SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL 1 A 10 NOVEMBRO 2019
© João Gambino
PEDRO E O CAPITAO DE MÁRIO BENEDETTI ENCENAÇÃO MARTA CARREIRAS E ROMEU COSTA
Não, Capitão
Espaços de Exceção
Quando Mário Benedetti escreveu em 1979 Pedro e o Capitão, João Paulo II era o líder mundial da igreja católica. Hoje, passados 40 anos, o atual papa é sul-americano. O mundo é hoje um sítio diferente, já não se divide entre soviéticos e ocidentais. Mas continua dividido, entre Pedros e Capitães. Mas este espetáculo não é sobre o Uruguai. Não é sobre a Operação Condor. Não é sobre a América do Sul. Não é sobre um regime político opressivo em particular. Não se passa durante uma ditadura militar. Não é sobre o bem e o mal. Não é sobre duas pessoas que representam dois coletivos. Não é sobre a tecnologia em oposição à natureza, ou a ciência em oposição à humanidade. Este espetáculo não é uma luta só de homens. Não é uma visita aos 48 anos da nossa história recente. Ou é. Porque nele cabe a Palestina, a Venezuela, o Chile, a Chechénia, Guantánamo, os campos da Europa, as prisões norte-americanas e o mar do Mediterrâneo. Neste espetáculo estão todas as pessoas que nunca regressaram e que nos morreram antes de morrer.
O espetáculo inscreve-se num tempo e num lugar específicos. O tempo é o da guerra eterna entre ideologias políticas e o lugar é o da concretização de um espaço que não existe oficialmente, onde as regras do estado de direito estão temporariamente suspensas. Um lugar improvisado, que se edifica da melhor forma possível para se provar que nunca existiu. Um lugar função. Faz-se prova da sua existência apenas através dos corpos testemunhas da sua matéria. A casa amarela, a sala violeta, o quarto de hóspedes, o escritório das máquinas, uma sala de teatro. Nesta peça de Mário Benedetti, o quartel militar reclama as honras de lugar, mas a natureza temporária e invisível destes lugares de exceção torna-os capazes de se instalar em qualquer sítio do mundo. O tempo dramático é incerto, 3 meses, 6 meses, no fundo é o tempo que dura um corpo sujeito a constantes investidas de uma violência cirúrgica, testada e comprovada que se tornou disciplina científica. Se o espetáculo fosse uma ópera veríamos apenas os intermezzos, as pausas onde se improvisa entre dois atos. Nestes intervalos usa-se apenas a palavra, a dialética, o argumento.
Romeu Costa
Marta Carreiras
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© Marta Carreiras
repente, em qualquer sítio. Porque há formas de os governos mudarem e de mudarem as regras e as leis e, num instante, a tortura passa a ser justificada e legal. RC: A América Latina continua em convulsão. Ao fim destas décadas todas, parece que o processo de democratização ainda está longe. No Brasil, que terminou a ditadura em 1985, vemos a ascensão de Bolsonaro e as pessoas a defenderem um Estado opressivo. Quando estreámos esta peça em 2017, Bolsonaro era simplesmente um deputado que dizia umas barbaridades de quando em quando, e agora aqui está ele. MC: Acredito que este espetáculo nos dá essa sensação de que estas iminências arranjam sempre um lugar para acontecer. Muda um governo e mudam as leis dos direitos humanos. Aquele dispositivo em cena tem esse lado de descartável e da facilidade de se poder instalar em qualquer sítio.
A violência no mundo dos homens maus
À conversa com Marta Carreiras e Romeu Costa, encenadores de Pedro e o Capitão
A nós, portugueses, leva-nos inevitavelmente para a tortura que existiu durante a ditadura. RC: Em 2017, antes da estreia aqui no São Luiz, decidimos convocar as pessoas para se relacionarem com este tema. Em parceria com o Museu do Aljube, convidámos a Ana Bigotte Vieira para organizar umas conferências em que convidámos semanalmente uma pessoa para falar de um tema: o Pedro Neto, presidente da Amnistia Internacional, trouxe-nos muitos casos recentes.
Esta peça foi escrita em finais dos anos 1970, durante a ditadura no Uruguai. O mundo não mudou assim tanto desde então, pois não? Marta Carreiras: Estávamos com a esperança de que nesta reposição, passados dois anos da estreia, a peça já não estivesse tão atual. Romeu Costa: Até parece cada vez mais atual. MC: Continuamos com a sensação de que esta situação que retratamos na peça pode acontecer, de 3
A professora Irene Flunser Pimentel, que tem estudado o Estado Novo, foi outra das pessoas que participou, assim como o investigador Gianfranco Ferraro que nos apresentou uma perspetiva filosófica sobre a política, entre vários outros.
mais revoltada e olho para este personagem do Capitão e penso “este homem se calhar é um pouco mau…” Homens como Bolsonaro estão no poder porque alguém lá os pôs e dou por mim a fazer o exercício ao contrário: há homens maus e até nós somos maus porque perdemos a consciência do que é este perigo. Hoje, sinto-me mais preocupada com o resto dos homens e não só com os homens maus. Apetece-me culpar as pessoas. RC: Penso também no papel da arte e na forma como um projeto como este pode ter sido ou não significativo. Existe alguma frustração, porque as coisas andam a um ritmo próprio e não como gostaríamos. Apontamos o dedo e usamos esta história para refletir sobre a nossa própria história e a do mundo. Fizemos esse esforço, até com as conferências do Aljube, em que juntámos pessoas de várias áreas… MC: Tivemos imensas conversas com diferentes pessoas para preparar este espetáculo. Até fomos falar com um interrogador da Polícia Judiciária. E ele disse: “Isto é mesmo assim, há um polícia mau e um polícia bom.” E contou-nos vários episódios em que a pessoa que está a ser interrogada aguenta todo um processo de inquérito com o polícia mau e fraqueja com o polícia bom, que pode chegar e apenas lhe dar um cigarro. E ele dizia: “cuidado, que isto é uma estratégia”. E, mais uma vez, fico a pensar: “mas vou acreditar em quê?!”
Dois anos depois da estreia, olham de forma diferente para a peça? RC: Sim, mesmo tendo nós aproveitado as conferências para refletir, há sempre a pressão do tempo para a estreia. E sem essa pressão, nestes dois anos, e nunca deixando de ser cidadãos e de ver à nossa volta todas estas novas forças que vão ganhando protagonismo, parece que ficámos ainda mais inquietados. Por isso, é bom ter a possibilidade de voltar a fazer este espetáculo e de continuar a falar do Uruguai, da América Latina, do Chile, que neste momento está a ferro e fogo, do Brasil… do mundo inteiro, por arrasto. MC: Acho que a peça nos chega de maneira diferente passados estes dois anos. Ou porque estamos mais velhos ou porque estamos mais fustigados pela realidade. Na altura arrumei esta questão da violência na minha cabeça, pensando que não há homens maus nem homens bons, acreditando que transportamos em nós todas as coisas boas e más do mundo, que somos capazes de matar e de amar ao mesmo tempo. Essa questão da banalidade do mal foi o que resolvi há dois anos com este espetáculo. Agora sinto-me 4
Como chegaram a esta solução da água em cena, que vai fazendo isso tudo e ainda serve de elemento de tortura? MC: Se eu ferir alguém, se a fizer sangrar vou também ficar com sangue. A água surgiu como matéria real que pode criar uma ideia de contaminação: um molha o outro mas também fica molhado e assim monta-se um sistema onde há uma só violência sem cheiro nem cor nem forma, permitindo sempre mais intensidade e que mesmo sozinha vai enchendo a cena sem pedir licença até ocupar tudo, molhar todos até o publico. RC: A água provoca esse desconforto e, ao mesmo tempo, convoca as pessoas, porque ela está ali, não há uma redoma que proteja os espectadores.
a ver-nos. A câmara de filmar quando enquadra os atores, enquadra também quem os está a ver como pano de fundo. O público é implicado na violência, não tem forma de escapar. RC: Sim, também por isso não nos interessou um dispositivo convencional. Esta estrutura dos quatro atos sempre no mesmo espaço com as mesmas personagens permitiu-nos criar uma transformação operada pela água que traz desconforto a quem ali está sentado na sala. Mas também alguma poesia, acredito. MC: Nunca seríamos capazes de pôr em cena uma violência que se aproximasse da violência que queríamos transmitir. Ter uma poesia sobre isso não assusta ao princípio, mas leva a uma reflexão depois. Não emociona pela violência em si, mas provoca um efeito em quem vê. RC: E a água, em 2017, quando estávamos a preparar o espetáculo, levava-nos imediatamente para o Mediterrâneo e as mortes dos refugiados, para esse cemitério aquático que está aqui tão perto.
Curiosamente, é um elemento que limpa que está a simbolizar a violência. MC: Sim, é uma matéria que batiza, lava, mas que também mata, que tira a sede, mas que afoga… RC: É um elemento que é confortável, por um lado, mas que também é usado para torturar. MC: Ao princípio não assusta, mas, a certa altura, começa a incomodar. Há pessoas no público que se desviam, que não querem ser contaminadas por aquela água. RC: A ideia de colocar a plateia em U também é para provocar isso. Quem está a ver os atores em cena, logo atrás deles vê mais público, estamos sempre todos
Foi a descoberta da água como elemento central que vos fez reduzir o cenário àquele espaço com um tapete plástico, duas cadeiras e uma câmara de filmar? RC: Gostamos deste espaço que se pode montar em qualquer sítio, é uma espécie de franchising da tortura. 5
É um kit de tortura. Monta-se um plástico para não deixar provas nem marcas e pode-se fazê-lo em qualquer lugar… É super descartável. Tem cadeiras de plástico, com bolas de ténis na ponta das pernas, para não marcar o chão. Isto começou a formar-se na sala de ensaios do São Luiz, que é um espaço ao comprido, e começou aí a desenhar-se esta piscina, improvisada e impermanente, feia mas eficaz. Este plástico também é bom porque serve para enrolar os corpos, tudo tem um lado eficaz e prático tal como as cadeiras do Ikea.
O vídeo também faz com que o espectador possa optar por aquilo que quer ver. Pode estar ali a acontecer uma coisa à sua frente, mas se calhar é tão forte que prefere olhar para o ecrã. Porque a imagem é sempre associada à ficção e afasta as coisas, parece que não é connosco. Essa escolha diz muito de quem está a ver. Há até pessoas que não olham nem para a câmara nem para a cena, baixam os olhos. RC: Mais facilmente até se olha para a imagem filmada. Existe um certo fascínio em ver o que está a passar para os ecrãs. E essa imagem até pode parecer outra coisa. A imagem em movimento dá-nos essa possibilidade, com a luz e o plano pensados. Também quisemos trabalhar esse set de filmagem, esse espaço que montamos e em que criamos uma ilusão, mas que podemos ver de fora e percebemos como funciona. MC: É um set dentro de um set. A própria instalação deste espaço é uma ficção. Eles montam aquilo, mas aquilo é tudo falso. É um não lugar, aquilo não existe.
MC:
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O vídeo dá uma outra dimensão a tudo isso. Que jogo é este entre o que se passa em cena e o que vemos nos ecrãs? RC: Interessava-nos pegar no vídeo e permitir outra janela dentro do dispositivo em cena, outra perspetiva daquilo que estamos a ver ao vivo. Uma coisa é o que estamos a ver ao vivo e outra é o que a câmara escolhe mostrar. E o que é que isso traz de novo ou não a quem está ali a ver? É o que sentimos hoje com a quantidade de vídeos que nos chegam e que foram escolhidos com uma determinada perspetiva para nos contarem a história que querem contar. E a câmara ali em cena também funciona como se fosse uma terceira personagem. E implica os espectadores, dá-lhes uma certa consciência. Este dispositivo, sem uma câmara ali, colocaria o público num sítio muito mais confortável.
A peça vive muito da palavra, mas não há comunicação possível entre estas personagens, pois não? RC: Sim, este texto, a certa altura, quase parece uma dança individual e não a pares, são dois solos, que eles fazem neste questionamento deles próprios. Nessa medida, o Capitão coloca-se mais 6
ou o Capitão é muito bom jogador? O teatro permite essa dúvida. Na estreia, procurava-se mais a bondade dos homens e agora, na reposição, procura-se mais a exposição da maldade? RC: Estas são as dúvidas que nos assolam a meio da montagem desta reposição. Agora que a máquina está montada, temos tempo para todas estas questões. O fator tempo é determinante. Dois anos depois, estamos diferentes, aquilo viveu em nós, cresceu em nós. Idealmente, os espetáculos deviam ser repostos sempre. Entrevista realizada em outubro 2019, por Gabriela Lourenço / Teatro São Luiz
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em causa, o Pedro, menos. Temos a ideia de que estas personagens podiam ter vindo do mesmo sítio, ter nascido no mesmo bairro e ter tido a mesma educação e que, a dada altura na vida, um vai para um lado e o outro para o outro. E se afastam para sempre. MC: … Mas eu estou nesta zona de que este Capitão não vai tão abaixo como parece, não quebra tanto. Aquela queda dele pode ser intencional. Hoje, já não acredito tanto no seu lado “bom”. A personagem do Pedro também vos faz repensar a encenação de há dois anos? MC: O Pedro é uma personagem muito inteligente, tem uma empatia com o público do princípio ao fim. É muito difícil repensá-lo… RC: O Mário Benedetti quer fragilizar o Capitão e defende o Pedro. Ele é um herói. É claro que tentamos não hiperbolizar o romantismo deste herói, tentamos não exacerbar esta postura, mas ele é assim. Tentamos que o Pedro seja mais simples e, por outro lado, que o Capitão seja mais ambíguo em tudo o que faz. Será que está assim tão frágil? Será que tem mesmo um peso na consciência? Porque ao fim destes anos todos quem prevalece são os Capitães… MC: Aquele homem faz interrogatórios há anos, vai fraquejar hoje porquê?! E se pensarmos nisso é ainda mais assustador. Será que o Pedro consegue isso
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1 a 10 novembro teatro
PEDRO E O CAPITÃO
DE MÁRIO BENEDETTI ENCENAÇÃO: MARTA CARREIRAS E ROMEU COSTA reposição Terça, quarta, sexta e sábado, 21h; quinta, 20h, domingo, 17h30 Sala Mário Viegas m/14 €12 com descontos Duração: 1h20 3 novembro, domingo 10 novembro, domingo, 17h30 Texto: Mário Benedetti; Tradução: Romeu Costa; Encenação: Marta Carreiras e Romeu Costa; Assistente de encenação / Produção: Filipa Braga Cruz; Assistente no processo criativo: Reginaldo Spínola; Apoio dramatúrgico: Ana Bigotte Vieira; Elenco: Ivo Canelas e Pedro Gil; Videasta: João Gambino; Música e Espaço sonoro: Pedro Salvador; Cenografia e Figurinos: Marta Carreiras; Assistência de cenografia: Luna Rebelo; Desenho de luz: Daniel Worm d’Assuncao; Montagem e Operação de luz: Ricardo Campos; Direção de produção: Maria Folque; Designer gráfico: André Machado Parceiros: Amnistia Internacional, Câmara Municipal de Lisboa, Centro Comunitário de Desenvolvimento do Bairro dos Lóios, Museu do Aljube e Teatro da Terra Agradecimentos: Anabela Rodrigues, APCEN, Carlos Ademar, Casa da América Latine, Colectivo Warehouse, Cue One, Fonte Viva, Grupo de Teatro do Oprimido de Lisboa, Irene Pimentel, Jesus Cornejo Rojas, Jorge Gonçalves, Luís Farinha, Mavá José, Miguel Cardina, Pedro Henriques e Samara Azevedo Coprodução: Teatro Municipal de Matosinhos Constantino Nery e São Luiz Teatro Municipal
Apoio:
Projeto financiado por:
Espetáculo estreado em 23 junho 2017
Direção Artística Aida Tavares Direção Executiva Ana Rita Osório Programação Mais Novos Susana Duarte Assistente da Direção Artística Tiza Gonçalves Adjunta Direção Executiva Margarida Pacheco Secretária de Direção Soraia Amarelinho Direção de Comunicação Elsa Barão Comunicação Ana Ferreira, Gabriela Lourenço, Nuno Santos Direção de Produção Mafalda Santos Produção Executiva Andreia Luís, Catarina Ferreira, Mónica Talina, Tiago Antunes Direção Técnica Hernâni Saúde Adjunto da Direção Técnica João Nunes Produção Técnica Margarida Sousa Dias Iluminação Carlos Tiago, Ricardo Campos, Tiago Pedro, Sérgio Joaquim Maquinaria António Palma, Filipa Pinheiro, Vasco Ferreira, Vítor Madeira Som João Caldeira, Gonçalo Sousa, Nuno Saias, Ricardo Fernandes, Rui Lopes Operação Vídeo João Van Zelst Manutenção e Segurança Ricardo Joaquim Coordenação da Direção de Cena Marta Pedroso Direção de Cena Maria Tavora, Sara Garrinhas Assistente da Direção de Cena Ana Cristina Lucas Bilheteira Cristina Santos, Diana Bento, Renato Botão
TEATROSAOLUIZ.PT