TEATRO MUNICIPAL
TEATROSAOLUIZ.PT
26 ABR — 6 MAI 2018
TEXTO
MARIUS VON MAYENBURG CRISTINA CARVALHAL NUNO NUNES PEDRO LACERDA SARA CARINHAS SÍLVIA FILIPE
© ESTELLE VALENTE
ENCENAÇÃO
INTERPRETAÇÃO
P E R P LE XOS
Durmam, durmam, pequeninos Cristina Carvalhal Encenadora
«Vive, dizes, no presente; Vive só no presente. Mas eu não quero o presente, quero a realidade; Quero as coisas que existem, não o tempo que as mede. O que é o presente? É uma coisa relativa ao passado e ao futuro. É uma coisa que existe em virtude de outras coisas existirem. Eu quero só a realidade, as coisas sem presente. (…) »
© ESTELLE VALENTE
Alberto Caeiro
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Perplexos parece ir ainda mais longe nesta questão da memória e, consequentemente, da identidade, como se cada nova cena nos convocasse a esquecer, ou a permanentemente reconfigurar o presente, negando mesmo as memórias mais imediatas. E o que significa histórica e politicamente essa erosão da memória? Como poderemos pensar, pensar na acepção de Arendt, procurar entender o significado do mundo e o sentido das nossas acções? Como poderemos aceder a um entendimento crítico do papel do passado no presente e ser historicamente responsáveis? E, assim sendo, de que falará o teatro? Que histórias contará? Como responder quando nos perguntam – é sobre o quê, a peça que estás a fazer? Faz sentido pensar em personagens? Para alguns, o teatro pós-dramático é característico de um mundo em que não existem narrativas porque não é possível eleger um assunto como dominante. A experiência do mundo é tão confusa e ausente de referentes que não é possível identificar responsabilidades ou ter esperança em alguma coisa. Resta-nos adormecer, porventura sonhar, e acreditar que outro dia já lá vem – como ironiza Mayenburg, mas usando a tradicional forma teatral, ou “ao velho estilo” como diria a Winnie, de Happy Days.
Em 2011, a convite de As Boas Raparigas, encenei A Pedra, de Marius von Mayenburg. Na altura fiquei fascinada pela forma da peça, o modo como o autor, através do quotidiano de uma família, nos conta quase 60 anos da história alemã, de 1935 a 1993. A peça interroga a importância do passado Nacional Socialista na construção da identidade do povo alemão, levantando questões associadas à culpa e responsabilidade, que parecem continuar a assombrar o presente de muitos alemães, adquirindo especial relevância para todos os que habitam esse espaço comum chamado Europa, e o mundo tal como hoje o conhecemos. Mas o mais entusiasmante na peça, além da sua estrutura formal, é a perspectiva escolhida por Mayenburg de abordar a narrativa a partir da plasticidade da memória, não só a sua capacidade selectiva, mas também a sua capacidade de reinvenção. Cientificamente falando, de cada vez que nos lembramos de algo, há um processo molecular a acontecer nas nossas sinapses que “reconstrói”, no momento, essa memória. Ou seja, de cada vez que lembramos, construímos, de novo, essa mesma narrativa, e por isso a memória é imprecisa, lembrar é inventar. Em A Pedra, fica a pergunta: até que ponto é consciente uma determinada reescrita do passado, nomeadamente quando se fala de nazismo? 3
Todas as peças de quatro personagens Ricardo Braun Tradutor © ESTELLE VALENTE
e o Mayenburg-dramaturgista, que trabalhou durante dez anos com o encenador Thomas Ostermeier, desde que ele se tornou director da Schaubühne, em Berlim. Somados, estes quatro Mayenburgs dão o homem-de-teatro-Mayenburg e é esse que aparece muito nítido neste texto aparentemente opaco. Mas voltemos ao ponto de viragem. Marius von Mayenburg vê neste texto uma inflexão da sua escrita posterior porque, sabendo que ia ser ele o encenador, decidiu escrever “cenas que sabia que saberia e teria prazer em encenar”. Modéstia à parte, aquilo de que ele fala é da ordem do divertimento (no sentido musical) e de um profundo amor ao processo teatral. O exercício para ele foi escrever um texto para si-enquanto-encenador, para os seus actores e para o gozo da sala de ensaios. E é curioso que esse exercício o tenha levado a escrever sobre o teatro a partir dos seus próprios códigos, dos seus próprios mecanismos e da sua própria linguagem. Para isso, Mayenburg recupera uma fórmula de longa tradição no teatro, aquilo a que poderíamos chamar o drama da discussão conjugal. Podíamos recuar à conversa brutal entre Medeia e Jasão, mas foi o naturalismo do século XIX que explorou a linguagem como arma, como a primeira vez em que Nora Helmer reclama o direito à palavra perante o marido ou o
Segundo o próprio Marius von Mayenburg, Perplexos é um ponto de viragem da sua escrita. Pela primeira vez, o autor Marius von Mayenburg entregou um dos seus textos para ser estreado pelo encenador Marius von Mayenburg. Até então, os textos do Mayenburg-autor eram estreados por outros encenadores e o Mayenburg-encenador encenava textos de outros autores. Para além desses dois, há ainda o Mayenburg-tradutor (de Shakespeare sobretudo, mas também de Sarah Kane e Martin Crimp) 4
à estreia do espectáculo, “quando os dramaturgos escrevem peças de casais vão às fontes da sua arte: já não há nada para inventar (…). Por isso, aplicam toda a sua ambição criativa na forma”. A forma, aqui, é uma sequência de cenas enganadoramente soltas, montadas com a precisão de um relógio complicado, como numa farsa de Feydeau. O jet lag das identidades, das situações, a sobreposição de tempos e de espaços, o aparente lance de dados que governa a ação, permitem-lhe, por um lado, reencontrar a história do teatro e trazer para o palco o espaço em que a incerteza e a dúvida têm lugar privilegiado: a sala de ensaios. Por outro lado, todas essas questões, sobre a mão que lança os dados, sobre o que é ou o que parece ser real, todas as inquietações que afligem o teatro desde o século XX, têm óbvios equivalentes filosóficos, tanto que é possível fazer uma história da filosofia que é uma história do teatro e vice-versa. Na verdade, as referências filosóficas, mais ou menos aprofundadas, aparecem aqui sobretudo como uma abstração, como uma universalização, do processo teatral. As questões que eles, os atores de Pirandello e do pós-dramático, se colocam, também nós nos colocamos nas nossas vidas. Perplexos é, acima de tudo, um jogo, um alegre jogo teatral, um baile de máscaras. E nós, de ambos os lados da quarta parede, fazemos parte desse jogo.
momento em que a mãe semeia a dúvida na cabeça do Pai, de Strindberg, para o enlouquecer. Por humanismo um, por misoginia outro, a questão do discurso chega ao centro do conflito entre marido e mulher, e quando chegamos à Dança da Morte, também de Strindberg, o isolamento do casal deu ao discurso um grau de violência que levará, quase cem anos depois, ao massacre psicológico dos Demónios, de Lars Norén. Mas a comédia dos anos 30 também tem casais e champanhe e mal-entendidos, como numa peça exemplar da pequena tortura de final feliz, as Vidas Privadas, de Noël Coward. O texto paradigmático em que se entrelaçam todos estes fios, um texto tragicómico com um casal alfa e um casal beta, é de um autor americano, pós-Tennessee Williams, atento ao teatro europeu, ao absurdo beckettiano e ao teatro da pausa ameaçadora de Pinter. Com Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, Albee criou o modelo que serviria a todos os textos posteriores: “É assim em todas as peças de quatro personagens: relação sexual com troca de parceiros e subsequente depressão”. Temos então, por ordem, o drama naturalista, a tragédia pré-expressionista, a comedy of manners, o teatro do absurdo, o in-yer-face-por-vir, até um texto como O Deus da Matança: de que maneira continuar toda essa tradição? Como disse um crítico 5
Requiem suspenso Nuno Nabais Professor de Filosofia
No entanto, Perplexos não se situa no que se costuma designar como um teatro pós-dramático. Pelo contrário. O cenário e a sequência das cenas são do mais trivial. Um apartamento e dois casais que, em tempo real, disputam a propriedade e a identidade daquele lugar. Mayenburg leva mesmo ao extremo a regra aristotélica da unidade do espaço e do tempo. A sala de estar e o seu sofá estão sempre ocupados pelas quatro personagens, mesmo quando por vezes duas delas conspiram por trás da porta da cozinha. É no interior dessa estrutura a quatro termos que as personagens entram em colapso. Não como estilhaçamento da sua identidade, ou esvaziamento de uma subjectividade interior, mas por um processo que evoca o que Deleuze chamava de “devires”. E Perplexos respeita os três tipos de devir apresentados no livro Capitalismo e Esquizofrenia II. O devir-animal (no traje de alce da festa temática), o devir-criança (na aparição de uma das personagens em forma de menino caprichoso da juventude hitleriana), o devir-mulher (quando o proprietário do apartamento se descobre transbordante de emoções femininas depois de uma primeira experiência homossexual). Há um segundo plano desta paródia do tema da morte de Deus. O das histórias que, num registo aleatório, os habitantes deste huis clos contam entre si. A mais cómica é a variação anti-humanista
Perplexos transforma em paródia a fórmula “Deus morreu”. Com uma longa citação do famoso parágrafo 125 de A Gaia Ciência, onde os conceitos de “verdade”, “realidade” e “humanidade” são apresentados por Nietzsche como insustentáveis depois da falência da crença cristã num ser absoluto, Marius von Mayenburg recapitula em duas horas os efeitos dessa certidão de óbito passada pelo personagem Friedrich (de fartos bigodes). Em primeiro lugar, trabalha o efeito do “Deus morreu” logo na deriva permanente da identidade das quatro personagens em palco. Mayenburg sabe que grande parte do teatro do século XX se construiu sobre a descoberta de que, se Deus morreu, então as personagens em cena também entraram em colapso. Sabemos como Pirandello ainda inventou a experiência de personagens à procura de um autor. Mas, de Beckett a Botho Strauss, é também o luto da figura do autor que a morte de Deus vem celebrar no palco. O autor do final do século XX existe apenas o tempo necessário para desaparecer por detrás de posturas e diálogos de actores deixados em roda livre. Sem personagens e sem autores, esse palco à deriva tem em Pina Bausch – e nas suas figuras que atravessam às cegas um cenário vazio – a sua expressão máxima. 6
Já não é um teatro dentro do teatro. Também não é um teatro sobre o teatro. Será um divertimento metafísico na ressaca do adiamento infinito da morte do teatro? Apenas alguém com um estatuto incontestado na cena teatral alemã e europeia pode dar-se o luxo de escrever uma tal paródia das perplexidades que atravessam a história da dramaturgia depois de Nietzsche. Marius von Mayenburg tem uma formação clássica em dramaturgia. Com uma licenciatura em germanística, fez uma pós-graduação de 4 anos no departamento de escrita dramática na Universidade de Belas Artes de Berlim, criado logo depois da queda do muro por dramaturgos como Tankred Dorst e Heiner Müller. Desde 1999 que é o dramaturgo residente do Berliner Schaubühne de Lehniner Platz, uma das instituições mais respeitáveis da cena contemporânea. Quando, em 2010, escreve e encena Perplexos – peça imediatamente traduzida nas principais línguas europeias e montada nos grandes palcos de todo o mundo – estaria ele a tentar colocar um ponto final paródico na história das perplexidades que atravessam a experiência do teatro do século XX? Ou, de forma subterrânea, a mostrar que o teatro nunca se pode libertar dos paradoxos sobre os quais, de Aristóteles a Diderot, de Brecht a Beckett, ele mesmo se construiu?
da teoria da selecção natural de Darwin. Se não fomos criados por Deus, então é provável que os humanos sejam a consequência de uma série de aberrações anatómicas que deram certo. Mas tudo se encaminha para uma terceira e derradeira consequência da morte de Deus. Joga-se aí a própria teatralidade do teatro. Sem Deus, sem autores, sem personagens, haverá ainda uma quarta parede que separa o palco do olhar da plateia? E haverá ainda um encenador? Não estarão os quatro actores em palco a representar sem director de cena e sem a presença de um único espectador? Esta suspeita terrífica que desce sobre a última cena é ela mesma encenada por um processo de desmontagem do cenário e de deserção dos actores ao mesmo tempo que entoam uma canção de embalar. E aqui somos surpreendidos por uma última peripécia aristotélica. As várias etapas da desconstrução do teatro que definem a experiência do século XX são redimidas por um regresso à Vida é um Sonho, de Calderón de la Barca. Depois da queda física da quarta parede, depois da desmontagem de todo o cenário no momento em que se torna claro que nunca existiu um encenador, depois do anúncio da deserção do palco dos quatro actores, ainda os escutamos à capela cantar “Durmam, durmam, pequeninos, que nós não somos nada. Somos sonhos, esquecidos, que vão com a madrugada”.
Textos escritos segundo a antiga ortografia 7
© ESTELLE VALENTE
PERPLEXOS
MARIUS VON MAYENBURG ENCENAÇÃO
CRISTINA CARVALHAL Quinta a sábado, 21h Domingo, 17h30 Sala Luis Miguel Cintra; m/16 €12 a €15 (com descontos €5 a €10,50) Duração aprox.: 1h30 6 mai, 17h30 Conversa com a equipa artística após o espetáculo, moderada por Nuno Nabais, professor de Filosofia: 6 maio, 17h30
Encenação: Cristina Carvalhal; Tradução: Ricardo Braun; Interpretação: Nuno Nunes, Pedro Lacerda; Sara Carinhas e Sílvia Filipe; Cenário e figurinos: Ana Limpinho, com Rosário Balbi (máscaras); Luz: José Álvaro Correia; Música: Sérgio Delgado; Estagiário de Produção: Diogo Costa Coprodução: Causas Comuns, Teatro Viriato e São Luiz Teatro Municipal Apoio: Teatro Nacional D. Maria II Agradecimentos: António Palma, Cucha Carvalheiro, João Gameiro Neves, João Vieira de Almeida, Miguel Santana, Nuno Nabais, Vasco Ferreira A CAUSAS COMUNS é uma estrutura financiada pelo Governo de Portugal - Ministério da Cultura / Direção Geral das Artes
O Bilhete Suspenso nunca esgota. Saiba mais em bilheteira@teatrosaoluiz.pt/ 213 257 650 São Luiz Teatro Municipal Direção artística Aida Tavares; Direção executiva Joaquim René; Programação Mais Novos Susana Duarte; Adjunta direção executiva Margarida Pacheco; Secretária de direção: Soraia Amarelinho; Direção de produção Tiza Gonçalves (Diretora), Andreia Luís, Bruno Reis, Margarida Sousa Dias; Direção técnica Hernâni Saúde (Diretor), João Nunes (Adjunto); Iluminação Carlos Tiago, Ricardo Campos, Sara Garrinhas, Sérgio Joaquim; Maquinistas António Palma, Cláudio Ramos, Paulo Mira, Vasco Ferreira; Som João Caldeira, Gonçalo Sousa, Nuno Saias, Rui Lopes; Responsável de manutenção e segurança Ricardo Joaquim; Direção de cena Marta Pedroso (coordenadora), José Calixto, Maria Távora, Ana Cristina Lucas (Assistente); Direção de comunicação Elsa Barão (Diretora), Gabriela Lourenço, Nuno Santos; Relação com públicos Mais Novos Inês Almeida; Bilheteira Ana Ferreira, Cristina Santos, Renato Botão
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