Os Negros, podendo ser visitada 1h antes do início de cada sessão.
Coprodução: Teatro GRIOT e São Luiz Teatro Municipal Teatro GRIOT é uma estrutura apoiada pela Câmara Municipal de Lisboa e Polo Cultural Gaivotas Boavista. Projeto apoiado pelo Governo de Portugal / Ministério da Cultura - Direção Geral das Artes
Instalação que integra uma exposição fotográfica e um vídeo que usa, de forma abstrata, as imagens inspiradas por Os Negros de Genet e do Teatro GRIOT. A imagem é aqui uma construção ritualística meta-teatral, entre o documental e o ficcional. 2
© Sofia Berberan e Mário César
Para Jaime Vishal e Armando Silva Carvalho, com uma salva de palmas.
espectáculo delineia uma confiO guração topológica, constituída por três patamares, expostos verticalmente:o espaço onde se situa a corte e a Rainha, que representa o espelho do domínio do colonizador; o espaço onde se situa a Felicidade, uma negra imponente; e a plataforma de base, que r epresenta os colonizados,ocupada pelas restantes personagens. Esta estrutura topológica define as relações de poder entre as personagens e é nela que se constrói o espaço do drama, onde as vozes, os coros e os risos orquestrados dos negros, conferem ao espectáculo o grotesco, atingindo as fronteiras da paródia. Uma urdidura complexa, que se constrói numa atmosfera de ritual, de cerimónia, numa espécie de liturgia paródica.
Texto de Jean Genet (autor de Os Negros)
Volto a repetir: esta peça, escrita por um Branco, destina-se a um público de Brancos. Mas se por um acaso muito estranho for representada para um público de Negros, será necessário, em cada sessão, convidar um Branco – homem ou mulher. O produtor do espectáculo deverá recebê-lo com a maior solenidade, fazer com que se vista de cerimónia e conduzi-lo ao seu lugar, de preferência na primeira fila da plateia. Os actores irão representar só para ele. E durante todo o espectáculo um projector incidirá sobre este Branco simbólico. E se nenhum Branco estiver disposto a isso? Então distribuam à entrada máscaras de Brancos ao público negro. Se os Negros recusarem as máscaras dos Brancos, usem um manequim. 3
Texto de Rogério de Carvalho (encenador)
Uma situação de choque e uma turbulência através de uma representação alegórica é a ironia de um ritual que termina em massacre. Mas o espectáculo em si é digno de interesse; abre (para os negros), ao nível da consciência, a busca de uma identidade que não seja a imagem que o branco tem do negro. O negro quer libertar-se dessa mácula, o que lhe daria liberdade. É nessa ilusão que a peça encontra o tema da negritude. O horror do espectáculo está em tratá-lo de uma forma irónica, atingindo as fronteiras da paródia. A busca colectiva permitiu observações interessantes: uma síntese do problema que este texto propõe especialmente na ordem do teatro e do não teatro é o efeito de naturalização da fala com o processo de distanciamento; o artificial de actuação e o processo de o teatro ser uma fábrica de ilusões. Nunca se deixa de ter a percepção de que a verdade do palco significa jogo por parte dos actores. Vive-se o ritual. Trata-se de um espectáculo cerimonioso, de momentos ritualísticos. Basta dizer que a representação é ritual? Que fronteira entre a representação teatral e a ritualização? Que papel conferimos aos espectadores sejam eles brancos ou negros? É necessário que a cena seja legível, em que termos para cada uma das cores? O que é a cor preta, já que a cor negra é, em certos países, pejorativa? O que é ser negro quando não se vive num país negro?
O processo da teatralidade, o sentido de que estamos a assistir a uma representação e em nós, espectadores, sentimos a moralidade da fábula. Não nos é dada uma ilusão, mas o próprio jogo dos actores. Sente-se a agitação de um homem assustado, por exemplo (jogo do actor), do qual pode dizer-se: s e levarmos demasiado longe os seus entrincheiramentos, ele arrebentará de riso, confessará sem dificuldade que se divertiu à nossa custa, que procurou, apenas, escandalizar-nos: é uma perversão demoníaca e sofisticada da representação como não-representação, dando-lhe a forma de um ritual. Genet, agitado pelas contradições de uma vontade dedicada ao pior (o mal), embora procure a impossível nulidade, ou a negação, reivindica no final o ser, a existência. Ele quer alcançar a existência, quer chegar ao ser, precisa de dar a si mesmo. Seria preciso que essa existência pudesse ser sem ter necessidade de representar. Genet quer petrificar-se em substância; e se é verdade que a sua busca visa esse ponto, uma das melhores aproximações é que a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo, deixam de ser entendidos como contraditórios; isso só pode acontecer quando visão e ser são uma e a mesma coisa como o avesso inacessível e o substancial da existência. 4
Texto de Zia Soares (atriz e diretora artística do Teatro Griot)
Texto de Pedro Sobrado (professor e dramaturgista)
13 actores negros em palco. 13 actores negros provocam invariavelmente a mesma pergunta, feita com mais ou menos espanto, raiva, benevolência ou ironia: porque que é que estão a fazer esta peça só com actores negros? No palco, onde os actos de transgressão são cada vez mais difíceis e extremos, questiona-se - eu também - porque é que 13 actores negros num palco são ainda um acto de transgressão, e o que isso nos diz, a todos, sobre nós próprios. Chegamos aqui, estamos aqui, com este elenco exclusivamente negro, com um encenador negro (afinal, o que é ser negro?), para por fim quebrar o silêncio. Estamos aqui, no Teatro São Luiz em de Lisboa, capital de Portugal, país membro da União Europeia. É aqui que nos permitimos Falar. Experimentando as possibilidades da voz, negra (afinal, o que é ser negro?), desafiando os limites do dizível, colocando-nos no abismo onde as palavras perdem o sentido utilitário e o texto acontece no corpo, negro, esse corpo que, afinal, pode ser trespassado pela luz.
Missa en abyme Arquibaldo: Afinal, o que é que nos resta? O Teatro! Nele representaremos para reflectir. E pouco a pouco, como Narcisos negros, olhamos para nós próprios a desaparecer na água.
1. É bem conhecida a imagem milenar de Heraclito: não nos banhamos duas vezes nas mesmas águas de um rio. Não é apenas a água que muda. Como insistia Jorge Luis Borges, nós não somos menos fluidos do que o rio. De cada vez que lemos um texto, o texto não é o mesmo. Não porque seja mudável como o livro de areia de um conto de Borges, mas porque nós não somos mais os mesmos. Talvez não exista essa coisa a que chamamos reler: ler é sempre ler pela primeira vez. (Por alguma razão, assinalamos passagens diferentes de cada vez que lemos uma obra, e frequentemente, quando voltamos a um livro há muito lido, não somos mais capazes de discernir o motivo que nos levou a sublinhar este ou aquele passo.) Em 2017, Rogério de Carvalho lê pela primeira vez Os Negros, depois de ter lido a peça há mais de trinta anos, quando encenou esta macabra clownerie no Teatro do Século, com um elenco constituído por actores brancos, pervertendo a regra e a ordem de Saint Genet, para citar o título do famigerado estudo de Sartre. 5
personagens encarnam arquétipos — Rainha, Juiz, Escudeiro, Missionário, Governador — e estão mais próximas da figura alegórica do teatro medieval e barroco do que do carácter. O espectador é cerimoniosamente acolhido neste rito, mas há algo de ameaçador nas cortesias e mesuras: «Nós não fazemos outra coisa senão tornar-vos ainda mais belos. Estamos aqui esta noite para dar mais brilho ao vosso desgosto.» As boas maneiras podem meter medo. Somos porventura tratados com o carinho com que um canibal prepara para si um bebé. Genet é, de algum modo, o canibal que a burguesia acolhe no seu seio, publicando-lhe os livros em editoras respeitáveis e galardoando-lhe a obra. Que este Calderón marginal e sacrílego tenha escrito Os Negros como «uma afronta lançada à cara dos espectadores» contribui para agravar o ostracismo. Como o próprio enunciou, a peça não é a favor (dos negros), é contra (os brancos). Não oferece conciliação, suspeita dos bons sentimentos e das causas ‘progressistas’, recusa a autocomplacência. Daí que, em vez de desmontar os estereótipos que a civilização branca historicamente produziu acerca dos negros, fomente a exacerbação de todos os clichés, ampliando grotescamente a abjecção e a selvajaria. Não basta os negros comerem os brancos: não, têm também de devorar-se entre si e inventar toda a espécie de receitas para as rótulas, as tíbias, os tendões, os lábios grossos. Arqui-
O encenador leu-a também em 2006 no palco do Teatro Nacional São João, em condições de produção radicalmente distintas e com um elenco que agregava actores de «um belo negro lustroso»: angolanos, moçambicanos, um são-tomense, uma cabo-verdiana e portugueses de ascendência africana. Entre a primeira encenação e a derradeira — aquela que agora se apresenta aos espectadores do São Luiz —, não há progresso. Quer dizer: as três encenações não representam necessariamente estádios de uma evolução, etapas da decifração progressiva de um enigma, mas formas distintas de organizar o escândalo, o jogo, a cerimónia, o delírio, a possessão. Sabe-se agora mais, mas é preciso aprender tudo de novo. Com textos como Os Negros — textos que possuem «a força de um poema, quer dizer, de um crime» (Genet) — nunca se volta a casa, mas a um lugar onde se permanece um estranho. O texto já não é o mesmo que Rogério de Carvalho leu há trinta, ou mesmo há dez anos. O leitor não é o mesmo. Nós, espectadores, não somos os mesmos. 2. Os Negros de Jean Genet é aquilo a que costumamos chamar um texto difícil. Sentimos, pelo menos de início, que nos exclui, como se se destinasse aos iniciados de uma seita. Teatro primitivo e hierático, escarnece da noção clássica de acção e da psicologia dramática: as 6
assumindo papéis ‘brancos’ como os de Governador, General ou mesmo Locomotiva e imolando um cão, de que bebem o sangue sobre a pedra do sacrifício. Uma espécie de «commedia dell’arte da possessão», como a designou André Bazin, na qual os Haouka mimam o regime de poder dos ‘senhores’ e exorcizam os crimes do colonialismo branco. A este rito de magia primitiva na era da técnica precisamos, contudo, de associar um «encantador bibelot» do século XVIII francês que Genet menciona como «ponto de partida» de Os Negros: «uma caixa de música cujas figuras mecânicas são quatro negros em libré, fazendo vénias a uma princesinha branca de porcelana». Nenhum destes objectos nos diz nada sobre a força percussiva e a magnificência retórica desta literatura dramática. («O meu triunfo é verbal, e devo-o à sumptuosidade das palavras», reconhece Genet.) Mas nestes dois motivos encontramos traços fundamentais de Os Negros: a ferocidade primordial e a delicadeza do artifício, a violência catártica e a graciosidade barroca, a abjecção e a sublimidade, as vísceras e a maquilhagem, os ruídos da floresta virgem e os minuetos mozartianos. Nos andares superiores da civilização, as toilettes e as máscaras, enquanto na subcave a pele é arrancada ao próximo. A tragédia é pudica, como lembra Bobo: o verdadeiro crime não ocorre à vista do espectador.
baldo enuncia todo um programa quando recomenda a Village: «Invente palavras, ou então frases que separem em lugar de unirem. Não invente o amor mas o ódio, e faça poesia, pois esse é o único domínio que nos é permitido explorar. Para que eles se divirtam, quem sabe? (Aponta para o público.)» Não nos apressemos a censurar este ódio. Outro canibal da nossa civilização, o satirista Karl Kraus, postulava: «O ódio tem de tornar-nos produtivos. Senão, é mais sensato amar.» Active evil is better than passive good, advertia também William Blake. Se este ódio é fecundo, é porque é dirigido contra si mesmo. No final de um prefácio a Os Negros que viria apenas a ser publicado postumamente, Genet formula a hipótese de a crueldade exercida contra si mesmo ser capaz — mais do que «um sentimento generoso» — de dar origem a «uma obra de arte generosa». A dúvida, a inquietação, o mal-estar, a ferida são o rosto com que essa generosidade se nos apresenta. 3. É frequente citar-se o pequeno documentário Os Mestres Loucos, de Jean Rouch (1954), como fonte de Os Negros. Rodado no Gana, o filme mostra pacatos trabalhadores negros de uma seita da capital que, a um domingo, imergem no mato para celebrar uma cerimónia de contornos catárticos. Entram em transe — olhos exorbitados, tremuras, saliva em espuma —, 7
4. Na década de 70, Jean Genet envolve-se com os Black Panthers nos EUA e solidariza-se activamente com a Organização para a Libertação da Palestina. Dos artigos e notas que dedica a estas causas resultará inclusive, em meados dos anos 80, a obra Un captif amoureux. Participa em manifestações de defesa dos imigrantes e em acções promovidas por Foucault e Deleuze a favor dos prisioneiros e dos trabalhadores árabes. Vários críticos têm, contudo, desencorajado uma interpretação política do teatro de Genet, escrito quase todo entre o final da década de 40 e o princípio dos anos 60: não se trataria de defender os direitos das empregadas domésticas em As Criadas ou dos presos em Alta Vigilância, e o que estaria em causa n’A Varanda não seria a luta de classes e n’Os Negros o racismo ou o colonialismo. Dir-se-ia que é contra a politização do drama que Arquibaldo se enfurece: «De que está a falar? Isto aqui é o teatro, não é a cidade.» Subtrair o teatro ao real, inscrevendo-o num espaço ritualizado onde pudesse erigir-se como uma missa negra, é o programa dramático de Genet. O seu teatro é um «teatro de exorcismos». A vida não é para aqui chamada: «É a morte que me vai criando», anuncia a Rainha. Talvez o traje seja mais vivo do que a personagem, que está do lado da morte. Em alguns dos seus escritos, o próprio Genet escarnece de uma
arte politicamente empenhada e, sobretudo, descrê das virtualidades do teatro como meio de transformação do real. Nada dispensa a luta directa. Ainda assim, é impossível rasurar o elemento político do teatro de Genet, nomeadamente de Os Negros. Talvez a argumentação do autor no final da década de cinquenta pretendesse uma inequívoca demarcação face ao discurso de outros dramaturgos franceses — Adamov, Sartre, Vinaver — que visavam então um teatro engagé, colocando a arte ao serviço da intervenção política. Muitos anos depois, numa entrevista, quando dizia ter já apagado o teatro da sua memória, Genet esforçava-se por esclarecer o seu posicionamento, que nada tem de alheamento face à história ou ao mundo: «A minha postura em relação à sociedade é oblíqua. Não é directa. Tão pouco é paralela, já que atravessa a sociedade, atravessa o mundo, vê-o. É oblíqua. Vi-o em diagonal, o mundo, e continuo a vê-lo em diagonal, talvez mais directamente agora do que há vinte e cinco ou trinta anos. O teatro, em todo o caso, o teatro que prefiro, é precisamente aquele que agarra na sociedade pela diagonal.» Faz lembrar um verso de Emily Dickinson, que talvez não pudesse estar mais longe de Genet, mas que foi também poeta e, a seu modo, reclusa: Tell all the Truth but tell it slant —. Textos escritos de acordo com a antiga ortografia
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Texto de Joacine Katar Moreira (investigadora do ISCTE - IUL)
um regime (colonial) que só conseguia ser explicado dentro dos seus próprios termos.
Jean Genet — o autor N'Os Negros (1958) somos confrontados com a visão crítica do autor às sociedades ocidentais, que se insurge contra os seus pares na denúncia do racismo e do colonialismo. Ou será que Genet, no alto do seu sofrimento, gerado pelos valores conservadores e pela estrutura burguesa e branca da sociedade francesa colonial, sentia-se afinal um nègre, um marginal (filho de uma prostituta, homossexual, classe popular, etc.), portanto, um inferiorizado, excluído e subordinado no seu próprio país? Mas, se Genet fosse negro, provavelmente seria mutilado ou morto antes de poder completar as suas várias passagens por reformatórios e prisões. Daí que, provavelmente consciente de que usufruía ainda de alguma vantagem por ser homem e branco, decidiu dar voz aos subordinados dos subordinados: os colonizados. É através da ironia, do sarcasmo, da hiperbolização do comportamento dos brancos e desprezo pelos seus preceitos que o autor desmascara a hipocrisia da sociedade racista e procura ridicularizá-la e esvaziá-la de sentido. Diz, pois, o personagem Governador “Colonialmente falando, posso dizer que servi bem a minha pátria. (bebe um gole de rum).”, numa clara alusão ao patriotismo oco de sentido e injustificável, e da perversidade de
Os Negros — a peça Esta é uma peça “contra os brancos”, segundo Jean Genet. Hoje diríamos que se trata de protesto e repúdio ao “privilégio branco”, como bem confirma o personagem Missionário quando declara: “Confiai, Majestade. Deus é Branco.” E foi em nome desse Deus, mesmo que de forma instrumental, que se sublimou a superioridade e se encontrou alento e força, ausência de vergonha e de arrependimento para a instauração do Colonialismo, da Escravatura, do racismo institucional e da segregação racial. “Esta noite, o nosso único desejo é divertir-vos: matámos uma Branca”, afirma Arquibaldo. Genet pretende chocar, fazer chorar de dor, vergonha e tremor o espectador branco, colocando-o no centro da ação de forma absolutamente humilhante, cobrindo-o de ódio, medo e sensações de inferioridade, e confrontando-o com a morte, o escárnio, a desumanidade e a falta de piedade. Mas, aquilo que acontece é que o sujeito branco é, na verdade, convidado pelo autor a salvar-se e a fazer uma purga, ao ser confrontado com a crueza da sua vantagem, com a sua maldade e com a falsidade e hipocrisia que norteiam os seus valores burgueses e coloniais, num confronto permanente entre o amor e o ódio. 9
Os Negros e a Negritude — a resistência Nesta peça, Genet promove a exaltação dos estereótipos sobre os negros e usa-as para ferir a sociedade ocidental, aliando o grotesco com o subversivo e o bárbaro na caracterização dos mesmos. Mas como se transcreve um negro e as suas demandas? O negro será um contraponto, um ponto final ou uma sinopse do branco? O segredo estava na procura da cultura e da identidade negras, e na sua revalorização. O personagem Village adverte: “A nossa cor não é uma nódoa de vinho ordinário que difama um rosto, o nosso rosto não é um chacal que devora aquele que o enfrenta... (Grita) Sou belo, és Bela e nós amamo-nos. Sou forte!” Trata-se de um tempo em que os ventos da mudança se faziam sentir, com a insurreição dos negros ocidentais face à sua condição, com movimentos como os da Negritude (Aimé Césaire, década de 1930), que surge exatamente no contexto francês e serve de base ideológica para a insubmissão ao colonialismo e ao racismo. Procurava-se transformar a expressão pejorativa “nègre”, dotando-a de conteúdo revolucionário, com o objetivo de valorizar e promover a identidade e a cultura negras e o resgate dos valores culturais africanos.
A peça salva quem a ela assiste. Salva os brancos, assim como Genet foi salvo graças à sua capacidade de se colocar no lugar do “outro”, e é este o exercício que o autor convida os espectadores a fazer. O assassinato da mulher branca simboliza o fim da hegemonia colonial, que permitirá ao negro o auto-conhecimento e a auto-determinação. Ganhar vida e ganhar corpo físico, ganhar liberdade e espaço de expressão. Aos negros é-lhes pedido ação, a revolta e a insubmissão, ao mesmo tempo que o autor procura fazer parte das suas lutas e lhes reconhece a força e a capacidade de reverter a História. Ville de Saint Nazaire ironiza fazendo referência a um mundo no qual as relações de poder se encontram invertidas: “Não tentou negrificá-los? Não tentou enxertar neles as narinas e os beiços bambares? Não lhes encrespou os cabelos? Não os reduziu à escravatura?” Ao mesmo tempo, para garantir alguma similaridade com a realidade, o autor organiza o palco em três espaços verticais onde reflete a hierarquia social, com os Negros (alegoria aos escravizados) no patamar mais baixo, a Felicidade (representado por uma mulher negra de sessenta anos) no centro e com a Corte, (composto por atores negros que usam máscaras brancas, representando os dominadores e os opressores) no patamar mais elevado. 10
Pretos da Guiné ou os Negros daqui — a atualidade Os Pretos da Guiné são os negros mais profundamente negros, daí que em Portugal façam parte da cultura popular e são comummente convocados no exercício do racismo. Mas os Negros daqui, ou os afrodescendentes, tendem a organizar-se cada dia mais para reivindicar um lugar na sociedade portuguesa, nos media e nas instituições, coisa que foi velada aos seus pais. A dualidade racial do colonialismo português, que segregou e dividiu quando sugeriu pretender unir, marcou de forma basilar as relações entre os brancos portugueses e os negros de todas as pertenças, e essencialmente, a forma como os negros se auto-percecionaram. Não será preciso matar uma branca, como prova Rogério de Carvalho, quando consegue que esta peça seja efetivamente composta, hoje, apenas por atores negros, numa sociedade onde o palco continua reservado para os brancos.
Representação e ritualização — o simbolismo O documentário Os Mestres Loucos de Jean Rouch (1954), sobre os Haouka do Gana, pode ter sido a base de inspiração de Jean Genet para a escrita d´Os Negros. O ritual dos Haouka, de transe e possessão de espíritos que encarnam a oficialidade colonial e seus ritos, os sacrifícios de animais e toda a teatralidade e o carácter performativo do evento, é parte de uma essência africana baseada na questão mística, mas também racial, cujo resultado é a grande carga simbólica das suas dinâmicas. Assim, a religiosidade africana, contrastando com a moral colonial e cristã que está direcionada para o céu, foca-se na terra, na natureza e nos animais, numa procura de controlo sobre os elementos. Na verdade, os negros são da Terra. Têm a cor da terra e são, por isso mesmo, raízes de todas as pátrias e o cume de todas as montanhas. As cores dos negros são as cores da natureza. São do carvão subterrâneo ao verde-claro das folhas mais altas dos imbondeiros. As religiões africanas ou de matriz africana são as religiões do chão, como se diz na Guiné, ou seja, religiões da terra, nas quais abundam rituais de sangue, terra e água. Aliás, foi assim que Deus criou o homem.
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© Sofia Berberan e Mário César
«Não avance mais, Majestade. Prudência, circunspecção, mistério. Por toda a parte, pântanos, flechas, felinos... (...) ... Aqui as serpentes põem os ovos através da pele da barriga e deles saem os filhos com os olhos vazados...» Jean Genet, Os Negros
O Bilhete Suspenso nunca esgota. Saiba mais em bilheteira@teatrosaoluiz.pt/ 213 257 650 São Luiz Teatro Municipal Direção artística Aida Tavares; Direção executiva Joaquim René; Programação Mais Novos Susana Duarte; Adjunta direção executiva Margarida Pacheco; Secretária de direção Olga Santos; Direção de produção Tiza Gonçalves (Diretora), Susana Duarte (Adjunta), Andreia Luís, Margarida Sousa Dias; Direção técnica Hernâni Saúde (Diretor), João Nunes (Adjunto); Iluminação Carlos Tiago, Ricardo Campos, Sara Garrinhas, Sérgio Joaquim; Maquinistas António Palma, Cláudio Ramos, Paulo Mira, Vasco Ferreira; Som João Caldeira, Gonçalo Sousa, Nuno Saias, Ricardo Fernandes, Rui Lopes; Responsável de manutenção e segurança Ricardo Joaquim; Secretariado técnico Sónia Rosa; Direção de cena Marta Pedroso (Coordenadora), José Calixto, Maria Tavora, Ana Cristina Lucas (Assistente); Direção de comunicação Ana Pereira (Diretora), Elsa Barão, Nuno Santos; Relação com públicos Mais Novos Inês Almeida; Design gráfico Silvadesigners; Bilheteira Ana Ferreira, Cristina Santos, Soraia Amarelinho; Frente de casa Fix Chiq; Segurança Securitas; Limpeza Astrolimpa
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