SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL
TIM Ã O 13—23 SETEMBRO 2018
DE WILLIAM SHAKESPEARE
ENCENAÇÃO NUNO CARDOSO
Fotografia José Caldeira
DE ATENAS
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A sociedade pokemonizada
Estou-vos gratos porque roubais às claras, sem santa aparência. O pior dos roubos é feito por profissionais sérios. in Timão de Atenas Timão de Atenas é a mais implacável obra de Shakespeare sobre a misantropia e constitui quase um insulto moral à depravação humana, recusando suavizar a angústia e a amargura resultante do embate frontal que se produz no seu seio com a avareza e a ingratidão. Na sua corrosiva visão da loucura humana, Timão de Atenas assemelha-se a Coriolano pelo desencanto na constatação da prevalência da futilidade como denominador comum da vida. Ontem como hoje, conflitos políticos terminam em impasses ou na vitória dos oportunistas; a populaça e seus líderes são instáveis e medrosos; a virtude cede ao interesse. O retrato que Shakespeare faz de nós em Timão de Atenas é surpreendente na sua contemporaneidade. Na acuidade da reflexão e crítica da natureza política e social da humanidade, por mais globalizada e digitalmente comprimida que esteja. No sarcasmo e desânimo para com a absurdidade trágica da vida. Neste sentido esta peça permanece sombria e desalentadora até ao final,
© José Caldeira
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presta-se ao olhar contemporâneo, pela sua absoluta presença no nosso quotidiano. O que é depressivo na ganância é sua insidiosa normalidade. A avareza não parece ordinariamente aterrorizadora, ela é só desagradável, ridícula e incrivelmente tenaz. A avareza é a mundanidade traiçoeira na sua omnipresença. Por isso, não é de estranhar que os personagens nesta peça, tal como num reality show, sejam praticamente todos tipos ou abstrações sociais, despersonalizados e distantes. Abstrações próximas à alegoria, uma alegoria do mal-estar social. Não há vilões, apenas fracos e tolos. A tensão dramática em Timão de Atenas situa-se na ausência de catarse, repousa exatamente nesse doloroso processo de representação de uma sociedade estática e superficial anódina, saída de uma caixa de diálogo do Facebook. O que é depressivo na ganância, de facto, é a sua insidiosa normalidade. Timão de Atenas é a implosão do indivíduo face ao coletivo, ao que consideramos ser a forma e o ritmo do mundo.
constituindo um severo retrato da vilania humana e da corrupção. Estranhamente este retrato de 400 anos é o corolário lógico, o grande fresco dramatúrgico que resume e sublima tudo o que se disse e fez após a crise global de 2008 e que se traduziu talvez no período mais negro da sociedade democrática portuguesa. Enquanto obra dramatúrgica em si, Timão de Atenas ombreia formalmente com qualquer texto dramático contemporâneo ao desafiar as categorias convencionais da tragédia, comédia e história, criando uma forma de difícil classificação na sua fixação com a morte e a esterilidade. Ao escalpelizar uma queda trágica da grandeza, apresentando um protagonista que é agido através do sofrimento, mas não sofre qualquer crescimento moral. De facto, no seu destino a peça é percursora na definição do arquétipo contemporâneo do Anti-Herói, cujo papel na identificação das falhas de ser humano é tão caro ao discurso dos dias de hoje. Não há redenção em Timão de Atenas, tal como não há redenção no desinteresse com que fazemos zapping entre peças de telejornal sobre personagens chamados Sócrates ou Espírito Santo, os quais não são mais do que uma anatomia tristemente satírica de uma sociedade desvitalizada, ou melhor, Pokemonizada. A ganância humana, com a qual Timão de Atenas está tão ocupada,
Nuno Cardoso / Ao Cabo Teatro
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Timão, em voz alta
descarte e curiosidade mais ou menos hesitante, da natureza da peça como ave rara. Uma coisa é certa: muitos têm feito nota da surpreendente (para eles) eficácia comunicativa da peça em cena. É mais do que isso: são capazes até de conceder o privilégio de solistas ou pares destacados que a peça parece oferecer aos atores, prestando-se a que também eles a “escrevam” numa quota importante, tendo em conta o enredo esquemático e previsível de uma moralidade, mas com matéria-prima poética satírica e lírica abundante para sucessivos contrapontos pungentes ou burlescos, e solos patéticos em série, em substituição de um verdadeiro clímax. A peça tem o seu poder peculiar, na sua mistura de primitivo e invenção. Foi por exemplo capaz de motivar um dos seus raros defensores incondicionais, o crítico G. Wilson Knight, a incluir monólogos de Timão nas suas conferências, que interpretava com uma paixão que deixou lembranças. O número incluía a remoção da roupa do protagonista, para completa composição do misantropo. Timão também é a única peça, ou raríssima, que leva Harold Bloom (mesmo achando exagerada a apologia de G. Wilson Knight) a recordar um espetáculo memorável; isto vindo de um crítico especializado da literatura que sempre fez guerra à
“Nós não somos ladrões. Somos homens de muita necessidade.” in Timão de Atenas Vida de Timão de Atenas, que aparece sempre contada na lista das mal-amadas dentre as peças de Shakespeare, tal como Tito Andrónico ou Troilo e Créssida, é a melhor dessa lista para mostrar os muitos enganos de uma tradição de pendor desproporcionadamente literário na apreciação destes cisnes pretos do texto dramático. A peça tem sido louvada como o ovo do cura: não está inteiramente mal porque tem partes excelentes. Desde logo há os argumentos da sua “imperfeição” trágica – por referência a padrões trágicos sempre difíceis de aclarar, perante o novo modo de fazer isabelino, mais democrático e eclético do que a matriz: uma velha teima académica que tem fracassado no entendimento de peças mais influentes como Romeu e Julieta, quanto mais a respeito de uma peça invulgar na sua construção em quadros, de estilo poético satírico e epigramático... e que nem sequer foi concebida como tragédia. E há os argumentos, ainda mais duvidosos, do seu estado “inacabado” e mesmo da sua ausência dos palcos. A discussão estilística não é especialmente interessante para os fazedores da cena, a não ser como prova, entre reações de 4
Quem trabalha com textos de cena, traduções ou originais, e o respetivo caos de fixação das cópias de trabalho (que sempre foram a substância destes textos, mesmo quando enviados para edição), e quem conhece o trabalho de restauro por vezes demasiado zeloso que o texto de Shakespeare tem sofrido desde o século XVIII, sabe que o argumento da incompletude é frágil neste caso como noutros, sejam o de Péricles ou o de Macbeth. Na mesa de leitura, a peça não tem faltas. A confusão que reina em redor deste material ilustra, afinal, a sua originalidade. Timão, tal como só pode ter sido o caso de Troilo e Créssida, foi escrita para um salão interior, para um tipo de eventos que não estavam sujeitos ao mesmo rigor de registo e beneficiavam de maior favor da parte dos censores que os eventos públicos. Isto explica a suposta ausência dos palcos. E explica o carácter mais seleto da temática e o gosto cortesão das duas obras. O carácter íntimo desses espetáculos também dá sentido ao maior risco e pormenor das suas caricaturas de altas figuras, prontamente identificáveis com a contemporaneidade (a rara versão televisiva/ cinematográfica de Jonathan Miller & BBC colocou a cena no século da sua escrita, e vestiu as personagens em conformidade), ou então de heróis e semi-deuses clássicos, no caso de Troilo.
possibilidade de as montagens cénicas poderem competir com a qualidade bruta dos textos (“There is a marvelous score for it by Duke Ellington, which accompanied Shakespeare’s text when last I saw it in performance, superbly acted by Brian Bedford. I find that the play stages better than it reads; it is intensely dramatic, but very unevenly expressed.”) Esta qualidade dramática não tem sido suficiente para valer à peça um currículo abundante, nem sequer neste tempo de teatro de proximidade em caixa preta, a que parece prestar-se especialmente. Isto deve atribuir-se à prevalência do comentário universitário e histórico no estabelecimento do cânone cénico, dos quais o teatro nunca se libertou. Timão faz a ponte entre a série das tragédias e a das peças tardias conhecidas como romances, de carácter onírico e fabuloso, mesmo quando tratam das crueldades do poder e das afeições. Em suma, a peça não deve à estrutura trágica, perdoe-nos a academia, e essa lacuna não a diminui. Tida por pouco amada no seu tempo e mesmo abandonada pelo autor antes de completada, foi incluída no Fólio de 1623 no lugar inicialmente marcado para Troilo e Créssida, como algumas cópias emendadas desse volume atestam. Daí lhe vem, vendo bem, a etiqueta trágica. Essa inclusão indevida, na nobre secção da tragédia, mostra que o texto foi amado. 5
criterioso, aristocratas dependentes do crédito burguês, profissionais da lisonja de todo o género), e por fim momentos de patético com forte acento lírico, em que as figuras de Timão e do seu Escudeiro, com o contraponto do cínico Apemanto, desdobram todo o painel dessas preocupações mundanas, com uma levíssima capa de história antiga. O aspeto satírico é de uma ambição extraordinária: tendo em conta o público inicial, a peça mostra à corte, como poucas, a sua própria cara, sem poupar os “artistas”, com os seus tiques, a sua falsa modéstia, a sua ilimitada complacência e a ganância igual à dos outros. Os magros corvos do mecenato são de todas as épocas, diz a peça, e divirtam-se os que estão nesta sala com esta verdade simples, e com o desconforto dos visados. A personagem de Apemanto permite que um inferior de um mestre oficinal, um ator, possa vituperar os donos do ouro verdadeiros. E permite um discurso presente sobre o tema – mais uma vez presente –, que põe, dir-se-ia, um cínico austero diante de cínicos hedonistas e narcisistas, que é como muitas vozes críticas têm representado o espírito do momento. Este quadro temático chama, entre outros lugares políticos mais próximos que poderiam ser convocados (como o do destino referendado da própria pátria do poeta à mercê do arbítrio do
Timão oferece a um público palaciano aquilo que este já conhece e aprecia: desde o interlúdio de dança, do bailado das amazonas, uma pura masque ou alegoria, que preencheria decorativamente parte importante do tempo de cena e que sugere um largo espaço para a presença de música em todo o espetáculo (aproveitado na versão que Bloom relembra, uma das notáveis do currículo histórico), até à série de visitações de Timão na sua caverna, que cobre toda a segunda parte das duas únicas em que se divide a peça; ou seja: oferece-se uma série de parábolas que moralizam sobre a crise de valores que a todos desafiava, na fase de enorme expansão económica e burguesa do reinado de Jaime I, com a sua sísmica revisão de regras e costumes. O esplêndido e rápido enriquecimento da corte jacobita – cuja rejeição intensa Shakespeare deixou anotada num soneto, tirado da sua experiência direta de participação no ostentoso desfile da coroação, por exemplo – trouxe esta necessidade de exposição e debate dos tráficos da riqueza e das influências pessoais, tudo misturado no termo grego “valores”, uma etimologia explorada em Timão: propõe-se um espetáculo pouco agitado, musical, com quadros de caricatura ou contradição provocadores dos costumes do público nele retratado (artistas dependentes do mecenato esbanjador e pouco 6
episódica, com a sua intensidade distribuída por quadros sem crescendo climático, com um final tão plano como a praia metafórica do seu cenário, mais do que adivinhado. O resultado desse fecho sem crise, sem reconhecimento, é profundamente nostálgico, e nesse sentido até profundamente pessoal, ao nível do que pode sentir-se, mesmo se de forma ínvia, nos textos do autor que roçam o tema: Shakespeare preferia e era saudoso da moralidade fixa campestre e feudal, e desconfiou sempre do tráfico de princípios das novas corte e cidade do comércio e da competição colonial. A sua querida mediocridade dourada de Stratford ajudou-o por certo a crer profundamente no choro de Timão metido na sua caverna, de tal modo que esqueceu o relógio, e deixou o seu protagonista falar e invetivar os tempos até cansar-se de vez.
super-dinheiro sem rosto nem nome), a crise que a América jeffersoniana e institucional tem vivido, levada a repetir o refrão “the values we stand for”, lembrados por senadores em estado de preocupante reforma forçada ou natural, confrontados com uma Casa Branca nepotista e venal sem qualquer reverência, diga-se, respeito somente, pela paridade formal de poderes das duas casas legislativas em relação à presidência, depositárias da carga ética revolucionária-democrática, com o seu modelo ateniense idealizado, o mesmo modelo de que Timão de Atenas quer ser uma exposição, não apenas didática e declamatória, mas também cómica, como muitos ignoram, espantosamente, porventura obcecados com a avaliação dos traços abstratos de tragédia, esforçando-se por descrever o guião cénico comparativamente, em vez de explorarem o seu carácter invulgar. Sim, a tal crise presente também é cómica, ainda que, como em Timão, não deixe de causar vítimas. Vida de Timão de Atenas, o próprio título o indica, pretende ser a narrativa do curso de uma vida, uma novela exemplar. Um retorno às origens. Um convite à nostalgia pela clareza de princípios, mesmo se incarnados por um protagonista sem talento político para os arrogar, ou justamente apesar disso, apesar dessa falta trágica oculta, portanto sem tragédia! Nisto, é voluntariamente anedótica,
Fernando Villas-Boas
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© José Caldeira
13 a 23 setembro
Encenação: Nuno Cardoso; Tradução: Fernando Villas-Boas; Assistente de encenação: Mafalda Lencastre; Cenografia: F Ribeiro; Desenho de luz: José Álvaro Correia; Desenho de som e Sonoplastia: Pedro Lima; Figurinos: Fernando Nunes, Nelson Vieira; Técnico de luz e Montagem: João Teixeira; Produção: Marca-d’água / Ana Carvalho, Inês Carvalho e Lemos, Sandra Carneiro; Interpretação: Afonso Santos, António Parra, João Melo, Joana Carvalho, Luís Araújo, Margarida Carvalho, Mário Santos, Miguel Loureiro, Pedro Frias, Rodrigo Santos, Sérgio Sá Cunha; Apoios: Elis, Júlio Torcato, Murganheira, Silampos, Teatro Nacional de São João, Valadares, VICRI
teatro
TIMÃO DE ATENAS DE WILLIAM SHAKESPEARE ENCENAÇÃO DE NUNO CARDOSO Quinta a sábado, 21h; domingo, 17h30 Sala Luis Miguel Cintra; m/16 Duração (aprox.): 2h30 com intervalo €12 a €15 com descontos
Coprodução: Ao Cabo Teatro, Teatro Municipal do Porto, Centro Cultural Vila Flor, Teatro Aveirense e São Luiz Teatro Municipal Ao Cabo Teatro é uma estrutura financiada pelo Governo de Portugal / Ministério da Cultura / DireçãoGeral das Artes
CONVERSA COM OS ARTISTAS
domingo, 16 setembro
SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL
Direção Artística Aida Tavares Direção Executiva Joaquim René Assistente da Direção Artística Tiza Gonçalves Programação Mais Novos Susana Duarte Adjunta Direção Executiva Margarida Pacheco Secretária de Direção Soraia Amarelinho Direção de Produção Mafalda Santos (Diretora), Andreia Luís, Margarida Sousa Dias, Tiago Antunes Direção Técnica Hernâni Saúde (Diretor), João Nunes (Adjunto) Iluminação Carlos Tiago, Nuno Samora, Ricardo Campos, Sara Garrinhas, Sérgio Joaquim Maquinistas António Palma, Cláudio Ramos, Paulo Lopes, Paulo Mira, Vasco Ferreira Som João Caldeira Gonçalo Sousa, Nuno Saias, Ricardo Fernandes, Rui Lopes Vídeo João Van Zelst Manutenção e Segurança Ricardo Joaquim Direção de Cena Marta Pedroso (Coordenadora), José Calixto, Maria Tavora, Ana Cristina Lucas (Assistente), Rita Talina (Camareira) Direção de Comunicação Elsa Barão (Diretora), Ana Ferreira, Gabriela Lourenço, Nuno Santos Bilheteira Cristina Santos, Diana Bento, Renato Botão
TEATROSAOLUIZ.PT
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