TRILOGIA DRAMATICA DA TERRA ESPANHOLA MARÇO A ABRIL 2020 COPRODUÇÃO: TEATRO DO BAIRRO, GALERIA GRAÇA BRANDÃO E SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL
DE FEDERICO GARCÍA LORCA ENCENAÇÃO ANTÓNIO PIRES
16 A 26 ABRIL TEATRO SÃO LUIZ BODAS DE SANGUE
© Joana Villaverde
18 MARÇO A 12 ABRIL TEATRO DO BAIRRO YERMA GALERIA GRAÇA BRANDÃO A DESTRUIÇÃO DE SODOMA
Federico García Lorca (1898-1936), poeta e dramaturgo
por parte do público e da crítica. A plenitude de Lorca como dramaturgo só viria a ser alcançada com as peças Bodas de Sangue (1933), Yerma (1934) e A Casa de Bernarda Alba (1936), esta última a sua única peça escrita inteiramente em prosa. Livro de Poemas (1921) e Canções Ciganas (1927) são bem acolhidos pela crítica mas é com o lançamento em 1928 de Romanceiro Gitano, para muitos a maior de suas obras poéticas, que Lorca ingressa na galeria dos grandes nomes da poesia espanhola. Ora cerebral, ora popular, ou uma fusão dessas duas maneiras, Romanceiro Gitano constitui a própria essência do pensamento e da sensibilidade hispânica, expressando principalmente a alma andaluza. Em 1929, viaja para Nova Iorque, onde permanece nove meses como bolsista da Universidade de Columbia. Os poemas que aí escreveu, só publicados postumamente, integram a publicação Um Poeta em Nova Iorque. Já de volta à Espanha, em 1932 cria e dirige a companhia teatral “La Barraca”, que percorre as aldeias de todo o país, encenando autores como Cervantes e Lope de Vega. Em 1934, já era considerado um dos mais importantes poetas e dramaturgos espanhóis. Através de sua poesia, Lorca identificou-se com os judeus, negros, mouros e ciganos, alvos
Considerado um dos grandes nomes da literatura espanhola, Federico García Lorca levou para a sua poesia a paisagem e os costumes da sua terra natal, sendo considerado um dos maiores representantes do teatro poético do século XX. Filho de Federico García Rodriguez, próspero negociante de açúcar, e da professora Vicenta Lorca, nasceu em Fuente Vaqueros na província espanhola de Granada, no dia 5 de junho de 1898. Em 1914, ingressa no curso de Direito na Universidade de Granada, por imposição da família, mas o seu interesse era literatura, a pintura e a música. Em 1918, o seu pai patrocina a publicação do seu primeiro livro – Impressões e Paisagens, obra bem acolhida por parte da crítica. Em 1919 muda-se para Madrid onde continua os estudos, diplomando-se em 1923, mas nunca exerce a profissão. Nessa época aproxima-se de grandes nomes da vanguarda artística espanhola, tornando-se amigo íntimo de Salvador Dalí, Manuel de Falla, Luís Buñuel e Rafael Alberti. Estreia-se no teatro em 1920 a convite de Martinez Sierra, famoso dramaturgo e diretor do Teatro Eslavo, com O Malefício da Mariposa, peça mal recebida 2
de amor e de asco. O que não pode continuar é a sobrevivência das personagens dramáticas que hoje sobem aos palcos levadas pela mão dos seus autores. São personagens ocas, vazias, completamente, as quais só conseguem ver, através de uma jaqueta, um relógio parado, um osso falso ou uma caca de gato dessas que há nos desvãos. Hoje, na Espanha, a generalidade dos autores e dos atores ocupam uma zona apenas intermédia. Escreve-se no teatro para o primeiro balcão e não se satisfazem as plateias nem as galerias. A coisa mais triste deste mundo é escrever para o primeiro balcão. O público que vai ver coisas fica defraudado e o público virgem, o público ingénuo, que é o do povo, não compreende como se fala de problemas que ele despreza nos pátios onde mora. Os culpados são em parte os atores. Não é que sejam más pessoas; mas... “Ouça, Fulaninho (aqui vem o nome do autor), eu queria que me fizesse uma comédia em que eu... faça de eu. Sim, sim, quero fazer isso, nada mais. Quero estrear um vestido primaveril. Gostaria de ter 23 anos. Não se esqueça disso.” E assim não pode fazer teatro. Assim o que se faz é manter uma senhora jovem através dos tempos e um galã, a despeito da arteriosclerose. (…)
de perseguições ao longo da história na sua região. Ele próprio sentiu na pele a discriminação com que muitos trataram da sua condição de homossexual. Em 1936, no auge de sua produção literária, foi executado por militares franquistas, no início da Guerra Civil Espanhola que matou mais de 1 milhão de pessoas. Lorca jamais deixou de manifestar a sua aversão aos fascistas e aos militares franquistas. Faleceu em Granada, no dia 19 de agosto de 1936 e, até hoje, não se conhece o paradeiro dos seus restos mortais.
O meu Teatro – A minha vocação
O teatro foi sempre a minha vocação. Dei ao teatro muitas horas da minha vida. Tenho um conceito de teatro, de certa forma pessoal e resistente. O teatro é a poesia que se levanta do livro e se faz humana. E, fazendo-o, fala e grita, chora e desespera. O teatro precisa de que as personagens que aparecem em cena usem um trajo de poesia e que, ao mesmo tempo, se lhes vejam os ossos, o sangue. Têm que ser tão humanas, tão horrorosamente trágicas e tão amarradas à vida e ao dia que mostrem as suas traições, que se apreciem as suas dores e que se leia nos lábios toda a valentia das suas palavras cheias
Federico Garcia Lorca, entrevista concedida a Felipe Morales em 1936, in Obras Completas, Aguilar, Madrid, 1955. Trad. M.J.Gomes
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Teatro inédito e de juventude
servindo-se da metáfora e, muitas vezes do humor e da ironia, e se volta para fora, com desejos de objetividade, para o mundo sensorial” (Francisco García Lorca). Ao mesmo tempo, na produção lorquiana, nunca cessa o jogo de correspondências intratextuais “entre teatro e poesia, entre adolescência e maturidade”, uma móvel dialética de forma e conteúdo – como no verso de Rubén Dario: “Eu persigo uma forma que não encontra o meu estilo”, vai somando intentos de diferente calibre, fatura e orientação. Exumá-los supõe aceder ao banco de provas de um dramaturgo em progresso. Daí que os resultados, como antecipa um crítico, reflitam uma originalidade, versatilidade e inventiva proporcionalmente maior que noutros sectores da sua obra inicial. O seu trajeto acaba por nos situar nas próprias portas da voz dramática do Lorca universal. (…)
Prosa, teatro, poesia. No ponto de vista da receção, o público granadino pede um prometedor prosador. (Impressiones y paysajes, 1918), o público madrileno teve pouca paciência com um novo dramaturgo (El Maleficio de la Mariposa, 1920), e, por fim, todo o público culto apreciou Libro de poemas de 1921, considerado pelo seu autor como o seu começo “oficial”. No entanto, na extensa produção inédita que lhe serve de base, a sequência vai da prosa para a poesia, e desta para o teatro. A recente edição da prosa e da poesia de juventude confirma a autoria da memória de Francisco García Lorca, segundo o qual, quando o irmão abandonou os estudos de música, em 1916, se lançou a escrever com febril tenacidade, começando em simultâneo com o verso e com a prosa, embora as prosas líricas predominantes até 1918, fossem cedendo passo à poesia, que continuou irresistível, paralela à publicação de Impressiones y paysajes, e, muito pouco depois, ao teatro. Essa posterioridade testemunha que o género teatral, num processo criativo marcado pela “depuração… desde o autodesgaste de uma riquíssima veia inicial” abre passo quando García Lorca se vai afastando “da descrição das suas próprias emoções,
Introdução de Andrés Soria Olmedo, à edição Do Teatro Inédito e de Juventude, Ed. Catedra, Madrid, 1991. Trad. Luis Lima Barreto
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O problema da tragédia moderna
o título - tantas vezes a chave para entender certas peças teatrais – inequívoco a Bodas de Sangue: Tragédia em três atos e sete quadros. Não apenas em Espanha, mas em todo o mundo ocidental moderno, a tragédia chegou a considerar-se um género problemático. Existe um certo consenso crítico que duvida da possibilidade de uma tragédia verdadeira na nossa época racionalista, excessivamente racionalista para entender ou aceitar o fundo irracional do género. Por um lado, parece que somos demasiado céticos e materialistas. E, por outro, a tragédia, sobretudo a tragédia clássica, a grega, foi-se convertendo num tema “mitopoético”, quer dizer, num tema meramente literário. De facto, tanto a tragédia como os seus espectadores parecem ter-se desenraizado no século XX. Esse desenraizamento aplica-se também ao teatro de Lorca? O crítico norte-americano George Steiner, no seu esplêndido estudo A Morte da Tragédia, afirma que desde a antiguidade até ao tempo de Shakespeare e Racine, a tragédia, pela sua misteriosa fusão de dor e alegria – dor pela queda do homem, alegria pela ressurreição do seu espírito –, chegou a ser a criação mais nobre da mente humana. Desde a antiguidade até à época de Shakespeare e Racine essas criações pareciam estar ao alcance dos artistas mais dotados. Mas a partir dessa época, diz Steiner,
No dia anterior à primeira representação de Bodas de Sangue por Margarita Xirgu em Barcelona (22 de novembro de 1935), Federico García Lorca declarou a um jornal: … Trata-se de uma autêntica estreia. Vão ver agora a peça pela primeira vez. Vai representar-se agora na íntegra… Imaginem que já colocaram nos anúncios com o nome real com que tinha batizado a obra: “Tragédia”. As companhias batizam as obras como dramas. Não se atrevem a dizer “tragédias”. Eu, felizmente, encontrei uma atriz inteligente como Margarita Xirgu, que batiza as obras como devem batizar-se. Que queria Lorca dizer com esta palavra tão carregada de sentido? Que significa para ele tragédia? Perceber a reposta equivale a ligar-nos a um dos mistérios mais profundos que nos oferece a terra andaluza desde a sua mais remota antiguidade. Ao mesmo tempo significa compreender a genialidade do seu mais genial autor. O género que denominamos como tragédia no âmbito do teatro mundial não teve grande fortuna no âmbito do teatro espanhol, teatro definitivamente ligado à comédia. Houve inclusivamente quem negasse a existência da tragédia em absoluto. Apesar de uma certa escassez de antecedentes, Lorca não vacilou em dar 5
(…) Tudo isto sabia Lorca à perfeição. Fez disso o seu caminho. Desde muito jovem se deu conta da anomalia que revelava a sua própria cultura e se fundiu como nenhum outro antes ou depois nas suas raízes. Ao fazê-lo, deu-se conta daquela posição genial e única da cultura espanhola, e sobretudo a andaluza, cultura definitivamente ocidental que, não obstante, tinha guardado o antigo sentido trágico da vida. (…)
a voz da tragédia foi-se calando. O avanço da burguesia, a popularidade da novela, a substituição da tragédia pelo género mais exequível do melodrama, a falta de um público “literato”, são tudo fatores que, na opinião de Steiner, contribuíram para a morte da tragédia. Estes factores afetaram Lorca ao escrever Bodas de Sangue? (…) Se traçarmos as suas influências teatrais, teríamos que incluir Goethe e Shakespeare juntamente com os grandes do teatro grego. Lorca sabia perfeitamente que os seus pares não eram Benavente, nem Marquina, nem Martinez Sierra, e percebia que a grande atração do teatro grego pouco ou nada tinha a ver com as famosas regras de unidade com que os seguidores de Aristóteles tinham manietado o género. Sabia, além disso que a grandeza trágica não emanava das formas exteriores de uma obra, mas do seu espírito interior e, como Lessing, podia aceitar perfeitamente Shakespeare ao lado de Sófocles ou ao lado de Ésquilo. Assim, pôs de parte, conscientemente ou não, a divisão fundamental que Lessing tinha proposto, não entre gregos e isabelinos, como se fazia tradicionalmente, mas entre Shakespeare e os neoclássicos, divisão, segundo Lessing, como já notámos, não entre o classicismo e o neoclassicismo, mas entre o classicismo verdadeiro e um falso classicismo.
Allen Josephs e Juan Caballero, introdução a Bodas de Sangue, ed. Cátedra, Madrid 1998. Trad. Luis Lima Barreto
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Bodas de sangue
uma partitura musical. Francisco García Lorca recordaria que o poeta teve que recorrer a toda a sua habilidade, experiência e paciência para conseguir que os atores, não habituados a um teatro tão “total”, fizessem o que ele queria. “O quadro da despedida da Noiva, fragmentado por numerosas entradas de personagens por diferentes e escalonadas alturas, com o jogo alternado de vozes femininas e masculinas que se exprimem em versos de estrema riqueza rítmica, foi principalmente duro”, escreve. O poeta, interrompendo os atores uma e outra vez até conseguir o resultado apetecido, exclamava: “Tem que ser matemático!” Os atores admiravam-se com os conhecimentos cenográficos de Lorca, adquiridos em grande parte em La Barraca, e agradeciam-lhe a clareza com que expunha o que queria. A jovem Amelia de la Torre, que interpretava a Morte, não esqueceria nunca mais o grito do poeta, na plateia, quando no primeiro ensaio lhe apareceu com a cara pintada de branco e os lábios sem cor, pensando que assim devia ser a sinistra personagem da Morte. “A Morte é jovem e bela”, insistiu Lorca, talvez recordando o seu aspeto no Orfeu de Jean Cocteau, encenado uns anos antes por Cipriano Rivas Cheriff na Sala Caracol. Embora Lorca fosse já, sem rival possível, o jovem poeta mais famoso de Espanha, não tinha
(…) Em 30 de janeiro, Hitler foi nomeado chanceler da Alemanha e a imprensa espanhola segue de perto o desenrolar da situação. O incêndio do Reich em 27 de fevereiro, a dissolução dos partidos políticos em março e a concessão de plenos poderes a Hitler, a Concordata com Roma, a crescente perseguição aos judeus e intelectuais alemães… tudo isso é objeto de uma ampla cobertura. Os jornais republicanos e de esquerda, vendo com inquietação o crescimento do fascismo na Alemanha, com todo o poder nas mãos do Partido Nacional Socialista, não têm ilusões com o que ocorre nos bastidores em Espanha, onde a direita, animada pela queda da Republica de Weimar (em cuja constituição se baseou a espanhola), está urdindo nestes momentos a destruição da democracia. É nestas circunstâncias que se desenvolvem os preparativos da estreia de Bodas de Sangue, no Teatro Beatriz, com cenários e figurinos de Santiago Ontañon e Manuel Fontanals e os ensaios já muito avançados no princípio de março. O próprio Lorca os dirige, cuidando particularmente as subtis transições da prosa para a poesia que caracterizam a obra, proibindo taxativamente qualquer veleidade grandiloquente por parte dos atores, orquestrando o ritmo do conjunto como se se tratasse de 7
História de Bodas e Sangue
tido no entanto um grande êxito no teatro. Consegui-lo-ia agora? O crítico veterano do Heraldo de Madrid, Juan González Olmedilla, fez a si próprio esta pergunta no dia 8 de março, manhã da estreia. Tinha visto uma parte do ensaio geral e estava certo de que Bodas de Sangue era a “grande obra” que ele e outros esperavam do poeta. Além disso, (…), tinha alguma coisa para toda a gente, para os intelectuais e para o público normal de teatro. O êxito estava garantido. Tinha razão. Bodas de Sangue triunfou. (…) No dia seguinte, as críticas eram quase unanimemente favoráveis (…) Era evidente que em Bodas de Sangue, Lorca tinha tocado uma – ou várias – fibras sensíveis para todos os espanhóis. (…) Constituirá o primeiro êxito de bilheteira de Lorca. A partir desse momento, o poeta começará a desfrutar da independência económica que havia anos o obcecava.
Em abril de 1935, Lorca, já dramaturgo de crescente fama internacional, deu uma larga entrevista a Nicolás Gonzáles-Deleito onde reflectiu sobre os êxitos recentes das suas tragédias Bodas de Sangue e Yerma: Demoro muito a escrever. Passo três ou quatro anos a pensar numa obra de teatro e depois escrevo-a em quinze dias. Demorei cinco anos a escrever Bodas de Sangue; com Yerma demorei três. As suas figuras são reais, o tema de cada uma delas é rigorosamente autêntico. Primeiro, notas, observações tomadas da própria vida, às vezes, do jornal. Depois um pensar à volta do assunto. Um pensamento longo, constante, profundo. E, por fim, a passagem definitiva; da mente para o palco. Teatro poético, por um lado, afirma o autor, e, por outro, uma base na realidade com temas “rigorosamente autênticos” e “observações tomadas da própria vida, às vezes do jornal”. Traçar esse processo com que o poeta converteria a realidade em poesia, e, no caso de Bodas de Sangue, um estranho e truculento acontecimento, cujas notícias apareceram nos jornais, numa tragédia poética cujas raízes se fundem com os umbrais telúricos do género, é entender a alquimia artística de um dos criadores mais originais do nosso tempo. Qual foi o metal comum daquele
Ian Gibson, Vida, Pasión y Muerte de Federico García Lorca. Plaza & Janes, Barcelona 1998. Trad. Luis Lima Barreto
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a ver com o belíssimo duplo sacrifício no final de Bodas de Sangue? Como todo o grande artista, Lorca eleva sempre a realidade – embora nunca se inspire fora dela - para esferas poéticas e míticas não percetíveis à primeira vista nessa realidade. (…)
acontecimento estranho e truculento que Lorca trocaria em ouro poético em Bodas de Sangue? No dia 22 de julho de 1928, no campo de Níjar, província de Almeria, aconteceu um assassinato que viria chamar-se “o crime de Níjar” e que ocuparia os jornais tanto madrilenos como andaluzes durante mais de uma semana. Segundo conta a hispanista francesa e amiga de Lorca, Marcelle Auclair, no dia 25 de julho Lorca conversava com o seu amigo Santiago Ontañon na Residência de Estudantes, quando entrou outro amigo, Diego Burgos, que pôs em cima da mesa um exemplar do ABC. Lorca pegou nele e exclamou: “Que maravilha, a imprensa! Leiam esta notícia! É um drama difícil de inventar!”. (…) Almeria, 27, 1 da tarde: — Esclarecido o mistério que rodeava o crime cometido nos arredores de NIjar. (…) (O irmão do noivo enganado) acabou por confessar o seu delito. Declarou que bebeu em excesso na quinta e que encontrou os fugitivos no caminho. Então, sentiu tal perturbação e vergonha pela ofensa feita ao irmão que se lançou sobre o fugitivo, a quem tirou um revólver com que tinha, disparando três tiros sobre ele. (…) Assim começou a germinar na mente do autor a obra que demoraria cinco anos a florescer no palco. (…) Excesso de bebida, perturbação, vergonha, tiros, que tem isso
Allen Josephs e Juan Caballero, introdução a Bodas de Sangue, ed. Cátedra, Madrid 1998. Trad. Luis Lima Barreto
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Yerma
foi Bodas de Sangue. Yerma será a tragédia da mulher estéril. O tema, como você sabe, é clássico. Mas eu quero que tenha um desenvolvimento e uma intenção novos. Uma tragédia com quatro personagens principais e coros, como hão de ser as tragédias. Temos que voltar à tragédia. A isso nos obriga a tradição do nosso teatro clássico. Haverá tempo para fazer comédias, farsas. Entretanto, quero dar tragédias ao teatro. Yerma, que está a ser terminada, será a segunda”. Ao perguntar-lhe se estava contente com a obra, o poeta responde: “Contente, creio que fiz o que queria fazer. Já verá se é alegria”. No dia 29 de dezembro, Yerma estreou-se no Teatro Espanhol de Madrid, pela companhia titular desse teatro, encabeçada por Margarita Xirgu e Enrique Borrás, que não participou, por não haver adequado para ele na distribuição. O êxito de crítica e de público foi extraordinário. Em 12 de março de 1935 celebrou-se a centésima representação, onde Henrique Borrás leu o romance do fuzilamento de Torrijos, de Mariana Pineda, e Lorca fez a primeira leitura do Pranto por Ignacio Sanchez Mejía. Proibida durante muitos anos a representação do teatro de Lorca, Yerma voltou aos palcos espanhóis na temporada de 1960-1961. (…)
Federico García Lorca deve ter começado esta obra depois da estreia de Bodas de Sangue, em 8 de março de 1933. Em maio desse ano falou do seu projeto ao seu amigo íntimo Carlos Morla. Em 11 de julho seguinte, numa entrevista a José S. Serna (…) publicada no Heraldo de Madrid, o poeta disse: “Bodas de Sangue é a primeira parte de uma trilogia dramática da terra espanhola. Estou precisamente nestes dias a trabalhar na segunda, ainda sem título, que entregarei a Xirgu. Tema? A mulher estéril”. Em fevereiro de 1934 tratava de acabar esta obra, já com título definitivo, cuja estreia estava anunciada para o primeiro dia de março, por Lola Membrives, no Teatro Avenida, de Buenos Aires. Houve uma mudança no programa e a reaparição da insigne atriz efetuou-se em data anunciada e como homenagem a Federico. Representaram-se o primeiro ato de A Sapateira Prodigiosa, o quadro final de Bodas de Sangue, e a terceira estampa de Mariana Pineda, concluindo-se o espetáculo com a leitura, feita pelo autor, do primeiro ato de Yerma. No dia 3 de julho desse ano, o diário madrileno Luz publicou uma entrevista de Lorca ao escritor Juan Chabás onde o poeta dizia: “Agora vou acabar Yerma, a minha segunda tragédia. A primeira
Federico Garcia Lorca, Yerma, edição de Ildefondo-Manuel Gil, Cátedra - Letras Hispânicas, Madrid 2019. Trad. Luis Lima Barreto
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Yerma escandaliza a direita
e umas grenhas na testa, vai e vem pelo corredor central. À volta dele há uns rapazitos pálidos. (É esse o único mal de Lorca, o séquito, que lhe dá, talvez contra a sua vontade, um ar de Gonzalez Marín, quando entra num café com os seus “peregrinitos” atrás). Na plateia, é verdade, estava um público ilustre como não é fácil encontrar – pelo menos na totalidade – nos ensaios gerais. Público de autêntica “première” ao estilo francês, e tão complexo que vai de Valle-Inclán à Argentinita, passando pelo bailarino Rafael Ortega. A Argentinita!... Tantas coisas que se foram! Encarnación é um pouco como a única musa feminina do grupo, embora isto não queira dizer que García Lorca seja um poeta para homens sós! (Os olhos mais bonitos de Espanha leram o “Romancero Gitano”). Ao ensaio vieram alguns desses olhos, pequenas luzes na penumbra. Profundamente desgostado com o artigo, Cipriano Rivas Cherif, diretor artístico de Margarita Xirgu (a direita fez correr a ideia de que Rivas tem uma relação homossexual com o cunhado, Manuel Azaña, nada menos) proibiu o jornalista de voltar a entrar no Espanhol. A estreia tem lugar na noite seguinte e Unamuno está outra vez, generoso gesto insólito que não passa despercebido aos jornalistas. Quando sobe o pano, não há um lugar livre na sala. Terão ouvido Lorca e os seus amigos o rumor de que elementos de
Nessa época, Lorca frequenta assiduamente um dos cafés mais pitorescos de Madrid, La Ballena Alegre, (…). Aí o descobre uma noite, pouco antes da estreia de Yerma, o jornalista Alfredo Muñiz. Como sempre, o poeta está rodeado de amigos e admiradores: Pablo Neruda (…), o pintor Isaías Cabezón, o músico chileno Acario Cotaposo, o arquitecto Luis Lacasa, Eduardo Ugarte, Rodriguez Rapún e outros companheiros da Barraca, e José Amorós,(…). Lorca costuma passar diretamente da Ballena Alegre para o teatro Espanhol, para assistir aos ensaios de Yerma. Muitas vezes, acompanham-no Ugarte, Rodriguez Rapún e o pintor José Caballero. O poeta confiou-lhe o cartaz da obra. (…). A Caballero desperta-lhe a atenção, durante os ensaios, a insistência do poeta para a cronometragem exata dos movimentos dos atores. O ensaio geral de Yerma, que tem lugar no dia 28 de dezembro, desperta uma grande espectativa. Acorrem a ele numerosas personalidades, entre elas “três barbas ilustres”: Ramón del Valle-Inclán, Miguel de Unamuno e Jacinto Benavente. No dia seguinte, José Luis Salado, jornalista de La Voz, demonstrava ser pouco amigo da homossexualidade: García Lorca, com o seu cachimbo 11
em condená-la, considerando-a imoral, anti espanhola, irreverente e odiosa. El Debate, o jornal católico mais lido do país, porta-voz da CEDA e adulador dos regimes de Hitler e Mussolini, protesta contra o “odioso da obra”, a sua “imoralidade e as suas “blasfémias”. Informaciones, diário do financeiro milionário Juan March, entre cujos colaboradores se encontram vários falangistas, ataca: “A comédia é francamente má, […] não há nada mais soez, grosseiro e baixo que a linguagem que o senhor García Lorca emprega; o poeta contaminou-se e enlameou a sua pena.”
extrema-direita maquinam dar cabo do espetáculo, não apenas pelo conteúdo da obra, considerado por eles de antemão ofensivo, mas também pelas conhecidas simpatias republicanas do poeta e talvez, mais ainda, pela íntima amizade de Margarita Xirgu com Manuel Azaña, acabado de sair da prisão sob fiança? É quase certo que sim. Mal acabou de subir o pano, (…) o rumor tinha fundamento ao começarem a proferir-se gritos contra Margarita Xirgu e Azaña. Lançam-se também qualificativos de “fufa” e “maricas” contra a atriz e Lorca prospectivamente. O resto do público reage com indignação contra os perturbadores, que são expulsos da sala. A identidade dos responsáveis (…), nunca se esclareceria, embora Eduardo Blanco-Amor, também presente, tivesse a convicção de serem falangistas. (…) Uma vez restabelecida a calma, prossegue a representação por entre cenas de extraordinário entusiasmo, não apenas pela qualidade intrínseca da obra, como pela excelência dos atores e dos cenários. Lorca tem que vir várias vezes a agradecer e, quando cai o pano final, os aplausos são retumbantes. O poeta está eufórico, radiante, como também Margarita Xirgu, cuja Yerma comoveu profundamente o público. Se toda a imprensa liberal e progressista elogia a obra, os jornais de direita são unânimes
Ian Gibson, Vida, Pasión y Muerte de Federico García Lorca. Plaza & Janes, Barcelona 1998. Trad. Luis Lima Barreto
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A Destruição de Sodoma
alarido, como um arranhão num vidro ou no gesso, a afirmação de Lot, gritando: “Tornei-a minha!”. Lorca tinha dito a Cardoza y Aragón em Cuba que, comparado com esta obra, Oscar Wilde pareceria “uma antiqualha, uma espécie de grande senhor obeso acanhado…” Era evidente que a intenção que perseguia com O drama das filhas de Lot era sacudir, e sacudir mesmo, o público. Mas primeiro iria consegui-lo com Yerma.
Os reflexos da estreia de Yerma Lorca indica a Alardo Prates que tem a intenção de acabar agora a trilogia iniciada com Bodas de Sangue e continuada com Yerma. O drama das filhas de Lot, assim se intitulará a obra que fecha o ciclo. É quase certo que se trata do drama de que Lorca tinha falado em Cuba, em 1930, a Luis Cardoza y Aragón, e, de regresso a Espanha, a Rafael Martinez Nadal, que então se intitulava A Destruição de Sodoma. Lorca escreveu como mínimo um acto da dita obra, mas, salvo a primeira página dela, desconhece-se o manuscrito. Leu-o a Rodriguez Lapún e a Luis Sanchez de la Calzada na Residência dos Estudantes. Segundo testemunho deste, relatava, num marco “meio Giotto, meio Piero della Francesca”, a chegada dos anjos à cidade e como, quando os habitantes querem sodomizá-los, Lot, aterrado, lhes oferece as filhas em troca, cometendo até ele próprio incesto com uma delas. O que Federico faz na obra é opor o incesto à sodomia, embora eu não veja as razões que o moveram a propor semelhante dilema. Em todo o caso, no final do ato, e isso lembro-me muito bem, produz-se um grande tumulto, vozes, chamas, gemidos, no meio do qual se destaca como um
Ian Gibson, Vida, Pasión y Muerte de Federico García Lorca. Plaza & Janes, Barcelona 1998 Trad. Luis Lima Barreto
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À maneira de prólogo:
forasteiros e elogiar a sua beleza. A cena desenvolvia-se em dois planos, com ritmo de crescente contraponto que cortava um coro de vozes pedindo a entrega dos estrangeiros. Na descrição desta cena havia ecos do “despertar da noiva” de Bodas de Sangue, cortada aqui pela aparição de Lot com as duas filhas no alto da galeria. E era aí a luta desesperada de Lot para salvar os varões, e o oferecer aos sodomitas a beleza virgem das filhas, em troca do respeito pelos hóspedes. Num último esforço para corrigir o desejo anormal, o pai chegava a rasgar as túnicas das filhas para deixar a descoberto os seus seios, “duríssimos como de jovens escravas num mercado tunisino”, foi a expressão usada por Federico. Mas o coro de vozes repetia incessantemente as palavras do Génesis: “Dá-nos os varões, dá-no-los para que os conheçamos”. À porta da casa de Lot aparecem os dois anjos, cegam os homens de Sodoma e conduzem Lot, a mulher e as duas filhas para fora da cidade, enquanto, na praça, a multidão se afadiga por encontrar a entrada. Federico concluía: — Ouvir-se-á o canto distante de um pastorzinho, cortado pela nota sustenida de um violino. Repartidos por todo o palco, os atores ficarão imóveis nos seus lugares, como se parasse de repente o remate cinematográfico de um ballet. O pano cairá lentamente”.
O último dia de Federico García Lorca em Madrid
(…) No táxi, de regresso a Madrid, falava-me dos seus projetos, da trilogia bíblica que há anos vinha ruminando. — O drama de Thamar e Amnón atrai-me enormemente. Desde Tirso que não se fez nada sério com esse estupendo incesto. Mas talvez escreva primeiro A Destruição de Sodoma. Já o tenho todo pensado. Repara para o final de segundo ato. Era o momento em que Lot conduzia os dois anjos para sua casa, seguidos, espiados por alguns rapazes de Sodoma. — Ao fundo da praça, à esquerda, estará a casa de Lot, com uma grande galeria onde se celebrará o banquete. Tudo terá um ambiente pompeiano, de uma Pompeia vista por Giotto. E naquele táxi, a caminho do centro de Madrid, a sua palavra criava praça e casa, enchia-as de conversa e vida, de poesia e sexo. Na galeria, desenrolava-se a conversa de Lot e a mulher com os dois anjos, entrecortada pelos apartes das filhas, famintas de homem, que se interrogavam sobre se a frieza daqueles varões não se devia à mesma debilidade que afligia os de Sodoma. Da galeria a conversa passava para a praça, onde os homens da cidade se iam congregando para comentar a chegada dos misteriosos 14
disse-me: — Toma. Guarda-me isto. Se me acontecer alguma coisa, destrói tudo. Se não, dás-mos quando voltarmos a ver-nos. (…) Ao chegar a casa, abri o pacote que Federico me tinha entregue. Entre papéis pessoais, estava o que parece ser o primeiro esboço de cinco quadros, do drama inédito até 1979, O Público. A incumbência de destruir tudo não podia aplicar-se a este manuscrito.
O drama acabava com a segunda bebedeira de Lot abraçado à sua filha mais nova. A obra estava pensada com todo o pormenor. — Que magnífico tema! – resumia Federico – Jeová destrói a cidade pelo pecado de Sodoma e o resultado é o pecado do incesto. Que grande lição contra os erros da justiça, e os dos pecados, que manifestação da força do sexo. Na Gran Via detivemo-nos uns minutos na livraria alemã para comprar uns livros dele que queria que eu mandasse aos amigos escandinavos, e na casa Cook, para reservar cama no expresso de Andaluzia. Chegámos a casa dele. A repentina euforia que o tinha incitado a contar-me com tanto detalhe a sua Destruição de Sodoma tinha passado. Ao começar a fazer as malas – coisa que sempre o perturbava – tinha ar de cansado e triste. Desajeitado e sem vontade ia acumulando, em total desordem, livros, roupas e papéis. As malas não se fechavam. A transpirar, desanimado, deixou-se cair numa cadeira. — Nada, não posso ir. Rindo, tirei todas as coisas e pu-las um pouco em ordem. As malas fechavam-se perfeitamente. — Estás a ver, Rafael? Muitas viagens, muitos êxitos e muitos projetos, e eu cada vez mais desajeitado. Quando já estávamos a sair, voltou ao quarto, abriu o tampo da mesa e, tirando um pacote,
Rafael Matínez Nadal, “À maneira de prólogo. O último dia de García Lorca em Madrid”. Federico García Lorca, El Publico y Comedia sin título. Dos obras teatrales postumas. Barcelona, Biblioteca Breve, Seix Barral, 1978. Trad. Luis Lima Barreto
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março e abril 2020 teatro
TRILOGIA DRAMÁTICA DA TERRA ESPANHOLA
FEDERICO GARCIA LORCA estreia m/12 Encenação: António Pires; Interpretação: Alexandra Rosa, Carolina Campanela, Carolina Serrão, Francisco Vistas, Hugo Mestre Amaro, João Barbosa, João Maria, Marina Albuquerque, Mariana Branco, Sofia Marques, Rafael Fonseca, Rita Durão; Texto: Federico Garcia Lorca; Tradução: Orlando Vitorino e Azinhal Abelho (Yerma), Luís Lima Barreto (A Destruição de Sodoma), Cecília Meireles (Bodas de Sangue); Música: Paulo Abelho e José Avelino; Cenografia: João Nunes e Iñaki Zoilo (Yerma), João Mendes Ribeiro (A Destruição de Sodoma), Manuel Aires Mateus e Sia Arquitectura (Bodas de Sangue); Figurinos: Luís Mesquita; Desenho de luz: Rui Seabra; Desenho de som: Paulo Abelho; Movimento: Paula Careto; Caracterização: Ivan Coletti; Construção cenário: Fábio Paulo; Costureira: Rosário Balbi ; Assistente de encenação: Miguel Bartolomeu; Assistente de figurinos: Roberta Azevedo Gomes; Assistente de iluminação: José Camacho; Assistente de som: Diogo Neto; Direção de cena: Hugo Mestre Amaro, Rafael Fonseca; Apoio à direção de cena: Afonso Luz; Ilustração: Joana Villaverde; Fotografias de cena: Miguel Bartolomeu; Direção de produção: Ivan Coletti; Administração de produção: Ana Bordalo; Comunicação: Maria João Moura; Produtor: Alexandre Oliveira Coprodução: Ar de Filmes / Teatro do Bairro, Galeria Graça Brandão e São Luiz Teatro Municipal
18 março a 12 abril
YERMA
Teatro do Bairro Quarta a sábado, 21h30; domingo, 17h Duração: 1h15 €5 a €12 bilhete conjunto com A Destruição de Sodoma
18 março a 12 abril
A DESTRUIÇÃO DE SODOMA Galeria Graça Brandão
Quarta a sábado, 21h30; domingo, 17h Duração: 20 min €5 a €12 bilhete conjunto com Yerma
16 a 26 abril
BODAS DE SANGUE São Luiz Teatro Municipal Quarta, sexta e sábado, 21h; quinta, 20h; domingo, 17h30 Sala Luis Miguel Cintra Duração: 1h30 €12 a €15 com descontos
26 abril, domingo
Na aquisição do bilhete para um destes espetáculos, tem direito a um desconto de 50% noutro espetáculo da Trilogia (é obrigatória a apresentação do bilhete impresso nas bilheteiras).
Direção Artística Aida Tavares Direção Executiva Ana Rita Osório Programação Mais Novos Susana Duarte Assistente da Direção Artística Tiza Gonçalves Adjunta Direção Executiva Margarida Pacheco Secretária de Direção Soraia Amarelinho Direção de Comunicação Elsa Barão Comunicação Ana Ferreira, Gabriela Lourenço, Nuno Santos Direção de Produção Mafalda Santos Produção Executiva Andreia Luís, Catarina Ferreira, Mónica Talina, Tiago Antunes Direção Técnica Hernâni Saúde Adjunto da Direção Técnica João Nunes Produção Técnica Margarida Sousa Dias Iluminação Carlos Tiago, Ricardo Campos, Tiago Pedro, Sérgio Joaquim Maquinaria António Palma, Miguel Rocha, Vasco Ferreira, Vítor Madeira Som João Caldeira, Gonçalo Sousa, Nuno Saias, Ricardo Fernandes, Rui Lopes Operação Vídeo João Van Zelst Manutenção e Segurança Ricardo Joaquim Coordenação da Direção de Cena Marta Pedroso Direção de Cena Maria Tavora, Sara Garrinhas Assistente da Direção de Cena Ana Cristina Lucas Bilheteira Cristina Santos, Diana Bento, Renato Botão
TEATROSAOLUIZ.PT