ÍTACA - NOSSA ODISSEIA I (2018)

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ÍTACA — NOSSA ODISSEIA I ARTISTA NA CIDADE 2018

ALKANTARA FESTIVAL NO

TEATRO SÃO LUIZ

© VICTOR TON ELLI

2018 ESTREIA NACIONAL


Sobre o que não conseguimos dizer

Aida Tavares:

Lembro-me sempre da minha primeira vez num espetáculo teu. Foi no Brasil, no MIT [Mostra Internacional de Teatro], onde tinhas sido convidada a apresentar Julia e E se Elas Fossem para Moscou?. Vi as duas peças com poucos dias de intervalo e, no final do Moscou, disseram-me que nos iam apresentar. Recusei, não quis. É uma reação que tenho quando sou mesmo tocada por um objeto artístico. Fui para o hotel ler tudo o que havia sobre o teu trabalho.

Aida Tavares, diretora artística do Teatro São Luiz, e Christiane Jatahy, encenadora, realizadora e dramaturga brasileira, Artista na Cidade 2018, juntaram-se à conversa antes da estreia nacional de Ítaca – Nossa Odisseia I, peça coproduzida por este teatro municipal e primeira parte de um díptico a partir da viagem descrita por Homero. Em Lisboa, cidade de Ulisses, falaram de teatro e de política, do Brasil e do Mediterrâneo, de guerras e de travessias, de emoções e de festas fracassadas. Como escreveu Saramago, é a conversa das mulheres que segura o mundo na sua órbita.

Christiane Jatahy:

Fico tão grata com essas palavras… AT: Aquela

peça tirou-me completamente o chão. Foi um marco na minha vida.

CJ:

É muito bonito perceber isso. A base do meu trabalho é essa relação direta com o público. Lembro-me que você me contou isso depois quando nos conhecemos e foi muito lindo de ouvir. Até porque o nosso primeiro encontro acabou por ser aqui no Teatro São Luiz. Vim com o Thomas [Walgrave, diretor do Alkantara, cenógrafo, seu marido hoje] e olhei para este espaço incrível e para você e pensei “adoraria um dia trazer os meus trabalhos para cá”. E isso tornou-se concreto. É mesmo uma parceria bonita de amizade, esta nossa… E a relação de coprodução é muito importante para mim.

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AT:

É muito bom ver a transversalidade do teu trabalho e perceber o entendimento que fazem da tua obra noutros países. Para mim, é comovente, porque és uma mulher e é um orgulho porque falas a minha língua. E fazes isto sem cedências e sem facilitismos. Mesmo em Portugal, não são apresentados assim tantos artistas brasileiros e é importante trazermos quem as pessoas não conhecem. Ter uma Artista na Cidade que fala a nossa língua torna-se especial. É uma oportunidade única poder ver toda a tua obra em Lisboa este ano. Foi bom teres pensado do ponto de vista dramatúrgico esta programação, como acho que ainda nenhum Artista na Cidade tinha feito.

um livro, em que cada trabalho é um capítulo que existe de forma independente, mas nunca é totalmente indissociável dos outros. E o meu trabalho é mesmo sobre encontros: com as atrizes, com os vários colaboradores artísticos e com o público que acompanha as minhas obras. Crio muito a partir do diálogo, apesar de também precisar de momentos de isolamento de escrita. Para mim, é muito importante a fala e a troca, e existem muitas pessoas que vêm, de diferentes formas, participar no meu trabalho. Como o Paulo Camacho, diretor de fotografia, com quem trabalho há vários anos, ou, mais recentemente, o Thomas Walgrave, meu colaborador artístico, que fez a luz e, em parceria comigo, o cenário de Ítaca. Costumo usar esta imagem: é como uma pedra no lago em que as circunferências vão aumentando.

CJ: Apresentar

aqui E se Elas Fossem para Moscou? há dois anos foi um impacto para o público e para nós. Sentimos uma sensação de onda que vinha de nós para a plateia e da plateia para nós. Apesar de já termos levado a peça a muitos lugares, essa questão da língua é muito forte, porque é o mesmo e não é o mesmo, é o reconhecimento do diferente. Agora, o mais importante foi esta possibilidade de mostrar todo o trabalho, que só o Artista na Cidade permite. O meu trabalho não são pontos, é uma linha contínua. Essa dramaturgia é a base permanente do meu pensamento artístico: como é que uma obra leva uma pergunta para outra obra. É como escrever

AT:

Para mim, a tua obra também é possível porque és mulher. Acreditas, como eu, que as mulheres são motores na transformação da sociedade?

CJ:

Saramago tem uma frase no Memorial do Convento que diz: “É a conversa das mulheres que faz o mundo girar.” Acho isso tão forte… e é o que estamos fazendo aqui agora. Não existe nenhuma possibilidade de evolução e revolução se não englobar o feminino, seja o feminino da mulher, seja

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do homem. Temos de parar de achar que as coisas têm diferenças hierárquicas. Como podemos achar que vamos avançar na sociedade se ainda olhamos com superioridade os outros, seja nas questões de género, raciais, religiosas? Quando leio um texto clássico, como sou mulher, o meu olhar tem uma lupa no feminino, mas reluto em falar disso porque o que me interessa não é segmentar. O meu trabalho é sobre o ser humano, sobre o que nos é igual e não diferente. Infelizmente, ainda precisamos de levantar bandeiras… mas lindo vai o ser o dia em que não precisarmos mais de falar sobre género.

a expectativa do que vai chegar, do que pode acontecer. Uma certa melancolia da espera… CJ:

… e o medo do acidente, o desejo do acidente. Através do inesperado é que a vida muda e essa possibilidade da mudança é uma questão incessante para mim: como é que se muda? E nem sei qual é a mudança mais difícil, se a política, se a pessoal, acho que uma está muito colada na outra.

AT:

Essa é a grande questão da tua obra. Comprovas a universalidade dos grandes textos, fazes esse trabalho de uma forma completamente inovadora e surpreendente, independentemente das adaptações às realidades atuais, aos nossos medos e aos nossos confrontos. Neste Ítaca pensamos na Odisseia, mas também na realidade deste mediterrâneo atual, e ficamos sempre nesse sítio duplo. É tudo muito orgânico. Estas ilhas míticas que se transformaram em mares de sangue fizeram-te partir para Ítaca, mas que outros pontos de partida tiveste?

AT: Toca-me

particularmente nas tuas peças aquele ambiente de festa que acaba sempre por se transformar numa certa melancolia.

CJ:

Gosto desse tirar de camadas. A festa é o social, o lugar dos encontros, onde achamos que nos expressamos nas nossas relações, mas por trás temos as nossas intimidades, melancolias, faltas, medos, sombras. A festa é a luz e atrás estão as sombras. Acho o lugar da festa muito importante nas nossas vidas, pela celebração, mas não só. É política, porque provoca o encontro. E curiosamente isso também está nas obras dramatúrgicas de que parti, n’ As Três Irmãs, em Macbeth…

CJ:

Essas travessias, essas pessoas que procuram as suas casas, as suas Ítacas como lugar de chegada, vêm de uma sequência de trabalhos que tenho feito. Utopia. doc é sobre isso, A Floresta que Anda e Moving People [que será apresentado no dia 24 de setembro no Jardim do Museu de Lisboa] também. Não há como não

AT:

Quando a festa passa para melancolia fica sempre 4


olhar para o mundo hoje, onde as pessoas estão a ficar sem lugar. A peça é sobre quem atravessa, mas também sobre quem está parado, quem está há anos nesse espaço de fronteira, que é um muro, e já não consegue ir para trás nem para a frente. Tanto Penélope como Ulisses vivem isso também. Ele parece que está a avançar mas está sempre a recuar e ela espera um movimento de mudança… Esse é o viés da costura dramatúrgica da obra, e fazemos o paralelo direto entre a travessia de Ulisses e os relatos que ouvimos em entrevistas com os refugiados. Esses relatos atravessam a obra, fazem rios dentro dela, mas não são a obra. A realidade entra para fazer um corte e dar uma perspetiva sobre a obra ficcional.

sobre a guerra, também é sobre o amor. É trágica, mas não é desesperançosa. AT: Agora

falaste do Brasil e lembrei-me que assistir à estreia de Ítaca em Paris foi muito forte pela questão da língua. Ouvir ali as atrizes falar português e ouvir as canções do tempo do exílio do Caetano Veloso… Essa será mais uma camada que nós, portugueses, vamos entender. Estou desejosa de ver isso acontecer aqui. CJ: Vai ser incrível! E tem uma questão muito importante aqui: a inversão do poder com a língua. Chamei três atrizes brasileiras, minhas parceiras de trabalho, e três atores francófonos e eles são a língua dominante que ali em Paris era também a língua da plateia. Existe um jogo: como é que eles, representando o masculino e a Europa, se posicionam perante a fragilidade de alguém que tenta falar a língua deles. E a plateia é cúmplice disso. Aqui isso vai ser invertido e isso inverte a obra! Acho que vai ser bem bonito ver Ítaca dessa nova perspetiva…

AT:

E colocas também o Brasil no palco…

CJ:

Cada vez mais preciso de falar sobre o que está a acontecer no Brasil, e a fala não dá conta de tudo. Porque os factos são tão inenarráveis, tão absurdos, que a fala fica vazia diante do que acontece. E existe um paralelo claro com o que acontece em Ítaca: esse lugar utópico de chegada fala do Brasil a ser devorado e destruído por esses pretendentes que são os políticos brasileiros. A figura feminina da Penélope é a Dilma a ser afastada, e também a figura feminina que não está presente no Governo. Mas, para mim, a peça, que é

AT:

Ítaca, para ti, funciona como uma utopia de mudança que não se concretiza…

CJ:

E Se Elas Fossem para Moscou? é uma festa que começa e que fracassa, A Floresta Que Anda é uma festa onde nos perguntamos como podemos festejar e Ítaca é a festa que já não dá mais para ter, é mais

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triste ainda… Ítaca é sobre a ferida aberta. É a guerra e é muito difícil fazer um trabalho sobre a guerra. É mesmo irrepresentável, mas já é a mudança, é o que não pôde mais se conter. O triste é que a guerra principal da Odisseia não é a de Troia, mas a que Ulisses descreve logo no início: ele conta que quando saiu da Guerra de Troia, entrou numa cidade e saqueou, matou, estuprou, sequestrou… por nada, só pelo poder de tomar para si. E isso é a guerra que está a acontecer e sempre aconteceu. Não deixa de ser a guerra da ganância… Ulisses não é herói, é um homem com todas as sombras que todos os homens têm.

a relação com o público. Há uma implicação dos espectadores, aquela parede invisível habitual volta a deixar de existir. E nós, público, fazemos uma travessia em cena… CJ:

O público tem uma função na dramaturgia da obra e o espaço é determinante para a relação que vou construir com ele. O público está dentro, num espaço que se transforma, e está muito perto do perigo, apesar de estar sentado no seu lugar. Em Ítaca existe um elemento que é muito importante nos meus trabalhos e que neste transborda: a água. É o elemento de onde vimos, está dentro de nós e é também a lágrima que sai… os meus espetáculos têm muito choro, é como expressamos as nossas dores e é o lugar do afeto… E como não ter água quando falamos da Odisseia?

AT:

E porquê esta triplicação de Ulisses, Penélopes, Calipsos e Pretendentes?

CJ: A

ideia da multiplicação é não tentar representar a personagem como uma figura, mas pensar que isso, na verdade, está em muitas pessoas. Multiplicar para humanizar. No sentido de entender o que nos aproxima, em vez daquilo que nos diferencia, mais uma vez. Nesta primeira Odisseia, Ulisses e Penélope multiplicam-se em três, na segunda parte deste díptico, hão de multiplicar-se em todos… Serão espetáculos independentes, apesar de complementares, mas não será a continuação, é mesmo uma outra abordagem.

AT:

Esta peça tem também um tempo diferente. Há ali um ritmo com muitos vazios. E ainda bem que há. Porque há momentos muito duros.

CJ:

Este espetáculo está cheio de silêncios. Talvez seja das minhas peças com mais espaços vazios. Penso sempre nos tsunamis, já que estamos a falar de água. Diz-se que antes da onda estourar é o silêncio… Será talvez sobre o que não conseguimos dizer.

AT:

Incrível em Ítaca é também o espaço cénico e, mais uma vez,

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Antínoo, um dos pretendentes “Os pretendentes continuarão a consumir os teus recursos e a devorar os teus bens enquanto Penélope não deixar o pensamento que eu não sei que deus lhe pôs na cabeça. Mesmo que conquiste uma glória sem precedentes, isso sair-te-á caro. Não retomaremos os nossos afazeres, nem voltaremos aos nossos campos enquanto ela não decidir a tomar um de nós por esposo.” Odisseia, canto II, vv.122-129

Quatro personagens para uma odisseia

Ulisses “Saqueei a cidade e matei os seus habitantes. Partilhámos as mulheres e as riquezas para que ninguém fosse privado de saque. Exortei os meus homens a fugir num passo rápido, mas esses insensatos não quiseram ouvir-me. Bêbados de vinho, degolaram carneiros e abateram pesadas vacas perto da costa arenosa. Odisseia, canto IX, vv.40-46

Calipso “Queres ficar! O céu sabe o que queres! Não és mais do que um conjunto de sonhos gastos e desejos velhos. Queres que te diga o que há em ti? O medo, o medo, ouves? Tens medo da ideia de reencontrar a cidade […]; tens medo que a tua mulher tenha mudado e que o teu filho não se queira sentar nos teus joelhos. Tens medo da vida. Tu tens medo…” Eyvind Johnson, Heureux Ulysse

Penélope “Ele sempre foi muito persuasivo. Muita gente acreditava que a sua versão dos factos era a verdadeira, talvez com um pouco mais ou um pouco menos de assassinatos, de belas mulheres seduzidas e de vagos monstros de um só olho. Mesmo eu acreditava às vezes. Sabia que ele era astucioso e que inventava histórias, mas não o via capaz de me enganar e de me contar mentiras. Não fui eu fiel? Não esperei eu, esperei e esperei, apesar da tentação – quase compulsão – de abandonar?” Margaret Atwood, L’Odyssée de Penélope 7


© ELIZAB ETH CARECCH IO

ÍTACA – NOSSA ODISSEIA I CHRISTIANE JATAHY INTEGRADO NO ALKANTARA FESTIVAL

Quinta, sexta, sábado e segunda, 21h Domingo, 17h30 Palco da sala Luis Miguel Cintra €15 (com descontos €5 a €10,50) A classificar pela CCE Duração: 2h Espetáculo falado em português e francês com legendas em português e inglês Sexta, 8 junho, após o espetáculo: Conversa entre Christiane Jatahy, encenadora, realizadora e dramaturga, e Thomas Walgrave, diretor artístico do Alkantara Festival

Interpretação: Cédric Eeckout, Isabel Teixeira, Julia Bernat, Karim Bel Kacem, Matthieu Sampeur e Stella Rabello; Direção, dramaturgia e cenário: Christiane Jatahy; Colaborador artístico, luz e cenário: Thomas Walgrave; Colaboração no desenvolvimento da cenografia: Marcelo Lipiani; Designer de som: Alex Fostier; Diretor de fotografia: Paulo Camacho; Figurinos: Siegrid Petit-Imbert, Géraldine Ingremeau; Sistema de vídeo: Julio Parente; Assistente de direção e tradução: Marcus Borja; Colaborador artístico: Henrique Mariano Construção do cenário: Atelier de construction de l’Odéon-Théâtre de l’Europe e equipa de l’OdéonThéâtre de l’Europe, estreado a 16 de março de 2018 nos Ateliers Berthier de l’Odéon-Théâtre de l’Europe Agradecemos especialmente a Kais Razouk, Godrat Arai e Nazeeh Alsahuyny por terem compartilhado partes das suas odisseias connosco Produção: Odéon-Théâtre de l’Europe Coprodução: Théâtre National Wallonie - Bruxelas, Centre Cultural Onassis – Atenas; Comédie de Genève, Ruhrtriennale – Alemanha, São Luiz Teatro Municipal - Lisboa Apoio CENTQUATRE – Paris; Apoio Cultural SESC

O Bilhete Suspenso nunca esgota. Saiba mais em bilheteira@teatrosaoluiz.pt/ 213 257 650 São Luiz Teatro Municipal Direção artística Aida Tavares; Direção executiva Joaquim René; Programação Mais Novos Susana Duarte; Adjunta direção executiva Margarida Pacheco; Secretária de direção: Soraia Amarelinho; Direção de produção Tiza Gonçalves (Diretora), Andreia Luís, Bruno Reis, Margarida Sousa Dias; Direção técnica Hernâni Saúde (Diretor), João Nunes (Adjunto); Iluminação Carlos Tiago, Ricardo Campos, Sara Garrinhas, Sérgio Joaquim; Maquinistas António Palma, Cláudio Ramos, Paulo Mira, Vasco Ferreira; Som João Caldeira, Gonçalo Sousa, Nuno Saias, Rui Lopes; Responsável de manutenção e segurança Ricardo Joaquim; Direção de cena Marta Pedroso (coordenadora), José Calixto, Maria Távora, Ana Cristina Lucas (Assistente); Direção de comunicação Elsa Barão (Diretora), Gabriela Lourenço, Nuno Santos; Relação com públicos Mais Novos Inês Almeida; Bilheteira Ana Ferreira, Cristina Santos, Renato Botão

TEATROSAOLUIZ.PT


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